Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10971/15.7T8LSB.L1-6
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: HIPOTECA
FIADORES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: -Num contrato de mútuo, cancelada, com o consentimento do credor, a hipoteca que garantia a obrigação do mutuário, os fiadores deixaram de se poder sub-rogar nos direitos do credor, para os efeitos da desoneração prevista no artigo 653º do CC, já que a nova hipoteca constituída sobre outro prédio não goza da mesma prioridade da hipoteca anterior.
-Contudo, tendo o credor, ora réu, alegado na contestação que o valor do prédio sobre o qual recaiu a nova hipoteca é suficiente para pagamento, não só do crédito prioritário, mas também do mútuo garantido pelos fiadores, ora autores, deverão os autos prosseguir para este facto ser submetido a prova.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


I-RELATÓRIO:


AM… e MM… intentaram acção declarativa com processo comum contra Banco… alegando em síntese que são avalistas de uma livrança em garantia de um contrato mútuo, de que também são fiadores, em que é mutuário o seu filho e mutuante o réu, o qual se destinou à aquisição, pelo mutuário, de um imóvel sobre o qual foi constituída uma hipoteca, mas tendo o mutuário posteriormente permutado este imóvel por outro de valor superior, contraindo novo empréstimo junto do réu para pagar a diferença e mantendo o mútuo anterior, foi cancelada a hipoteca sobre o primeiro imóvel e constituídas duas hipotecas sobre o segundo imóvel, sendo a primeira hipoteca para garantia do novo empréstimo e a segunda hipoteca para garantia do mútuo anterior de que os autores são fiadores e avalistas, pelo que se agravaram os riscos do aval e da fiança que prestaram, sendo-lhes possível recorrer ao disposto no artigo 648º do CC e exigir a sua liberação da fiança prestada.

Concluíram pedindo a condenação do réu a liberar os autores da fiança prestada e a restituir-lhes a livrança em branco por eles avalizada e ainda a promover as diligências necessárias para que, no prazo máximo de 30 dias, deixe de constar da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal a responsabilidade dos autores pela fiança em causa.

O réu contestou, alegando, em síntese, que o mutuário utilizou a totalidade das quantias mutuadas em ambos os mútuos, respeitando a fiança e o aval dos autores apenas ao primeiro empréstimo cujo valor tem vindo a diminuir por via dos regulares pagamentos do mutuário, não podendo as garantias pessoais prestadas pelos autores ser accionadas para pagamento do segundo empréstimo e sendo o valor do imóvel objecto de duas hipotecas para garantia dos dois mútuos superior ao montante global actualmente em dívida nos dois e suficiente para o pagamento de ambos.

Alegou ainda que o aval é irretratável e que o artigo 648º do CC relativo à fiança é oponível ao devedor afiançado e não ao credor.

Concluiu pedindo a improcedência da acção e a absolvição do pedido.

Após os articulados teve lugar audiência preliminar e foi proferido despacho saneador, logo seguido de sentença que decidiu de mérito, julgando a acção improcedente e absolvendo o réu o pedido.
                                                          
Inconformados, os autores interpuseram recurso da sentença e alegaram, formulando conclusões com as seguintes questões:

-Ao ser cancelada a hipoteca sobre o primeiro imóvel, que permitia o pagamento com prioridade sobre os restantes credores, os autores ficaram impedidos de se sub-rogarem aos direitos que lhe competiriam relativamente a esse pagamento prioritário que a segunda hipoteca já não lhes proporciona, o que lhes confere o direito de ficar desonerados da obrigação que contraíram como fiadores, nos termos do artigo 653º do CC, que foi violado pela sentença recorrida.
-A sentença recorrida não teve em consideração que, com a contracção do novo empréstimo, as circunstâncias em que os autores fundaram a sua decisão de contratar foram alteradas, tendo sido violados os artigos 257º nº2 e 437 nº1 do CC.
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O recorrido contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

O recurso foi admitido como apelação com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo.

A questão a decidir é a de saber se se verificam alterações que justifiquem a extinção das garantias prestadas pelos autores ora apelantes.
                                                            
FACTOS.

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos (rectificando-se os pontos 8 e 10, por constar no ponto 10 manifesto de lapso, ao mencionar o número de apresentação 4457):

1.No dia 13 de Abril de 2005, os Autores AM… e MM… constituíram-se fiadores e avalistas no contrato de mútuo com o n°0402000787.
2.Pelo supra referido contrato, AMM…, filho dos Autores, declarou «Que por esta mesma escritura ele segundo outorgante se confessa devedor ao Banco…, que o terceiro outorgante representa, da importância de setenta e nove mil e oitocentos euros que neste acto recebeu do mesmo banco, por empréstimo que este lhe concede ao abrigo das normas para o regime geral do crédito à habitação. (...)», conforme documento n°1 anexo à Contestação do Réu e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (cfr. fls. 92 e ss.).
3.O contrato supra referido destinou-se a permitir ao filho dos Autores a aquisição da fracão autónoma identificada com a letra “K”, com entrada pela Rua …, n°488 e Rua … 163, correspondente a uma habitação no 3° andar esquerdo traseiras, com aparcamento e arrumos na subcave, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n°….
4.Como garantia do bom pagamento daquele financiamento, para além da fiança prestada pelos Autores e da livrança em branco pelos mesmos subscrita, foi constituída uma hipoteca sobre o imóvel supra descrito.
5.No dia 11 de Janeiro de 2010, o filho dos Autores permutou o imóvel supra descrito, pela fracção autónoma identificada com a letra “H” correspondente a uma habitação do tipo T4, com acesso pelo n°54, composta por cave, rés-do-chão e andar com logradouro, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, n°s 38, 46, 54, 62, 74, 82, 96, 104, 112 e 120, lugar de …, freguesia de Arvores, concelho de Vila do Conde, descrito na Conservatória do Registo predial de Vila do Conde sob o nº….
6.Na supra referida permuta, o filho dos Autores para além da entrega da fracção “K” supra descrita, teve ainda de entregar o valor de € 160.000,00, para o que solicitou junto do Banco…, a concessão de um empréstimo naquele valor de € 160.000,00.
7.Como garantia do bom pagamento da quantia mutuada foi constituída uma hipoteca a favor do Banco… sobre a fracção “H” supra descrita, hipoteca registada através da Ap. 4456 de 11.01.2010.
8.Sobre a fracção “H” supra descrita foi ainda constituída uma outra hipoteca como garantia do cumprimento do mútuo n° 0402000787 e que os Autores haviam afiançado, registada através da Ap. 4457 de 11.01.2010.
9.A intervenção dos Autores só se verificou no contrato de mútuo n° 0402000787.
10.A hipoteca que incidia sobre a fracção “K” foi cancelada no dia 11 de Janeiro de 2010, cancelamento que se encontra registado pela Ap. 4453.
                                                           
