Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2721/18.2T9SXL.L1-9
Relator: MARIA DO CARMO FERREIRA
Descritores: INSTRUÇÃO
PODER JURISDICIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I-Tendo sido através de despacho judicial declarada aberta a instrução, nos termos do disposto no artigo 57- 1 e 3 do C.P.P. foi notificada a  sua constituição aos arguidos e tomado TIR, como legalmente se impunha;
II.Esta decisão esgota o poder jurisdicional do juiz que a proferiu, quanto à matéria da causa, sendo apenas admissíveis alterações que não importem modificação essencial, de harmonia com a previsão do art. 380º, n.ºs 1, al. b), parte final, e 3, deste último diploma legal;
III.Assim, proferida a decisão judicial que admitiu, e bem a abertura da instrução, não pode a mesma vir a ser “revogada” por outro Juiz, no mesmo patamar funcional, pois tal coloca em causa a certeza e a segurança das decisões judiciais e viola o esgotamento do poder jurisdicional;
IV.Por outro lado, para além de estar definido o objecto e a formalidade da requerida abertura da instrução, também, contrariamente ao decidido no despacho recorrido, constata-se que o inquérito visou os factos que a Assistente denunciou e relatou objectivamente no seu requerimento contra as pessoas que viriam a ser constituídas arguidas e cuja eventual responsabilidade criminal foi ponderada nos despachos de arquivamento;
V.Conclui-se portanto que o despacho recorrido violou o esgotamento jurisdicional, pois não poderia ter apreciado de novo o requerimento já objecto de anterior decisão, revogando-a e substituindo-a por outra com entendimento contrário. Sendo ainda de acrescentar que não tem qualquer razão ou fundamento a invocada omissão dos requisitos formais e substanciais da norma legal regulamentadora, do artigo 287 do C.P.P., nem a argumentação de que o inquérito não visou as pessoas agora constituídas como arguidos por força do disposto no artigo 57 do C.P.P.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 9ª. Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.

I. RELATÓRIO.
No âmbito do processo supra identificado que corre termos no Juízo de Instrução Criminal do Seixal, do Tribunal da Comarca de Lisboa, veio a Assistente AA, interpor recurso da decisão judicial proferida em 13 de Setembro de 2019 que lhe não admitiu o seu requerimento de abertura da Instrução.
Na motivação que juntou a fls. 393 a 405 dos autos formula as conclusões que se transcrevem:
A) A Recorrente pretende a censura da decisão de não admitir a abertura de instrução  requerida pela Recorrente, proferida pelo Tribunal a quo por despacho de fls ... , datado de 13.09.2019. O despacho recorrido configura uma manifesta contradição com o anterior despacho de fls ... , datado de 17.07.2019, em que o JIC determinou a abertura de instrução.
B) Ao ter sido admitida a abertura de instrução, ficou imediatamente esgotado o poder do juiz quanto à matéria em causa, nos termos do art.º 613 n.º 1 e 3 do CPC, ex vi art.e 4 do CPP. Pelo que, deverá se concluir que o douto despacho (sindicado) proferido não é legalmente admissível e deverá ser tido como juridicamente inexistente, atendendo que
C) De igual modo, andou mal o Tribunal a quo ao determinar a inadmissibilidade legal da instrução, com fundamento na inexistência de objecto, por considerar que a
Recorrente descuida dos aspectos da narrativa objetiva e subjetiva acusatória que
pretende imputar a cada uma das arguidas
D) No seu requerimento de abertura de instrução, a Recorrente cumpriu com todos os requisitos legais previstos no n.º 2 do art.º 287º do CPP. Isto é, relatou os factos objectivos e subjectivos que imputa às arguidas a aplicação de uma sanção penal, indicando as disposições legais aplicáveis e as razões de discordância relativamente à não acusação e relatou os motivos pelos quais não concorda com o despacho de arquivamento.
E) A inadmissibilidade legal da instrução está prevista para as situações em que INEXISTE OBJECTO, conforme é referido no próprio despacho que se recorre. Ou seja, quando existe uma total omissão ou não contenha uma descrição minimamente inteligível quantos aos factos praticados que possam integrar os seus elementos objectivos e subjectivos, o que não acontece, in casu.
F) Mais, ainda que o Tribunal considerasse existir uma insuficiência de factos no Requerimento de Abertura de Instrução - o que não se aceita - não existia qualquer impedimento legal para o convite ao aperfeiçoamento, como é entendimento da jurisprudência (veja-se Ac. TR Évora, datado de 24.10.2017, Proc. n.º 1383/16.6T9BJA.E1). Não o tendo feito (por considerar estarem preenchidos todos os pressupostos para a sua admissibilidade), não pode vir agora, rejeitá-Io, com fundamento na inexistência de objecto.
G) Por fim, também errou o Tribunal ao ter decidido pela inadmissibilidade legal da instrução, com fundamento que a abertura desta fase processual não tem como finalidade descobrir eventuais agentes do crime.
H) A admissibilidade da abertura da instrução não tem de ser requerida contra pessoas que tenham sido constituídas como arguidas no processo de inquérito, razão pela qual, nos termos do n.º 1 do art.º 37º do CPP, assume a qualidade de arguido aquele contra quem for requerida a instrução.
I) A "única" exigência é que exista uma relação com o objecto de inquérito e o conteúdo da investigação, relativamente à pessoa contra quem foi ouvida no inquérito como testemunha e que agora é requerida a abertura de instrução (veja-se Ac. TR do Porto, datado de 14.09.2016, Proc. n.º 5365/06.8TAVNG.P1).
J) Nos presentes autos, apesar de a participação criminal ter sido deduzida contra a residência sénior "O Lírio", as arguidas foram objetivamente investigadas em sede de inquérito e foram realizadas várias diligências probatórias, com vista ao apuramento da sua responsabilidade criminal pela morte da Ofendida, por violação do dever de vigilância a que estavam adstritas. Nesse sentido, conclui-se que a instrução pode ser requerida contra as funcionárias do lar "O Lírio".
K) Atento o supra exposto, o despacho recorrido deverá ser considerado legalmente inadmissível e juridicamente inexistente, atendendo que o poder jurisdicional do juiz ficou imediatamente esgotado com o despacho em que admitiu a abertura de instrução.
L) Ainda que assim não se considere - o que não se pode aceitar -, sempre se terá de concluir que o requerimento de abertura de instrução cumpre todos os requisitos legais exigidos para a sua admissibilidade.
Nestes termos e nos melhores de Direito, requer- se a V. Exa se digne a dar provimento ao recurso interposto, revogando o despacho recorrido e, ordenando o prosseguimento da instrução.
**
Na resposta ao recurso o Mº.Pº. a fls. 419 dos autos, conclui pela rejeição do recurso, assim concluindo:
(transcreve-se)
1- Por despacho datado de 12 de setembro de 2019, veio o Meritíssimo Juiz de Instrução proceder à reparação do despacho de 12 de julho de 2019 proferido pela
Meritíssima Juiz de Instrução, dando sem efeito a decisão anterior e não admitindo o
requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente/recorrente.
2- Deste último despacho veio a assistente recorrer alegando ser o mesmo inadmissível porquanto o poder jurisdicional do Meritíssimo Juiz de Instrução, quanto a esta questão em particular, já se encontrava esgotado, sendo o mesmo, em seu entender, juridicamente inexistente.
3- Em causa nos autos está o despacho proferido pela Meritíssima Juiz de Instrução que admitiu o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente/recorrente e declarou aberta a instrução, sendo o seguinte o teor de tal despacho: Sendo o requerimento tempestivo, tendo a requerente legitimidade e mostrando-se paga a taxa de justiça correspondente, declaro aberta a instrução requerida pela assistente (. . .).
4- Cabe, pois, aqui analisar se a decisão judicial que admite o requerimento de abertura de instrução adquire força de caso julgado formal, impedindo por isso que o
tribunal conheça posteriormente da sua admissibilidade.
5- A lei distingue entre o caso julgado material e o caso julgado formal, conforme a sua eficácia se estenda ou não a processos diversos daqueles em que foram proferidos os despachos.
6- Em nosso entender, o despacho de admissão do requerimento de abertura de instrução, nos termos em que se encontra formulado, e à semelhança do despacho
previsto no art°311 do CPP ou do despacho previsto no art°63 do Regime Geral das Contraordenações, é meramente tabelar, porquanto foi proferido em termos genéricos quanto à tempestividade e legitimidade da assistente.
7- Com efeito, o despacho que aprecia, não rejeita e que declara aberta a instrução, designando os termos subsequentes do processo deverá, em nosso entender, ser equiparado ao despacho de saneamento do processo proferido ao abrigo do art°311
do CPP.
8- Entende-se valer aqui a fundamentação exarada nos acórdãos n02/95 e 5/2019
e que fixaram jurisprudência quanto à questão de saber se o despacho sobre a legitimidade do Ministério Público proferido em termos genéricos ao abrigo do disposto no artº311 nº1 do CPP constituía caso julgado, ou se o despacho genérico de admissão de impugnação de decisão da autoridade administrativa proferido ao abrigo do disposto no art°63 nºl do Regime Geral das Contraordenações, adquiria força de caso julgado formal.
9- Em ambos os acórdãos foi fixada jurisprudência no sentido de que tais despachos não adquiriam força de caso julgado formal, não impedindo, pois, que o tribunal posteriormente se pronunciasse sobre essas mesmas questões.
10- A fundamentação exarada em ambos os acórdãos colhe aplicação no presente caso, porquanto também o despacho proferido nestes autos pela Meritíssima Juiz de Instrução através do qual admitiu o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, limitou-se a apreciar de forma genérica a questão da tempestividade e da legitimidade.
11- Não adquirindo esse despacho força de caso julgado formal, e não tendo o mesmo se pronunciado quanto à admissibilidade da instrução, o poder jurisdicional do Meritíssimo Juiz de Instrução não se encontrava, pois, esgotado quanto ao conhecimento de tal questão, não lhe estando, por isso, vedada a possibilidade deposteriormente declarar a sua inadmissibilidade por entender que o requerimento
apresentado pela assistente não obedecia aos requisitos previstos no artº287 nº2 do CPP.
12- Aliás, é o próprio artº308 nº3 do CPP que prevê que no despacho de pronúncia ou de não pronúncia, o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer, parecendo daqui resultar que o decidido pelo tribunal em termos genéricos não o impede de, posteriormente, se pronunciar expressamente sobre essas mesmas questões.
13- O facto de no despacho inicial sobre o pedido de abertura de instrução se afirmar que não há causas de rejeição do respectivo requerimento não é obstáculo a que, no final da instrução, se profira decisão a julgar improcedente esse requerimento, com o fundamento de que não descreve os factos integradores do crime pelo qual se pretende a pronúncia do arguido (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de
20/1 0/20 1 O, disponível em ww\v.dgsi.pt).
14- Assim, quanto à questão do esgotamento do poder jurisdicional e da impossibilidade de o Meritíssimo Juiz de Instrução conhecer posteriormente de questões que não foram alvo de apreciação expressa no primeiro despacho, entendemos não assistir razão à recorrente.
15 - Quanto à eventual questão sobre o momento em que a decisão agora alvo de recurso foi proferida, cabe antes de mais aqui dizer que o despacho agora alvo de recurso foi proferido ainda antes do trânsito em julgado do despacho proferido pela
Meritíssima Juiz de Instrução através do qual admitiu o requerimento de abertura de
instrução apresentado pela assistente.
16- Por outro lado, prosseguir com a instrução para a final se declarar a inadmissibilidade desta, colocaria em causa os princípios da economia e da celeridade processual, através da prática de actos inúteis.
17- Entendendo-se, pois, que os fundamentos que estiveram subjacentes ao decidido nos AUJ nº2/95 e 5/2019 colhem aplicação nos presentes autos, conclui-se que a decisão proferida pelo Meritíssimo Juiz de Instrução quanto a esta parte não merece
reparo.
18- A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artº286 n'º1
do CPP), pelo que é essencial que os factos pelos quais o assistente pretende a pronúncia tenham sido objeto do inquérito, sob pena de nulidade processual e consequente inadmissibilidade da instrução.
19- Apenas será admissível um requerimento de abertura de instrução deduzido pelo assistente contra as pessoas em relação às quais tenha sido conduzida a investigação e cuja eventual responsabilidade tenha sido ponderada no despacho de
arquivamento, ainda que no decurso daquela não tenham sido formalmente constituídas arguidas.
20- A abertura da instrução a requerimento do assistente apenas pode ter lugar com vista à pronúncia de alguém não acusado se, relativamente a ele, foi suscitada, em
inquérito, a possibilidade de o mesmo ser autor ou comparticipante de factos ilícitos
que fundamentam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 8 de Setembro de 2015, disponível em www.dgsi.pt).
21- Analisados os elementos juntos aos autos, é possível, em nosso entender, afirmar que contra as denunciadas o Ministério Público entendeu existirem suspeitas, enquanto funcionárias e responsáveis pela vigilância das pessoas que se encontravam no lar, e que poderiam conduzir à incriminação pela prática de um crime de homicídio por negligência.
22- As pessoas contra quem a assistente pretende dirigir a instrução foram efetivamente visadas e objeto de investigação, apesar de não terem sido constituídas
formalmente como arguidas.
23- Conforme resulta do despacho de arquivamento proferido, quer as pessoas visadas pelo requerimento de abertura de instrução, quer os factos que aí são descritos, foram alvo de ponderação pelo Ministério Público no sentido de tuna hipotética responsabilização penal.
24- Pelo que nesta parte se entende que o despacho recorrido não deverá ser confirmado.
25- A recorrente, nas suas conclusões, alega ainda que o requerimento de abertura de instrução, oportunamente formulado por si na qualidade de assistente, é legalmente admissível porquanto obedece aos requisitos impostos pelo art°287 do CPP, considerando que no mesmo narra os factos subsumíveis ao crime de homicídio por negligência que pretende ver imputado às denunciadas, articula os motivos de discordância relativamente à posição tomada pelo Ministério Público no inquérito e solicita os meios de prova a produzir em sede de instrução.
26- O requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente/recorrente não se apresenta como uma acusação em sentido material, não respeita as exigências
essenciais de conteúdo impostas pelo art0287 n02 do CPP, por nele faltar a descrição da atuação de cada uma das denunciadas e a sua contribuição combinada ou singular para o crime praticado.
28- Sem o cumprimento dos requisitos impostos pelo art°287 n02 do CPP não é possível fixar o objeto da instrução, impossibilitando-se quer o poder cognitivo do juiz, quer os direitos de defesa, neste caso, das denunciadas.
29- No seu requerimento, a assistente apenas põe em causa a atuação do Ministério Público, questionando a análise efetuada aos elementos de prova que constam do processo, mas não efetua qualquer relato factual circunstanciado da atuação do agente, quer ao nível objetivo, quer ao nível subjetivo, e que consubstancie aquilo
que a jurisprudência apelida de «acusação alternativa» ao arquivamento por parte do
Ministério Público.
30- Não podemos aqui deixar de concordar com o entendimento sufragado no despacho recorrido.
31- Ao contrário do que alega a recorrente, da leitura integral do requerimento de abertura de instrução apresentado resulta claro que este não contém uma narração,
ainda que sintética, de factos que possam consubstanciar a prática do crime de homicídio por negligência que pretende ver imputado às denunciadas.
32- Com efeito, no mesmo não são descritas as condutas integradoras do ilícito penal que considera ter sido praticado por cada uma das denunciadas ou a que título de participação as mesmas atuaram (coautoria, autoria material). No fundo, os factos
objetivos que preenchem o tipo legal de crime em causa e a modalidade de comparticipação criminosa.
33- Tanto mais que aqui em causa estaria a prática de um crime negligente cuja imputação terá que ter subjacente a violação de um dever objetivo de cuidado, isto é, a omissão de uma precaução reclamada pela prudência e cuja observância teria evitado o facto correspondente ao tipo de crime.
34- Para saber se determinada conduta pode ou não ser imputada ao agente como violadora do dever de cuidado a que está obrigado e em virtude do qual se produziu o resultado, há que averiguar se na configuração dos factos a conduta concreta do autor fez aumentar a possibilidade de produção do resultado.
35- A instrução é totalmente inexequível por ausência completa de objeto resultante da insuficiente narração de factos que permitam fundamentar a aplicação de uma pena às denunciadas, razão pela qual deveria o requerimento de abertura de instrução ter sido rejeitado, como bem decidiu o Meritíssimo Juiz de Instrução no despacho recorrido.
36- Quanto à sanação de tal vício por via do aperfeiçoamento, sobre esta matéria
veio o Supremo Tribunal de Justiça fixar jurisprudência através do Acórdão 7/2005,
através do qual decidiu: Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art. °28 r, n. °2 do
Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos
factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.
37- Termos em que se entende não merecer provimento o recurso apresentado.
*
Respondeu ao recurso a arguida BB, nas fls. 413 a 418 dos autos, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, ali concluindo:
(transcreve-se)
A - A presente resposta respeita ao recurso interposto pela Assistente AA, do Douto Despacho proferido nos presentes autos, em que a mesma alega e pretende em síntese o seguinte: que seja dado provimento ao recurso, revogando-se o Douto Despacho recorrido e, ordenar o prosseguimento da fase de
instrução, entendendo-se que não assiste qualquer razão à assistente no que tange à sua pretensão.
B - Considera-se que o Douto Despacho ora em sindicância se encontra devidamente fundado e fundamentado, nele sendo enumeradas as razões fácticas e de Direito que fundamentam a decisão, onde são levantadas duas questões, a primeira no sentido de qual o conteúdo do requerimento de abertura de instrução seguidamente a um despacho de arquivamento; e a segunda questão a possibilidade de abertura de instrução contra terceiras pessoas nunca constituídas arguidas no processo e portanto, nunca investigadas.
C - No artigo 286º do Código de Processo Penal é referido que a instrução visa a comprovação judicial, no que ao caso dos presentes autos diz respeito, da decisão de arquivar o inquérito.
D - Por sua vez prescreve o artigo 287º do CPP, define na abertura de instrução, quer por parte do arguido, quer por parte do Assistente, relativamente a factos que o Ministério Público não tenha deduzido acusação.
E - Ora, um requerimento de abertura de instrução, salvo melhor opinião, terá que constituir uma acusação alternativa a qual será escrutinada judicialmente, sendo que o que é apresentado pela Assistente não é nada disso, pretendendo com tal requerimento investir o Juiz de Instrução como titular de um novo inquérito, o que é legalmente inadmissível, atropelando todos os preceitos legais no que a esta matéria respeita, violando até princípios de natureza constitucional.
F - Além de que, tal como referido e bem no Douto Despacho ora em sindicância, o requerimento de abertura instrução apresentado pela Assistente não obedece a requisitos tão básicos, como sejam a enumeração de factos concretos que pretende ver assacados a cada uma das pessoas cujas responsabilidades pretende imputar, não narrando objectiva e subjectivamente factos que pretende ver imputados a cada uma das arguidas, o que por si só não pode fazer prosseguir a instrução, pretendendo com esta fase processual apurar quem foram agentes do crime, o que é inadmissível do ponto de vista legal.
G - No caso em concreto estamos a falar de pessoas, todas elas ouvidas em sede de inquérito, nunca foram constituídas arguidas em tal fase processual, sendo ouvidas como testemunhas, não tendo sido objectivamente investigadas como quer fazer crer a assistente; aliás durante a fase de inquérito todas as pessoas referidas pela assistente no seu requerimento de abertura de instrução, aquando da sua audição se suspeitasse que das declarações das mesmas, podiam surgir indícios da prática de um crime, automaticamente seriam constituídas arguidas, o que não foi o caso.
H - A Assistente apresentou uma queixa crime contra o Lar o Lírio, onde e em suma refere que estando a sua mãe à guarda e aos cuidados da entidade denunciada, que a sua morte se ficou a dever a falta de cuidado desta última por a ter deixado sair das instalações, falecendo posteriormente.
I - No que concerne ao relatório de autópsia junto aos autos, nada de conclusivo refere quanto à causa da morte da falecida.
J - Com o devido respeito, a Assistente pretende que seja em sede de instrução seja realizado um novo inquérito contra pessoas nunca constituídas arguidas, nem suspeitas da prática de qualquer crime, pretendendo violar grosseira e flagrantemente o artigo 32° da nossa Constituição da República.
L - Desconhe-se, porquanto a Assistente não o descreve, as exactas circunstâncias de tempo, modo e lugar de actuação da arguida na prática do crime bem como os elementos subjectivos deste.
M - Nos presentes autos não se pode considerar que o requerimento de abertura de instrução apresentado constitua uma "acusação alternativa" susceptível de delimitar o objecto do processo e a actividade cognitiva do Tribunal.
N - Assim, o requerimento de abertura de instrução apresentado pela Assistente é insusceptível de fundar uma eventual pronúncia, por inadmissibilidade legal, pelo que bem andou o Tribunal a quo ao decidir como decidiu.
L - Por todo o exposto o Despacho ora em sindicância não merece qualquer censura, devendo ser mantido na íntegra, não se admitindo a fase de instrução, tal como pretende a assistente, dado que no requerimento que apresenta, salvo o devido respeito, não fixa o objecto desta fase processual como o deveria fazer, não cumprindo todos os requisitos legalmente exigidos neste fase processual.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. Venerandos Desembargadores doutamente suprirão,             negando provimento ao recurso confirmando na integra o Douto Despacho recorrido, farão V. Exas., como sempre, a habitual Justiça.
*
Remetidos os autos a esta Relação, nesta instância a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o parecer constante de fls. 454 no sentido da improcedência do Recurso, aderindo à resposta apresentada pelo Mº.Pº. na 1ª. Instância.
**
Prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento em conferência, nos termos do Art.º 419º do C.P.Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
II.MOTIVAÇÃO.
No caso presente, a questão em causa resume-se a saber se o requerimento de abertura de instrução que apresentou a Assistente, recebido em despacho judicial de 12/07/2019, poderia vir a ser novamente apreciado e indeferido como foi no despacho judicial de 13/09/2019, agora sob recurso.
***
Vejamos assim o que consta do despacho recorrido, que a seguir vai transcrito:
Questão Prévia
Compulsados autos, apesar de ter sido admitida a presente instrução, colocam-se, quanto a nós, várias questões prévias, cuja apreciação impossibilita a sua prossecução e que urge desde já resolver.
Na realidade surpreende-se dos autos que estamos ante um requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente;
Contra quatro pessoas todas elas ouvidas em inquérito e nunca constituídas como arguidas, tendo outrossim sido ouvidas em sede de inquérito como testemunhas conforme resulta de fls. 245, 250, 253 e 256.
Subsequentemente a um despacho de arquivamento.
*
Face à situação processual acabada de expender impõe-se apreciar as seguintes
questões, a saber:
a) Qual o conteúdo do requerimento de abertura de instrução subsequentemente a um despacho de arquivamento.
b) Qual a possibilidade de abertura de instrução relativamente a terceiras pessoas não constituídas arguidas no processo e nunca investigadas.
*
A
Vejamos então a primeira questão que se reporta ao objecto do processo.
Nos termos do artigo 286.º do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial, no que ao caso interessa, da decisão de arquivar o inquérito.
Mais prescreve o artigo 287.º, n.º 2 do mesmo Código que, pese embora o requerimento de abertura de instrução não esteja sujeito a formalidades especiais, deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação, sendo aplicável ao requerimento do assistente, o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b), daquele diploma (a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança), e alínea c) do mesmo Código (indicação das disposições legais aplicáveis).
Com efeito, a diferença substancial entre a acusação e o requerimento para abertura de instrução é a de que, enquanto na acusação se indicam, necessária e unicamente, factos precisos que se reputam já indiciados, no referido requerimento, podem indicar-se factos hipotéticos, com vista a que sejam averiguados em sede instrutória.
Deve, pois, o requerimento de abertura de instrução do assistente conter uma descrição dos factos que, em seu entender, constituem os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena e sobre os quais pretende que o Juiz de Instrução Criminal se pronuncie, no sentido de os mesmos se terem por suficientemente indiciados, ou não, e o respectivo enquadramento jurídico-penal, sendo certo que são tais factos que limitam e constituem o objecto da instrução (neste sentido, Ac. RL de 28/05/1991 in BMJ 407.º-693; Ac. RP de 05/05/1993 in CJ, III, 243; Ac. RC de 17/11/1993 in CJ, V, 59; Ac. RC de 24/11/1993 in CJ, V, 61; Ac. RE de 17/05/1994 in CJ, III,291; Ac. RL de 20/05/1997 in CJ, II, 143; Ac. RP de 21/11/2002 in CJ, V, 225; Ac. RP de 11/10/2001 in CJ, IV,            141;Ac.AL de 21/03/2001 in CJ, II, 131; Ac. RL de 23/05/2001 in CJ, III, 238).
O requerimento de abertura de instrução deve assim constituir, substancialmente, uma acusação alternativa que vai ser sujeita a comprovação judicial, sob pena de ser inexequível e não fixar o objecto da instrução.
Sendo certo que não compete ao juiz de instrução proceder a novo inquérito ou a segundo inquérito para suprir insuficiências dessa fase processual, sob pena de se transferir para o juiz de instrução o exercício da acção penal, em clara violação da estrutura acusatória do nosso processo penal, e pondo em causa a imparcialidade do julgador.
Ora entendemos que o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente não obedece a estes requisitos pois não procede à enumeração dos factos concretos que pretende estarem indiciados relativamente a cada uma das pessoas cuja responsabilidade penal pretende ver assacada.
Na realidade, a assistente limita-se a relatar os motivos que, estando espelhados no despacho de arquivamento, estiveram, mal, na sua opinião, na génese de tal despacho.
Relata ainda os motivos que na sua opinião dariam azo a decisão diversa daquela e os meios de prova que deveriam ser tidos em conta e não o foram bem como outros que pretende que sejam levados a cabo.
Trata-se, pois, de um requerimento que contém várias lacunas, como a omissão dos actos que pretende ver imputados a cada uma das arguidas e os elementos integradores da culpa, sendo que, tal como se apresenta, jamais poderá conduzir à prolação de qualquer despacho de pronuncia, pois que não recai sobre o tribunal o ónus de narrar os factos,  enquadrando-os no espaço e no tempo relativamente a cada um dos arguidos e inserir na acusação os elementos integradores da culpa, substituindo-se à acção da assistente.
O requerimento de abertura de instrução deve configurar, equivaler in totum a um despacho acusatório, com a descrição, narração factual bem apontada e delimitada e, bem assim, deve conter o elemento subjectivo da infracção, não sendo admissível em qualquer um dos elementos constitutivos a ideia de subentendimento.[1]
A assistente descuida os aspectos da narrativa objectiva e subjectivamente acusatória que pretende imputar a cada uma das arguidas, o que inviabiliza a presente instrução.
Há que espartilhar espacial e temporalmente as realidades que se pretende ver imputadas às arguidas, sob pena de não existir objecto instrutório, porquanto esta peça processual tem forçosamente de emergir de uma acusação (embora sob a forma de factos hipotéticos), de factos narrados no requerimento de abertura de instrução, são estes que sendo levados à decisão instrutória constituirão o substracto factual da pronúncia, e é só com estes que se dá, o que é muitas vezes designado como a cristalização da matéria de facto, ou o chamado princípio da vinculação temática.
Não pode igualmente o tribunal convidar a suprir as falhas assinaladas, sob pena de estar a contender com direitos de defesa do arguido.
Com efeito, e como decidiu o Tribunal Constitucional neste âmbito (Ac 27/2001, de 30.01.2201, in DR II série, de 23.03) que “(...) nos casos (...) em que o Ministério Público se decidiu pelo arquivamento do inquérito, o direito de requerer a instrução é reconhecido ao assistente – e que deve revestir a forma de verdadeira acusação – não pode deixar de contender com o direito de defesa do eventual acusado ou arguido no caso daquele não respeitar o prazo fixado na lei para a sua apresentação. O estabelecimento de um prazo peremptório (para o assistente) requerer a abertura de instrução – prazo esse que, uma vez decorrido, impossibilita a prática de um acto – insere-se ainda no âmbito da efectivação plena do direito de defesa do arguido. E a possibilidade de, após a apresentação de um requerimento de abertura de instrução, que veio a ser julgado nulo, se poder repetir, de novo, um tal requerimento para além do prazo legalmente fixado, é, sem dúvida violador das garantias de defesa do eventual arguido ou acusado (...)”- (e mais recentemente Ac. Tc n.º 389/2005, processo 310/2005, DR n.º 201, de 19 de Outubro de 2005, II série, ainda no mesmo sentido, vd, Ac da RP, de 25.05.2001, CJ, Tomo III, pág. 238, e Ac da RL, de 05.12.2002, CJ, Tomo V, pág. 142 e Ac. STJ, n.º 7/2005, in DR, I-A, n.º212, de 4 de.11).
Em conformidade com todo o exposto e de harmonia com as normas legais citadas é de rejeitar, por legalmente inadmissível, face à inexistência de objecto, o requerimento de abertura de instrução deduzido pelo assistente.
*
B
No tocante à segunda das enunciadas questões há que ponderar que a instrução constitui uma fase facultativa que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art.º 286º do C.P.P).
Trata-se assim de uma fase processual que apenas nos pode conduzir a uma de duas decisões: despacho de pronúncia ou de não pronúncia, consoante tenha ocorrido ou não a recolha de indícios suficientes de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança - o que pressupõe, sem qualquer dúvida, a determinação prévia deste sujeito processual.
Com efeito seria, para além do mais, inadmissível que, na fase de instrução, fosse determinado quem foi o agente do crime e viesse a ser proferido despacho de pronúncia resultando daí que, desta forma, o arguido se visse impedido de fazer uso de uma fase processual eminentemente judicial e pensada também no seu interesse, em ordem a evitar a sua submissão a julgamento. A determinação dos agentes do crime é tarefa do inquérito não da fase instrutória ou de julgamento.
Conclusão que não se mostra afastada pelo disposto no art.º 57º, n.º1 do CPP segundo o qual assume a qualidade de arguido todo aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução em processo penal, uma vez que tal pressupõe, sob pena de absoluta incoerência do sistema e violadora dos direitos de garantia do arguido, que as pessoas contra quem é requerida a abertura de instrução tenham sido alvo de processo de averiguações em sede de inquérito pelo titular da acção penal, vulgo o Ministério Público, ora, in casu, a assistente vem requerer a abertura de instrução contra pessoas que; não foram constituídas arguidas nos autos, nunca foram ouvidas como tal, nunca tendo corrido processo crime contra estas.
Com efeito, compulsados os autos, o que se constata é que foi feita uma participação pela assistente contra a residência Sénior o Lírio por entender que estando a sua mãe à guarda e cuidados de tal estabelecimento, a sua morte se deveu a falta de atenção e cuidado porquanto deixaram-na sair para a rua, onde veio a falecer.
Ora independentemente dos dados dos autos, mormente do relatório da autópsia nada concluir quanto à causa da morte da malograda senhora, o certo é que na presente situação, como supra se referiu, nunca correu inquérito contra as pessoas ora visadas, e se assim é o pretendido pela assistente extravasa claramente o âmbito da instrução, ou seja, por outras palavras, o que a assistente pretende não é que o tribunal comprove a decisão de arquivamento em ordem a submeter a causa e alguém a julgamento, outrossim o que pretende é que seja movido novo inquérito contra pessoas nunca visadas nos autos como arguidas e que, por isso mesmo, caso soubessem que estavam a ser alvo de um processo de inquérito poderiam ter intervindo nos autos, exercendo os direitos que a lei lhes confere, tais como oferecer provas, requer diligências, prestar esclarecimentos, fazer exposições escritas, entre outros, sempre tendo em vista a sua defesa, realidades de que se vêm coartadas nesta fase processual, para além de ficarem impossibilitadas de reagir a um eventual despacho de acusação através do competente requerimento de abertura de instrução, em clara violação dos direitos de defesa consagrados no art.º 32 da Lei Fundamental.
Veja-se em sentido idêntico AC RE, procº n.º 58/11.7 MAOLH-A-E1, de 08.09.2015, relator o Exmº Sr Desembargador António Latas, onde se concluiu que “A obrigatoriedade do inquérito em processo comum implica, na sua dimensão garantística, que ninguém pode ser acusado, pronunciado ou julgado, sem que tenha sido objeto de inquérito pela prática de factos que fundamentem a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, pelo que a abertura da instrução a requerimento do assistente com vista à pronúncia de alguém não acusado, apenas pode ter lugar se, relativamente a ele, foi suscitada, em inquérito, a possibilidade de o mesmo ser autor ou comparticipante de factos ilícitos que fundamentem a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança
Assegura-se, deste modo, que ninguém será pronunciado ou julgado sem que a sua responsabilidade penal por crime público ou semipúblico tenha sido equacionada e decidida pelo Ministério Público, titular da ação penal, e sem que possa fazer valer os seus direitos de participação e defesa em duas fases preliminares (inquérito e instrução) de teleologia e titularidade bem distintas.”
No mesmo sentido vide ainda, Ac. RE de 05/05/98 in CJ, Ano XXIII, tomo III, 281 e da RL de 20.06.02, in CJ – III – pág 143
Assim sendo, facilmente se conclui também que o presente requerimento para abertura da instrução, formulado pela assistente, deve ser rejeitado por ser legalmente inadmissível a abertura dessa fase processual com a finalidade de descobrir eventuais agentes do crime.
*
**
Por fim há que esclarecer se é certo que existe um despacho inicial a admitir a instrução tal realidade não exclui a possibilidade de reparação e apreciação ulterior, desde logo porque tal decisão, agora colocada em crise, não configura uma decisão final, pelo que nada obsta à sua reparação, e de igual modo, assim o impõe os princípios de celeridade, eficácia e de proibição de praticar actos inúteis e nulos.
Poderemos assim afirmar, tal como o fez o STJ in processo n.º 04P11302, provindo do processo n.º 3959/02 de 06.05.2004 em processo provindo da Relação de Lisboa, a propósito de matéria análoga que:
“1 - Tendo sido rejeitado o requerimento para abertura da instrução, mantém-se o arquivamento dos autos determinado pelo Ministério Público. Porém, este despacho não tem a natureza de decisão definitiva, pois o processo pode ser reaberto a todo o tempo (isto é, até ao decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal), se, entretanto, surgirem novos elementos de prova, nos termos do art. 279.º do CPP.
2- Trata-se, pois, de uma decisão que perdura enquanto se mantiverem as circunstâncias que a determinaram, oferecendo semelhanças com o caso julgado rebus sic stantibus (Cf. ANABELA MIRANDA RODRIGUES, O Inquérito no Novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal (Centro de Estudos Judiciários), Livraria Almedina 1991).
3 - Assim, não se pode dizer que ponha termo à causa [art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP], enquadrando-se, por isso, no elenco das decisões que não admitem recurso”.
**
*
Face a todo o exposto e pelo conjunto de motivos acima enumerados, não se admite o requerimento de abertura de instrução da assistente.
Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em 2 Uc (art.º 515º, n.º1 alínea f) do CPP e art.º 8º do R.C.P).
Notifique.
**
Antes de prosseguirmos no conhecimento das questões colocadas sob recurso, cumpre fazer um breve historial do processado:
A- Os autos iniciaram-se com a denúncia apresentada na PSP, pela Assistente relativamente ao desaparecimento da sua mãe, ocorrido em 15/8/2018, da residência- Lar “O Lírio”, na Amora onde se encontrava.
B- O Mº.Pº. arquivou o inquérito em despacho que proferiu em 03/12/2018, concluindo pela inexistência de indícios da prática de crime.
C- A Assistente optou por requerer a intervenção hierárquica do Mº.Pº. conseguindo a reabertura do inquérito e a realização de diligências.
D- Por despacho do Mº.Pº., proferido em 06/06/2019 – fls. 284 a 287, foi de novo proferido despacho de arquivamento que considerou não existirem indícios de conduta negligente ou omissiva por parte do Lar ou dos seus funcionários passível de procedimento criminal.
E- Em 03/07/2019, a Assistente requereu a abertura da instrução contra CC, DD, FF e GG, funcionárias do Lar à guarda do qual se encontrava a vítima, portadora de Alzheimer, pela prática de um crime de homicídio por negligência previsto no artigo 137 do C.P.
F- Este requerimento foi apreciado e decidido pelo despacho judicial, proferido em12/07/2019- fls. 323 dos autos, o qual transcrevemos de seguida:
Requerimento de abertura da instrução de fls. 290 e ss.:
Sendo o requerimento tempestivo, tendo a requerente legitimidade e mostrando-se paga a taxa de justiça correspondente, declaro aberta a instrução requerida pela assistente AA contra:
1. BB, melhor id. a fls. 245;
2. DD, melhor id. a fls. 250;
3. FF, melhor id. a fls. 253; e
4. GG, melhor id. a fls. 256.
Cumpra-se o disposto no artigo 287.º, n.os 5 e 6 do Código de Processo Penal.
*
Autue como instrução.
*
Uma vez que só a primeira arguida já constituiu mandatário (fls. 248), diligencie pela nomeação de defensor às arguidas supra indicadas em 2. a 4..
*
Atento o disposto no art. 57.º, n.º 1 e n.º 3 do Código de Processo Penal, solicite ao OPC competente a constituição formal das denunciadas como arguidas e a sujeição das mesmas a TIR.
Deverão as mesmas ser nesse acto notificadas do teor do requerimento de abertura da instrução em análise, bem como da identificação do defensor nomeado.
*
Requerimento de prova de fls. 315 e ss.:
Notifique a requerente para, em 10 dias, para dar cabal cumprimento ao disposto no art. 287.º,n.º 2 do Código de Processo Penal, indicando, por referência aos factos constantes da acusação ou ao requerimento em análise, a matéria de facto a que, em concreto, pretende ver inquirida cada uma das testemunhas, bem como a respectiva razão de ciência, sob pena de, não podendo aferir-se da relevância da prova requerida, ser a pretendida inquirição indeferida.
**
G- Foram efectuadas as diligências respectivas, ficando as pessoas acima identificadas constituídas arguidas, assistidas por Defensor e prestando TIR.
H- Em 12/09/2019 surge o despacho judicial (ao que percebemos de outro Sr.Juíz, diverso do anterior) que decide pelo não recebimento do requerimento da assistente para abertura da Instrução.
 Entendeu o Sr Juiz subscritor do despacho agora sob recurso que, contrariamente ao antes decidido pela sua Colega, o requerimento de abertura da instrução por considerar que não existiu uma fase de inquérito contra as pretendidas arguidas e que o requerimento não possuía objecto de conformidade com os requisitos exigidos pelo artigo 287-2 do C.P.P.
Do histórico acima, vemos que, no caso em apreço, a intervenção hierárquica suscitada pela recorrente quanto ao primeiro despacho de arquivamento proferido a teve deferimento, reiniciando-se o inquérito, com realização de novas diligências de investigação.
Finda a realização das diligências probatórias tidas por necessárias e adequadas, veio a ser proferido novo despacho, também de arquivamento, nos termos do art. 277º, do Cód. Proc. Penal, e, por conseguinte, sujeito aos mesmos trâmites legais que o anterior, designadamente os relativos aos meios de reacção disponíveis.
Neste segundo despacho, a Assistente optou por requerer a abertura da Instrução, o que fez pelo requerimento junto aos autos, de fls.290 a 316, do qual consta a análise crítica do despacho de arquivamento (pontos 1º a 15º ); o relato dos factos que na sua perspectiva se encontram indiciados – descrição da entrada da vítima aos cuidados do Lar, as circunstâncias do seu desaparecimento, a sua condição pessoal, o que considerou a violação dos deveres de cuidado na vigilância da vítima, portadora da doença de Alzheimer, imputando comportamentos omissivos às responsáveis do lar (pontos 16º a 32º) e pontos  41º a 53º, a análise das provas que no seu entender suportam os comportamentos omissivos e negligentes (pontos 73º a 80º) ; os factos relativos ao elemento subjectivo e o enquadramento das condutas descritas na tipologia do artigo 137 do C.P e da responsabilidade civil conexa com o crime imputado ( pontos 92º a 98º e 99ºa 117º9.
Ora, perante este exaustivo requerimento, que, mereceu despacho de aceitação – fls. 323 e acima transcrito- e, da nossa perspectiva, verificando-se que contém todos os requisitos exigidos formal e substancialmente pelo disposto no artigo 287 nº. 2 do C.P.P., (contrariamente ao afirmado no despacho recorrido, que, aliás o faz de forma genérica e abstracta, não dirigida pontual e concretamente ao vertido no requerimento instrutório) , foi e bem declarada aberta a instrução e, nos termos do disposto no artigo 57- 1 e 3 do C.P.P. notificada a constituição aos arguidos e tomado TIR, como legalmente se impunha.
Ora, tal decisão esgota o poder jurisdicional do juiz que a proferiu, quanto à matéria da causa, sendo apenas admissíveis alterações que não importem modificação essencial, de harmonia com a previsão do art. 380º, n.ºs 1, al. b), parte final, e 3, deste último diploma legal.
Ou seja, proferida a decisão judicial que admitiu (e bem ) a abertura da instrução, não pode a mesma vira a ser “revogada” por outro Juiz, no mesmo patamar funcional, pois tal coloca em causa a certeza e a segurança das decisões judiciais e viola o esgotamento do poder jurisdicional.[2]
Por outro lado, para além de termos por definido o objecto e a formalidade da requerida abertura da instrução, também, contrariamente ao decidido no despacho recorrido, constatamos que o inquérito visou os factos que a Assistente denunciou e relatou objectivamente no seu requerimento contra as pessoas que viriam a ser constituídas arguidas e cuja eventual responsabilidade criminal foi ponderada nos despachos de arquivamento. Isto é, as pessoas contra quem a assistente pretende dirigir a instrução foram efectivamente visadas e objecto da investigação da P.J. e Mº.Pº., apesar de não terem sido constituídas formalmente como arguidas naquela fase processual, e foram-no por acontecimentos e condutas que não são estranhas ou diversas daquelas descritas no requerimento instrutório.
Conclui-se portanto que o despacho recorrido violou o esgotamento jurisdicional, não poderia ter apreciado de novo o requerimento já objecto de anterior decisão, revogando-a e substituindo-a por outra com entendimento contrário. Sendo ainda de acrescentar que não tem qualquer razão ou fundamento a invocada omissão dos requisitos formais e substanciais da norma legal regulamentadora, do artigo 287 do C.P.P., nem a argumentação de que o inquérito não visou as pessoas agora constituídas como arguidos por força do disposto no artigo 57 do C.P.P.
III. DECISÃO.
Posto o que se expôs, acordam os Juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em dar provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que proceda às diligências requeridas no requerimento de abertura da instrução, nomeadamente às inquirições das pessoas indicadas em conformidade com o requerimento de fls. 356 a 359, proferindo em conformidade o despacho previsto no artigo 308 do C.P.P.
***
(Acórdão elaborado e integralmente revisto pela relatora – artº 94º, nº 2 do C.P.Penal) 
Lisboa, 12.02.2020                                                                       
Maria do Carmo Ferreira
Cristina Branco
_______________________________________________________
[1] Vide ACÓRDÃO Nº 1/2015 a propósito desta matéria em que foi relator do Exmº Srº Conselheiro Dr Rodrigues da Costa publicado in DR 18º, Série I de 27.01.2015 onde se decidiu que “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal”.
[2] Ac.R.Porto de 22/5/2019 e da mesma Relação, de 14/9/2016 e Ac.R.G. de 11/7/2013- acessíveis em dgsi.pt