Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
537/15.7PBPDL.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DOLO
ELEMENTO SUBJECTIVO
ACUSAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP, sendo necessária a narração, na acusação, dos factos conformadores da consciência da ilicitude, enquanto elemento do dolo da culpa e, consequentemente, da sua comprovação (ou não) em julgamento.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


IRELATÓRIO:


1.–Nos presentes autos com o NUIPC 537/15.7PBPDL, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores – Juízo Local Criminal de Ponta Delgada – Juiz 1, em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, foi o arguido R. condenado, por sentença de 26/04/2018, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e nº 2, do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por 18 meses e nas penas acessórias de proibição de contactar com a ofendida MJ e afastamento da residência desta e do seu local de trabalho, se for o caso, a pelo menos 200 metros, pelo período de 18 meses com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância e frequência do “Programa Contigo”.

Foi arbitrada a favor de MJ, nos termos do artigo 82º-A, do CPP e artigo 21º, nºs 1 e 2, da Lei nº 112/2009, de 16/09, a título de indemnização pelos danos sofridos, a quantia de 600,00 euros, acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da sentença até integral pagamento.

2.–O arguido não se conformou com a decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1- Foi o o recorrente condenado na prática de " um crime de violência doméstica p.p. pelo disposto no artigo 152º, n.º 1, alínea b) e nº 2 do C. Penal na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 18 meses, e na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida e afastamento da residência desta, pelo menos 200 metros, pelo período de 18 (dezoito) meses com fiscalização por meios técnicos de controlo à distancia e também a pena acessória de frequência do Programa Contigo."
2- Acontece, porém, que não resulta quer da acusação quer da sentença condenatória " os elementos subjectivos do ilícito, nomeadamente os que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica" do ilícito;
3- Omissão que não pode ser colmatada por apelo às regras da experiência comum em virtude da natureza dos actos, alegadamente, praticados pelo arguido serem configuráveis/compagináveis com outros ilícitos - v.g. injúrias /ofensa à integridade física - podendo assim levar a um erro sobre a ilicitude;
4- A omissão em causa importa a nulidade da decisão recorrida o que expressamente se peticiona por referência ao Acórdão de Fixação de jurisprudência 1/2015, DR, 1ª Série, n.º 18, 27 de Janeiro de 2015;
5- Sistemática - e erroneamente - a decisão recorrida inseriu no capitulo da fundamentação juízos de valor que configuram verdadeiros factos como sejam, que o arguido com a sua conduta pretendia na ofendida provocar o medo, a inquietação, humilhar psiquicamente, ansiedade, prejuízos na saúde da ofendida, actuação livre e consciente e com consciência da ilicitude;
6- Tais factos foram inseridos na decisão recorrida sem deles dar conhecimento ao arguido e/ou possibilitar que exercesse o contraditório e o direito à defesa, configurando uma alteração substancial dos factos descritos na acusação e porquanto,
7- Relativamente a eles o arguido não deu o seu consentimento na continuação do julgamento, deverá a douta decisão recorrida por violação do disposto no artigo 359º do C. P. Penal e artigo 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa, ser considerada nula com a consequente absolvição do arguido.
8- A análise dos factos insertos em 3 (três), 5 (cinco) e 6 (seis) da matéria dada por assente não permite descortinar as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que, alegadamente, ocorreram;
9- Devem, por isso, em face do seu conteúdo indeterminado ou genérico e por não permitirem ao recorrente eficazmente exercer o contraditório, e concomitante direito de defesa, serem considerados nulos e afastados do conhecimento do julgador, por violação do disposto no artigo 31º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa;
10- A decisão recorrida valorou para efeitos de determinação da medida concreta da pena - e que inclusive qualificou como circunstância agravante - alegados acontecimentos envolvendo a ofendida e recorrente " dias antes do julgamento".
11- Sobre os mesmos não foi deduzida qualquer acusação ao recorrente nem foi concedida - formalmente - a faculdade de se defender;
12- Por o julgador ter alicerçado as razões de ciência em factos cuja apreciação não foi levada ao conhecimento do inquiridor e, alegadamente, ocorridos, após a prolação da acusação deve a decisão recorrida ser considerada nula por violação do já citado principio constitucional do direito ao contraditório e à defesa inserto artigo 31º da Constituição da ^ República Portuguesa;
13- Assim não se entendendo temos que, e como escrito ficou, foi o recorrente condenado pela prática dum crime de violência doméstica p.p. pelo disposto no artigo 152º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do C. Penal na pena de 2 (dois) anos de prisão por a decisão recorrida ter concluído que o comportamento ilícito verificou-se no domicílio da ofendida;
14- Verdade, porém, é que da análise dos factos dados por provados não se encontra identificado o domicílio da vitima. Aliás, nem sequer foi apurado o domicílio que arguido e ofendida partilharam;
15- Desta forma e por erróneo enquadramento jurídico dos factos cumpre absolver o recorrente da prática de um crime de violência doméstica prevista pelo nº 2 do artigo 152º do C. Penal.
16- Por último temos que, foi o recorrente condenado na pena acessória de proibição de contactar com a ofendida e afastamento da residência desta e do seu local de trabalho se for o caso a pelo menos 200 metros, com fiscalização de meios técnicos á distância;
17- Esta pena acessória impossibilita, por completo e irremediavelmente, o contacto do recorrente com o filho do casal e o cumprimento do acordo de regulação das responsabilidades parentais. É por isso lesiva dos interesses do menor.
18- Mesmo que se defenda que visa a protecção da ofendida e as necessidades de prevenção geral, sempre essas poderiam ser protegidas - em caso de reiteração do arguido da alegada conduta criminosa - pela sua audição, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 56º, nº 1, alínea b), parte final, do Código Penal, para eventual revogação da decisão de suspensão da execução da pena pelo que,
19- Deverá o segmento da decisão condenatória que aplica a pena acessória de proibição de contactar com a ofendida e afastamento da residência desta e do seu local de trabalho se for o caso a pelo menos 200 metros, com fiscalização de meios técnicos á distância, por atentatória do princípio da proporcionalidade e adequação das penas e do preceituado no disposto no artigos 71º e 152º, nº 4, ambos do C. Penal ser revogada.
Termos em que, pelas razões expostas, nulidades e normas jurídicas invocadas, deverá a decisão recorrida ser revogada com a consequente absolvição do recorrente ou, assim não se entendendo, o arguido absolvido da prática de um crime de violência doméstica, p.p. pelo disposto no artigo 152º, nº 2 do C. Penal, devendo, no mesmo acto, ser revogada a pena acessória aplicada, assim se fazendo a habitual Justiça.

3.–Respondeu o magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo à motivação de recurso,pugnando pelo não provimento.

4.–Resposta apresentou também a assistente M.F.M.J., concluindo pela improcedência do recurso.

5.–Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

6.–Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.

7.–Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II–FUNDAMENTAÇÃO.

1.–Âmbito do Recurso.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Nulidade da decisão revidenda por condenar por factos não descritos na acusação.
Enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido.
Nulidade da decisão revidenda por atender a factos não descritos na acusação para a determinação da medida concreta da pena.
Inadequação da pena acessória de proibição de contactar com a assistente e afastamento da residência desta e do seu local de trabalho.

2.–A Decisão Recorrida

O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

1.-O arguido R. e a ofendida MJ partilharam cama, mesa e habitação durante cerca de quatro anos e até Março de 2015.
2.-Em comum têm um filho menor de idade.
3.-No decurso do relacionamento que mantiveram e por motivo de ciúme o arguido controlava a conta do facebook da ofendida bem como as facturas da conta de telemóvel dela.
4.-Em Outubro de 2013 a ofendida começou a trabalhar numa empresa do ramo imobiliário e o arguido continuou a estudar.
5.-Quando a ofendida ficava sem dinheiro o arguido dizia-lhe para o pedir aos pais. Como a ofendida se recusasse a fazê-lo o arguido discutia com ela e dizia-lhe " És uma puta! Uma burra! Não vales nada! Não sabes fazer nada! És uma desequilibrada e vou tirar-te o miúdo!".
6.-Quando discutiam por mais do que uma vez o arguido deu encontrões à ofendida.
7.-No dia 24 de Abril de 2015, pelas 12h20m, o arguido entrou no local de trabalho da ofendida sito no L... C... em P...D... e teve acesso ao mail dela.
8.-Apercebeu-se de que a ofendida tinha enviado fotografias a outro indivíduo e começou a telefonar-lhe dizendo que ela era uma "puta", que tinha provas e que era uma má mãe.
9.-Nesse mesmo dia o arguido foi a casa dos pais da ofendida onde ela se encontrava com o filho de ambos e disse à mãe dela que a ofendida era uma puta.
10.-No dia seguinte o arguido voltou a casa dos pais da ofendida tendo dito a esta que ela tinha relações sexuais com outros homens nos apartamentos que mostrava para venda.
11.-No dia 27 de Abril de 2015, o arguido abordou a ofendida na Rua V... N... e insultou-a dizendo " És uma cabra, uma puta, uma desequilibrada! Nenhum juiz te vai entregar o filho por seres assim!".
12.-Em seguida agarrou-a pelos braços e encostou-a à parede empurrando-a com força ao mesmo tempo que lhe dizia que ela nunca teria coragem de ir fazer queixa do pai do filho à P.S.P..
13.-No mês de janeiro de 2016, por mais do que uma vez, o arguido enviou pelo telemóvel mensagens à ofendida, chamando-lhe " cabra, cadela, mulher das cavernas" e dizendo que ela lhe metia nojo.
14.-No dia 17 de Abril de 2016, o arguido foi até ao local de trabalho da ofendida no centro comercial P. e chamou-lhe ladra.
15.-O arguido agiu de forma deliberada e consciente querendo vexar e maltratar física e psicologicamente a ofendida sua ex-companheira e mãe do seu filho.
16.-O arguido não tem antecedentes criminais.
17.-Embora evidencie, presentemente, alguma capacidade de autocensura, que sustenta o seu actual entendimento relativamente à censurabilidade jurídica e social dos factos, não deixa, no entanto, o mesmo de continuar a desaprovar a forma como a presumível vítima, exerce o seu papel de mãe, por via, sobretudo, das suas muitas ocupações com o trabalho e do usufruto de convívios em detrimento do tempo de qualidade que deveria ser direccionado ao filho.
18.-Toda esta dinâmica de disfunção conjugal indicia ter sido responsável pelo desencadear de um conjunto de factores de stress acrescidos no arguido, se atendermos que o mesmo admite os seus sentimentos de revolta pela ruptura da relação, que deveria, na sua óptica, ser preservada em função dos interesses do filho de ambos e concretizável mediante uma abnegação quase total das figuras parentais.
19.-Num percurso laboral de certa forma regular, o arguido encontra-se, desde de 2016, empregado na C. (empresa imobiliária), sendo que a empresa referenciada, remunera-o também sob a forma de percentagem do valor das vendas efectuadas. Actualmente, a percentagem do valor das vendas feitas pelo arguido na referida empresa, sendo que, em 2016 o arguido totalizou um rendimento de € 8.000,00/ano.
20.-Os seus rendimentos anuais são contudo variáveis, o que se reflecte em termos de remuneração mensal, determinando uma certa dependência do arguido do suporte económico dos pais, com o qual responde a despesas algo significativas, como por exemplo os encargos com a segurança social, para além de beneficiar de entendidas condições habitacionais adequadas.
21.-De referenciar que entre as despesas fixas mensais do arguido se inclui a pensão de alimentos no valor de € 100,00/mês e que segundo o próprio não tem cumprido, alegando para o efeito os seus parcos rendimentos.
22.-O arguido efectuou um processo de socialização adequado, enquadrando presentemente o agregado dos pais, pessoas bem conotadas no meio sócio residencial, detendo o próprio, também uma imagem positiva no mesmo meio, associada a atitudes de aceitação.

Quanto aos factos não provados, considerou como tal (transcrição):

No dia 17 de Abril de 2016, o arguido foi até ao local de trabalho da ofendida no centro comercial P. e chamou-lhe criminosa.

Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

A convicção do Tribunal assentou na análise crítica da prova produzida em audiência conjugada com as regras de experiência comum.
O arguido prestou declarações negando os factos ou dizendo deles não se recordar, admitindo que chamou à assistente "puta", "burra", "não vales nada, és uma desequilibrada", mais admitindo o envio das sms e pedidos de chamadas, esclarecendo que se destinavam a falar sobre o filho de ambos.
Explica que a assistente é pessoa frágil nas redes sociais e em causa só estão dificuldades de comunicação. Assumiu uma postura de desculpa permanente, mas não assume o desvalor dos seus comportamentos, optando por se explicar continuamente.
As declarações da assistente, não obstante emotivas foram sentidas e objectivas, dando conta de todos os episódios que constam da matéria assente e das circunstâncias em que os mesmos ocorreram, para além de merecerem a credibilidade do tribunal por si só pela forma como foram prestadas (disse mesmo que o arguido não a chamou de criminosa mas só de ladra no seu emprego, razão até pela qual a assistente terá sido despedida), foram corroboradas pelas testemunhas CM (que relatou ainda tal como a assistente, os acontecimentos que tiveram lugar dias antes do julgamento num bar local e que o arguido admitiu, dizendo que mandou a assistente para casa pois que esta tinha deixado o filho com o avós) e AJ, mãe da assistente que deu a saber as expressões que o arguido usava para a filha após a separação "puta, cabra, andas-me a trair" que nunca estava em casa com o filho, que tinha relações sexuais com outros homens nos apartamentos que ia mostrar (que o arguido lhe disse a si directamente), que a assistente é uma mãe que envergonha as mães decentes.
AJ, pai da assistente, ainda antes da separação do casal recorda-se de arguido apelidar a sua filha de "cabra" não se recordando de qualquer outra expressão, mas tem o arguido na conta de um pai preocupado.
Mais considerou o auto de transcrição mensagens de fls 52 a fls 65, o teor do relatório social e o CRC do arguido.

Apreciemos.

Nulidade da decisão revidenda por condenar por factos não descritos na acusação

Refere o recorrente que padece a decisão recorrida de nulidade, por violação do estabelecido no artigo 359º, do CPP e artigo 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, em virtude de ter inserido “no capítulo da fundamentação juízos de valor que configuram verdadeiros factos como sejam, que o arguido com a sua conduta pretendia na ofendida provocar o medo, a inquietação, humilhar psiquicamente, ansiedade, prejuízos na saúde da ofendida, actuação livre e consciente e com consciência da ilicitude”, sem que tivesse oportunidade de exercer o contraditório e o direito à defesa, o que configura, em seu entender, uma alteração substancial dos factos descritos na acusação.

Nos termos do preceituado no artigo 379º, nº1, alínea b), do CPP, é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º.

De acordo com o nº 1, do artigo 358º, do CPP, “se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa”, sendo que, “uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou não pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância” – artigo 359º, nº 1 - salvo nos casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos – nº 2, do mesmo.

Da comparação dos factos da acusação com os dados como provados na decisão revidenda, conclui-se por inexistir divergência alguma entre eles, constatando-se que a matéria a que se reporta o recorrente não consta da descrição dos factos que provados foram considerados, antes se mostra inserida na fundamentação de direito, integrando a argumentação do tribunal a quo com metas à subsunção daqueles à previsão da norma jurídica cuja violação vem imputada.

Não se verifica, pois, violação do artigo 359º, do CPP, do princípio do contraditório ou do direito à defesa, não enfermando a sentença da invocada nulidade, pelo que improcede o recurso neste segmento.

Enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido

Sustenta também o recorrente que dos factos tidos por assentes na decisão recorrida não constam os elementos subjectivos do ilícito, nomeadamente os que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica” do ilícito, o que determinaria a sua nulidade.

O recorrente encontra-se acusado (e foi condenado) pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e nº 2, do Código Penal.

Estabelece-se nestes normativos legais:

“1–Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
(…)

b)- A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

(…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2–No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”

O bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é a saúde (abrangendo a saúde física, psíquica, emocional e moral), enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, sendo que este bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela dessa dignidade, projectada numa relação de afectividade ou coabitação, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, isto é, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos – assim, Plácido Conde Fernandes, Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal, Revista do CEJ, nº 8, 1º semestre de 2008, pág. 305 – ou, na perspectiva de André Lamas Leite, “o fundamento último das acções abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo” - A violência relacional íntima, revista Julgar, nº 12 (especial), pág. 49.

Ao nível objectivo, constituem elementos constitutivos deste ilícito típico a prática de maus-tratos físicos ou psíquicos cometidos dentro de determinadas relações afectivas, que fundamentalmente traduzam uma degradação da dignidade humana da vítima.

Na vertente subjectiva, exige-se a forma de cometimento a título de dolo (de acordo como o disposto no artigo 13º, do Código Penal, “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”), em qualquer das modalidades enunciadas no artigo 14º, do mesmo Código.

Mas, seguindo o entendimento de Figueiredo Dias (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, A Doutrina geral do Crime, 2ª Edição Coimbra Editora) cumpre distinguir entre o dolo do tipo (de ilícito) e o dolo integrante do tipo de culpa.

Assim, podemos ler a págs. 350, que «o dolo não pode esgotar-se no tipo de ilícito (por consequência, não é igual ao dolo do tipo), mas exige do agente um qualquer momento emocional que se adiciona ao elemento intelectual e volitivo contidos no “conhecimento e vontade de realização”. (…); antes se torna indispensável um elemento que já não pertence ao tipo de ilícito, mas à culpa ou ao tipo de culpa. Com esse elemento se depara quando se atente em que a punição por facto doloso só se justifica quando o agente revele no facto uma posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal». Quer dizer, uma sua posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas, revelada pelo agente no facto e que justifica a punição a título de dolo.

Resulta, pois, que a consciência da ilicitude é, nesta concepção, também momento constitutivo do dolo (não do tipo de ilícito, mas do de culpa), acrescendo, como seu momento emocional, ao conhecimento de todas as circunstâncias do facto (elemento intelectual) e à vontade de realizar o facto típico (elemento volitivo), que são elementos do dolo do tipo, traduzindo-se na indiferença ou oposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso).

Daí que, como se refere no Ac. do TR de Coimbra de 13/09/2017, Proc. nº 146/16.3 PCCBR.C1, disponível em www.dgsi.pt, “a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual).

A esses elementos acresce o referido elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso.

Este elemento emocional é dado através da consciência da ilicitude e integra a forma de aparecimento mais perfeita do delito doloso. Daí que só possa afirmar-se que o agente actuou dolosamente quando, nomeadamente, esteja assente que o mesmo actuou com conhecimento ou consciência do carácter ilícito e criminalmente punível da sua conduta.”

Destarte, para que o tipo de culpa doloso esteja preenchido, necessário se torna, entre o mais, que provado esteja que o arguido sabia ou tinha conhecimento ou estava ciente (ou qualquer outra descrição fáctica que o traduza) de que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

Como salienta Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume I, Editorial Verbo, 2000, pág. 367, “pode ser maior ou menor a exigência formal de prova da consciência da ilicitude, mas sempre será de exigir a prova dessa consciência, pelo que a consciência da ilicitude é necessariamente objecto de prova, no processo”.

E, na verdade, se bem que a verificação da consciência da ilicitude se possa inferir dos demais factos provados, com recurso a presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou às regras da experiência comum, tal não implica que seja admissível prescindir da narração dos factos que a consubstanciam.

No Ac. do STJ nº 1/2015, de 20/11/2014, DR nº 18, I Série, de 27/01/2015, fixou-se a seguinte jurisprudência: “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP”.

Nele se podendo ler que “a acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, tem de conter os aspectos que configuram os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido acima referido, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), actuando, assim, conscientemente contra o direito.”

Acrescentando-se ainda: “conexionada com o problema anterior, coloca-se finalmente a questão de saber se a falta, na acusação, de todos ou alguns dos elementos caracterizadores do tipo subjectivo do ilícito, mais propriamente, do dolo (englobando o dolo da culpa, no sentido atrás referido), pode ser integrada no julgamento por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP.

Tal equivalerá a considerar essa integração como consubstanciando uma alteração não substancial dos factos.

11.1.Já vimos que esses elementos têm de constar obrigatoriamente da acusação, implicando a sua falta a nulidade do libelo (art. 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP)” (…) a exigida narração dos factos é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objetivo do ilícito, sejam ao tipo subjetivo e ainda, naturalmente, na sequência do que temos vindo a expor, os elementos referentes ao tipo de culpa. A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, só tem essa dimensão quando abarque a totalidade dos seus elementos constitutivos. Não existem puros factos não valorados, como vimos, a propósito, nomeadamente, das teorias do objeto do processo, e a valoração especifica que aqui se reclama, consonante com um tipo de ilícito, só se alcança com a imputação do facto ao agente, fazendo apelo à representação do facto típico, na totalidade das suas circunstâncias, à sua liberdade de decisão, como pressuposto de toda a culpa, e, envolvendo a consciência ética ou dos valores, à posição que tomou, do ponto de vista da sua determinação pelo facto. Sem isso, não está definida a conduta típica, ilícita e culposa.”

Com o devido respeito por opinião diversa, a interpretação que para nós resulta dos fundamentos aduzidos no aludido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça é a da necessidade de narração na acusação dos factos conformadores da consciência da ilicitude, enquanto elemento do dolo da culpa e, consequentemente, da sua comprovação (ou não) em julgamento - neste sentido, vd. também Ac. R. de Coimbra de 02/03/2016, Proc. nº 2572/10.2TALRA.C2; Ac. R. de Guimarães de 19/06/2017, Proc. nº 430/15.3GEGMR.G1; Ac. R. de Lisboa de 08/11/2017, Proc. nº 1408/15.2TDLSB.L1-3, consultáveis no referenciado sítio.

Assim sendo, considerando que dos fundamentos de facto da decisão recorrida (factos provados) não consta a narração concretizada da factualidade consubstanciadora do tipo de culpa doloso do crime imputado (como, aliás, da acusação pública também não consta) preenchidos se não mostram os elementos típicos desse crime nem, aliás, de qualquer outro, pelo que o recorrente tem de ser absolvido, merecendo provimento o recurso.

Esta absolvição da prática do crime imputado, tem como consequência que fique sem efeito o arbitramento a favor da assistente MJ, nos termos do artigo 82º-A, do CPP e artigo 21º, nºs 1 e 2, da Lei nº 112/2009, de 16/09, da quantia de seiscentos euros a título de indemnização pelos danos sofridos, pois constitui seu pressuposto a existência de condenação criminal.

Fica prejudicado o conhecimento das demais questões no recurso suscitadas.

III–DISPOSITIVO.

Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido R. e, em consequência, revogam a decisão recorrida e absolvem-no da prática do crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e nº 2, do Código Penal, por que foi condenado, ficando sem efeito o arbitramento a favor de MJ, nos termos do artigo 82º-A, do CPP e artigo 21º, nºs 1 e 2, da Lei nº 112/2009, de 16/09, da quantia de seiscentos euros a título de indemnização pelos danos sofridos.

Custas pela assistente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, sem prejuízo do apoio judiciário.


Lisboa, 11 de Setembro de 2018

                                  
(Artur Vargues) – (Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP)
                                  
(Jorge Gonçalves)