ENQUADRAMENTO JURÍDICO.

Como resulta dos factos assentes, foi celebrado um contrato de mútuo, em que é mutuante o réu e em que foi constituída uma hipoteca para garantia da obrigação do mutuário, sobre o prédio por este adquirido com a quantia mutuada e, neste mútuo, os autores prestaram garantias à obrigação do mutuário, avalizando uma livrança e constituindo-se fiadores.

Posteriormente, o mutuário permutou o prédio hipotecado por outro de maior valor e celebrou com o réu novo contrato de mútuo, para obter a quantia correspondente à diferença entre o valor dos prédios permutados.

Com o segundo mútuo, em que os autores não intervieram, foi cancelada a hipoteca constituída sobre o primeiro prédio no mútuo de que os autores são garantes e foram constituídas duas hipotecas sobre o novo prédio adquirido por via da permuta.

A primeira hipoteca agora constituída destinou-se a garantir o segundo mútuo em que os autores não intervieram e a segunda hipoteca destinou-se a garantir o primeiro mútuo, ainda em vigor, em que os autores são garantes.

Uma das garantias prestadas pelos autores, a fiança, é uma garantia pessoal das obrigações, cujo regime vem previsto nos artigos 627º e seguintes do CC.

Por força do referido artigo 627º, o fiador garante a satisfação do direito de crédito ficando pessoalmente obrigado perante o credor e a sua obrigação é acessória da obrigação do devedor principal; por seu lado, o artigo 651º estabelece que a fiança se extingue com a extinção da obrigação principal.

Se a obrigação for cumprida pelo fiador, este, nos termos do artigo 644º, fica sub-rogado nos direitos do credor, na medida em que estes foram por ele satisfeitos.

Mas, de harmonia com o artigo 653º, “os fiadores, ainda que solidários, ficam desonerados da obrigação que contraíram, na medida em que, por facto positivo ou negativo do credor, não puderem ficar sub-rogados nos direitos que a este competem.”        
Assim, se por um acção ou omissão do credor, desaparecer ou diminuir a possibilidade de o fiador se sub-rogar nos seus direitos, ficará o fiador desonerado na medida da impossibilidade de sub-rogação.

No presente caso, com o consentimento do réu mutuante, foi cancelada a hipoteca constituída sobre o prédio adquirido pelo mutuário no primeiro mútuo, de que os autores são fiadores, pelo que, se os autores vierem a pagar esta obrigação do mutuário, não poderão dispor dessa hipoteca para se sub-rogarem nos direitos do réu.

E, provando-se que a nova hipoteca constituída sobre o prédio adquirido por permuta, para garantia do primeiro mútuo, foi registada depois da hipoteca constituída sobre o mesmo prédio, para garantia do segundo mútuo, os autores fiadores perderam a prioridade de registo conferida pelo artigo 686º do CC, já que, se o mutuário deixar de pagar os mútuos, o prédio hipotecado irá assegurar primeiro o pagamento do segundo mútuo e só depois o pagamento do mútuo de que os autores são garantes.

Alegou, porém, o réu, na sua contestação, que, apesar de não ter prioridade, a nova hipoteca constituída sobre o prédio adquirido por permuta é suficiente para garantir o pagamento do mútuo garantido pelos autores, já que o prédio tem valor suficiente para pagar os valores em dívida em ambos os mútuos.

Tendo em atenção que, nos termos do artigo 653º do CC, a desoneração dos fiadores só se ocorre na medida da impossibilidade da sua sub-rogação, pode acontecer que a sua obrigação possa ficar apenas reduzida e não extinta, cabendo ao credor o ónus de provar que o prejuízo sofrido pelos fiadores com a perda do seu direito de sub-rogação é inferior a este (cfr. neste sentido P. Lima e A. Varela, CC anotado, volume I, 4ª ed., página 671).

Haverá então que submeter a prova a versão do réu, a fim de apurar em que medida o seu acto de cancelamento da primeira hipoteca levou à impossibilidade de os autores se sub-rogarem nos seus direitos.

Não contêm, pois, os autos todos os elementos de facto para proferir decisão, devendo os mesmos prosseguir para produção de prova sobre o facto, invocado na contestação do réu, de que o valor do prédio objecto das duas hipotecas é suficiente para o pagamento dos dois mútuos.       
                                                           
DECISÃO.

Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e decide-se revogar a sentença recorrida e determinar o prosseguimento dos autos, para ser submetido a prova o facto supra referido, alegado pelo réu na contestação.                                                            
Custas pela parte vencida a final.

                                                           
Lisboa,2016-04-14

                                                             
Maria Teresa Pardal
Carlos Marinho  
Manuela Gomes         
Decisão Texto Integral: