Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
579/2008-2
Relator: FARINHA ALVES
Descritores: REMISSÃO
BENS COMUNS
VENDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/03/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - O direito de remição é de natureza excepcional pois que, sendo um direito legal de preferência e, como tal, um direito real de aquisição, está sujeito ao princípio do “numerus clausus”, estabelecido no art. 1306 do C. Civil
II -O regime de remição estabelecido nos artigos 912º e seguintes do CPC não é aplicável à venda de bem comum, efectuada no âmbito da respectiva acção e procedimento de divisão.
(FA)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

O presente recurso de agravo vem interposto do despacho, proferido nos autos de divisão de coisa comum em é autora MO e réu JL, que admitiu o exercício do direito de remição do bem vendido por parte de uma filha do réu.

Nas alegações que apresentou, a agravante formulou as seguintes conclusões:

1. A presente acção de divisão de coisa comum não é uma acção executiva.
2. A venda judicial que teve lugar nos presentes autos pretendeu apenas pôr fim ao processo de divisão, pondo termo à comunhão.
3. A venda judicial que tem lugar na acção executiva é uma venda forçada na medida em que é uma venda coactiva de bens, na qual se pretende obter pelo produto da respectiva venda a satisfação do direito do credor e exequente.
4. Por isso há direito de remição na acção executiva (artigos 912° a 915° CPC).
5. E por isso não há direito de remição na acção de divisão de coisa comum (artigos 1.052° a 1.056° CPC).
6. A existir direito de remição na acção de divisão de coisa comum o remidor resgataria não só o bem do comproprietário seu parente como — o que é um verdadeiro absurdo — obteria por esse modo o bem do outro comproprietário (que não é seu familiar nem parente).
7. A menos que se defenda que o direito de remição incida apenas sobre a metade indivisa do Recorrido.
8. O direito de remição é claramente um benefício de carácter familiar. Tanto por tanto a família prefere aos estranhos.
9. A lei de processo civil apenas admite e reconhece de forma expressa o direito de remição no processo de execução. No quadro da acção executiva.
10. O direito de remição é um privilégio de carácter e natureza absolutamente excepcional, só deve ser admitido e reconhecido o seu exercício no caso em que a lei claramente o estabelece.
11. Sendo o direito de remição um privilégio de carácter e natureza absolutamente excepcional a disposição do artigo 912° CPC, prevista e regulada na acção executiva, é uma norma excepcional.
12. Que não pode alargar-se ou aplicar-se por uma qualquer espécie de analogia a uma acção de divisão de coisa comum.
13. As normas excepcionais não comportam aplicação analógica (artigo 11° do Código Civil).
14. Ao aplicar o direito de remição à acção de divisão de coisa comum – "agilizando" as regras do processo executivo – a M. Juiz "a quo" mais não fez, de modo errado, que aplicar por uma qualquer espécie de analogia a figura do direito de remição previsto e regulado no quadro da acção executiva à acção de divisão de coisa comum.
15. O que a norma do artigo 11° do Código Civil não admite de forma clara e manifesta.
16. Em suma, esteve mal a M. Juiz "a quo" quando deferiu o requerimento de admissão do exercício do direito de remição deduzido por MC, em representação da menor CS, porque destituído de qualquer fundamento e sem cobertura legal numa acção de divisão de coisa comum, devendo a douta Decisão recorrida ser revogada por outra decisão que indefira o direito de remissão e adjudique o bem em causa a favor da Recorrente, com a consequente passagem do respectivo título de transmissão a seu favor.
17. Além disso – o que se alega de forma cautelar, sempre sem conceder – a M. Juiz "a quo" esteve também mal quando na douta Decisão recorrida decidiu não haver no caso em apreço (e no pressuposto do legítimo exercício do direito de remição) que depositar o acréscimo de 5% para indemnização da aqui proponente e Recorrente "pois esta não tinha feito o depósito".
18. Em primeiro lugar, porque o remidor devia ter logo depositado integralmente o preço "com o acréscimo de 5% para indemnização do proponente se este já tiver feito o depósito" (artigo 913°, n.º 2/CPC), o que deveria ter ocasionado o indeferimento do requerido.
19. Em segundo lugar, porque a Recorrente (e proponente em causa) já tinha feito, a essa data, e comprovado nos autos, o pagamento e depósito da quantia pecuniária correspondente à totalidade do preço oferecido.
20. Neste caso, se porventura vier a ser decidido a manutenção da douta Decisão recorrida – reconhecendo-se o exercício do direito de remição na acção de divisão de coisa comum – sempre terá, pelo menos, a Recorrente o direito a receber esse acréscimo, nos termos previstos no artigo 913°, n.º 2/CPC.
21. Donde, com a motivação e os fundamentos expostos, a douta decisão recorrida violou os artigos 912.º e 913.º, n.º 2/CPC e o artigo 11.º do Código Civil….

O réu contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado.

Sendo o objecto dos recursos delimitado pelas conclusões, está em causa no presente agravo saber se não devia ter sido admitida a remição do bem vendido no âmbito da presente acção de divisão de coisa comum. E, a manter-se a remição, saber se é devido à ora agravante o acréscimo de 5% previsto na parte final do n.º 2 do art. 913.º do CPC.

Com interesse para a decisão, está assente a seguinte matéria de facto:
1 - Na presente acção com processo especial de divisão de coisa comum foi requerida a divisão do prédio rústico, composto de cultura arvense e horta, com a área de 10.408 m2, sito na freguesia ……, concelho de Sesimbra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º…. da dita freguesia.
2 – Efectuada a conferência de interessados, foi deliberado proceder à venda do prédio por propostas em carta fechada.
3 - Depois de vicissitudes várias, considerou-se aceite a proposta apresentada pela própria autora MO, no montante de € 49.008,00.
4 – No seguimento, esta, para tanto notificada, veio, por requerimento de 01-06-2007, depositar à ordem dos autos o remanescente do montante correspondente a metade do preço oferecido, posto que era comproprietária de metade indivisa do prédio, e documentar o cumprimento da obrigação fiscal inerente à transmissão.
5 – A 04-06-2007 veio MC, procedendo em representação de sua filha menor CS, também filha do R., requerer o exercício do direito de remição, juntando comprovativo do depósito da quantia de € 49.008,00.
6 – Seguiu-se o despacho ora recorrido onde, na parte que ora releva, foi admitida a remição.
7 – O prédio dos autos foi, anteriormente, propriedade da aqui autora e marido.
8 – Tendo sido penhorado em acção executiva intentada contra, entre outros, o marido da ora requerente, esta requereu a separação de bens, tendo-lhe sido adjudicada a metade indivisa do prédio.
9 – A outra metade indivisa foi adjudicada ao aqui réu, por arrematação no processo executivo.

O Direito

Como se viu, está em causa no presente agravo saber se, na acção de divisão de coisa comum, é admissível o exercício do direito de remição previsto nos artigos 912º a 915º do CPC, em relação à venda do bem comum.
Subsidiariamente, está ainda em causa saber se era devido o acréscimo de 5% do preço previsto no n.º 2 do art. 913.º do CPC.
Na decisão recorrida reconheceu-se o direito de remição, considerando-se que valiam aqui as razões que justificam a sua existência na acção executiva. Uma vez que tal direito visa assegurar aos familiares do executado a preservação do património familiar, também teria justificação no âmbito da divisão de coisa comum.
O que a agravante contesta, defendendo que as situações em confronto não são análogas e que o direito de remição é de natureza excepcional, não podendo ser aplicada por analogia a norma que o estabelece.
Pela nossa parte, julga-se que assiste razão à agravante, não devendo ser mantida a decisão recorrida. No essencial, importa salientar a natureza excepcional do direito de remição que, sendo um direito legal de preferência e, como tal, um direito real de aquisição, está sujeito ao princípio do “numerus clausus”, estabelecido no art. 1306 do C. Civil.
Que se trata de um direito legal de preferência, é ponto que não suscita dúvidas, pois que a sua fonte é a lei e a sua natureza jurídica decorre directamente do seu regime legal. É mesmo um direito de preferência qualificado, pois que prefere os demais direitos de preferência.
E também não suscita dúvidas a natureza real do direito legal de preferência. Neste sentido pode ver-se Mota Pinto, Direitos Reais, Lições coligidas por Álvaro Moreira e Carlos Fraga, 1976, pág. 137 a 141, ou Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, em anotação ao art.s 892º, 912º e 914º.
Consequentemente, e visto o disposto no art. 1306.º do C. Civil, um tal direito só pode ser reconhecido nos casos previstos na lei, tendo, pois, natureza excepcional. O que, nos termos do art. 11.º do CPC obsta à aplicação analógica da norma que o consagra.
Aliás, e como bem salienta a agravante, seria despropositado reconhecer aos familiares de um dos comproprietários o direito de preferirem ao outro comproprietário na aquisição do bem comum. Pelo contrário, julga-se que o regime da acção de divisão de coisa comum está orientado no sentido, que se afigura natural, de dar preferência aos comproprietários na venda do bem comum, em consonância com o direito de preferência estabelecido no art. 1409º do C. Civil.
De resto, sendo por força do preceituado no n.º 3 do art. 463.º do CPC que é aplicável à venda efectuada em processo de divisão de coisa comum o regime do processo de execução, verifica-se que a remissão ali feita é limitada às formas da venda e ao concurso de credores que a deve preceder, nada ali constando em relação ao exercício do direito de remição.
Conclui-se, pois, que o regime de remição estabelecido nos artigos 912º e seguintes do CPC não é aplicável à venda de bem comum, efectuada no âmbito da respectiva acção e procedimento de divisão.
Neste mesmo sentido se pronuncia Lebre de Freitas, Acção Executiva, 4.ª Ed. 335 e foi concluído no Ac. do STJ de 17-04-2007 (relator Urbano Dias), disponível em www.dgsi.pt.
Posto isto, fica prejudicada a apreciação da outra questão suscitada no presente agravo. Não se reconhecendo o direito de remição, não interessa saber se o depósito efectuado pela requerente devia, ou não, ter sido acrescido de 5%. O que, em todo o caso, também se afigura de resposta evidente, pois que, na data em que foi exercido o direito de remição, já a ora agravante havia depositado todo o preço da adjudicação.
Como quer que seja, deverá ser dado provimento ao presente agravo.

Termos em que se acorda em dar provimento ao agravo, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra a apreciar a pretensão da ora agravante no sentido de lhe ser adjudicado o bem em causa nos autos, pretensão que, segundo se julga, não pode ser apreciada no âmbito deste recurso.

Custas pelos agravados.

Lisboa, 03-04-08

(Farinha Alves)
(Tibério Silva)
(Ezagüy Martins)