Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
748/13.0PFCSC.L2-5
Relator: ISILDA PINHO
Descritores: INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHA
WHATSAPP
PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
PRINCÍPIO DA ORALIDADE
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
IRREGULARIDADE
PROIBIÇÕES DE PROVA
DOUTRINA DOS "FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA"
CORRUPÇÃO
ELEMENTO SUBJECTIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.–Ainda que seja residente dentro do município onde se situe o tribunal ou juízo da causa, pode o tribunal coletivo inquirir essa testemunha através da teleconferência, designadamente através do WhatsApp, enquanto medida de proteção da testemunha, ao abrigo da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, quando o receio manifestado por esta em relação aos arguidos assim o justificar.

II.–A inquirição de uma testemunha por teleconferência não viola o princípio da imediação, ante o pensamento expresso pelo próprio legislador, no artigo 15.º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, que, precisamente sob a epígrafe “imediação”, dispõe que os depoimentos e declarações prestados por teleconferência, nos termos daquele diploma e demais legislação aplicável, consideram-se, para todos os efeitos, como tendo tido lugar na presença do juiz ou do tribunal.

III.–A inquirição de uma testemunha por teleconferência também não viola os princípios da oralidade e do contraditório, pois, como é consabido, a aplicação WhatsApp permite que os respetivos usuários interajam entre si, em tempo real, não somente por áudio, como também por vídeo.

IV.–Se a inquirição de uma testemunha por WhatsApp sofre a interferência de um terceiro, o vício que daí possa decorrer consubstancia uma mera irregularidade, sujeita ao regime previsto no artigo 123.º do Código de Processo Penal.

V.–Quando uma reprodução de gravação não pode ser usada como meio de prova, por ter sido considerada nula e inadmissível a sua valoração, mediante decisão transitada em julgado, a transcrição que tenha sido efetuada do respetivo conteúdo também não pode ser atendida, a coberto do “rótulo” de “prova documental”, sob pena de se fazer entrar pela janela o que não se permitiu entrar pela porta, ou seja, sob pena de se estar a contornar o já decidido em sentido contrário.

VI.–A projeção dos efeitos da invalidade emergente das proibições de prova, nos atos processuais subsequentes não é ilimitada, nem absoluta, sofrendo três limitações - a da fonte independente, a da descoberta inevitável e a da mácula dissipada - desenvolvidas pela jurisprudência norte-americana, que constituem exceções ao efeito inelutável de dominó da invalidade da prova original proibida sobre toda a que se lhe seguir, todas elas conciliáveis com os princípios constitucionais que inspiram o sistema jurídico-penal português.

VII.–A consumação do crime de corrupção não está dependente da prática, pelo funcionário, de qualquer ato ou omissão contrária aos seus deveres funcionais, concretizando-se a atividade proibida da corrupção no mero solicitar [ou aceitar] o suborno, isto é, na manifestação [expressa ou tácita] de vontade do funcionário em ser corrompido, consumando-se o delito no momento em que essa solicitação [ou aceitação] chega ao conhecimento do destinatário.


[sumário elaborado pela relatora]

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordaram, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–RELATÓRIO

I.1–No âmbito do processo comum coletivo n.º 748/13.0PFCSC que corre termos pelo Juízo Central Criminal de Cascais - Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, a 14-07-2022, foi proferido acórdão, no que agora interessa, com o seguinte dispositivo [transcrição]:

“DECISÃO:
Nestes termos, julga-se a acusação e pronúncia parcialmente procedente e provada, e, em consequência:
Absolvem-se os arguidos A, ..., ..., e ..., da prática, em coautoria material, na forma consumada, do crime de corrupção passiva, previsto e punido pelo disposto no artigo 373º., nº.1, do Código Penal, em conjugação com o constante no artigo 386º., nº1, alínea d), do mesmo diploma legal, que lhes vinha imputado, atinente ao ofendido ... Jacinto de ....
(…)
Condena-se o arguido A, pela prática de um crime de corrupção passiva, previsto e punido pelo disposto no artigo 373º., nº.1, do Código Penal, em conjugação com o constante no artigo 386º., nº1, alínea d), do mesmo diploma legal, por que vinha pronunciado, atinente ao ofendido ..., na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de dois anos e seis meses.
Condena-se o arguido ..., pela prática de um crime de corrupção passiva, previsto e punido pelo disposto no artigo 373º., nº.1, do Código Penal, em conjugação com o constante no artigo 386º., nº1, alínea d), do mesmo diploma legal, por que vinha pronunciado, atinente ao ofendido ..., na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por um período de dois anos.
Condena-se o arguido ..., pela prática de um crime de corrupção passiva, previsto e punido pelo disposto no artigo 373º., nº.1, do Código Penal, em conjugação com o constante no artigo 386º., nº1, alínea d), do mesmo diploma legal, por que vinha pronunciado, atinente ao ofendido ..., na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por um período de dois anos.
Condena-se o arguido ..., pela prática de um crime de corrupção passiva, previsto e punido pelo disposto no artigo 373º., nº.1, do Código Penal, em conjugação com o constante no artigo 386º., nº1, alínea d), do mesmo diploma legal, por que vinha pronunciado, atinente ao ofendido ..., na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por um período de dois anos.
(…)
Comunique de imediato ao Comando Geral da GNR com cópia deste acórdão e do Acórdão da Relação antecedentemente proferido nestes autos, uma vez que a condenação dos arguidos vertida no Acórdão da Relação já se mostra transitada, continua a pender processo disciplinar contra os arguidos e os mesmos continuam a ter a qualidade de militares da Guarda Nacional Republicana.
(…)”
»

I.2–Recurso da decisão final
Inconformados com tal decisão, dela interpuseram recurso os arguidos para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraíram as seguintes conclusões [transcrição]:

“CONCLUSÕES
1.Pretende-se com o presente recurso que seja revista a deliberação, que integra o douto acórdão ora recorrido, que decidiu condenar os arguidos A, B, C e D pela prática de um crime de corrupção passiva, previsto e punido pelo disposto no artigo 373.º, n.º 1, do Código Penal, em conjugação com o constante no artigo 386.º, n.º 1, alínea d), do mesmo diploma legal.
2. O processo teve origem na denúncia apresentada por E, em 26/09/2013. Esta testemunha prestou depoimento no dia seguinte, às 12H00, fazendo aí referência, pela primeira vez, a F e a G.
3.F foi ouvido nesse mesmo dia, às 11H45, ou seja, antes de ter sido referido pelo E no depoimento das 12H00.
4.Esta sucessão ilógica de depoimentos e referências, torna evidente que a verdade dos factos não foi bem tratada logo no dealbar do inquérito.
5.O tribunal a quo considerou provado, nomeadamente, que “os arguidos, desde data que não se conseguiu concretamente apurar, mas pelo menos a partir de Julho de 2013, em conjugação de vontades, meios e fins, decidiram abordar alguns dos proprietários das sucateiras que já haviam identificado e, após realizarem uma fiscalização aos respectivos locais de trabalho, faziam menção da existência de violações às normas legais em vigor, exigiam a entrega de uma quantia monetária, em dinheiro, para que as infracções detectadas não fossem registadas ou comunicadas” e que “o pagamento teria de ser feito obrigatoriamente em montantes monetários, nos termos determinado pelos arguidos, sempre em dinheiro, a ser entregue a algum dos quatro arguidos que a tais estabelecimentos se deslocasse, sozinho ou acompanhado.”
6.Nenhuma prova foi produzida que tivesse a virtualidade de afastar a presunção de inocência dos arguidos, consagrada no artigo 32.º, nº. 2, da Constituição da República Portuguesa.
7.O douto acórdão padece de erro notório na apreciação da prova, porquanto o tribunal a quo nunca poderia, a partir da prova que foi produzida em audiência, ter dado como assente a coautoria material do crime de corrupção passiva que imputa aos arguidos.
8.Existe manifesto erro de julgamento e errónea valoração da prova, na referência aos depoimentos que serviram para fundar a convicção do tribunal a quo.
9.Os depoimentos prestados pelas testemunhas H, F e I devem ser analisados com sérias reservas, ora porque não presenciaram diretamente os factos, ora porque recaem em manifestas contradições e inverosimilhanças.
10.O tribunal a quo ao valorar, como valorou, a prova produzida em audiência e mais concretamente os depoimentos de F e de I não expressou convenientemente as razões que conduziram a essa valoração, nem explicitou claramente os motivos pelos quais as declarações dos arguidos em julgamento não lhe mereceram inteira credibilidade.
11.O tribunal a quo limita-se a afirmar que determinado depoimento confirma ou infirma determinado facto, sem que faça a análise crítica dos mesmos, como lhe é devido, como se pode constatar a fls. 49 do acórdão:
“quanto ao ofendido F, por o depoimento deste ter sido consistente e credível, por corroborado por demais elementos probatórios, contribuíram os arguidos, não credíveis por quanto a este ofendido por consistentemente infirmados, também para os factos dados como não provados.”
12.O tribunal a quo deu mais relevância ao depoimento do F, considerando-o consistente e credível, em contraponto com os depoimentos dos arguidos, por terem sido infirmados, deduzimos, pelo depoimento do F.
13.Não justifica o porquê de dar mais relevância ao depoimento do F, até porque o mesmo teve várias contradições.
14.Os arguidos esclareceram de forma lógica e fundamentada o contexto em que trabalhavam e como procuravam ganhar a confiança do G para os auxiliar a detetar, investigar e combater a criminalidade relacionada com crimes de furto e recetação de cobre e derivados.
15.O que foi corroborado pelos depoimentos das testemunhas J, L, M, N, O.
16.Os arguidos integraram uma equipa de investigação, criada no seio da Direção de Investigação Criminal do Posto Territorial da GNR de A_____, sendo que lhes estavam atribuídas investigações maioritariamente relacionadas com o furto e receptação de cobre e derivados.
17.Em tal atividade, os arguidos e os outros militares que integravam a equipa eram auxiliados por elementos que integravam outros departamentos dentro da GNR, entre eles os Núcleos de Proteção Ambiental (NPA) das áreas onde estivessem a desenvolver quaisquer tipos de diligências, como testemunharam os militares da GNR P, Q, R, S, T, U e V.
18.Este plano coordenado e supervisionado pela hierarquia da GNR era do conhecimento do departamento da PSP encarregado do inquérito, bem sabendo e conhecendo a condição e figura legal em que os arguidos se encontravam nos locais alvo de vigilâncias, tal como confirmou a testemunha ..., Diretor de Investigação da GNR.
19.Os arguidos tinham um só objetivo: cumprir a missão que lhes estava a atribuída no despacho n.º 3/2012 da Procuradoria-Geral da República, o que fizeram com denodo e coragem.
20.Não deverão, assim, ser considerados provados os pontos 326 a 330 da matéria de facto considerada provada.
21.Não corresponde à verdade o constante dos pontos 8, 9, 10 e 11 da matéria de facto considerada provada, pelo que os mesmos não podem considerar-se provados.
22.Não é verdade, e não se provou, que os arguidos tenham tomado conhecimento de elevadas quantias em dinheiro auferidas pelos proprietários das sucateiras.
23.Não é verdade, e não se provou, que tenham decidido abordar alguns dos proprietários das sucateiras que já haviam identificado, exigindo a entrega de uma quantia monetária, em dinheiro.
24.A abordagem ao G teve como objetivo o recrutamento de informador, alimentada com visitas e discursos meramente casuais, que nada tinham de vinculativo nem de protetor, tal como, de resto, foi esclarecido pela testemunha ....
25.A relação em causa foi quebrada, não por alguma vez os arguidos suspeitarem estar a ser alvo de investigação, mas sim, pelo facto de numa das visitas à garagem do G, terem detetado a presença de um drop de avião, o que deu lugar a uma fiscalização e consequente aplicação das normas contraordenacionais.
26.Face às características do local e natureza do material que os arguidos apuraram existir na oficina do F, foi elaborada Informação de Serviço pelo arguido C, de 18/09/2013, e despachada pelo arguido A, que propôs uma fiscalização pelo Núcleo de Proteção Ambiental, conforme fls. 438 dos autos.
27.O depoimento de F não foi espontâneo, nem isento de perturbação, já que foi interrompido por um terceiro não identificado, sem qualquer autorização do Tribunal, tendo sido retomado sem qualquer advertência e indagação sobre a identidade desse terceiro.
28.Atente-se na seguinte passagem do depoimento, a partir do minuto 23 do FICHEIRO ÁUDIO 20220317101013_3931276_2871336, 17/03/2022:
[00:23:20] À questão colocada pelo Ministério Público se tinha sido o militar “mais novo que tinha ido buscar o dinheiro na parte da manhã...”, o F respondeu: “Só, só um minuto.... Só um minutinho aqui.”. Nisto, ouvimos a voz de um terceiro não identificado, cuja intervenção é impercetível.
Terminada a intervenção do terceiro não identificado, o F finalmente acede a retomar o seu depoimento, dirigindo-se à Sra. Procuradora dizendo: “Pode continuar.” A Senhora Procuradora agradeceu e continuou a sua instância: “Muito obrigada”. [00:23:40]
29.O tribunal a quo não assegurou o cumprimento das regras de inquirição da testemunha, nomeadamente, a garantia de que a mesma não estava a ser instruída por um terceiro, pelo que não foi garantido o respeito pelo princípio da imediação, princípio basilar da produção de prova aquando da inquirição da testemunha F.
30.O tribunal a quo nunca identificou o elemento perturbador do depoimento, nem tão pouco aferiu em que medida o depoimento ficou comprometido.
31.Não ficou provado em sede de audiência de julgamento, que os arguidos se tivessem deslocado, no decurso do mês de julho de 2013, ao depósito de sucata do F.
32.Não ficou provado que os arguidos se tivessem lá deslocado “em concretização do plano que alegadamente haviam previamente delineado”, conforme se refere no ponto 186 da matéria de facto considerada provada.
33.O F refere uma visita dos arguidos ao seu armazém, no entanto, nunca a consegue precisar no tempo.
34.Quanto à descrição do facto que permitiria preencher o tipo de crime pelos quais os arguidos foram condenados, a testemunha F demonstra manifesta fragilidade no seu depoimento, senão mesmo contradição.
35.Não é verdade, e não ficou provado, o constante nos pontos 193 a 223 da matéria de facto considerada provada.
36.Nunca o arguido B, ou outro arguido, teve o propósito de fazer recear o F pela situação ilegal da sua sucateira, nomeadamente ameaçando-o com prisão, com vista a exigir-lhe determinada quantia monetária.
37.Nunca o arguido B, ou outro arguido, disse ao F que iria chamar o “chefe” para acordar os termos da alegada “cooperação”
38.Não é verdade, e não ficou provado, o constante nos pontos 208 e 210 da matéria de facto considerada provada.
39.O arguido A nunca exigiu o pagamento das quantias de 15.000,00€, 2.000,00€ ou mesmo 150,00€ por semana. De resto, a testemunha F no seu depoimento nunca referiu tais valores.
40.O arguido A nunca exigiu o pagamento da quantia de 400,00€, numa entrega única, conforme se alega no ponto 211 da matéria de facto considerada provada.
41.O depoimento de F prestado em sede de audiência e julgamento entra em contradição com o depoimento prestado em sede inquérito perante o Ministério Público.
42.Em julgamento, a instâncias do Ministério Público, F afirmou o seguinte:
[00:16:00] F - “Na altura eu saí, sei que eles tinham voltado três ou quatro vezes a minha procura, mas ainda não tinha chegado. Estava a tentar arranjar 400€, mas naquela altura era muito difícil. Consegui emprestado os 400€, voltei, fiquei lá, quando passou um tempo, um deles foi só um, pegou o dinheiro e foi à vida deles.”
43.Ainda a instâncias do Ministério Público, o F afirmou que não se lembrava a quem pediu emprestado os 400,00€, mas que certamente foi a uma só pessoa, a um amigo:
[00:20:45] “MP - Pegando no que disse mais atrás, quando disse que pediu os 400€ emprestados, pediu a quem? Lembra-se?
F - Já não lembra a quem pedi, mas de certeza que foi a algum amigo. Quem é que me ia emprestar 400€ se não fosse uma pessoa?
MP – Claro. Foi essa pessoa que lhe emprestou os 400 euros só de uma vez, foram várias?
Recorda-se?
F - Foi só uma pessoa.”
44.Este depoimento contradiz as declarações prestadas em 18/02/2014, perante o Ministério Público, de fls. 679 a 680, e com as quais a testemunha foi confrontada em sede de julgamento.
45.Em 18/02/2014, F respondeu o seguinte: “Não conhecia os arguidos e só os viu três vezes. Conheceu os outros ofendidos em Portugal. Pagou os 400€ com algum dinheiro da sucata, 250€ e arranjou os restantes com um amigo PIAU que trabalhava numa fábrica e que lhe emprestou 150€. Não acordou qualquer outra data para entregar dinheiro e que tinha medo pela sua família”
46.Interpelado pelo Tribunal, no sentido de saber se já se recordava do amigo que lhe havia emprestado o dinheiro, e de quanto dinheiro lhe tinha pedido emprestado, F respondeu que não se lembrava nem do PIAU, nem se tinha 250€ e arranjou outros 150€:
[00:56:00] “Tribunal - Já se lembra da pessoa que lhe emprestou o dinheiro, era este PIAU?
F - Não me lembro, não.
Tribunal – E não se lembra se arranjou todo ou foi só parte, os 150?
F - Não me lembro, não.”
47.A testemunha inicialmente começou por dizer que pediu os 400€ a um amigo, e depois disse que, afinal, tinha algum dinheiro da sucata que vendeu e só pediu parte emprestada. Mas também não se lembra da quantia que teve de pedir emprestada.
48.Numa situação tão excecional e trágica como a que a testemunha descreve, não conseguir lembrar-se do amigo que lhe emprestou dinheiro para poder satisfazer o alegado pedido dos arguidos é, no mínimo, estranho e surpreendente.
49.F tanto podia ter indicado a quantia de 400,00€ como outra quantia qualquer porque, na verdade, nunca lhe foi solicitada ou exigida qualquer quantia por parte dos arguidos. E muito menos que tenha sido entregue qualquer quantia.
50.Não foram, assim, provados os factos constantes no ponto 211 da matéria de facto considerada provada.
51.Existe uma clara contradição do depoimento de F prestado em julgamento, com o ponto 216 da matéria de facto considerada provada.
52.Refere-se neste ponto que F entregou a quantia em dinheiro ao arguido B. Acontece que, em audiência de julgamento o F, em resposta ao Ministério Público sobre qual dos arguidos é que foi recolher o dinheiro, respondeu: “Foi o indivíduo mais novo, era o senhor mais novo”.
[00:22:30] – “MP - Lembra-se qual dos indivíduos foi lá recolher o dinheiro, da parte da tarde?
F - Foi o indivíduo mais novo, era o senhor mais novo.
MP - Lembra-se o nome?
F - Não eles nunca disseram o nome.
MP - Era o mais novo de todos, era isso?
F - Havia um que dizia que era o chefe, que era assim de meia-idade, tinha dois senhores com idade mais avançada e tinha esse rapaz que na altura devia estar na casa de 20 e poucos anos, 30 no máximo. Notava-se logo que era o mais novo.
MP - Portanto, esse mais novo que tinha ido buscar o dinheiro, na parte da manhã ele tinha...”
53.O F em 2013 indicou SC... como o recetador da quantia em dinheiro. Em sede de julgamento, em 2022, sem qualquer dúvida, indica D, referindo-se ao “mais novo”. Podemos admitir confusão entre dois indivíduos da mesma estatura e idade, mas já não a podemos aceitar em tamanha divergência de idades e aparência.
54.Não foram, assim, provados os factos constantes no ponto 216 da matéria de facto considerada provada.
55.Ficou claro do depoimento de F que a iniciativa de denunciar de forma caluniosa os arguidos, foi do G que arregimentou F e os outros sucateiros, sobre os quais tinha ascendente económico e mesmo social, para em conjugação de esforços criarem uma narrativa só aparentemente verosímil.
56.Em resposta à pergunta sobre a influência do G na sua decisão de apresentar queixa dos arguidos, F respondeu:
“quando precisei dele ele me deu a mão está entendendo (...) Ele apenas me cobrou o que ele tinha feito, estou a ser sincero com o Sr.. Eu nunca quis dar dinheiro, nunca quis denunciar. Por muito tempo que esteja aqui, a gente vai ser sempre brasileiro.”
[01:07:00] – “Advogado - Porque é foi preciso o sr. Alan dizer que deviam denunciar os policiais e não foi por iniciativa sua que se dirigiu a uma esquadra ou posto da GNR para fazer essa denuncia?
F - Sozinho estava mais fraco, nunca quis fazer essa denúncia. Quem é imigrante aqui...
Advogado - Sentiu-se mais forte com a presença do Sr. Alan?
F - Não é questão de ser mais forte, quando precisei dele ele me deu a mão está entendendo.
Advogado - Pediu-lhe para denunciar os policias como favor a ele próprio?
F - Ele apenas me cobrou o que ele tinha feito, estou a ser sincero com o Senhor.
Eu nunca quis dar dinheiro, nunca quis denunciar. Por muito tempo que esteja aqui, a gente vai ser sempre brasileiro.”
57.Existem manifestas contradições em aspetos fundamentais dos factos julgados, que não podem deixar de fragilizar a idoneidade e a veracidade do depoimento de F e que o tribunal a quo não teve em conta na apreciação e valoração prova.
58.Pelo que se verifica um manifesto erro na apreciação da prova por parte do tribunal a quo, no que diz respeito ao depoimento do F.
59.O depoimento de I não foi espontâneo, nem isento de perturbação, já que foi interrompido por várias vezes, por um terceiro não identificado, sem qualquer autorização do tribunal, tendo sido retomado sem qualquer advertência e indagação sobre a identidade desse terceiro.
60.A instâncias da Sra. Procuradora, ao minuto 7 do depoimento, que questionou I sobre quantos militares entraram no seu armazém, ... respondeu: “Eram uns cinco ou seis, fora os que estavam fora o armazém, né.” Logo de seguida, ouve-se uma voz de mulher que diz “eram cinco”. Prontamente, respondeu ...: “eram cinco”.
61.É clara a intervenção de uma voz de mulher no depoimento de ... ..., indicando que eram cinco pessoas que entraram na garagem.
62.Atente-se na seguinte passagem do depoimento, a partir do minuto 7 do FICHEIRO ÁUDIO 20220421153602_3931276_2871336, de 21/04/2022:
[00:07:08) “MP – Então que situação aconteceu, que situação foi essa?
I- A situação foi trabalhar no armazém e eles chegaram lá e entraram e eles queriam que eu desse a eles toda a semana uma quantia em dinheiro. Tinha de dar essa quantia em dinheiro porque não tinha os documentos. Se a gente desse dinheiro a eles, eles faziam vista grossa, a gente podia continuar trabalhando, eles davam apoio à gente e não fechavam o estabelecimento.
MP - Olhe, disse que entraram todos. Quantos eram?
I- Eram uns cinco ou seis, fora os que estavam fora o armazém, né.
MP - Mas, olhe os que lhe pediram dinheiro, quantos eram?
Responde uma voz de mulher – “Eram cinco”. [00:08:16]
MP - Sabe os nomes dos policiais que lhe pediram o dinheiro.
I – “Eram cinco. Eram cinco”.
MP - E os nomes dos policiais?
I - Ah não sei, não sei. Se eu visse uma foto dos senhores eu podia mostrar.”
63.Aquando da tentativa de reconhecimento dos arguidos por parte da testemunha a mesma voz de mulher, interveio e interferiu no depoimento do ... ....
64.Perguntou a Sra. Procuradora: “Conseguiu reconhecer algum?”
Respondeu o ... ...: “Acho que esse de azul.” Logo de seguida a voz de mulher diz: “eu acho que não”. No seguimento, interpelado pelo Sr. Juiz sobre qual é o arguido de azul, o ... respondeu, para espanto do tribunal: “Não sei não, esse aí o vermelho.”:
65.Atente-se na seguinte passagem do depoimento, a partir do minuto 9 do FICHEIRO ÁUDIO 20220421153602_3931276_2871336, de 21/04/2022:
[00:09:49] – “MP – O sr. vai ver então os arguidos que aqui estão presentes hoje e vai dizer se algum deles ou todos o abordaram naquele dia.
MP – Conseguiu reconhecer algum?
I - Acho que esse de azul.
Responde uma voz de mulher - “Eu acho que não”
MP - Mas o de azul, vamos mostrar de novo....
[00:11:20] - Advogado – (Interpelação ao juiz de que há alguém a falar e a dar instruções à testemunha.)
[00:12:50] - Tribunal: Adiante. Qual é do azul? Qual é o de azul que o senhor se referiu há bocadinho?
I - Não sei não, esse aí o vermelho.
Tribunal – Agora é vermelho!? Sr. ..., vermelho ou azul?
I - Vermelho.
Tribunal - Ó Sr. Drs. Estamos aqui só a fazer uma identificação. Adiante.
Advogado – Peço a palavra…
Tribunal – Não, não dou…
[00:13:55] – MP – Senhor ..., acabou por identificar agora este senhor que disse estar de vermelho, é assim? E que o senhor disse o primeiro. É este que o Sr. disse que estava de azul?
I - É o de vermelho.
MP – Muito bem. O senhor lembra-se se alguma vez quando esteve em Portugal o senhor procedeu ao reconhecimento pessoal deste mesmo arguido?
I - Não, não, eu vivi aí 12 anos e nunca fui parado pela polícia.
MP - Não foi isso que lhe perguntei. O senhor chegou a reconhecer esta pessoa com uma daquelas pessoas que na altura os policiais se deslocaram à sua garagem, à sua sucateira?
I - O primeiro aí…
MP - Lembra-se de ter feito esse reconhecimento cá em Portugal?
I - Sim, sim…
MP - Só para que não restem dúvidas, o senhor há pouco referiu que reconheceu um arguido vestido de azul, mas quando lhe foi exibido novamente falou neste de vermelho.
Não tem dúvidas de que era a este que se referia, é isso?
I - É isso.
M.P - Pronto. O que aconteceu com este arguido que o senhor identificou como estando de vermelho, que é o arguido A, o que é que este lhe disse, ou fez, ou estava presente nesse dia. O que é que aconteceu propriamente com este arguido?
I - Ele entrou para o armazém e disse que ia fechar…. Disse que ia fechar, ia fechar.......eu falei que eu não saí do meu país para vir trabalhar para dar dinheiro para eles e que eles podiam fechar o estabelecimento. Chefe chegou, um sr. branco, alto, careca.”
66.Também no que diz respeito à forma como os arguidos alegadamente se apresentaram perante o ... ..., este entra em contradição com o declarado em sede de inquérito.
67.A instâncias do Ministério Público, I afirma que os arguidos não estavam fardados e que “estavam vestidos normais”, e “não mostraram identificação nenhuma.” Acrescentou ainda que os policias que fecharam o armazém também não vinham fardados. Disse ele: “os que estavam dentro do armazém e os que estavam fora todos vestidos normais, até os carros que eles usavam eram carros normais. Não tinha carro da GNR, não tinha nada disso.”:
68.Atente-se na seguinte passagem do depoimento, a partir do minuto 21 do FICHEIRO ÁUDIO 20220421153602_3931276_2871336, de 21/04/2022:
[00:21:20] “MP – Já não se lembra. E nessa ocasião em que se lembra do arguido A que aqui hoje está vestido de vermelho e os outros. Quanto estes entram primeiro, estes entram fardados ou trajavam à civil. Levavam uniforme da polícia vestido?
I - Não, não, não estavam não, estavam vestidos normais.
M.P - E eles identificaram-se quando chegaram junto do senhor?
I - Não, não mostraram identificação nenhuma.
M.P - Não mostraram, mas eles disseram que eram policias, disseram-lhe isso?
I - Sim, disseram. E eram mesmo policias, quando eles fecharam o armazém, eu fui lá em S_____ prestar depoimento, com o chefe mesmo, para tirar as coisas, mas não deixaram.
M.P - Nesse dia apareceram ou vieram, entretanto, outros policias fardados com uniforme?
I - Não, não, os que estavam dentro do armazém e os que estavam fora todos vestidos normais, até os carros que eles usavam eram carros normais. Não tinha carro da GNR, não tinha nada disso.”
69.I foi confrontado com as declarações prestadas, em 18/03/2014, em sede de inquérito, a fls. 846 a 847, em que refere: “entraram dentro do armazém outro grupo de indivíduos, entre 10 a 12 pessoas, todos uniformizados com as respetivas placas identificativas e pediram-lhe a identificação e informaram que iriam proceder ao fecho do armazém por falta de licença.”
70.Confrontado com a discrepância entre as declarações, I não foi conclusivo na sua resposta.
71.No que diz respeito ao encerramento do armazém, o depoimento do ... vem no sentido contrário do constante no despacho de pronúncia, pelo que o tribunal a quo deu como não provado que “os quatro indivíduos aludidos em 292 a 311 fossem os quatro arguidos; ou que qualquer dos arguidos seja um dos indivíduos aludidos em 292 a 311; e as demais condições pessoais dos arguidos.”
72.Inexplicavelmente, deu como provados todos os factos relacionados com ... ..., exceto os seus autores.
73.Acontece que o tribunal a quo deu como não provado quem foram os autores, não pelo facto de o I nunca ter indicado quem eles eram, mas sim porque primeiramente indicou uns e depois indicou outros.
74.Tal contradição terá de ter como consequência a impossibilidade de prova de qualquer facto relativo ao ... ..., já que o seu depoimento não pode ser considerado verosímil no seu todo.
75.Refere-se no ponto 292 da matéria de facto considerada provada que no dia 7 de outubro de 2013, quatro indivíduos cuja identidade não se conseguiu em concreto apurar, deslocaram-se ao armazém do ... ..., sito em C... F... .
76.O ... não só não identificou quem se dirigiu ao seu armazém, como não conseguiu dizer quantos indivíduos eram, pelo que não se pode considerar provado, como faz o tribunal a quo, consecutivamente, que existiam quatro indivíduos cuja identidade não se conseguiu apurar, fazendo equivaler aos quatro arguidos.
77.Quanto ao facto de os quatro indivíduos cuja identidade não se conseguiu em concreto apurar terem interpelado o I fora do armazém, na referida carrinha branca, de marca HYUNDAY, H1, a testemunha não refere esse facto no depoimento, pelo em que, momento algum, se faz prova de que os arguidos exigiram quantia em dinheiro ao ... ...
78.Em função da falta de credibilidade de ... ..., não deverá se considerado provado qualquer ponto da matéria de facto relacionada com a referida testemunha.
79.Em 9 de novembro de 2021, por promoção nos autos com a referência 133734129, o Ministério Público pediu que “se determine a transcrição das gravações efetuadas pelo ofendido G e que se mostram juntas aos autos em PEN em envelope agrafado na contracapa do 5.º volume dos presentes autos, sendo que, desde já o Ministério público indica tal Auto de transcrição enquanto elemento de Prova documental”.
80.Trata-se de gravação efetuada pela testemunha G, quando alegadamente mantinha conversação com dois dos arguidos, aqui recorrentes, sem conhecimento ou consentimento destes.
81.O douto Acórdão prolatado em 23 de janeiro de 2020 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, quanto a esta questão, a fls. 122, deliberou o seguinte: “…Dado que a questão da valoração da gravação efetuada é controvertida, e ainda, do depoimento do Chefe da PSP Marques este refere que a testemunha fez a gravação por iniciativa própria, consideramos ser de não admitir a sua valoração na 1.ª instância, o que se decide … Improcede, assim, nesta parte, o recurso do M.P.” (sublinhados nossos).
82.Não tendo sido impugnado este segmento do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, a deliberação prolatada em 24 de setembro de 2018, pelo Juízo Central Criminal de Cascais – Juiz 3 que declarou a escuta “nula e inadmissível como meio de prova, nos termos dos artigos 32.º, n.º 8 da Constituição da República Portuguesa, e 126.º do Código de Processo Penal” transitou em julgado, com todos os efeitos legais.
83.As referidas escutas não deveriam ser transcritas para os autos, no entanto, o meritíssimo Juiz Presidente proferiu o seguinte despacho:
“Atento o vertido em 29 e 30/11 e a posição assumida pelo MP antecedente, cabe dizer que o Tribunal oportunamente (em sede de novo Acórdão) valorará, ou não, o acervo probatório dos autos, atentas as decisões proferidas nos mesmos. A transcrição mencionada não obsta ao supra, nem significa qualquer juízo antecipatório sobre eventual valoração ou não. Assim, informe a ... de que se mostra aprovado o projectado custo, insistindo pela solicitada transcrição.”
84.Ou seja, foi determinada a transcrição para os presentes autos de escuta declarada nula por acórdão transitado em julgado.
85.Para além disso, a escuta foi valorada no douto acórdão ora recorrido, conforme resulta da seguinte afirmação contida no primeiro parágrafo da motivação, a fls. 47: “A convicção do tribunal assentou na concatenação … e os documentos dos autos nomeadamente de …. bem como vertidos no citius, ainda não numerados … todos analisados em audiência …”.
86.A referida transcrição de escuta declarada nula consta nos autos, tendo sido junta em 13 de abril de 2022, através do documento com a referência 20863342.
87.O douto acórdão absolutório proferido pelo Juízo Central Criminal de Cascais, em 24 de setembro de 2018, abordou esta situação, a fls. 2 e seguintes.
88.Este assunto foi então analisado como questão prévia, tendo deliberado tratar-se de uma gravação “… nula e inadmissível como meio de prova, nos termos dos art.ºs 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, e 126.º do Código de Processo Penal …”
89.Foi ainda considerado que a referida gravação integrava, em abstrato, o crime de gravações ilícitas.
90.Por esta deliberação ter sido objeto de impugnação por parte do Ministério Público no recurso que interpôs daquele aresto, o douto acórdão condenatório, prolatado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 23 de janeiro de 2020, pronunciou-se sobre ela a fls. 116 e seguintes, deliberando pela improcedência deste segmento do recurso mantendo a deliberação tomada em primeira instância. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa prolatado no processo n.º 184/12.5TELSB-V.L1-3, em 13 de outubro de 2021, pronunciou-se sobre questão idêntica, tendo deliberado:
1.– Não é da competência de um juiz de 1ª instância, sindicar, revogar ou modificar o despacho ou decisão de outro juiz do mesmo tribunal, já transitado em julgado, apenas porque tem entendimento diferente sobre as questões jurídicas subjacentes.
2.–Tal procedimento constitui uma ilegalidade inadmissível, que viola o princípio do caso julgado, as regras de competência e hierarquia dos tribunais, bem como a certeza e segurança jurídica das decisões.
3.–Tal decisão, só pela via do recurso para o tribunal superior e por quem tivesse legitimidade para o interpor, poderia ser sindicada e mantida ou revogada.
4.–Há ofensa à excepção do caso julgado, aqui materializada no facto de o sr. Juiz tomar uma decisão oposta à anterior, (proferida pelo seu antecessor), depois de se ter esgotado quanto ao mesmo despacho, o respectivo poder jurisdicional.
5.–O despacho proferido nestas condições, com violação do caso julgado e depois de esgotado o poder jurisdicional do juiz, é juridicamente inexistente…”
91.Mas para além da utilização de prova declarada nula, esta gravação também deve ser analisada sob outros dois pontos de vista.
92.Em primeiro lugar, o Ministério Público no âmbito do decurso do inquérito devia ter realizado a perícia adequada para poder afirmar que a referida gravação dizia respeito a conversa efetivamente realizada. Tal perícia não foi efetuada e os arguidos sabem perfeitamente que se trata de gravação fictícia.
93.Atualmente é relativamente simples “gravar” uma conversa inexistente, através de software que é de livre acesso na internet, sendo um facto irrefutável que não existe qualquer rigor quando se afirma que as vozes registadas são dos arguidos A e SC... .
94.As gravações, as ilícitas e as autorizadas pelo JIC, nunca foram validadas por comparação de um cotejo de voz dos arguidos que são referidos como participando nas conversas nelas registadas.
95.A PSP, após ter tido acesso a esta gravação deu início às diligências investigatórias de vigilância e com vista à solicitação ao JIC a instalação de uma câmara no interior do estabelecimento comercial do G, para gravar as imagens e som quando os arguidos ali se deslocavam, diligência que mereceu deferimento por parte do JIC.
96.A intervenção da PSP deu-se nesse momento, ou seja, “a posteriori” da necessidade que o G sentiu de fazer a gravação. Não existindo qualquer dúvida de que esta gravação ilegal foi o fundamento para se avançar com as diligências que levaram à gravação de imagem e som no interior do estabelecimento comercial do G.
97.A gravação ilícita foi o único meio que permitiu a instalação de uma câmara no estabelecimento do G para captar som e imagens.
98.Daqui resulta que se não tivesse sido utilizada uma gravação ilícita não teria sido realizada a captação de som e imagem na oficina de G, o que, de acordo com a teoria dos frutos da árvore envenenada ou da proibição em cascata resultante do recurso à prova proibida, torna ilegal esta captação de som e imagem.
99.Quando tais atos ilegais são fundamentais para se obter a prova lícita, que jamais seria recolhida sem a sua existência, a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores e a doutrina são unânimes em considerar que a prova lícita assim obtida é proibida, por ilicitude derivada do ato que lhe deu origem.
100.A gravação ilícita realizada por G foi a causa direta e necessária da captação de som e imagem na sua oficina, pelo que deverá ser declarada nula e sem nenhum efeito a prova alcançada através da captação de som e imagem na oficina de G, por se encontrar contaminada com o vício que inquina a gravação ilícita que lhe deu origem.
101.Gravação esta que se encontra transcrita a fls. 157 a 171 dos autos e referida na motivação da matéria de facto provada pelo douto acórdão recorrido, a fls. 47, como fundamento da deliberação condenatória, sendo expressamente referida no primeiro parágrafo desta motivação nos seguintes termos: “A convicção do tribunal assentou na concatenação … e os documentos dos autos nomeadamente de fls. …. 146 a 171 (e cd anexo a estas)”.
102.Os reconhecimentos efetuados pelas testemunhas no início do inquérito padecem do mesmo vício, violando os artigos 32.º, n.º 8 da Constituição da República Portuguesa e 126.º do Código de Processo Penal, devendo, de igual modo, ser considerados nulos, com as devidas consequências nos atos deles derivados.
103.F, em 04/10/2013, uma semana após o depoimento prestado, reconheceu os arguidos através “Da visualização de diversas fotografias de indivíduos com características idênticas às descritas pela vítima, resultou reconhecer o indivíduo retratado na folha de suporte n.º 1, 2, 3 e 4), foto esta obtida através de fonte aberta (rede social Facebook), como sendo aquele que praticou os seguintes factos:”, (fls. 65 e seguintes, 68 e seguintes, 71 e seguintes e 74 e seguintes).
104.Para aceder ao perfil dos arguidos no Facebook, para daí retirar as fotos que foram mostradas às testemunhas, era preciso saber quem eram essas pessoas que queríamos encontrar. Como é que os investigadores sabiam que era no perfil de cada arguido que tinha de procurar? Não nos parece haver resposta lógica do ponto de vista de uma investigação válida.
105.Para além disso, contrariamente ao que consta nos autos, estas buscas não foram feitas em fontes abertas. Foram feitas, pelo menos, na rede social Facebook.
106.Os perfis dos arguidos no Facebook não são de acesso livre, mas restrito aos “amigos”. Quanto a esta questão, o Acórdão da Relação do Porto de 5 de abril de 2017, no processo 671/2014 tem o seguinte sumário: “I – O Facebook é uma rede social que funciona através da internet, operando no âmbito de um sistema informático pelo que a recolha de prova está sujeita à Lei do Cibercrime - DL 109/2009 de 15/9. (…)”
107.Por seu turno, o n.º 1 do artigo 15.º da Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009), estipula que “Quando no decurso do processo se tornar necessário à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, obter dados informáticos específicos e determinados, armazenados num determinado sistema informático, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho que se proceda a uma pesquisa nesse sistema informático, devendo, sempre que possível, presidir à diligência.”
108.Este procedimento não foi realizado, pelo que o início deste processo sustenta-se numa nulidade insanável relacionada com o modo como foram obtidos os reconhecimentos iniciais dos arguidos.
109.Todos os atos subsequentes aos reconhecimentos só foram possíveis por terem sido utilizadas estas provas proibidas. Não restam dúvidas de que estes reconhecimentos foram a causa direta e necessária do prosseguimento do inquérito.
110.Deve ser declarada nula e sem nenhum efeito a prova alcançada na sequência dos reconhecimentos ilícitos, por se encontrar contaminada com o vício que os inquina.
111.Encontra-se nesta situação toda a prova recolhida após a realização dos reconhecimentos. Em boa verdade, se não tivessem sido realizados reconhecimentos com recurso a métodos proibidos de prova, as diligências subsequentes não teriam ocorrido.
112.O que, de acordo com a teoria dos frutos da árvore envenenada ou da proibição em cascata resultante do recurso à prova proibida, torna ilegais estes atos subsequentes, que como tal deverão ser declarados.
113.O douto acórdão recorrido deliberou “condenar os quatro arguidos pela prática de um crime de corrupção passiva para ato ilícito, p. e p. pelo art. 373.º, n.º 1, com referência ao disposto no art. 386.º, n.º 1, al. d), ambos do Código Penal.”
114.Não é apresentada qualquer subsunção dos factos provados às normas legais incriminadoras. Sobre os factos, o douto acórdão recorrido limita-se a afirmar, a fls. 87: “No que se conclui conforme supra: que os arguidos praticaram cada um o crime imputado de corrupção passiva para acto ilícito na forma consumada, previsto e punido pelo art.º 373.º, n.º 1, do Código Penal, no que respeita ao ofendido F…”
115.Acrescenta, logo de seguida: “Conforme resulta da factualidade apurada não subsistem dúvidas que se encontram verificados os elementos constitutivos do tipo legal mencionado, pelo que conclui-se que a conduta dos ditos arguidos além de típica é ilícita porque violadora de bens jurídicos com tutela penal…”
116.São evidentes os erros que o douto acórdão recorrido comete na aplicação do direito, por falta de imputação dos factos às normas legais aplicáveis.
117.O Acórdão da Relação de Lisboa, de 28 de setembro de 2011, prolatado no âmbito do processo n.º 76/10.2GTEVR-3 refere: “II – O tipo subjetivo pressupõe, para além do dolo, que tem por referência todos os elementos do tipo objetivo, de um elemento subjetivo especial que se traduz numa determinada conexão do comportamento objetivo do agente com a prática de um acto ou omissão contrários aos deveres do cargo, compreendidos na sua competência funcional ou nos poderes de facto dela decorrentes.”
118.Sem prescindir, se para mero efeito de elaboração de raciocínio lógico considerarmos que o tipo objetivo e o dolo do referido crime de corrupção passiva se encontram preenchidos, de seguida esbarramos na impossibilidade de preencher o elemento especial do tipo subjetivo, que, como já vimos, consiste na “… conexão do comportamento objetivo do agente com a prática de um acto ou omissão contrários aos deveres do cargo, compreendidos na sua competência funcional ou nos poderes de facto dela decorrentes.”
119.Dos factos provados não consta que existissem estabelecimentos em funcionamento ilegal que não tenham sido encerrados, e o douto acórdão recorrido não indica qualquer estabelecimento que se encontrasse nesta situação.
120.Aliás, socorrendo-nos à prova por presunção, concluímos, sem qualquer dúvida, que o exigido elemento subjetivo especial não se encontra reunido, ou seja, não se encontra provado nos autos que determinados estabelecimentos se encontravam ilegalmente em funcionamento e, por isso, deviam ter sido encerrados, mas não se procedeu ao seu encerramento.
121.Não existe nenhum documento nos autos, ou outro meio de prova, que comprove a existência de equipamentos ou instalações onde fossem verificadas violações às normas legais em vigor; que tais infrações fossem detetadas pelos arguidos; e que estes as não tenham registado nem comunicado, não permitindo a elaboração do respetivo auto de contraordenação nem dar início às investigações e ao encerramento das instalações, que sabiam estar situação ilegal.
122.Os arguidos não praticaram nenhum ato, nem são responsáveis por qualquer omissão contrária aos deveres funcionais a que se encontravam obrigados pela qualidade de funcionários que todos eles detinham (cf. artigo 386.º do Código Penal).
123.Pelo que, não é possível preencher o elemento subjetivo especial do tipo do crime de corrupção passiva, p. e p. no artigo 373.º, n.º 1 do Código Penal, o que torna impossível a subsunção da conduta dos agentes à estatuição da norma, sendo por isso impossível a sua condenação pela prática deste crime.
124.Por todo o exposto, devemos concluir que estamos perante manifesto erro de julgamento, designadamente, erro notório na apreciação da prova que, nos termos da alínea c), do n.º 2, do artigo 410.º do Código do Processo Penal, é um dos fundamentos do presente recurso.
125.Os arguidos A e ... especificam, ao abrigo do disposto no n.º 5 do artigo 412.º do CPP, que mantêm interesse na subida do recurso, retido ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 407.º do CPP, interposto do douto despacho proferido pelo Exmo. Senhor Juiz Presidente na sessão de audiência de discussão e julgamento, realizada no dia 17/10/2022, que indeferiu o pedido de inquirição presencial da testemunha ... e que ordenou a sua inquirição através da aplicação WhatsApp, cuja motivação foi apresentada através de requerimento, em 26/04/2022.

Por tudo o que aqui se expõe, o douto
acórdão recorrido enferma em erro de
julgamento pelo que deve ser revogado, com a
consequente absolvição dos arguidos, sendo
assim reposta a costumada Justiça praticada
pelos Tribunais portugueses.”.
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O recurso foi admitido, nos termos do despacho proferido a 07-10-2022.
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I.3Resposta ao recurso da decisão final
Efetuada a legal notificação, a Digna Magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelos arguidos, pugnando pela sua improcedência,apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:

“III.CONCLUSÕES
Em face do exposto formulam-se as seguintes conclusões:
1.- Nos presentes autos, foram os arguidos A, ..., ... e ... condenados, cada um, pela prática de um crime de corrupção passiva, p. e p. pelo disposto no artigo 373.º, n.º 1, do Código Penal, em conjugação com o constante no artigo 386º., nº1, alínea d), do mesmo diploma legal, por que vinha pronunciado, atinente ao ofendido ..., na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de dois anos e seis meses.
2.- Todavia, o douto acórdão condenatório recorrido não merece reparos no que concerne à correcta valoração da prova e sendo igualmente correcto o sentido da aplicação do direito, mormente no que toca à aplicação dos conceitos de nexo causal à conduta penalmente relevante.
3.- Neste ponto, o teor da decisão recorrida em sede de motivação é exaustiva, verificando-se que o Tribunal a quo fez uma correcta interpretação da prova produzida.
4.- Diversamente do que entendem os recorrentes, temos por líquido que da conjugação dos elementos de prova produzidos em audiência de julgamento, não é o que o recorrente pretende mas o que foi dado como provado na decisão recorrida que corresponde à verdadeira versão dos factos, correctamente dada como provada, acompanhando-se a motivação da decisão da matéria de facto, tal como a mesma vem fundamentada no douto acórdão condenatório.
5.- O douto acórdão recorrido não merece reparos e não se vislumbra qualquer erro de julgamento ou violação do princípio livre apreciação da prova, como pretendem os recorrentes (cfr. artigo 127.º, do Código de Processo Penal).
6.- Não se compreende a contestação quanto ao juízo formulado acerca da credibilidade do ofendido F pois que, em consonância com o douto acórdão condenatório, entende-se que o mesmo resultou claro, coerente e credível, demonstrando receio genuíno dos arguidos, aliás corroborados pelas testemunhas a quem solicitou protecção policial.
7.- Quando o ofendido F refere que acabou por ser pressionado a denunciar, não está a afirmar, contrariamente ao pretendido, que fabricou uma denúncia por ter sido pressionado a fazê-lo. Resulta, ao invés, claro do seu depoimento, que, tendo os factos ocorrido como relatou, não era seu plano denunciar, por receio.
8.- Quanto às interrupções de depoimento mencionadas no recurso apresentado, entende-se que as meras interrupções momentâneas do depoimento da testemunha F não atentaram a credibilidade do seu depoimento, sendo que o mesmo continuou a prestar os seus esclarecimentos perante o Tribunal mesmo perante as intervenções indevidas e à distância de terceiros. Por outro lado, o douto acórdão recorrido, e bem, tomou desde logo posição sobre esta questão.
9.-E nem se tente descredibilizar o ofendido F pela circunstância de ter sido confrontado em audiência de julgamento com o seu depoimento prestado em sede de inquérito em 2014, vários anos antes e para avivamento da sua memória.
10.- É também de referir que contrariamente ao pretendido pela defesa, o depoimento de I foi tido em consideração pelo Tribunal com as devidas reservas atentas as respectivas contradições, o que aliás veio a determinar a absolvição parcial dos arguidos.
11.- No que concerne à consulta dos perfis dos arguidos na rede social de facebook, nada obstava na investigação à prossecução de uma tal diligência pelos investigadores, sendo válidas as provas assim obtidas. Com efeito, uma pesquisa em fonte aberta significa uma mera pesquisa num comum motor de busca que permite encontrar, entre outras informações, vários perfis de facebook naquela rede social.
12.-As diligências subsequentes à gravação da oficina, designadamente a captação de som e imagem e demais investigação, não radicam na mera existência daquela gravação, mas desde logo assentam nas suspeitas lançadas na notícia de crime, na denúncia efectuada e por esse motivo não podem ser tidas como “frutos da árvore envenenada” ou prova proibida para efeitos do disposto no artigo 126.º, do Código de Processo Penal.
13.-Não existe a relação causa-efeito que os recorrentes pretendem fazer valer entre a gravação da oficina de ... e os demais elementos probatórios.
14.-O Tribunal a quo adere à tese (legítima) de que basta a aceitação da vantagem pelo funcionário agente do crime e independentemente do seu intuito ser um acto lícito ou ilícito (neste caso, no sentido do não encerramento de estabelecimentos ou, em geral, de passagem de eventuais autos de contraordenação com as correspondentes coimas na sequência de fiscalização que cabia nos poderes daqueles funcionários agentes do crime nestes autos).

Termos em que, e nos mais que V. Exas. Doutamente suprirão, não deverá ser dado provimento ao recurso interposto pelos quatro arguidos.
V. Exas., porém e como sempre, farão JUSTIÇA!”.
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Do recurso do despacho interlocutório:
Na última conclusão do recurso interposto relativamente ao acórdão proferido nestes autos, vieram, ainda, os arguidos A e ..., em obediência ao disposto no n.º 5 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, manifestar interesse na subida do recurso, retido ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 407.º do Código de Processo Penal, que haviam interposto relativamente ao despacho proferido pelo Mm.º Juiz a quo, na sessão da audiência de discussão e julgamento, realizada no dia 17-03-2022, que indeferiu o pedido de inquirição presencial da testemunha ... e ordenou que a mesma fosse efetuada através da aplicação WhatsApp, cuja motivação foi apresentada através de requerimento, em 26-04-2022.
Da audição da gravação respeitante ao despacho proferido na referida sessão de julgamento, no que aqui releva, relativamente à inquirição da referida testemunha, decorre:

O seguinte despacho [transcrição]:
“… a mesma já na data da anterior sessão de julgamento manifestou ter receio e por esse motivo já nessa data foi deferido que caso aqui comparecesse fosse ouvida na ausência dos arguidos. Mantem-se tal receio e com vista à preservação da espontaneidade do seu depoimento defere-se agora que seja ouvido na ausência dos arguidos, mesmo sendo ouvido por meio à distância.”.

Mais decorrendo o seguinte [transcrição]:
“O Senhor Doutor ainda não se pronunciou, mas creio que também nada tem a opor pelo meio à distância, não é? (INAUDÍVEL).
00:13.32 Advogado 2: Sim (INAUDÍVEL).
00:13.34 Juiz: (INAUDÍVEL).
00:13.39 Advogado: Senhor Doutor, eu queria só interpor um recurso sobre este despacho, nos termos do artigo 411º, nº2, cuja motivação será apresentada no prazo previsto para o efeito. Eu adianto desde já como fundamento deste recurso, eu acho que o tribunal, isto não tem nada a ver com este caso, eu mantenho, vamos ouvir a testemunha…………”
[sublinhado nosso].
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Inconformados com tal decisão, dela interpuseram recurso os arguidos A e C para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraíram as seguintes conclusões [transcrição]:

“CONCLUSÕES
1.-Os arguidos requereram que a testemunha F fosse ouvida presencialmente em sessão de audiência de discussão e julgamento, já que resulta dos autos que vive em Portugal desde 2001 e tem residência na freguesia de A____-C____, em S_____.
2.-A tomada de declarações às testemunhas deve ser presencial, com vista a garantir o respeito pelos princípios da oralidade, imediação e do contraditório.
3.-A lei distingue duas situações de exceção à inquirição presencial das testemunhas.
4.-A primeira ocorre quando uma testemunha, residindo em Portugal, mas em município diferente do tribunal do julgamento, cumprindo determinados pressupostos, pode ser inquirida por meio à distância, identificando-se perante o funcionário do tribunal ou juízo onde o depoimento é prestado, através de meio tecnológico disponibilizado pelo tribunal, nos termos do artigo 318.º, n.ºs 1, 5 e 6, do Código do Processo Penal.
5.-A segunda ocorre quando a testemunha reside no estrangeiro, em que não há intervenção de funcionário ou juiz de outro tribunal ou juízo, e a identificação e inquirição da testemunha é feita pelo juiz do tribunal do julgamento através “de equipamento tecnológico que permita a comunicação, por meio visual e sonoro, em tempo real, sempre que no local da sua residência existam os meios tecnológicos necessários.”, nos termos do artigo 318.º, n.º 8, do Código do Processo Penal.
6.-A testemunha F não poderia ter sido inquirida através da aplicação WhatsApp, já que não reside no estrangeiro, nem se encontrava no estrangeiro no dia da sessão de julgamento, para a qual foi devidamente convocada pelo Tribunal.
7.-O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23 de janeiro de 2020 ordenou expressamente, a fls. 127 e 128, a inquirição da testemunha F, pelo que devemos concluir que a presença da testemunha na audiência de discussão e julgamento é essencial à descoberta da verdade.
8.-A testemunha não alegou qualquer grave dificuldade ou inconveniente, funcional ou pessoal, que impedisse a sua deslocação ao tribunal.
9.- O Tribunal violou o disposto no artigo 318.º, n.º 8 do Código do Processo Penal, ao inquirir a testemunha F como se a mesma estivesse a residir no estrangeiro, mesmo conhecendo o paradeiro da mesma, a saber: A____-C____, S_____, Portugal.
10.- O princípio da imediação das provas pressupõe a oralidade do processo e a receção imediata e direta da prova pelo juiz.
11.- O depoimento da testemunha F não foi espontâneo, nem isento de perturbação, já que foi interrompido por um terceiro não identificado, sem qualquer autorização do Tribunal, tendo sido retomado sem qualquer advertência e indagação do Tribunal sobre a identidade desse terceiro. Atente-se na seguinte passagem do depoimento:
00:22:30
MP – Olhe, lembra-se qual dos indivíduos é que da parte da tarde foi lá recolher o dinheiro?
Testemunha - Era o puto mais novo, era o senhor mais novo.
MP - Era o mais novo de todos, lembra-se no nome?
Testemunha – Eles nunca disseram o nome.
MP – Era o mais novo de todos, é isso?
Testemunha – Era um que dizia que era o chefe, que era assim de meia-idade, tinha dois senhores com idade mais avançada e tinha esse rapaz que na altura devia estar na casa de 20 e poucos anos. Notava-se logo que era o mais novo deles.
00:23:30
MP - Portanto, esse mais novo que tinha ido buscar o dinheiro, na parte da manhã ele tinha...
Testemunha – Só, só um minuto.... Só um minutinho aqui.
Terceiro não identificado: (Impercetível)
Testemunha - Pode continuar.
MP - Muito obrigada. Olhe da parte da manhã disse que ficaram dois ao portão, entretanto, depois entrou o chefe e já lá estava um dentro, certo?
12.-O Tribunal não assegurou o rigoroso cumprimento das regras de inquirição da testemunha, nomeadamente, a garantia de que a mesma não estava a ser instruída por um terceiro, pelo que não foi garantido o respeito pelo princípio da imediação, princípio basilar da produção de prova aquando da inquirição da testemunha F.
13.-Ao permitir a inquirição da testemunha ... através da aplicação informática WhatsApp, ao invés de ordenar a sua inquirição presencial como requerido pelos arguidos, o Tribunal violou o disposto no artigo 318.º, n.º 8 do Código do Processo Penal.
14.-O Tribunal não promoveu um processo equitativo, nem garantiu o respeito pelo princípio do contraditório e da imediação, violando do disposto nos artigos 20.º, n.º 4 e 32.º da Constituição da República Portuguesa.
15.-Por tudo o exposto, o Despacho de 17 de março de 2022, que ordenou a inquirição da testemunha F através da aplicação informática WhatsApp deverá ser revogado.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser anulado o douto Despacho recorrido.

Resposta ao recurso do despacho interlocutório:
Efetuada a legal notificação, a Digna Magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelos referidos arguidos, pugnando pela sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:

“III.CONCLUSÕES
1.- São as conclusões que delimitam o objeto do recurso, tal como se refere no Acórdão de 92.06.24, D.R.I.S.-A de 92.08.06 ( disponível em www.dgsi.pt).
2.- Não se verifica qualquer nulidade do despacho interlocutório.
3.- O depoimento testemunhal em julgamento encerra em si mesmo a possibilidade de fornecer ao tribunal a versão de um sujeito sobre como se sucederam determinados fatos, contribuindo para a identificação da autoria e/ou da materialidade de um crime.
4.- É evidente que a testemunha F efetuou um relato espontâneo, permitindo ao tribunal a possibilidade de perceber o teor das suas declarações, que em sede de acórdão apreciará se de valorar, credibilizar, etc..
5.- O ambiente onde o arguido se encontrava aquando da sua inquirição em nada influiu na espontaneidade do mesmo, na perceção que o Ministério Público deteve por essa ocasião, tendo sido capaz de fornecer ao tribunal a sua versão dos factos (e de não de outrem).
6.- Ora, com este recurso os arguidos/recorrentes apenas pretendem colocar em causa o protelamento dos autos, sendo que o que se pretende perante o sistema informador processual penal português é, antes, a celeridade e a tomada de decisões em tempo útil.
7.- Ora, nesta mesma linha, entende o Ministério Público que nenhum prejuízo concreto ou outro se revelou existir perante a inquirição desta testemunha, por meio de telecomunicação à distância, via WhatsApp, onde todos os intervenientes  processuais ali presentes puderam visionar a testemunha e ouvir as suas declarações, com clareza e bem assim questioná-la.
8.- Ademais, em nada ficou demonstrado que tenha existido intromissão no depoimento da testemunha por parte de terceiros.
9.- O depoimento prestado pela testemunha F, por meio de telecomunicação à distância, via WhatsApp, assumiu em termos processuais as mesmas características do presencial, não colocando absolutamente em causa a imediação, nem sequer nenhum dos princípios informadores do direito processual penal.
10.- Não violou o tribunal nenhuma das normas jurídicas invocadas pelo arguido/recorrente e, por conseguinte, não se verifica qualquer nulidade ou irregularidade processual, devendo a decisão ser mantida na íntegra.
11.- Pelo que, no entender do Ministério Público, não procedem os argumentos avançados pelo arguido/recorrente, devendo os despachos recorridos ser mantidos na íntegra.
Termos em que, deve o douto despacho ser mantido na íntegra,
Vossas Excelências, farão como sempre a costumada JUSTIÇA.”.
»

I.4Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos seguintes termos [transcrição]:

“RECURSO INTERLOCUTÓRIO
Quanto ao recurso interlocutório interposto pelos arguidos A e C, pelo qual referem manter interesse, na sua apreciação, o MºPº entende que, para além de se poder concluir da falta de interesse em agir dos arguidos, atento o disposto na alª b). do nº 1 do artº 401 do CPP, quanto ao mais o presente recurso também não merece provimento.
Senão vejamos:
Resulta da transcrição da Acta de audiência de 17/3/022, junta aos autos em 17/6/022, que aqui se transcreve:
TRANSCRIÇÃO
“……..defere-se agora que seja ouvido na ausência dos arguidos, mesmo sendo ouvido por meio à distância.”
O Senhor Doutor ainda não se pronunciou, mas creio que também nada tem a opor pelo meio á distância, não é? (INAUDÍVEL).
00:13.32 Advogado 2: Sim (INAUDÍVEL).
00:13.34 Juiz: (INAUDÍVEL).
00:13.39 Advogado: Senhor Doutor, eu queria só interpor um recurso sobre este despacho, nos termos do artigo 411º, nº2, cuja motivação será apresentada no prazo previsto para o efeito. Eu adianto desde já como fundamento deste recurso, eu acho que o tribunal, isto não tem nada a ver com este caso, eu mantenho, vamos ouvir a testemunha…………”
(sublinhados nossos)
Deste trecho que ora se transcreve resulta que, ao ser interpelado pelo Mmº Juíz para se opor á audição á distância da testemunha F, o advogado dos arguidos referiu que nada tinha a opor e adiantou mesmo que o recurso que iria interpor nada tem a ver com o caso.
Entendemos, por isso, que se deve concluir que os arguidos não têm interesse em agir e que o recurso deve ser rejeitado.
Caso assim se não entenda e já no que se refere á questão da audição de testemunha á distância, quando esta se encontre em Portugal, entendemos que, no caso em apreço, essa audição foi realizada ao abrigo do que dispõe o artº 319 do CPP pelo que o despacho proferido pelo Mmº Juíz não se reveste de qualquer ilegalidade, não merecendo o recurso provimento.

RECURSO DA DECISÃO FINAL
Vem o presente recurso interposto pelos arguidos adiante identificados, do Acordão proferido em 14/7/022 que os condenou:
1 - O arguido A, pela prática de um crime de corrupção passiva, previsto e punido pelo disposto no artigo 373.º, n.º 1, do Código Penal, em conjugação com o constante no artigo 386.º, n.º 1, alínea d), do mesmo diploma legal, por que vinha pronunciado, atinente ao ofendido ..., na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de dois anos e seis meses;
2 - O arguido ..., pela prática de um crime de corrupção passiva, previsto e punido pelo disposto no artigo 373.º, n.º 1, do Código Penal, em conjugação com o constante no artigo 386.º, n.º 1, alínea d), do mesmo diploma legal, por que vinha pronunciado, atinente ao ofendido ..., na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por um período de dois anos;
3 - O arguido ..., pela prática de um crime de corrupção passiva, previsto e punido pelo disposto no artigo 373.º, n.º 1, do Código Penal, em conjugação com o constante no artigo 386.º, n.º 1, alínea d), do mesmo diploma legal, por que vinha pronunciado, atinente ao ofendido ..., na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por um período de dois anos;
4 - O arguido ..., pela prática de um crime de corrupção passiva, previsto e punido pelo disposto no artigo 373.º, n.º 1, do Código Penal, em conjugação com o constante no artigo 386.º, n.º 1, alínea d), do mesmo diploma legal, por que vinha pronunciado, atinente ao ofendido ..., na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por um período de dois anos.
*

Os arguidos vêm impugnar o douto Acordão proferido invocando o erro notório na apreciação da prova e pretendendo também discutir a matéria de facto que está subjacente ao Acordão recorrido, sustentando todos eles que o tribunal a quo não poderia ter dado como provados e não provados os factos que especificou e que, consequentemente, deveriam ter sido absolvidos.
Concordamos integralmente com a douta Resposta ao recurso apresentada pela Exmª. Procuradora da República, na qual se demonstra que o percurso seguido pelo Tribunal na aquisição da convicção sobre a culpabilidade dos arguidos nos termos em que a considerou, assenta em critérios lógicos e objectivos e que, por isso, a douta decisão recorrida não merece qualquer reparo.

Apenas, em reforço do expendido pela Exmª Colega, aditaremos o seguinte:
Em processo penal, por vezes, nos recursos faz-se um inadequada abordagem do que seja o recurso da matéria de facto, pois que o recurso em tal vertente apenas pode ser interposto, com potencialidade para ter êxito, pela via do recorte no texto decisório de algum dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (que, aliás, como se sabe, até podem ser apreciados oficiosamente), ou, como via também possível prevista na lei (artigo 431º, alínea b) daquele código), se a prova tiver sido impugnada nos termos do artigo 412º, nº 3.
Ora, no caso em apreço os arguidos não selecionaram qualquer uma destas vias, antes as pretenderam utilizar em simultâneo, sem rigor e de forma indistinta.
Com efeito, o recurso dos arguidos constitui, desde o início, um exercício de valoração da prova, que se consubstancia, sobretudo, numa análise dos depoimentos dos ofendidos, que os arguidos pretendem descredibilizar, sobretudo no confronto com os depoimentos por si prestados e nos de algumas outras testemunhas que individualizam.
E é com base nesta valoração, muito pessoal, á qual juntam conceitos que não se devem confundir, como o do erro notório na apreciação da prova, que os arguidos sustentam que o tribunal a quo não deveria ter dado como provados determinados factos.
Ora, o erro de julgamento verifica-se sempre que o Tribunal tenha dado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e, portanto, deveria ter sido considerado não provado, ou inversamente, quando o Tribunal considerou não provado um facto e a prova é clara e inequívoca, no sentido da sua comprovação.
Todavia, o mecanismo por via do qual deverá ser invocado - impugnação ampla da matéria de facto – encontra-se previsto e regulado no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP e envolve a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal, na primeira instância e da prova dela resultante.
No entanto, essa reapreciação não é livre, nem abrangente, antes tem vários limites, porque, além de não importar um novo julgamento da causa, está condicionada ao cumprimento de deveres muito específicos de motivação e formulação de conclusões do recurso (Maria João Antunes, in RPCC – Ano 4 Fasc.1 – pág. 120; Acórdão do STJ n.º 3/2012, de 8/3/2012, DR, I Série, n.º 77, de 18/4/2012 Acs. da Relação de Guimarães de 6.11.2017, proc. 3671/13.4TDLSB.G1; da Relação de Évora de 09.01.2018 proc. 31/14.3GBFTR.E1; da Relação de Coimbra de 08.05.2018, proc. 30/16.0GANZR.C1; da Relação de Lisboa de 12.06.2019, processo 473/16.0JAPDL.L1 e de 28.04.2021, processo 4426/17.2T9LSB.L1, in http://www.dgsi.pt).
Com efeito, a lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objectivável, valorando cada meio por si e na conjugação dos vários elementos, analisados de acordo com as regras da experiência.
Assim, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” – é o princípio da livre apreciação da prova.
Diz o Professor FIGUEIREDO DIAS (Direito Processual Penal, vol. I, pp. 199 e ss.), que esta liberdade está de acordo com um dever: o dever de perseguir a chamada “verdade material”. Ou seja, a liberdade do convencimento do julgador, se não deixa de ser expressão de uma convicção pessoal, também não é uma liberdade meramente intuitiva, é antes um critério de justiça que se tem que basear na verdade histórica das situações e necessita de dados psicológicos, sociológicos e científicos para a certeza da decisão.
Acresce que este princípio da livre apreciação da prova está intimamente relacionado com os princípios da oralidade e da imediação.
O primeiro exige que a produção da prova e a discussão, na audiência de julgamento, se realizem oralmente, de modo a que todas as provas, excepto aquelas cuja natureza não o permite, sejam apreendidas pelo julgador por forma auditiva.
O segundo, diz respeito à proximidade que o julgador tem com os intervenientes no processo, ao contacto com todos os elementos de prova, através de uma percepção directa.
Como salienta, ainda, o Professor FIGUEIREDO DIAS (Direito Processual Penal, vol. I, pp. 233 e 234) “só os princípios da oralidade e imediação (…) permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade.
Só eles, por outro lado, permitem avaliar o mais concretamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais”.
Além do mais, os meios de que o Tribunal de primeira instância dispõe para a apreciação da prova são diferentes dos que o Tribunal de recurso possui, uma vez que a este estão vedados os princípios da oralidade e da imediação e é através destes que o julgador percepciona as reacções, as hesitações, os tempos de resposta, os olhares, a linguagem corporal, o tom de voz, tudo o que há-de constituir o acervo conviccional da fé e credibilidade que a testemunha há-de merecer.
Isto significa que não está ao alcance do Tribunal de recurso sindicar certos meios de prova quando, para a credibilidade da declaração/testemunho, foi relevante o funcionamento do princípio da imediação, embora possa, ainda assim, controlar a convicção do julgador da primeira instância quando ela se mostre contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos
Ora, pese embora a discordância dos arguidos relativamente à forma como a matéria de facto se mostra fixada, em face dos princípios da imediação e da oralidade, cremos ser o Julgador a quo quem está em posição privilegiada para aferir da credibilidade que lhe merece o declarante e, não estando tal credibilidade beliscada pelas regras da experiência, cremos que se mostra imperioso aceitar a posição do Tribunal recorrido.
No mais, sempre se dirá que se tem vindo a entender que a ausência de imediação determina que o tribunal superior, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida, nos termos previstos pelo artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, mas já não quando permitirem outra decisão. Ou seja, a convicção da primeira instância, só pode ser posta em causa quando se demonstrar ser a mesma inadmissível em face das regras da lógica e da experiência comum.
Certo é que os arguidos, recorrentes, embora tendo feito referência aos vários factos que consideraram incorrectamente provados, não indicaram especificamente, quais as provas que, no seu entender, impunham decisão diversa para cada um desses factos e também não indicaram, expressamente, quais as provas que pretendiam ver renovadas isto é, reapreciadas.
Ora, o Tribunal no caso concreto, para chegar à sua decisão, valorou um conjunto diverso de provas utilizando exactamente as regras da razão, fundadas na lógica e na experiência. Daí que não se vislumbra qualquer vício no seu modo de decidir e valorar essas provas, que ponha em causa o principio da livre apreciação da prova.” (vide, Ac. R C, de 25/11/2009, proferido no Proc. N.º 219/05.8GBPCV.C1).
Com efeito, o Acordão recorrido motivou a decisão da matéria de facto, esclarecendo o percurso lógico que trilhou na formação da sua convicção, indicando os meios de prova em que a fez assentar e esclarecendo as razões pelas quais lhes conferiu relevância.
Por outro lado, tal motivação não contraria as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos.
Assim, na verdade, o que os recorrentes alegam é que os meios de prova carreados e produzidos impunham que se fizesse uma ponderação diferente, valorando-se a versão dos arguidos em detrimento da versão dos ofendidos e restantes testemunhas, fazendo uma interpretação precisamente contrária à do tribunal.
Contudo, a procedência desta argumentação pressuporia a revogação pelo Tribunal da Relação da já mencionada norma do artigo 127º do Código de Processo Penal, a que os tribunais devem naturalmente obediência, que manda que o juiz julgue segundo a sua livre convicção.
Ou seja, os recorrentes limitam-se, afinal, a manifestar apenas a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, mas em nenhum momento demonstram que a decisão recorrida enferma de erro de julgamento ou erro notório na apreciação da prova.
Assim, não tendo os arguidos logrado impugnar a decisão de facto de modo processualmente relevante e não enfermando a decisão de qualquer dos vícios a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do CPP, mostram-se necessariamente fixados os factos considerados provados e não provados pela primeira instância.
Daí que, subscrevendo a posição assumida pelo MºPº, face á matéria de facto apurada, dúvidas não subsistem relativamente ao seu enquadramento legal, permitindo subsumir tais factos aos crimes pelos quais os arguidos foram condenados, não descortinando nenhuma razão que possa servir de fundamento para discordarmos da fixação das penas em que o arguido vieram a ser condenados.
Razão pela qual aderimos a esta resposta, sendo de parecer que o recurso interposto pelos arguidos não merece provimento.”.
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I.5.Resposta
Dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, vieram os arguidos recorrentes responder ao sobredito parecer, pondo em causa a validade dos fundamentos ali vertidos, reafirmando a respetiva posição expressa nas peças recursivas.
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I.6.Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.

Cumpre, agora, apreciar e decidir:
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IIFUNDAMENTAÇÃO
II.1-Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ][1], são as conclusõesapresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal[2].
Assim, face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação dos recursos interpostos nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:

No que respeita ao recurso do despacho interlocutório [do despacho proferido a 17-03-2022 que determinou a inquirição da testemunha ... por WhatsApp]:
Se o despacho que determinou a inquirição, por WhatsApp, da testemunha ... deve, ou não, ser anulado.

No que respeita ao recurso da decisão final [acórdão proferido a 14-07-2022]:
Se o acórdão recorrido padece do vício do erro notóriona apreciação da prova;
Se foi violado o princípio in dubio pro reo;
Se existe erro de julgamento.
Se poderia o tribunal a quo ter feito uso de prova já declarada nula;
Se a prova alcançada através de captação de som e imagem na oficina de G deve ser declarada nula e de nenhum efeito;
Se os reconhecimentos fotográficos padecem de nulidade que afeta a restante prova.
Se se encontram verificados todos os elementos do tipo de crime pelo qual os arguidos se encontram condenados, concretamente o elemento subjetivo.
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II.2Da decisão final recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:

“RELATÓRIO:
Em Processo Comum e perante Tribunal Colectivo, o Ministério Público deduziu Acusação e Mmº. JIC Despacho de Pronúncia contra:
1- A (…);
2- ... (…);
3- ... (…); e
4- ... (…)
Imputando-lhes (no que cabe agora apreciar) a prática em concurso efectivo e em coautoria material, de DOIS CRIMES DE CORRUPÇÃO PASSIVA, previstos e punidos pelo disposto no artigo 373º., nº.1, do Código Penal, em conjugação com o constante no artigo 386º., nº1, alínea d), do mesmo diploma legal.
(…)
Proferido acórdão absolutório foi interposto recurso pelo MP.

Na Relação os arguidos foram condenados pelas suas condutas no que respeita aos ofendidos ..., ..., E e ... ....
Designadamente:
(…) sendo o arguido A condenado em pena única de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por 5 anos; e os arguidos B, C e D na respectiva pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por 5 anos.
O que foi mantido no STJ e TC.
Mais sendo ainda, depois rejeitado recurso interposto na Relação para o TC.

Conforme vertido no Ac. da Relação, de 23/1/2020, no vol.7 dos autos, concedeu-se “parcial provimento aos recursos interpostos pelo Ministério Público pelo que, em consequência:
a.-Concedem provimento aos recursos interlocutórios interpostos pelo Ministério Publico pelo que declaram nulos os despachos judiciais de 7 de junho e 21 de junho de 2018, que indeferiram a reprodução da gravação das declarações das testemunhas nos termos do disposto no art.º 356.º, n.º 4 CPP das declarações prestadas pelas testemunhas ... e ... de ... em Inquérito, perante o Ministério Púbico por omissão de diligência necessária à descoberta da verdade material, cfr. Art.º 120.º 2 d), 3 a) CPP – procedendo-se oportunamente a julgamento por factos respeitantes àqueles queixosos na 1ª. Instancia”.

Ou seja, coube agora apreciar a responsabilidade criminal dos quatro arguidos no que respeita aos ofendidos F e ... ....

Ou seja, novamente, coube ainda apreciar a sua eventual responsabilidade em dois crimes de corrupção passiva, conforme imputado na acusação (vol.4) e Pronúncia (vol.5).
(…)
No decurso da fase de julgamento os arguidos Claro e Teixeira interpuseram recurso interlocutório, atinente nomeadamente ao uso de meios à distância. O qual foi admitido com subida conjunta a final.
(…)

FUNDAMENTAÇÃO:

FACTOS PROVADOS:
Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos (mantendo-se a numeração vertida na decisão instrutória, para melhor facilidade de percepção):
1.- Os arguidos são todos militares da Guarda Nacional Republicana, com as seguintes categorias (à data dos factos infra): o arguido A com o posto de 1.º Sargento, o arguido B com o posto de Cabo-Chefe, o arguido C com o posto de Cabo e o arguido D com o posto de Guarda Principal.
2.- Em data que não se conseguiu concretamente apurar, mas pelo menos desde 2012, os arguidos, por força das suas qualidades curriculares e capacidades na área de investigação, integraram uma equipa de investigação, criada no seio da Direcção de Investigação Criminal, com sede nas instalações do Posto Territorial da GNR de A_____, área deste município, com o propósito de, em acordo com o estabelecido pela Procuradoria-Geral da República, proceder a todas as diligências de investigação relacionadas com o furto e receptação de cobre e derivados, com competência para todo o território nacional (no âmbito da Circular nº.3/2012, de 13 de Fevereiro, da PGR).
3.- Para o efeito, foram disponibilizados à equipa de investigação criminal, que integrava outros militares para além dos arguidos, todos os equipamentos e recursos essenciais para o exercício das funções referidas, entre eles, um telemóvel, contendo um cartão ao qual estava atribuído o nº........., e, pelo menos, duas viaturas automóveis descaracterizadas: uma de marca Lancia, modelo K20, de cor verde, com a matrícula ... e uma de marca Toyota, modelo Avensis, de cor cinzenta, com a matrícula ....
4.- Nas investigações que lhe estavam atribuídas, sempre relacionadas com ocorrências de furto e receptação de cobre e derivados, incumbia aos arguidos a realização de todas as diligências de inquérito, incluindo cumprimento de mandados de busca, realização de vigilâncias, entre outras que se aferissem cruciais para a determinação e responsabilização dos autores dos factos, bem como pertinentes para a prova.
5.- Em tal actividade, os arguidos e os outros militares que integravam a equipa, eram auxiliados por outros elementos, também eles militares da GNR, que integravam outros departamentos, entre eles o Núcleo de Investigação Criminal, bem como o Núcleo de Protecção do Ambiente, e vice-versa, sempre que tal se mostrasse necessário para a realização da operação.
6.- À actividade investigatória acrescia as normais funções de identificação de novas ocorrências ilícitas e realização de acções de fiscalização, desde que dentro da área de actuação e no âmbito das competências deferidas à equipa em que os arguidos se integravam.
7.- Assim, e no exercício das funções que lhe estavam atribuídas, os arguidos procederam ao reconhecimento e identificação dos locais onde poderiam ocorrer actos de desvio e receptação de cobre e seus derivados, bem como da identidade dos seus proprietários.
8.- Tendo ainda tomado conhecimento das quantias monetárias, quase sempre recebidas em dinheiro, auferidas pelos proprietários de tais sucateiras, com a venda de cobre de forma ilegal, bem como da precariedade da situação vivenciada pelos mesmos, decorrente dos fracos laços que os ligavam ao território nacional.
9.- Adquiridos esses conhecimentos sobre a actividade e identificados os seus mais vulneráveis trabalhadores, os arguidos, desde data que não se conseguiu concretamente apurar, mas pelo menos a partir de Julho de 2013, em conjugação de vontades, meios e fins, decidiram abordar alguns dos proprietários das sucateiras que já haviam identificado e, após realizarem uma fiscalização aos respectivos locais de trabalho, faziam menção da existência de violações às normas legais em vigor, exigiam a entrega de uma quantia monetária, em dinheiro, para que as infracções detectadas não fossem registadas ou comunicadas.
10.- O pagamento teria de ser feito obrigatoriamente em montantes monetários, nos termos determinado pelos arguidos, sempre em dinheiro, a ser entregue a algum dos quatro arguidos que a tais estabelecimentos se deslocasse, sozinho ou acompanhado.

11.- Assim, e no âmbito de tal plano que haviam previamente delineado, os arguidos deslocaram-se, entre outros locais, aos seguintes estabelecimentos onde abordaram os respectivos proprietários:
- ... –

186. No decurso do mês de Julho de 2013, em dia que não se conseguiu concretamente apurar, pelas 9h30m, os quatro arguidos, em concretização do plano que haviam previamente delineado, deslocaram-se, na viatura ligeira, de passageiros, descaracterizada, que lhes estava atribuída para o exercício das suas funções, de marca Lancia, modelo Delta, de cor verde, com a matrícula ..., até ao depósito de sucata, que sabiam ser explorado por ..., de nacionalidade brasileira, sito no Bairro ..., área deste município.
187.Imobilizada a viatura junto ao local, o arguido C, transportando uma máquina fotográfica e o arguido B, levando um bloco, dirigiram-se ao referido depósito, enquanto os arguidos A e D permaneceram no interior da viatura, vigiando o local.
188.Junto ao referido depósito, após puxarem a porta de acesso ao seu interior, onde de imediato entraram, o arguido C fez disparar a máquina fotográfica que levava por diversas vezes, enquanto o arguido B se dirigiu a X, que ali também trabalhava.
189.O arguido B questionou de imediato X sobre se estava mais alguém no local, ao que o mesmo respondeu positivamente, referindo que F já voltava.
190.Quando F regressou, o arguido B dirigiu-se ao mesmo, identificou-se como sendo da polícia de fiscalização, abrindo e fechando rapidamente a sua carteira profissional, com o propósito de impossibilitar que o mesmo visualizasse ou memorizasse qualquer elemento da sua identificação.
191.Acto contínuo, o arguido B informou F de que tinha identificado no local diversas violações à legislação das sucateiras, tendo este retorquido com a afirmação de que o seu depósito não era uma sucateira, mas um mero armazém onde desmantelava alguns artigos que vendia em peças.
192.O arguido B esclareceu F que tal situação era indiferente e que o seu depósito era uma sucateira nos termos da lei e, uma vez que detectara diversas infracções, teria de elaborar os respectivos autos e, consequentemente, de proceder ao encerramento, selagem e lacragem do local.
193.Advertindo ainda F, com o propósito de o fazer recear pela sua situação, o que logrou alcançar, de que havia a possibilidade de vir a ser preso por causa das infracções detectadas.
194.F, receoso pelas palavras que lhe eram dirigidas por um agente da autoridade policial, de imediato referiu que precisava de trabalhar, que o dinheiro que auferia sustentava toda a sua família e que o arguido não podia encerrar o seu depósito.
195.Nesse momento, o arguido B, antevendo a possibilidade de F lhe fazer a entrega de uma quantia em dinheiro para que o seu depósito não fosse encerrando, solicitou ao mesmo, bem como a X, os documentos de identificação e, sendo os mesmos apresentados, escreveu no bloco que trazia toda a informação que neles constava, incluindo as moradas de ambos.
196.Já na posse de todos os elementos de identificação de F e X, que guardou, o arguido B, após saber o que havia no piso superior do depósito, ordenou a F que subissem.
197.Em tal local, quando se encontravam apenas o arguido B e F, longe do ângulo de visão e audição de terceiros, incluindo de X, e já podiam falar de forma livre, sem serem ouvidos por mais ninguém…
198.… o arguido B afirmou, então, que F lhe parecia um trabalhador honesto e que não tinha visto, dentro do depósito do mesmo, qualquer material que pudesse ter sido roubado.
199.Após o que o arguido B afirmou que não estava ali para complicar a situação de F, desde que o mesmo estivesse disposto a cooperar.
200.Pese embora o arguido B tivesse já dado indicações sobre em que tal consistiria, F perguntou-lhe directamente em que é que se traduzia tal cooperação.
201.O arguido B, sem nunca o dizer directamente, esfregou os dedos polegar e indicador um no outro, fazendo sinal inequívoco de que o pretendido era a entrega de uma quantia monetária.
202.Perante tal, F, receoso pela possibilidade de vir a ser preso, como o arguido B lhe havia referido por diversas vezes, e não vendo outra solução de o evitar e de permitir manter o seu depósito aberto, seu único meio de subsistência, anuiu ao pretendido, afirmando que pretendia cooperar.
203.O arguido B referiu então a F que aguardasse ali enquanto ele ia chamar o “chefe”, com quem iria acordar os termos da cooperação.
204.Acto contínuo, o arguido B saiu do armazém e regressou, junto a F, acompanhado do arguido A, enquanto o arguido D ficou junto ao arguido C, na zona inferior do depósito, onde também se encontrava X.
205.No piso superior do depósito explorado por F, o arguido A perguntou àquele se o que lhe havia sido dito pelo arguido B, que ali se encontrava com ele, era verdade e se pretendia mesmo cooperar e com que quantia.
206.Alguns minutos depois, F, dando conta de que a equipa do arguido A era composta por quatro elementos, afirmou que podia entregar a quantia em dinheiro de €40 (quarenta euros).
207.Perante a oferta feita, o arguido A perguntou a F se estava a brincar e a gozar com a cara deles, uma vez que aquela não era um valor que se indicasse.
208.Começando o arguido A a indicar quantias monetárias que entendia mais adequadas, como os valores monetários de €-15.000,00 (quinze mil euros) e de €-2.000,00 (dois mil euros).
209.F de imediato referiu não ter condições de pagar quaisquer das quantias indicadas, afirmando que o único material que tinha para vender era o que viam no seu depósito e que, se tivesse alguma das quantias referidas já teria regressado ao Brasil.
210. Nesse momento, perante as palavras de F, o arguido A referiu que o mesmo lhe entregaria a quantia monetária de €-150,00 (cento e cinquenta euros) por semana, valor esse que o mesmo continuou a afirmar não ter condições de lhe pagar.
211. Aí, o arguido A, com o propósito de que lhe fosse entregue uma quantia monetária, disse a F que acordaria com uma entrega única de €-400,00 (quatrocentos euros), em dinheiro, e, em contrapartida, fariam algumas passagens de rotina pelo local.
212. F, receoso com o que os arguidos poderiam fazer e com o propósito de evitar que o seu depósito fosse encerrado, concordou com a entrega da quantia em dinheiro de €-400,00 (quatrocentos euros), acrescentando que tinha de vender primeiro algum material, para arranjar o valor referido, pedindo para regressarem da parte da tarde, altura em que entregaria o dinheiro todo, no que o arguido A anuiu.
213.Antes de saírem, os arguidos avisaram F de que não deveria contar nada a ninguém sobre o que ali se tinha passado, e que, se soubessem que o mesmo tinha dado com “a língua nos dentes”, o acordo entre eles acabaria e encerrariam o seu local de trabalho.
214.Assim, e como acordado, ainda nesse mesmo dia, durante o período da tarde, os arguidos foram passando junto ao depósito explorado por F, onde X os foi informando de que aquele ainda não havia regressado.
215.Pelas 17h30m desse mesmo dia, os arguidos C e B, circulando no identificado veículo ligeiro de passageiros, de marca Lancia, modelo Delta, com a matrícula ..., voltaram a deslocar-se, uma vez mais, ao depósito de sucata explorado por F, sito no Bairro ..., área deste município.
216.F, tendo visualizado a viatura e os arguidos C e B, dirigiu-se à mesma, levando consigo um saco de plástico em cujo interior se encontrava uma caixa na qual havia colocado a quantia acordada de €-400,00 (quatrocentos euros), em dinheiro e entregou o mesmo ao arguido B, que seguia no lugar de passageiro, como lhe havia sido ordenado.
217.Na posse da quantia monetária, os arguidos C e B avisaram novamente F de que não devia contar nada a ninguém, após o que abandonaram o local em direcção desconhecida.
218. No dia 23 de Setembro de 2013, a hora não concretamente apurada, os arguidos, circulando na identificada viatura de marca Lancia, modelo Delta, de cor verde, de matrícula ..., deslocaram-se até ao depósito de sucata explorado por F, sito no Bairro ..., área deste município.
219.De imediato, o arguido A abordou F perguntando-lhe se o que tinha ouvido era verdade, de que tinha “dado com a língua nos dentes”, ao que este logo negou.
220.O arguido A informou F de que, não tivesse sido a sua intervenção, o depósito que explorava teria sido fiscalizado na semana anterior e, com grande probabilidade, teria sido determinado o seu encerramento, pelo que o mesmo tinha cumprido a sua parte no acordo celebrado entre ambos.
221.Afirmando ainda, o arguido A, que teriam de renegociar o acordo que tinham celebrado, uma vez que as condições se tinham alterado.
222.F, mesmo receoso do que lhe podia acontecer, e ciente de que os arguidos podiam encerrar o seu local de trabalho, referiu aos mesmos que não podia entregar mais dinheiro, independentemente do que lhe acontecesse.
223.Acto contínuo, o arguido A avisou F de que, assim, deixaria de estar sob a protecção deles e que não poderia fazer nada por ele no caso de o depósito que o mesmo explorava vir a ser fiscalizado, após o que os arguidos abandonaram o local.
*

- ... DE ... –

292.No dia 7 de Outubro de 2013, cerca das 16h00m, quatro indivíduos cuja identidade não se conseguiu em concreto apurar, em execução de plano previamente delineado, deslocaram-se, fazendo uso de uma das viaturas que lhe estavam atribuídas no exercício das suas funções, ao armazém explorado por ... DE ..., de nacionalidade brasileira, sito na Rua ..., em S____.
293. Chegados ao local, os quatro indivíduos cuja identidade não se conseguiu em concreto apurar, abriram a porta do armazém, que se encontrava fechada, entraram e dirigiram-se a ... DE ..., que sabiam que no local se encontrava.
294. Aí, os quatro indivíduos cuja identidade não se conseguiu em concreto apurar, que não se encontravam fardados, informaram ... DE ..., ao mesmo tempo que abriram e fecharam rapidamente as carteiras profissionais, impedindo o mesmo de visualizar qualquer elemento da sua identificação, que eram da polícia.
295. Assim, e em execução do plano delineado, um dos quatro indivíduos cuja identidade não se conseguiu em concreto apurar, ficou junto ao portão de acesso à rua, que manteve entreaberto, outro dos mesmos permaneceu ao pé da porta através da qual se acedia ao armazém, e os outros dois dirigiram-se a ... DE ....
296.Aí, um dos quatro indivíduos cuja identidade não se conseguiu em concreto apurar, perguntou a ... DE ... como ia o seu negócio, sabendo já que o mesmo procedia à compra e desmantelamento de peças de sucata, e se estava a dar muito dinheiro, ao que o mesmo respondeu que estava difícil e que não ganhava muito dinheiro.
297. O mesmo dos quatro indivíduos cuja identidade não se conseguiu em concreto apurar, sempre acompanhado por ... DE ..., deu uma volta ao interior do armazém, para ver o que o mesmo ali tinha, ao mesmo tempo que questionava novamente sobre quanto tirava do trabalho que fazia, ao que obteve a mesma resposta, de que o negócio estava fraco e não era rentável.
298. Por seu turno, o outro dos quatro indivíduos cuja identidade não se conseguiu em concreto apurar, que permanecia no interior do armazém, começou também a ver o que ... DE ... tinha no interior do armazém e encontrou, em cima do banco da carrinha que ali estava estacionada, duas facturas, emitidas pela empresa ..., com menção de venda de sucata, uma com o valor de €-1.200,00 (mil e duzentos euros) e outra no montante de €-300,00 (trezentos euros).
299.Acto contínuo, o mesmo dos quatro indivíduos cuja identidade não se conseguiu em concreto apurar que também se encontrava no interior do armazém, pegou nas facturas e mostrou as mesmas a ... DE ..., perguntando-lhe “como é que isto não dá dinheiro se tu em dois dias vendeste €-1.500,00 (mil e quinhentos euros) de sucata?”.
300. Antes de ... DE ... responder (aos quatro indivíduos cuja identidade não se conseguiu em concreto apurar), entraram no armazém que explorava, um número não determinado de elementos da GNR, todos devidamente uniformizados, os quais de imediato abriram totalmente o portão e a porta de acesso ao local.
301. Acto contínuo, um dos elementos da GNR, que se encontrava devidamente fardado e com uma placa identificativa presa na mesma, e que trazia na mão uma pasta, dirigiu-se a ... DE ... e ordenou-lhe para que lhe fossem presentes todos os seus documentos pessoais e os do armazém que explorava.
302. ... DE ..., conforme lhe era pedido pela autoridade policial, entregou os seus documentos pessoais ao militar da GNR que lhos havia pedido e informou o mesmo de que não tinha qualquer documento referente à exploração do armazém.
303. O identificado militar da GNR recebeu os documentos que lhe eram presentes e informou ... DE ... de que o armazém que explorava seria encerrado e que aquele tinha sido o seu último dia de trabalho.
304. Tendo o referido militar da GNR começado a elaborar os competentes autos, incluindo o auto de encerramento e selagem das instalações, do qual entregou cópia a ... DE ....
305. Alguns minutos depois, e enquanto os militares da GNR fardados ainda permaneciam no interior do armazém explorado por ... DE ..., os quatro indivíduos cuja identidade não se conseguiu em concreto apurar chamaram por este, para que chegasse junto deles, que se encontravam perto de uma carrinha branca, de marca HYUNDAI, modelo H1, o que o mesmo fez, entrando para o interior da mesma.
306. Enquanto um dos quatro indivíduos cuja identidade não se conseguiu em concreto apurar, se mantinha no exterior, mas junto à referida viatura automóvel, o mesmo informou ... DE ... de que o armazém que explorava iria ser fechado e que não podia fazer nada, acrescentando que podia abrir outro perto daquele e que lhe dariam protecção nessa altura.
307. Aí, um dos outros quatro indivíduos cuja identidade não se conseguiu em concreto apurar informou ... DE ... que, em contrapartida da protecção deles só tinha de lhes fazer uma coisa, ao mesmo tempo que esfregava os dedos polegar e indicador um no outro, indicando pretender a entregar de uma quantia em dinheiro.
308. ... DE ... informou os quatro indivíduos cuja identidade não se conseguiu em concreto apurar que, caso o armazém que explorava não tivesse sido encerrado, a única contrapartida monetária que podia entregar era apenas de €-200,00 (duzentos euros).
309. Ao que um dos quatro indivíduos cuja identidade não se conseguiu em concreto apurar disse a ... DE ..., com o intuito de o mesmo vir a entregar-lhes quantias monetárias que não lhes eram devidas “arranja outro armazém, que nós damos-te protecção. Isto hoje correu mal…”.
310. ... DE ... informou os quatro indivíduos cuja identidade não se conseguiu em concreto apurar de que os mesmos eram verdadeiros amadores e não sabiam fazer o trabalho como deve ser, referindo ainda que não ia abrir nenhum outro armazém, uma vez que não tinha dinheiro para tal.
311. Encerrado e selado o armazém, os quatro indivíduos cuja identidade não se conseguiu em concreto apurar e os militares da GNR fardados abandonaram o local.
*

326. Actuaram os arguidos A, B, C e D, em todas as condutas acima descritas em 1 a 11 e 186 a 223, em comunhão de esforços, meios e fins, mediante um plano que previamente elaboraram, com o intuito de obter quantias monetárias, que utilizaram em seu proveito próprio, as quais sabiam não ter direito e que não podiam solicitar.
327. Não se coibiram, os arguidos de, para a prática de todas as condutas acima descritas em 1 a 11 e 186 a 223, fazerem uso dos equipamentos que lhe estavam atribuídos para o exercício das suas funções, entre eles as viaturas automóveis, e das informações que recolhiam e que lhes permitiam identificar as vítimas que pudessem abordar, por se encontrarem em situação mais vulnerável, alcançado, desse modo, mais facilmente os seus intuitos, o que lograram alcançar.
328. Os arguidos A, B, C e D bem sabiam que, no exercício das suas funções, na qualidade de militares da GNR, não podiam solicitar e aceitar receber dinheiro, nem outros bens, como condição de não elaborarem os respectivos autos de contraordenação, nem darem início às respectivas investigações e procederem ao fecho das instalações dos identificados que sabiam encontrarem-se em situação ilegal, ao que estavam obrigados em face da qualidade que detinham e que ao fazê-lo punham em causa a autonomia intencional do Estado e violavam as exigências de legalidade, objectividade e independência que devem presidir ao desempenho das funções públicas.
329. Todas as condutas descritas em 1 a 11 e 186 a 223 foram praticadas pelos arguidos em abuso flagrante e grave da sua função como militares da GNR, em violação manifesta e grave dos deveres que lhe são inerentes, revelam indignidade para o exercício dos cargos em que se encontram e implicam a perda da confiança necessária ao exercício das funções que lhes estavam atribuídas.
330.Actuaram os arguidos A, B, C e D, em todas as condutas acima descritas em 1 a 11 e 186 a 223, de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que essas suas condutas eram proibidas e punidas por lei e, mesmo assim, não se inibiram de as praticar.
*

Mais se provou que:
Por outros factos, de 2012 a 23/9/2013, atinentes a outros ofendidos, por acórdão de 23/1/2020, transitado em 21/4/2021, proferido nestes autos pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, os arguidos foram condenados pelas suas condutas no que respeita aos ofendidos ..., ..., E e ... ....
Designadamente:
-quanto ao ofendido ...: o arguido A em 2 anos e 6 meses de prisão e os demais em 2 anos de prisão;
-quanto ao ofendido ...: o arguido A em 2 anos de prisão e os demais em 1 ano e 9 meses de prisão;
-quanto ao ofendido E: o arguido A em 2 anos de prisão e os demais em 1 ano e 9 meses de prisão; e
-quanto ao ofendido ... ...: o arguido A em 2 anos de prisão e os demais em 1 ano e 9 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico de tais penas sendo o arguido A condenado em pena única de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por 5 anos; e os arguidos B, C e D na respectiva pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por 5 anos.
(…)
*

Provou-se finalmente que:
Os arguidos admitiram parte da matéria imputada mas negaram o essencial da mesma.
O arguido 1-A nasceu em 2 de Fevereiro de 1975.
Tinha cerca de 38 anos de idade na data dos factos.
Tem hoje 47 anos de idade.
O 2º arguido, B, nasceu em 27 de Setembro de 1964.
Tinha 48 anos de idade na data dos factos.
Tem hoje 57 anos de idade.
O 3º arguido, ... nasceu em 28 de Novembro de 1967.
Tinha cerca de 45 anos de idade na data dos factos.
Tem hoje 54 anos de idade.
O 4º arguido; RBA..., nasceu em 29 de Outubro de 1979.
Tinha cerca de 33 anos de idade na data dos factos.
Tem hoje 42 anos de idade.
Em virtude dos factos em apreço pende processo disciplinar contra os aqui arguidos.
A testemunha J, superior hierárquico dos arguidos, não tem qualquer dúvida sobre a idoneidade dos arguidos, tendo a mesma total confiança nos arguidos.
A testemunha L, colega dos arguidos, tem as melhores referências dos arguidos, reputando-os de excelentes profissionais, que fazem investigação criminal com rigor e determinação.
A testemunha M reputa os arguidos de pessoas idóneas e competentes, depositando total confiança nos mesmos, sendo que se hoje tivesse de constituir equipa os escolheria para trabalharem consigo.
A testemunha N, que foi superior hierárquico dos arguidos, reputa-os de bons militares, com boas classificações, tendo a testemunha a melhor impressão dos mesmos, pessoal e profissionalmente, sendo que segundo informação que recebeu dos mesmos da investigação criminal, os arguidos eram pessoas idóneas.
A testemunha ... fez avaliação profissional dos arguidos muito positiva, nada lhes tendo a apontar em termos de competência, reputando o seu trabalho de valioso para os processos e nada lhes tendo a apontar no seu relacionamento interpessoal, sendo que se hoje tivesse de constituir equipa os escolheria para trabalharem consigo.
A testemunha N que chefiou o 1º arguido no LPC da PJ Militar, tendo trabalhado com o mesmo no chamado “processo de Tancos”, onde o 1º arguido trabalhou como perito de laboratório na investigação do furto e “achamento” de armas, reputa o 1º arguido de pessoa extremamente empenhada na causa da Justiça, no apuramento da verdade, muito perspicaz no que faz, no aprofundamento das questões, manifestando prontidão no respeito ao serviço.
A testemunha N mais reputa o 1º arguido de pessoa honesta, que dá sempre a resposta devida, tendo sido sempre muito recto no aludido “caso de Tancos”, onde para a testemunha o 1º arguido participou na descoberta da verdade.
O 1º arguido disse finalmente em audiência não se rever na matéria da acusação dos presentes autos, nem mesmo em caso de condenação.
*

FACTOS NÃO PROVADOS:
Não se provou qualquer outro facto relevante para a decisão da causa, para além ou em contrário dos supra vertidos, nomeadamente:
Que as quantias monetárias aludidas em 8 fossem elevadas;
10- que o primeiro pagamento tivesse de ser feito obrigatoriamente na data da primeira visita;
10- que o mesmo fosse seguido de outros, em montantes monetários idênticos ou superiores;
Que os quatro indivíduos aludidos em 292 a 311 fossem os quatro arguidos; ou que qualquer dos arguidos seja um dos indivíduos aludidos em 292 a 311;  e as demais condições pessoais dos arguidos.

MOTIVAÇÃO:
A convicção do tribunal assentou na concatenação ponderada das declarações dos 1º, 2º, 3º e 4º arguidos, com o depoimento das testemunhas ouvidas e os documentos dos autos nomeadamente de fls.1, 2, 13 a 15, 17, 45, 83, 109 a 124, 132 a 4, 146 a 171 (e cd anexo a estas), 183 a 191, 214 a 20, 224 a 237 (e cd anexo a estas), 252 a 6 (e cd anexo a estas), 309 a 323, 325 a 337, 339 a 60, 362 a 402, 414, 415, 420 a 423, 435 a 467, 471, 479 a 85, 489 a 97, 499 a 512, 520, 571 a 5, 578 a 82v, 594 a 620, 624 a 653, 663 a 78, 681 a 6, 696 a 746, 751 e 2, 762 a 5, 781 a 93, 796 a 813, 824, 854 a 62, 874 e 8, 881 a 5, 889 a 91-A, 896 e 7, 911 a 951, 959 a 69, 973 a 83, 990 a 997, 1003 a 8, 1011 a 1080, 1081 a 1117, 1154 a 60, 1166, 1176, 1182, 1187, 1195, 1219 a 21, 1254 e 5, 1256 e 7, 1314 a 29, 1332, 1345, 1347 a 57, 1361 a 7, 1381 e 3, 1384, 1393 e 4, 1397 a 9, 1411, 1413 e 14, 1432 a 41, 1520, 1538, 1663 e 4, 1670, 1677 e 9, 1710 a 14, 1722 a 4, 1727 a 9 (e CD em contracapa do vol.5), 1975 a 8, 2001 a 18, 2050 a 96, 2111 e 12, 2129 a 33, 2164 a 2253, 2503 a 6, 2511 a 2631, 2634 a 9v, 2717, 2807 a 57, 2867 a 9-a, 2907 a 35, 2955, 2955v, 2959 a 61, 2972 e 3, 2987 a 91, 3046 a 9, 3055 a 60, 3065 a 8, 3072 a 7, 3089 a 94, 3139 e 40, 3148 e 9, 3157 a 87, 3222 a 7, dos autos principais; fls.1 e 245 a 257 do apenso A (de reclamação), bem como vertidos no citius, ainda não numerados [os quais incluem nomeadamente CRCs, relatórios sociais, autos de notícia, de selagem, de encerramento, de vigilância, RDEs, de visionamento de imagens, de reconhecimento pessoal, apreensão, exame e avaliação, fotografias, fotogramas e vídeos, elementos bancários e profissionais], todos analisados em audiência, face a um juízo de experiência comum, e à aplicação que se fez em concreto do princípio “in dubio pro reo” quanto aos factos relativos ao alegado ofendido ..., sendo que a prova produzida em audiência se encontra gravada.
Desde logo se diga que dos mencionados Autos de reconhecimento pessoal se constata que relativamente ao ofendido F existem os autos de reconhecimento pessoal mencionados, designadamente dos três primeiros arguidos, os mais velhos, cujo teor foi confirmado em audiência por esse ofendido, no que tal contribuiu para os factos provados. E bem ainda para infirmar o aventado em contrário, no que tal concatenação contribuiu para os factos dados exemplificativamente como não provados. Ademais inexistindo qualquer vício em tais reconhecimentos validamente efectuados.
Pelo contrário, já quanto ao ofendido ..., o mesmo em sede de inquérito procedeu a um reconhecimento pessoal então positivo, mas em sede de audiência infirmou o teor de tal auto de reconhecimento, nomeadamente alegando que se enganou. No que tal, em concatenação com o aludido “in dubio”, contribuiu para os factos dados como não provados.
Assim, desde já se diga que os arguidos prestaram declarações onde admitiram parte do imputado, no que se tiveram os mesmos por credíveis, por corroborados por demais elementos probatórios, no que contribuíram para os factos dados como provados.
Negaram o essencial dos mesmos quanto aos dois aludidos ofendidos ora em apreço. No que cabe distinguir:
-quanto ao ofendido ..., por o depoimento deste ter sido inconsistente e contraditório, face ao aludido “in dubio”, contribuíram os arguidos para os factos dados como não provados;
-quanto ao ofendido F, por o depoimento deste ter sido consistente e credível, por corroborado por demais elementos probatórios, contribuíram os arguidos, não credíveis por quanto a este ofendido por consistentemente infirmados, também para os factos dados como não provados.
Assim, diga-se que o 1º arguido, A, foi credível (por corroborado por demais elementos probatórios) na parte em que fez enquadramento da sua mencionada actividade profissional; ao admitir (quanto aos factos mencionados como 186 a 223) que abordaram o ofendido F; que em vez que se deslocou a instalações do mesmo aí estava empregado desse ofendido, empregado de nome Varela; ao admitir que aí se deslocou no aludido Lancia; que tinham máquina fotográfica; que é natural que a tenham levado ao local; que trajavam à civil mas se identificaram como polícia, exibindo cartão/documento de identificação profissional; ao mencionar que os 2º, 3º e 4º arguidos falaram com o aludido F; ao confirmar o vertido em 195; ao admitir que em conversa com civis possa ser tratado por chefe; ao admitir que na manhã do dia mencionado em 214 se deslocou ao local; ao mencionar que sabe que o 2º arguido se deslocou a esse local na tarde desse dia; que o 2º arguido fez informação de serviço atinente a essa data; ao mencionar que tal informação de serviço consta do acervo documental dos autos; ao confirmar o vertido em 218; que trabalhavam vestidos à civil; ao mencionar que na ocasião aludida em 292 a 311 houve intervenção de elementos fardados do núcleo de protecção ambiental (doravante NPA); que nessa ocasião foi feita apreensão perante a identificação de ilícito contraordenacional; que o aludido estabelecimento foi encerrado; ao admitir o vertido em 311; ao confirmar as suas apuradas condições pessoais, no que contribuiu para os factos dados como provados.
Já não foi credível (por infirmado por prova em contrário) no mais, nomeadamente ao aventar que não recebeu qualquer dinheiro de qualquer dos aludidos dois ofendidos; que não o pediu a nenhum dos dois, nem viu qualquer gesto nesse sentido; ao negar o vertido em 9, 201, 204 a 213 e 219 a 223; ao aventar desconhecer o teor da mencionada conversa com o ofendido F; ao negar que fosse tratado por chefe; ao aventar que na tarde do dia mencionado em 214 já não se deslocou ao local; ao aventar desconhecer o aludido em 217, no que contribuiu para os factos dados como não provados.
Face ao aludido “in dubio” e por credível (por corroborado por demais elementos probatórios) contribuiu ainda para os factos dados como não provados, designadamente na parte em que aludiu a que a equipa que integrava era composta por mais elementos; que o ofendido ... trabalhava “à porta fechada”.
Face ao aludido “in dubio” contribuiu ainda para os factos dados como não provados, designadamente na parte em que negou o vertido em 306 a 310.
O 2º arguido, B, foi credível (por corroborado por demais elementos probatórios) na parte em que mencionou que o aludido estabelecimento do ofendido ... foi fechado e selado; ao mencionar ser verdade o aludido em 1 a 3, 5 a 7, 186; ao admitir que à tarde se deslocaram ao local os 2º, 3º e 4º arguidos; que por norma se fazem acompanhar de máquina fotográfica; que o aludido Varela estava no local de manhã e na tarde desse dia; que o ofendido F esteve à tarde consigo e com o 3º arguido, T....; que detectaram máquina de lavar no local e fizeram respectiva informação; que se identificaram como polícia; ao mencionar que a conduta do ofendido F (quanto aos factos mencionados como 186 a 223) era mera contraordenação; ao admitir que pediu documentos de identificação do aludido Varela; que nessa ocasião e local não foi detectado material suspeito de ser furtado; que à tarde se deslocaram ao local, no mesmo carro; que é possível que tenha assistido a conversa entre o 1º arguido e o ofendido F; que quanto aos factos aludidos em 292 e ss chegaram elementos uniformizados do NPA; que o ... não tinha licença, donde decorreu a contraordenação e encerramento; ao confirmar as suas apuradas condições pessoais, no que contribuiu para os factos dados como provados.
Já não foi credível (por infirmado por prova em contrário) no mais, nomeadamente ao negar o vertido em 8 a 11, 187, 188, 191 a 195, 201 a 204, 217 a 219; ao aventar que o 1º arguido não se deslocou à tarde ao local aludido em 186; que não se identificaram de forma rápida; que não falaram em valores; que o ofendido criou uma narrativa que é mentira; que não esteve mais com o F para além da aludida manhã, no que contribuiu para os factos dados como não provados.
Face ao aludido “in dubio” e por credível (por corroborado por demais elementos probatórios) contribuiu ainda para os factos dados como não provados, designadamente na parte em que aludiu a que a equipa que integrava (quanto aos factos aludidos em 292 e ss) era composta por mais elementos.
O 4º arguido, D, foi credível (por corroborado por demais elementos probatórios) na parte em que confirmou as suas apuradas condições pessoais; ao mencionar que há registo do uso dos aludidos automóveis; ao mencionar ser verdade que se deslocou aos aludidos locais; que ao ofendido ... se deslocou apenas uma vez; que ao ofendido F se deslocaram duas vezes no mesmo dia; que o contacto por norma era feito pelo 1º ou 2º arguidos, por mais graduados; que os aludidos F e ... eram donos de respectiva sucata e frequentavam a mesma igreja; ao confirmar o vertido em 186; que na mesma ocasião de deslocaram os quatro arguidos; que máquina fotográfica faz parte do material de trabalho diário; que de manhã o Jean não estava no local; que nessa ocasião o 1º arguido falou com indivíduo “de cor” que lá estava; que à tarde o 2º arguido falou com o F; ao admitir o aludido em 204; ao mencionar que o NPA tem competência para encerrar os aludidos estabelecimentos; ao mencionar que é o menos graduado dos arguidos, no que contribuiu para os factos dados como provados.
Já não foi credível (por infirmado por prova em contrário) no mais, nomeadamente ao aventar que estão a acusá-lo de algo que não fez; que não viu nada; que não viu os seus colegas fazerem nada; que não foi levada máquina fotográfica; que desconhece o teor das aludidas conversas; que não acredita que tenha sido feito gesto; ao negar o vertido em 213; ao aventar disputa com a PSP como a origem do em apreço, no que contribuiu para os factos dados como não provados.
Face ao aludido “in dubio” e por credível (por corroborado por demais elementos probatórios) contribuiu ainda para os factos dados como não provados, designadamente na parte em que aludiu a que a equipa que integrava (quanto aos factos aludidos em 292 e ss) era composta por mais elementos; que fez vigilância com elementos do NPA; que quanto aos factos aludidos em 292 e ss o NPA depois tomou conta da situação.
Face ao aludido “in dubio” contribuiu ainda para os factos dados como não provados, designadamente na parte em que aludiu a que desconhece o procedimento de pedir dinheiro na primeira visita.
O 3º arguido, C, foi credível (por corroborado por demais elementos probatórios) na parte em que mencionou que foram os quatro arguidos de manhã ao estabelecimento do F e então não o encontraram; que então falaram com um indivíduo à entrada do estabelecimento; ao admitir que à tarde se deslocaram ao mesmo local os 2º, 3º e 4º arguidos; ao mencionar que não viram matéria de crime junto do ofendido F; que na situação do ofendido ... o 4º arguido conduziu o veículo policial; ao confirmar as suas apuradas condições pessoais; ao admitir que na situação aludida em 186 a 223 o 2º arguido perguntou se o ofendido F estava; que o aludido funcionário respondeu que o mesmo estaria à tarde; que na tarde desse dia o 2º arguido falou com o ofendido F; ao explicar o seu âmbito e área de actuação, no que contribuiu para os factos dados como provados.
Já não foi credível (por infirmado por prova em contrário) no mais, nomeadamente ao aventar que o 1º arguido não se deslocou à tarde ao estabelecimento do F; ao negar que tenha pedido dinheiro; ao negar que tenha visto pedirem dinheiro; ao aventar que tal é impossível; ao negar que tenha levado máquina fotográfica; ao aventar que na situação aludida em 186 a 223 ficou à porta juntamente com o 2º e 4º arguidos; ao negar que um dos arguidos tenha tido conversa mais à parte com o ofendido F; ao negar que tenha existido a aludida conversa com o ofendido F; ao negar que lhe tenham dito para cooperar; que tenha visto o aludido gesto; ao aventar que não lhe foi pedido dinheiro, no que contribuiu para os factos dados como não provados.
Face ao aludido “in dubio” e por credível (por corroborado por demais elementos probatórios) contribuiu ainda para os factos dados como não provados, designadamente na parte em que aludiu a que o ofendido ... trabalhava à porta fechada; que (quanto aos factos aludidos em 292 e ss) o NPA se deslocou ao local.
A testemunha Z, foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que o ofendido F lidava com ferro velho. No que contribuiu para os factos dados como provados.
No mais teve posição hostil e defensiva, alegando não saber/não se lembrar e estar em juízo contra a sua vontade, nesta última parte contribuindo para os factos dados como não provados.
A testemunha Y, foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que é agente da PSP; que tinha carro em oficina e dono da mesma lhe mencionou que estava a ter problemas com elementos da GNR; que tal sucedia em T____. No que contribuiu para os factos dados como provados, bem como para a mencionada formação da convicção do Tribunal.
A testemunha ... (ofendido nos autos) foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que trabalhava com sucata em T_____; que apareceram na mesma “esses policiais”; que teve, como tem, receio dos mesmos; ao mencionar que perante a conduta dos arguidos contactou a polícia; que guardava a sucata em armazém em T_____; que os aludidos polícias trajavam à civil; que se identificaram como polícia abrindo e fechando carteira muito rápido; ao mencionar que trabalhava com rapaz de nome Carlos; que os arguidos estavam com máquina fotográfica; que tiraram fotografias e lhe pediram a identificação; que também lhe perguntaram por licença; ao mencionar que não tinha licença (para a aludida actividade); que então lhe foi dito que iria preso, por estar a trabalhar ilegal; ao confirmar o teor da apurada conversa; que lhe foi perguntado se estava disposto a cooperar; que depois veio o “chefe”; que este lhe perguntou se estava disposto a contribuir; que propôs dar 40€, 10€ para cada um deles, ao que o “chefe” se riu; ao mencionar que lhe foram solicitados 400€ para trabalhar à vontade; que não tinha tal quantia; que mencionou que a podia pedir emprestada; que o pediu e obtidos os 400€ um dos arguidos passou pelo local e levou tal quantia; ao mencionar que trabalhava de porta fechada porque não tinha licença; ao mencionar que os arguidos voltaram ao local depois de ter entregue os 400€, pedindo mais dinheiro; ao mencionar que lhe foi pedida quantia semanal; ao mencionar as características físicas dos arguidos que reconheceu pessoalmente e conduta dos mesmos; ao confirmar o teor dos aludidos reconhecimentos pessoais que fez dos 1º, 2º e 3º arguidos; que estes eram os mais velhos; ao mencionar que a sua aludida actividade não era muito lucrativa; e bem ainda no seu depoimento de fls.679 a 680, lido em audiência (nomeadamente para avivamento de memória sobre quem lhe emprestou o dinheiro para pagar aos arguidos). No que contribuiu para os factos dados como provados, bem como para a mencionada formação da convicção do Tribunal e bem ainda para infirmar os em contrário, nesta última parte contribuindo para os factos dados como não provados.
Note-se que embora não tenha conseguido fazer reconhecimento pessoal do 4º arguido, da concatenação de toda a prova (inclusive declarações confessórias desse 4º arguido) foi possível chegar com certeza à identidade de todos os autores dos factos aludidos em 1 a 11 e 186 a 223.
A testemunha W foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que é agente da PSP; ao confirmar o teor de autos de visionamento de imagens e de reconhecimento pessoal dos arguidos (designadamente do 2º arguido pelo ofendido F). No que contribuiu para os factos dados como provados, bem como para a mencionada formação da convicção do Tribunal e bem ainda para infirmar os em contrário, nesta última parte contribuindo para os factos dados como não provados.
A testemunha ... foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que é agente da PSP; ao confirmar o teor de autos de apreensão de máquina de lavar e de reconhecimento pessoal dos arguidos (designadamente do 1º arguido pelo ofendido F). No que contribuiu para os factos dados como provados, bem como para a mencionada formação da convicção do Tribunal e bem ainda para infirmar os em contrário, nesta última parte contribuindo para os factos dados como não provados.
A testemunha H foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que é Chefe da PSP; ao mencionar que depois da denúncia o ofendido F procurou protecção policial; ao mencionar que esse ofendido evidenciava medo dos arguidos; que o mesmo fechou o aludido estabelecimento; ao confirmar o teor de RDE que fez; que apurou que se tratava de veículo da GNR; ao mencionar que viu a GNR a fazer vigilância ao aludido estabelecimento do ofendido F; ao mencionar que a oficina do ofendido ... foi encerrada por acção do NPA da GNR; ao mencionar que quanto ao ofendido Borges estariam em causa ilícitos meramente contraordenacionais; ao mencionar que foi gravada conversa com os 1º e 2º arguidos na oficina de G (transcrita nos autos) que dá uma ideia de conjunto; ao mencionar que estavam previstas mais gravações para além da mencionada feita na oficina do Alan. No que contribuiu para os factos dados como provados, bem como para a mencionada formação da convicção do Tribunal e bem ainda para infirmar os em contrário, nesta última parte contribuindo para os factos dados como não provados.
Note-se que embora a conversação transcrita dê a aludida ideia, mencionada por esta testemunha, no entanto da mesma o Tribunal não conseguiu extrair com o necessário grau de segurança a prova do imputado quanto ao ofendido .... Com efeito, uma coisa é alguém vangloriar-se de ter feito algo e outra é ter contribuído para o mesmo. É que, conforme apurado, quem efectivamente encerrou o estabelecimento do ... foi o NPA e não os arguidos. No que tal juízo, face ao aludido “in dubio”, contribuiu para os factos dados como não provados.
A testemunha ... foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que teve armazém aberto e que ao mesmo se deslocou o 2º arguido identificando-se como militar da GNR; ao mencionar que não conhece o ofendido F. No que contribuiu para os factos dados como provados, bem como para a mencionada formação da convicção do Tribunal e bem ainda para infirmar os em contrário, nesta última parte contribuindo para os factos dados como não provados.
No mais não se valorou o seu depoimento, por respeitar a matéria de que era ofendido nestes autos e relativamente à qual já há trânsito em julgado.
A testemunha ... foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que não conhece o ofendido F; que conhece o ofendido ..., por ser irmão do mesmo; que trabalharam juntos em sucata e ferro-velho; que o seu irmão tinha um armazém onde tinha essa actividade em C... F...; ao mencionar que o ... actualmente reside no Brasil. No que contribuiu para os factos dados como provados, bem como para a mencionada formação da convicção do Tribunal e bem ainda para infirmar os em contrário, nesta última parte contribuindo para os factos dados como não provados.
No mais não se valorou o seu depoimento, por ser depoimento indirecto não confirmado pela alegada fonte (ofendido ...); por alegar desconhecer se o ... deu dinheiro ou não; por alegar desconhecer se foi pedido dinheiro ao ... ou não; e por o seu depoimento respeitar a matéria de que era a testemunha G era ofendido nestes autos e relativamente à qual já há trânsito em julgado. No que contribuiu para os factos dados como não provados.
A testemunha ... DE ... foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que residiu em Portugal de 2004 a 2016; que cá teve oficina perto de M____ de B____; que teve ferro-velho, era sucateiro; ao mencionar que policiais lhe pediram quantia para continuar a trabalhar, para não fecharem o estabelecimento; ao mencionar que os que o fizeram não estavam fardados; que os mesmos se faziam transportar em veículo descaracterizado. No que contribuiu para os factos dados como provados, bem como para a mencionada formação da convicção do Tribunal.
Também mencionou que os policiais a que aludiu eram cinco ou seis, para além dos que estavam no exterior do armazém (neste ponto corroborado pela presença dos elementos do NPA); que todos os aludidos cinco lhe pediram dinheiro (note-se que neste ponto não corroborado por mais qualquer elemento probatório); ao mencionar que não sabe os nomes de quem lhe pediu dinheiro; ao não confirmar o reconhecimento que fez; ao não identificar qualquer dos arguidos em audiência; ao confundir e misturar os alegados “chefes”, no que ademais por o seu depoimento não ter o necessário grau de certeza, e face ao aludido “in dubio” nesta parte contribuiu para os factos dados como não provados.
Também mencionou, contraditoriamente com o seu demais depoimento, que só um elemento falava consigo, no que face ao aludido “in dubio” nesta parte contribuiu para os factos dados como não provados.
Mencionou, de forma não credível (por infirmado por prova em contrário) que foi o “chefe” quem encerrou o seu estabelecimento (apurado que foi o NPA) e contraditoriamente disse não se lembrar quando foi encerrado o estabelecimento, no que face ao aludido “in dubio” nesta parte contribuiu para os factos dados como não provados.
Note-se que lido em audiência o seu depoimento prestado a fls.846 e 847, ainda assim este ... conseguiu não confirmar e, antes pelo contrário, infirmar o seu teor, no que face ao aludido “in dubio” nesta parte contribuiu para os factos dados como não provados.
Note-se que face ao juízo acima feito quanto ao depoimento deste ofendido ..., no sentido de que o depoimento do mesmo é especialmente pertinente no sentido da não prova do a si atinente, eventualmente perderá interesse para a defesa o recurso interlocutório interposto pela mesma tendo em vista a nulidade do depoimento deste ofendido, nomeadamente por inutilidade superveniente.
De toda a forma, conforme bem se afere da gravação dos depoimentos dos ofendidos, o Tribunal no decurso dos mesmos diligenciou pela não perturbação e integridade dos mesmos. Sendo que mesmo nos depoimentos prestados presencialmente podem ocorrer interrupções, que não perturbam a integridade do depoimento (como por exemplo ruído no corredor ou interrupção por um funcionário ou elemento do público). Pelo que improcede o aventado vício.
A testemunha ... foi credível (por corroborada pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que é esposa de ...; que é cunhada de ... DE .... No que contribuiu para os factos dados como provados.
No mais disse não saber e não foi credível (por infirmada) ao aventar que o ofendido ... não tinha armazém na data dos factos. No que contribuiu para a mencionada formação da convicção do Tribunal e para os factos dados como não provados.
A testemunha ..., ora arrolado pela defesa, foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que é militar da GNR; que na data dos factos trabalhava no NPA; ao confirmar o seu âmbito de actividade, bem como dos arguidos; que fizeram acções em conjunto; ao confirmar encerramento efectuado. No que contribuiu para os factos dados como provados, bem como para a mencionada formação da convicção do Tribunal e bem ainda para infirmar os em contrário, nesta última parte contribuindo para os factos dados como não provados.
Não foi credível (por não sustentado em elemento com o necessário grau de segurança) no mais nomeadamente ao aludir a conflitos com a PSP, ademais sem pertinência nos autos. No que contribuiu para os factos dados como não provados.
A testemunha ..., ora arrolado pela defesa, foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que é militar da GNR; que na data dos factos, como agora, trabalha no NPA; ao confirmar o seu âmbito de actividade, bem como dos arguidos; que fizeram acções em conjunto, também com o núcleo de investigação criminal (doravante NIC); ao confirmar encerramento efectuado. No que contribuiu para os factos dados provados, bem como para a mencionada formação da convicção do Tribunal e bem ainda para infirmar os em contrário, nesta última parte contribuindo para os factos dados como não provados.
Não foi credível (por não sustentado em elemento com o necessário grau de segurança) no mais nomeadamente ao aludir a conflitos com a PSP, ademais sem pertinência nos autos. No que contribuiu para os factos dados como não provados.
A testemunha ... ora arrolado pela defesa, foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que é militar da GNR; que na data dos factos trabalhava no núcleo de investigação criminal (doravante NIC) de S____; ao referir que não conhece os ofendidos em apreço; ao mencionar que esteve em operação em armazém na C... F... (do ofendido ...); que para o mesmo levou máquina fotográfica; que aí também esteve o Sargento-Ajudante ..., do NPA; que este fez o encerramento do aludido armazém; ao mencionar que não sabe se no local estavam todos os arguidos; que no local não se apercebeu de nada fora do normal. No que contribuiu para os factos dados como provados. E, face ao aludido “in dubio”, contribuiu ainda para os factos dados como não provados.
A testemunha R..., arrolado pela defesa, foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que é militar da GNR; que na data dos factos era Sargento-Ajudante, lugar de chefia do NPA; ao esclarecer o âmbito de actuação deste e dos arguidos; ao mencionar que é habitual o NPA fazer operações conjuntas com o NIC; ao confirmar que é sua a assinatura constante do auto de encerramento de fls.1032 a 1037, em 2013 e confirmar respectivo teor; que no fim foi feita selagem; que não sabe quem ficou no local no fim da operação; ao mencionar que não é obrigatório que o NPA entre ao mesmo tempo que os demais elementos presentes na operação. No que contribuiu para os factos dados como provados. E, face ao aludido “in dubio”, contribuiu ainda para os factos dados como não provados.
A testemunha V..., arrolado pela defesa, foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que é militar da GNR; que na data dos factos estava na secção de apoio operativo; que montava pontos de observação da prática de crimes; ao mencionar que fez vigilância ao aludido armazém do ofendido ...; que este se situa entre ... e a ...; ao mencionar que comunicou a chegada do ofendido ... ao local ao 1º arguido; ao mencionar que esse ofendido foi abordado por alguns dos arguidos e mais militares; ao mencionar que os arguidos por vezes trabalhavam em conjunto com elementos do NPA; ao mencionar as viaturas usadas. No que contribuiu para os factos dados como provados. E, face ao aludido “in dubio”, contribuiu ainda para os factos dados como não provados.
A testemunha P..., arrolado pela defesa, foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que é militar da GNR; que na data dos factos como hoje trabalha no NIC; ao esclarecer o âmbito de actuação deste, do NPA e dos arguidos; ao mencionar que os ofendidos em apreço eram alvos de uma operação que iria ser feita; que se deslocou ao armazém do ofendido ...; ao mencionar que era chefe da sua equipa nessa data, tal como o 1º arguido era chefe da equipa dele (e o Marques do NPA); ao mencionar que não assistiu a “fechar de olhos” a qualquer irregularidade. No que contribuiu para os factos dados como provados. E, face ao aludido “in dubio”, contribuiu ainda para os factos dados como não provados.
A testemunha José de ..., arrolado pela defesa, foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que é militar da GNR; que na data dos factos fazia parte da brigada de investigação criminal (doravante BIC); ao mencionar que fez várias passagens de rotina nos armazéns dos aludidos ofendidos; que não participou em operação junto dos mesmos; que não viu qualquer dos arguidos pedir dinheiro. No que contribuiu para os factos dados como provados. E, face ao aludido “in dubio”, contribuiu ainda para os factos dados como não provados.
A testemunha J..., ora arrolado pela defesa, foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que é militar da GNR; que na data dos factos era chefe da Divisão de Análise e Investigação Criminal; que os arguidos eram seus subordinados; ao esclarecer o âmbito de actuação dos arguidos; que havia coordenação com a EUROPOL; que a testemunha era o representante nacional da aludida prioridade de combate ao furto de metais não preciosos; que a sua actuação era coordenada com o NPA, mais ao nível operativo; ao esclarecer o âmbito de actuação do NPA; que havia sinergia de actividades para a investigação criminal; ao mencionar que os arguidos foram colocados nas aludidas funções por sua escolha; que o 1º arguido tinha experiência de investigação criminal; ao abonar a apurada reputação dos arguidos. No que contribuiu para os factos dados como provados. E, face ao aludido “in dubio”, contribuiu ainda para os factos dados como não provados.
A testemunha L..., ora arrolado pela defesa, foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que é militar da GNR; que na data dos factos trabalhava na Divisão de Criminalística; ao esclarecer o âmbito de actuação dos arguidos; ao abonar a apurada reputação dos arguidos. No que contribuiu para os factos dados como provados.
A testemunha M..., ora arrolado pela defesa, foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que é militar da GNR; que na data dos factos era chefe de secção; que foi substituído nessas funções pelo 1º arguido; ao mencionar que os arguidos faziam parte da estrutura de investigação criminal e forma para a aludida equipa, que esta testemunha ainda chefiou; ao abonar a apurada reputação dos arguidos. No que contribuiu para os factos dados como provados.
A testemunha N..., ora arrolado pela defesa, foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que é oficial do exército, presentemente reformado; que foi superior hierárquico dos arguidos na GNR na data dos factos, ocasião em que era Tenente-General; ao mencionar que houve alarido na comunicação social com o presente caso; ao mencionar que havia acordo de cavalheiros no sentido de as chefias da PSP e GNR se avisarem previamente em caso de detenção de elemento(s) da outra força policial; ao abonar a apurada reputação dos arguidos. No que contribuiu para os factos dados como provados.
A testemunha ..., ora arrolado pela defesa, foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que na data dos factos era Director de investigação da GNR; ao mencionar o âmbito de actividade profissional dos arguidos; que estes dependiam hierarquicamente do então Tenente-Coronel, hoje Coronel N... (testemunha supra); ao mencionar o âmbito de actividade conjunta com a Europol; que nesse âmbito tentava-se identificar receptadores; ao mencionar o âmbito de actividade do NPA; que entendeu visita da PSP como de cortesia; ao mencionar a avaliação profissional que fez dos arguidos; ao mencionar que os factos em apreço foram reportados ao Comando superior, operacional e geral, da Guarda; ao mencionar que deu cumprimento aos mandados de detenção dos arguidos na sequência do solicitado pela PSP; ao abonar a apurada reputação dos arguidos. No que contribuiu para os factos dados como provados.
Já não foi credível no mais, nomeadamente ao formular juízos de valor infirmados pelos apurados factos, no que contribuiu ainda para os factos dados como não provados.
A testemunha N..., arrolado pela defesa do 1º arguido, foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que chefiou o 1º arguido no LPC da PJ Militar; ao abonar a apurada reputação do 1º arguido. No que contribuiu para os factos dados como provados.
Face à prova já produzida, foram validamente prescindidas as demais testemunhas.
Note-se no supra que não se valoraram reconhecimentos meramente fotográficos. Pelo que improcede arguição de vício atinente aos reconhecimentos dos autos.
Quanto às mencionadas condenações dos 1º, 2º, 3º e 4º arguidos, as mesmas assentaram na concatenação dos seus CRCs, acima aludidos com a nota de trânsito em julgado e teor do aludido Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa proferido nestes autos (e que esteve na origem da repetição parcial ora efectuada).
As suas condições pessoais resultaram dos mencionados relatórios sociais, confirmados pelos arguidos, do dito por estes e testemunhas abonatórias dos arguidos.
Os factos não provados resultaram em síntese da ausência de prova tida por credível e susceptível de os dar como provados.
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O DIREITO:

Da corrupção:
Os arguidos vêm pronunciados, no que ora importa, pela prática de dois crimes de corrupção passiva para acto ilícito na forma consumada, previstos e punidos pelos artºs.373º., nº.1 e 386º., nº.1, d), do Código Penal.
Comecemos pela análise do que significa Corrupção.
Os crimes de corrupção surgem na sistematização do actual código integrados no IV e último Capítulo do Código Penal, isto é, nos crimes cometidos no exercício de funções públicas, que por sua vez se integram no último título “Dos Crimes contra o Estado”.
Esta sistematização vem já do Código antes da revisão de 1995 - operada pelo D.L. nº 48/95 de 15.Março - e é relevante para a determinação do bem jurídico que o legislador visa proteger através da criminalização dessas condutas.
É essencial a apreensão do bem jurídico que os tipos legais de corrupção, consagrados nos artºs.372.º a 375.º do Código Penal, tutelam para a solução de todos os problemas que neste domínio se colocam ao aplicador do direito, nomeadamente quanto à consumação e tentativa. É a partir do(s) bem(/ns) jurídico(s) que se estabelecem o sentido e os limites da punibilidade (cfr. Prof. Figueiredo Dias, Jornadas sobre a Corrupção, pág. 70).
O Direito Penal, enquanto ultima ratio da intervenção sancionatória do Estado, perante comportamentos violadores de bens ou interesses fundamentais à vida em sociedade, tutela de forma mais ou menos intensa estes consoante a valoração e graduação que deles faz.
Está aqui em causa a protecção penal do Estado, ou da Administração Pública - enquanto «valor-meio», uma vez que a autoridade do Estado não é um fim em si mesmo (cfr. José Souto Moura, Corrupção: para uma abordagem jurídica e judiciária, R.M.P. n.º 54, pág. 14 ) - ou de forma mais incisiva a legalidade material da administração, na expressão de Figueiredo Dias a “manutenção da integridade da esfera de actuação administrativa do Estado” e nas palavras de Almeida Costa “A Corrupção...traduz-se, por isso, sempre numa manipulação do aparelho do Estado pelo funcionário que, assim, viola a «autonomia intencional» da Administração, ou seja, em sentido material, infringe a chamada «legalidade administrativa»...no transaccionar com o cargo o empregado público corrupto coloca os poderes ao serviço dos seus interesses privados, o que equivale a dizer que, abusando da posição que ocupa se «subroga» ou «substitui» ao Estado invadindo a respectiva esfera de actividade”.
A essência da corrupção não se encontra no facto/acto funcional que eventualmente seja praticado mas no «mercadejar» com o cargo.
É então maioritário na doutrina, o entendimento - que sufragamos inteiramente - de que o bem jurídico protegido é o da legalidade material da Administração (cfr. Almeida Costa, “Sobre o Crime de Corrupção”, Coimbra, 1987, págs. 81 e seguintes e J. Figueiredo Dias, A corrupção e a lei penal, in “Jornadas sobre o fenómeno da Corrupção”, Ed. A.A.C.C., 1991, pág. 58 e seguintes).
Este entendimento tem expresso apoio no artº.266º., da Constituição da Republica Portuguesa, do qual promana que o fim visado pela Administração Pública é o Interesse Público, tendo por limites os direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, com subordinação à Constituição e à lei e actuando de forma justa e imparcial.
Acresce que, como corolário de a actuação da administração dever ser justa e imparcial, impõe-se que actue usando para todos os cidadãos do mesmo critério de prossecução do interesse público, respeitando a efectividade dos direitos fundamentais e a igualdade (J. Souto de Moura, “Corrupção” nas Jornadas sobre a corrupção e Fraudes Antieconómicas, realizadas no C.E.J. em 25 e 26 de Fev. de 1993).
Está em causa o interesse em que os que desempenham funções públicas sejam imparciais e honestos, punindo os que se prestam a praticar actos violadores dos seus deveres funcionais até por simples promessas que lhes sejam feitas (Cfr., v.g., já o Ac. do S.T.J., de 27/11/91 ).
No período de vigência dos Códigos Penais de 1852 e 1886 o crime de corrupção era entendido como sendo um crime de participação necessária, isto é, um crime que é cometido em situações de comparticipação, em que a corrupção activa e passiva são como que as duas faces de um mesmo crime.
Em Portugal o principal defensor desta tese foi o Prof. Cavaleiro de Ferreira, que ia no sentido da doutrina italiana dominante, defendendo que “Não há corrupção activa, sem passiva: e isto tanto na forma de crime consumado, como na forma de crime tentado. E assim, quando o corruptor tenha corrompido com dádivas ou presentes e o funcionário tenha recebido as dádivas ou presentes (arts. 318.º e 321.º) para fazer um acto das suas funções, o crime é consumado. Quando o corruptor tenha corrompido com oferecimentos ou promessas, o crime verifica-se na forma de tentativa. Não bastam, na tentativa de corrupção, os oferecimentos ou promessas, porquanto estas já devem ter o efeito de corromper, isto é, devem ser aceites. A instigação à corrupção - isto é, o oferecimento não seguido de aceitação - não constitui tentativa de corrupção e só pode ser punida como injúria, no sistema do nosso código que não previu como o italiano, o crime autónomo de instigação à corrupção. ...Quer isto dizer que tanto na forma consumada como na tentada, o crime é de corrupção é sempre bilateral. A corrupção activa e passiva são duas partes de um todo...há duas formas distintas de comparticipação criminosa num único crime”. (in Scientia Jurídica, Tomo X, n.º 52, pág. 212).
Tratava-se no fundo de realidades interdependentes, quando não estivesse preenchida uma delas não estaria configurado o crime de corrupção; como crime de participação necessária, era necessária, indispensável a intervenção de todos os participantes não havendo tentativa de corrupção mas sim um crime de injúrias contra a autoridade pública (este entendimento resultava de uma interpretação do art. 321.º dos Código Penais de 1852 e 1886, na parte em que manda aplicar ao autor da corrupção activa “as mesmas penas que forem impostas ao empregado corrompido.”).
No entanto, é de notar que como ensina o Prof. Almeida Costa, “as condutas dos intervenientes no fenómeno da corrupção - isto é, por um lado, a promessa ou a oferta de suborno e, por outro lado, a sua aceitação - apresentam-se independentes, apenas se imputando ao respectivo agente” (Sobre o Crime de Corrupção, 1987, pág. 43).
Aliás, a directriz adoptada desde o Cód. Penal de 1982 e mantida na Revisão de 1995 importa a autonomização das modalidades «activa» e «passiva» da corrupção, como dois crimes distintos, assim se afastando a tese da «bilateralidade», que “pressupõe um processo executivo uno e indivisível no plano normativo e dogmático, que se pode imputar, na sua globalidade, ainda que a diferentes títulos, aos vários comparticipantes necessários” (Almeida Costa, obra citada, pág. 47).
De facto, a corrupção passiva e activa integram dois processos executivos independentes, impondo que a punição dos respectivos agentes se determine isoladamente (orientação seguida na Alemanha e por alguns autores italianos como Manzini e Riccio e em Portugal por Leal Henriques/Simas Santos e Maia Gonçalves nas respectivas anotações ao Código Penal, artºs. acima referidos).
Acresce que, como consta da declaração feita pelo Prof. Figueiredo Dias, na qualidade de Presidente da comissão de revisão do Código Penal (Acta n.º 37 do Projecto de Revisão do Código Penal, C.P. Actas e Projecto, Ministério da Justiça, 1993, pág. 434) ao “delinear” os tipos legais houve o cuidado de não deixar qualquer margem para que tese da bilateralidade pudesse encontrar aí acolhimento (inclusivamente as próprias molduras penais foram autonomizadas). Assim se afirmando expressamente a autonomia típica da corrupção activa e passiva, como corolário dos textos dos tipos legais em causa.
A essência da corrupção na construção típica inscreve-se:
Quanto à corrupção passiva na solicitação ou na aceitação de vantagem ou da sua promessa, independentemente quer da licitude ou ilicitude do acto, quer de este vir a ser praticado ou já o ter sido.
Quanto à corrupção activa na dádiva ou na promessa, independentemente das consequências (que apenas é importante para avaliar da gravidade da infracção).
Quanto à natureza dos crimes de corrupção, existem divergentes orientações a ter em conta, orientações que se refletem inelutavelmente no tratamento dado à tentativa (em especial nos casos de corrupção activa em que a oferta não é aceite pelo funcionário) e consumação:
a)- uma que considera a corrupção como um crime material ou de resultado, o que leva a caracterizar as situações em que - apesar da dádiva ou oferta do agente corruptor - o funcionário não realiza o acto/facto contrário aos seus deveres como tentativa de corrupção activa, porque embora não seja aceite a dádiva, ficam caracterizados actos de execução que preenchem um elemento típico do crime, idóneos a produzir o resultado e que são de natureza a produzi-lo (cfr. Prof. Figueiredo Dias e na Jurisprudência Ac. de Relação de Lisboa de 21/11/1990 - Recurso n.º 25 988 - 3.º secção e Ac. do S.T.J., de 12/6/89, BMJ n. 389, pág. 320 - aí foi qualificada como tentativa de corrupção activa a seguinte situação: o agente corruptor colocou no bolso do funcionário que o surpreendeu numa actividade ilícita, uma determinada quantia em dinheiro para se furtar ao levantamento do auto de notícia, tendo o funcionário recusado);
- outra, que vai no sentido da anterior, mas que considera que a situação descrita não pode integrar a tentativa de corrupção, mas apenas um crime de injúrias ao funcionário, uma vez que estaria atingida a sua honorabilidade (cfr. Ac. S.T.J. de 18/2/86, BMJ n.º 354, pág. 309 )
b)- outra, que vê neste crime um delito formal ou de actividade, considera a situação como crime consumado porque, entender o recebimento como elemento constitutivo do crime de corrupção, contraria o princípio da culpa, na medida em que faz depender a punição ou a não punição do corruptor (ou a sua punição pelo crime consumado ou pela tentativa), de um facto de terceiro (cfr. Almeida Costa, obra citada e na Jurisprudência Ac. da Relação de Lisboa de 24/2/88, in C.J. XIII, pág. 163).
A norma referida para a perfectibilidade do tipo não ordena imperiosamente, como elemento nuclear para a observação do delito que consagra, a realização ou a concretização do acto violador dos deveres do cargo do agente.
Sem pretender quebrar o devido respeito por opinião contrária e que é muito, propendemos para entender como mais correcta a segunda orientação afirmada, logo no crime de corrupção activa, ou seja, ainda que a vantagem (patrimonial ou não patrimonial) dada ou prometida não seja aceite pelo funcionário há consumação; atento o bem jurídico protegido, com a mera oferta de suborno dá-se a sua violação.
Neste sentido, mais recentemente, Helena Moniz e Carla Cardador, em “Corrupção ou corrupções?”, in “Corrupção em Portugal”, organizado por Paulo Pinto de Albuquerque, Rui Cardoso e Sónia Moura, Edição Universidade Católica Portuguesa, 2021, p.293 a 303.
Isto consabido que foi o afastamento da tese da bilateralidade.
Ficando então com um espaço residual para a tentativa, que abarca apenas, do lado da corrupção activa, as situações em que a comunicação do agente corruptor, a sua proposta ou promessa de suborno, tendo virtualidades de chegar ao seu destinatário - o funcionário - contudo, este não chegou a tomar conhecimento dela.
Isto sendo certo que no caso vertente, perante o provado recebimento de quantia, no que respeita ao ofendido F, há, claramente crime consumado e não tentado, quer na forma activa, quer passiva.
É de toda a conveniência definir com precisão o conceito de funcionário, uma vez que o tipo legal de crime de corrupção - a cuja análise vamos proceder - implica essa qualidade do agente.
Com este conceito a lei pretende abarcar todo um conjunto de situações em que se tem em conta a função exercida extravasando o âmbito de um conceito rigoroso/formal de funcionário.
No actual Código Penal de 1995, actualmente vigente, aprovado pelo D.L. nº 48/95 de 15.Março, o art. 386.º precisa este conceito, estabelecendo, para o efeito da lei penal, que o conceito de funcionário compreende:
- o funcionário civil;
- o agente administrativo;
- qualquer cidadão que  provisória ou temporariamente  de forma remunerada ou gratuita  voluntária ou obrigatoriamente tiver sido chamado a desempenhar/participar no desempenho de uma actividade compreendida na função administrativa, jurisdicional ou  desempenhar funções/participar em organismos de utilidade pública.
O actual n. 2 deste artigo manteve a extensão do conceito já realizada pelo D.L. n.º 371/83, de 6 de Outubro, no seu art. 4.º, n. 2, assim equiparando para este efeito os:
- gestores
- titulares dos órgãos de fiscalização
- trabalhadores  de empresas  públicas  nacionalizadas de capitais públicos  com participação maioritária de capitais públicos de empresas concessionárias de serviços públicos
O n. 3 por sua vez - reproduzindo o anterior n.º 2, mas eliminando a menção a funções “governativas ou legislativas” - remete para lei especial, a equiparação à categoria de funcionário de quem desempenhe funções políticas.
A Lei n.º 34/87 de 16 de Junho, regula neste domínio a responsabilidade penal dos titulares de cargos políticos enunciando o âmbito da sua aplicação.
Quanto às modalidades da corrupção, esta pode ser:
a)- Empregando o critério do sujeito a quem a vantagem é oferecida/prometida (passiva) ou de quem parte a oferta/promessa:
- Imediata » a vantagem indevida é prometida ou oferecida ao próprio ou funcionário (activa) e quando é o próprio funcionário a solicitar a vantagem (passiva);
- Mediata » quando o agente corruptor oferece a vantagem a terceira pessoa (no regime anterior limitado ao cônjuge, parentes ou afins até ao terceiro grau) - (passiva) - e quando a solicitação parte de um terceiro (activa).
b)- Empregando o critério do momento em que se dá a solicitação recebimento ou aceitação por parte do funcionário:
- antecedente » Visa a prática de um acto futuro;
ou
- subsequente » Destina-se a pagar um acto que já foi praticado.
c)- Empregando o critério da licitude ou ilicitude da actividade a desempenhar pelo funcionário:
- própria » Tem por objecto a prática de um acto ilícito;
ou
- imprópria » Tem por objecto a prática de um acto lícito (acto correspondente aos deveres do cargo).
d)- Empregando o critério do sujeito activo do crime ser o funcionário ou particular:
- Activa » tratando-se do particular que dá/promete;
ou
- Passiva » tratando-se do funcionário que solicita ou aceita.
Assim, no caso em apreço entende o Tribunal como subsumida a conduta dos arguidos num crime de corrupção, na forma consumada, para acto ilícito, imediata e mediata, antecedente e subsequente, própria e passiva.
O crime de corrupção passiva para a prática de acto ilícito encontra-se tipificado no art. 373º., do Código Penal (encontrava-se antes da revisão de 1995 no artº.420º.).
a)- são elementos essencialmente constitutivos do tipo legal:
- o conceito de funcionário (vide acima ).
- que por si / por interposta pessoa
- com seu conhecimento / ratificação
- solicitar ou aceitar
- para si ou para terceiro
- vantagem / ou a sua promessa
patrimonial ou não patrimonial
que não lhe seja devida
(antes da revisão constava “dinheiro ou promessa de dinheiro ou qualquer vantagem patrimonial”, tendo o D.L. n.º 371/83, de 6 de Outubro alargado às vantagens não patrimoniais)
- como contrapartida do acto/omissão (incluindo aí a demora na prática do acto )
-contrário aos deveres do cargo.
Para facilitar a análise deste tipo legal de crime vamos reconduzir estes elementos acima enunciados às seguintes categorias:
A qualidade do agente - Terá que ser um funcionário, quanto ao conceito de funcionário damos novamente por reproduzidas as considerações acima expendidas.
A natureza da actividade visada, isto é, qual o tipo de relação que intercede entre o acto/facto praticado e a função específica do agente
Tem de tratar-se de um acto/facto realizado/omitido no exercício do cargo, excluindo-se os actos respeitantes à actividade privada do funcionário, ainda que proibidos por motivos ligados com o cargo (aí não há uma transacção com a autoridade do Estado e desafio ou afronta à sua soberania).
Existem duas orientações divergentes quanto ao sentido a dar às condutas que consubstanciam o exercício do cargo:
Uma primeira, sustenta que a actividade visada tem de se encontrar incluída nas atribuições ou competências do concreto funcionário que a realizou ou a tal se comprometeu (cfr. Levy Maria Jordão, Comentário ao Código Penal Portuguez, Tomo III, Lisboa, 1854, pág. 236 e Luís Osório, Notas ao Código Penal Portuguez, Vol. II, 2.ª ed., Coimbra, 1923, pág. 695).
Para os defensores desta orientação não seria incriminado não apenas o sujeito que se fizesse passar por funcionário público e assim beneficiasse de um suborno, mas também o próprio funcionário que se arrogasse competência para a prática de acto que extravasasse as suas específicas atribuições.
Uma outra, bastava-se com a relação de dependência funcional imediata com o desempenho do cargo (tendo em conta os poderes de facto inerentes ao exercício das suas funções) da actividade em causa, portanto apenas excluía da incriminação o caso do não funcionário (cfr. a maioria da jurisprudência no domínio do Código Penal de 1886 e Almeida Costa, ob. citada, pág. 107 - onde refere que na medida em que os actos decorrem de uma relação funcional do agente, do posto que ocupa na administração, o recebimento do suborno pelo ou para o seu exercício constitui, ainda, uma transacção com o cargo, e, por isso, um crime de corrupção).
Subscrevemos inequivocamente o ultimo entendimento à luz do presente código, até porque apenas essa tese permite explicar a punição da corrupção passiva própria, uma vez que aí o suborno visa a prática de um acto ilícito, logo para o qual o funcionário não tem competência.
Características de que o suborno se deve revestir, quanto:
- à sua natureza:
A vantagem obtida pelo agente corrompido tanto pode ser de ordem patrimonial (aumento do activo/diminuição do passivo) como não patrimonial (ex: honrarias ou dignidades, anseios de consideração e projecção pessoal).
Encontra agora consagração expressa no próprio tipo a natureza não patrimonial da vantagem obtida (já antes o D.L. n.º 371/83, nos seus artºs. 1.º a 3.º, tinha estendido a corrupção às hipóteses de solicitação ou recebimento de vantagens não patrimoniais). Tal como no caso de se tratar de vantagem patrimonial também aí há uma ofensa à autonomia intencional do Estado, um «mercadejar» com o cargo.
- no aspecto quantitativo:
Não tem que subsistir aqui qualquer relação de proporcionalidade entre o valor/importância do suborno e a vantagem obtida.
A violação da legalidade material da actividade da administração verifica-se qualquer que seja a importância material ou imaterial da vantagem em causa (coisa distinta é a relevância que o montante pode ter em sede de medida da pena, o que será apreciado infra).
Contudo, há que ter aqui em conta o que a doutrina jurídico-penal chama ou apelida de cláusula de adequação social, segundo a qual não são típicas, ou encontram-se justificadas, as condutas que - numa certa comunidade histórica, social e culturalmente situada - não caem fora do ordenamento ético-social vigente nessa sociedade e ainda as que pela sua insignificância são incapazes de integrar o sentido de desvalor ínsito nos tipos ou na ilicitude penais (cfr. Prof. Figueiredo Dias, “Jornadas sobre a Corrupção”, pág. 66).
Aqui incluem-se as pequenas gratificações que é prática atribuir em épocas festivas, as lembranças de cortesia ou publicidade e a atribuição de benesses de exclusivo significado honorífico (v.g. condecorações).
Já este ponto reassume pertinência no caso em apreço, uma vez que entendeu o Tribunal não estarmos perante um mero “choradinho”, por alguns tido como algo socialmente inócuo e até habitual, mas perante algo que extravasa já essa prática social alegadamente aceite; e que não assumiu, desde logo no que respeita ao seu destinatário carácter de insignificância.
Pelo contrário, no caso vertente, concluiu-se sem margem para dúvidas pelo preenchimento do mencionado tipo legal de crime imputado.
- quanto à relação de contrapartida da atribuição da vantagem ou a sua promessa com a actividade do funcionário que «mercadeja» o cargo ou os actos próprios dos deveres do cargo:
Cada uma das prestações é a «contrapartida» de uma eventual contraprestação da outra parte (a prática, omissão de um acto e a vantagem obtida pelo particular).
Encontra-se excluído deste tipo legal o recebimento de quaisquer dádivas que não apresentem ligação, explícita ou implícita, com alguma actividade das funções do funcionário e as situações em que o comportamento do agente não se destina à prática/omissão de um acto funcional determinado mas sim a criar um clima/ambiente de «permeabilidade» ou «simpatia» para “actos de favor” futuros e eventuais não se prove a intenção respectiva (se provada essa intenção há já uma lesão do bem jurídico em causa - a legalidade material da actividade administrativa do Estado).
É ainda necessário que o agente saiba que a sua conduta é punida por lei e actue, consciente, livre e voluntariamente. A sua conduta terá de ser dolosa (sob qualquer das formas de que o dolo se pode revestir, directo, necessário ou eventual - cfr. artigo 14º do Código Penal), o que também se provou no caso vertente quanto ao ofendido F.
Havendo que notar que a corrupção mediata não se encontrava prevista no Código Penal, antes da revisão de 95, tendo o D.L. 371/83, de 6 de Outubro, vindo alargar aos cônjuges, parentes ou afins até ao terceiro grau, os proveitos da actividade empreendida pelo funcionário e posteriormente, com a revisão de 1995 do Código Penal, veio a alargar-se mais o âmbito de possíveis beneficiários da vantagem, abrangendo, agora, qualquer terceiro - independentemente do seu grau de parentesco ou da relação mantida com o funcionário - qualquer outro sujeito a quem o agente solicitar ou de quem aceitar a vantagem.
Quanto à corrupção subsequente/consequente, antes da revisão, os autores dividiam-se entre considerá-la, à face da configuração típica do artº. 400.º, punível ou não.
No actual regime essa divergência perdeu a razão de existir, uma vez que o argumento de ordem formal usado para excluir a corrupção subsequente (cfr. Germano Marques da Silva, Breves apontamentos sobre os Crimes de Corrupção, Jornadas sobre a Corrupção, pág. 91 e A. Rodrigues Maximiano in R.M.P. n.º 56, A Corrupção no Projecto de Revisão do Código Penal, pág. 70), já não colhe á luz da nova redacção do preceito em causa, onde antes constava a expressão “para praticar acto”, agora consta “como contrapartida de acto ou omissão”, daqui se pode retirar a preocupação textual do legislador deixar a porta aberta para a punição da corrupção subsequente.
Subscrevemos o entendimento de que, mesmo à luz do anterior regime, e fazendo apelo a uma interpretação teleológica do preceito, considerando a ratio legis da norma e o bem jurídico subjacente, já seria punível a corrupção subsequente.
Estabelece-se uma moldura legal que vai desde 1 a 8 anos de prisão, assim, relativamente ao Código Penal de 1982, aumentando o limite máximo dessa moldura (anteriormente de 6 anos) e deixando de prever a cumulação com a pena de multa (que por esta via desaparece).
Segundo o Prof. Figueiredo Dias essa agravação justifica-se por se tratar de um fenómeno que se reveste de especial gravidade no Sul da Europa, tendo sido igualmente agravada a sua punição noutros países dessa área geográfica.
Devemos ter em conta que a prática do facto/acto aumenta a gravidade do crime, na medida em que surgem acontecimentos que ultrapassam o próprio crime em si.
O legislador pretendeu dotar o sistema de mais uma “arma” no combate a este tipo de criminalidade numa área da chamada criminalidade «white collar» (por contraposição à chamada criminalidade do “blue collar”) em que o impacto danoso e social é muito forte, consagrando a figura do «arrependido», já usual em outros ordenamentos jurídico-penais.
Consagrou então a possibilidade de uma especial atenuação da pena se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis.
O que inexiste no caso em apreço.
Quanto à moldura legal é de notar que o legislador autonomizou das penas aplicáveis à corrupção passiva a activa.
Mais se diga que o crime imputado nestes autos, pp. no artº. 373.º do Código Penal, é um crime público.
No que se concluiu conforme supra: que os arguidos praticaram cada um o crime imputado de corrupção passiva para acto ilícito na forma consumada, previsto e punido pelo artº.373º., nº.1, do Código Penal, no que respeita ao ofendido F, distintamente do que sucede quanto ao alegado ofendido ....
Tendo, finalmente, actuado a título de dolo directo.
Conforme resulta da factualidade apurada não subsistem dúvidas que se encontram verificados os elementos constitutivos do tipo legal mencionado, pelo que conclui-se que a conduta dos ditos arguidos além de típica é ilícita porque violadora de bens jurídicos com tutela penal.
Ao agir do modo descrito os ditos arguidos actuaram com dolo directo, porquanto agiram livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
*

Inexiste qualquer causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou causa de não punibilidade.
(…) ”
»

II.3Apreciação dos recursos

II.3.1.–Do recurso do despacho interlocutório:
Mediante requerimento apresentado nos autos a 26-04-2022, os arguidos recorrentes A e C apresentaram a motivação do recurso ora em apreço, começando por referir que “interpuseram recurso  do despacho proferido na sessão de Audiência de Discussão e Julgamento, de 17 de março de 2022, que indeferiu o pedido de inquirição presencial da testemunha ... e que ordenou a sua inquirição através da aplicação informática WhatsApp”.
Invocam, para o efeito, em síntese, que o Tribunal não podia abdicar de ouvir a testemunha presencialmente, tendo em conta que vive em Portugal e o seu paradeiro é conhecido do Tribunal, pelo que, no seu entender, foram violados os princípios da oralidade, da imediação e do contraditório, bem como o disposto no artigo 318.º, n.º8, do Código de Processo Penal e nos artigos 20º, n.º4 e 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Consequentemente, concluem, o despacho recorrido deve ser anulado.

Vejamos:

Antes do mais, cumpre atentar que pese embora os arguidos recorrentes refiram que interpuseram recurso  do despacho proferido na sessão de Audiência de Discussão e Julgamento, de 17 de março de 2022, que indeferiu o pedido de inquirição presencial da testemunha ... e que ordenou a sua inquirição através da aplicação informática WhatsApp[sublinhado nosso] tal não corresponde ao que verdadeiramente ocorreu, bastando, para tanto, ouvir a gravação da sessão da audiência de julgamento da referida data [e o tribunal ouviu-a com vista a apreciar o presente recurso interlocutório, visto que o despacho respeitante à inquirição da referida testemunha não se encontrava transcrito na ata], para se constatar, no que aqui releva, que foi o seguinte o despacho proferido pelo Mm.º Juiz a quo [transcrição]:
“… a mesma já na data da anterior sessão de julgamento manifestou ter receio e por esse motivo já nessa data foi deferido que caso aqui comparecesse fosse ouvida na ausência dos arguidos. Mantem-se tal receio e com vista à preservação da espontaneidade do seu depoimento defere-se agora que seja ouvido na ausência dos arguidos, mesmo sendo ouvido por meio à distância.”.
Mais decorrendo o seguinte [transcrição]:
“Mm.º Juiz a quo: O Senhor Doutor ainda não se pronunciou, mas creio que também nada tem a opor pelo meio à distância, não é? (INAUDÍVEL).
00:13.32 Ilustre Advogado 2: Sim (INAUDÍVEL).
00:13.34 Mm.º Juiz a quo : (INAUDÍVEL).
00:13.39 Ilustre Advogado: Senhor Doutor, eu queria só interpor um recurso sobre este despacho, nos termos do artigo 411º, nº2, cuja motivação será apresentada no prazo previsto para o efeito. Eu adianto desde já como fundamento deste recurso, eu acho que o tribunal, isto não tem nada a ver com este caso, eu mantenho, vamos ouvir a testemunha…………”,
[sublinhado nosso].
Nessa sequência, prosseguindo, em jeito de “explicação” do motivo do recurso,  o ilustre mandatário dos arguidos recorrentes deu a conhecer ao tribunal que com tal recurso visava prevenir que outras situações semelhantes ocorressem, pois ao proceder-se dessa forma quanto a esta testemunha mais tarde teria de deferir-se a outras que, pese embora estando em Portugal, de forma infundada, viessem a apresentar, como fundamento para a sua não presença em julgamento, um receio, que não se sabe qual é.
Ou seja, não só o referido despacho não incidiu sobre qualquer requerimento formulado pelos arguidos recorrentes, no sentido de que a inquirição da testemunha ... fosse efetuada presencialmente, pois apenas lhes foi perguntado, na pessoa do seu ilustre mandatário, se tinham algo a opor, após a prolação desse despacho [Mm.º Juiz a quo :“O Senhor Doutor ainda não se pronunciou, mas creio que também nada tem a opor pelo meio à distância, não é?”/Ilustre Advogado: Sim”.], como os próprios recorrentes esclareceram que o recurso que estavam a interpor sobre esse despacho nada tinha a ver com aquele caso [leia-se: com a inquirição daquela testemunha], e anuíram, expressamente, quanto à sua imediata inquirição via WhatsApp [Ilustre Advogado: “Senhor Doutor, eu queria só interpor um recurso sobre este despacho, nos termos do artigo 411º, nº2, cuja motivação será apresentada no prazo previsto para o efeito. Eu adianto desde já como fundamento deste recurso, eu acho que o tribunal, isto não tem nada a ver com este caso, eu mantenho, vamos ouvir a testemunha (…)”] [sublinhado nosso].
Assim sendo, tendo os arguidos recorrentes dado o seu consentimento para que se procedesse, de imediato, à inquirição da testemunha ..., via WhatsApp, não se descortina de que forma se possa considerar que a decisão recorrida tenha sido contra eles proferida.
Consequentemente, face ao disposto no artigo 401.º, n.º1, b), do Código de Processo Penal, à contrário, só poderemos concluir que os arguidos ora recorrentes não têm legitimidade para recorrer daquele despacho, e, assim, por não reunirem as condições necessárias para recorrer, cumprirá rejeitar o recurso em apreço, ao abrigo do artigo 414.º, n.º2 e 420.º, n.º1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal.
De qualquer forma, mesmo que assim não se entendesse, tal recurso sempre seria de improceder.
Na verdade, assiste razão aos recorrentes quando referem que, nos termos gerais, a tomada de declarações às testemunhas deve ser presencial, com vista a garantir o respeito pelos princípios da oralidade, imediação e do contraditório, todavia, já carecem dela quando referem que os únicos casos excecionados por lei são as duas exceções previstas no artigo 318.º do Código de Processo Penal [residentes em Portugal mas fora do município, caso em que, verificados determinados pressupostos, são ouvidos através de outro tribunal, ou residentes no estrangeiro, caso em que são ouvidos através de equipamento tecnológico que permita a comunicação, por meio visual e sonoro].
Com efeito, tal possibilidade vem, desde logo, prevista na Lei n.º 93/99, de 14 de julho [que regula a aplicação de medidas para proteção de testemunhas em processo penal], enquanto medida de proteção das testemunhas, cuja inquirição pode ser efetuada com recurso a meios tecnológicos [teleconferência], sendo certo que a inquirição por WhatsApp integra a definição legal de teleconferência prevista na alínea c), do artigo 2.º, da lei em análise [“c) Teleconferência: depoimentos ou declarações tomados sem a presença física da testemunha e com a intervenção de meios técnicos de transmissão à distância, em tempo real, tanto do som como de imagens animadas.”], prevendo-se, até, no mencionado diploma legal, verificados que sejam certos condicionalismos, que a testemunha seja ouvida com ocultação de imagem ou com distorção da voz, ou ambas [cfr. decorre dos artigos 4.º e 5.º da mencionada Lei].
Note-se que a decisão recorrida fundou-se no receio que a referida testemunha tinha dos arguidos [“… a mesma já na data da anterior sessão de julgamento manifestou ter receio e por esse motivo já nessa data foi deferido que caso aqui comparecesse fosse ouvida na ausência dos arguidos. Mantem-se tal receio e com vista à preservação da espontaneidade do seu depoimento defere-se agora que seja ouvido na ausência dos arguidos, mesmo sendo ouvido por meio à distância.”], receio que, aliás, veio a revelar-se ser verdadeiro, não só perante a factualidade dada como provada, mas, até perante a prova testemunhal, sendo exemplo disso o depoimento da testemunha H [que, conforme decorre do acórdão entretanto proferido, “foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que é Chefe da PSP; ao mencionar que depois da denúncia o ofendido F procurou protecção policial; ao mencionar que esse ofendido evidenciava medo dos arguidos (…)"].
Aliás, o citado artigo 5.º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, sob a epígrafe, “teleconferência” prevê precisamente a possibilidade do uso da mesma em situações como a dos autos.
E não se diga que ao ser ouvida a referida testemunha por teleconferência  foi violado o princípio da imediação, pois tal afirmação é afastada pelo próprio legislador, no artigo 15.º da citada Lei n.º 93/99, de 14 de julho, que, precisamente sob a epígrafe “imediação”, dispõe o seguinte: “os depoimentos e declarações prestados por teleconferência, nos termos deste diploma e demais legislação aplicável, consideram-se, para todos os efeitos, como tendo tido lugar na presença do juiz ou do tribunal.” [sublinhado nosso].
Também não se verifica qualquer violação dos princípios da oralidade e do contraditório, pois, como é consabido, a aplicação WhatsApp permite que os respetivos usuários interajam entre si, em tempo real, não somente por áudio, como também por vídeo, e, no caso dos autos, foi por esse meio que a testemunha foi ouvida, tendo o tribunal podido ouvir e visualizar a testemunha em tempo real, pôde ouvir e visualizar a testemunha durante o depoimento e observar a mímica, as micro expressões, os gestos, as hesitações, as pausas e outras manifestações da linguagem corporal, avaliar as congruências ou eventuais incongruências para formular um juízo sobre a veracidade e credibilidade deste depoimento em conjugação com a demais prova produzida, tendo a mesma podido, e diga-se, sido, contraditada pela defesa nos termos que o entendeu fazer.
Também não se pode concluir, como o fazem os recorrentes, que o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23 de janeiro de 2020, ordenou expressamente a inquirição da testemunha F e, como tal, temos de concluir que a presença da testemunha na audiência é essencial à descoberta da verdade, pois, na verdade, nem tal ordem [inquirição presencial] decorre do referido acórdão, nem se pode entender que a testemunha não foi inquirida pelo facto da respetiva inquirição ter decorrido com recurso de meios à distância.
Aliás, do trecho do acórdão citado pelos recorrentes decorre precisamente o contrário, ou seja, perante a não comparência da testemunha em julgamento, o tribunal deveria ter tomado em consideração o depoimento por esta anteriormente prestado nos autos, ao abrigo do artigo 356.º, n.º4, do Código de Processo Penal [“Nestes termos decide-se: Declarar procedentes as nulidades invocadas pelo Ministério Público (artigo 120.º/2 d) / 3 a) CPP), por omissão de diligências necessárias à descoberta da verdade material, no caso a reprodução da gravação, em julgamento, das declarações prestadas pelo ofendido/testemunha ... e da testemunha/ofendido ... ..., ofendido em inquérito, perante Magistrado do Ministério Público cfr. art 356.º / 4 do CPP, revogando os respetivos despachos (isto no caso de se manter o desconhecimento do paradeiro do arguido)].”
Aqui chegados cumpre concluir que o tribunal recorrido ao ter decidido pela inquirição da testemunha ... por meio tecnológico adequado e em tempo real, no caso, por meio da aplicação WhatsApp, na sessão de audiência de julgamento datada de 17-03-2022, pese embora esta se encontrar a residir em Portugal, em morada conhecida, não violou qualquer um dos preceitos legais/constitucionais invocados, nem os princípios da oralidade, da imediação e do contraditório[3], como o defende o recorrente.
E não se diga que o depoimento da testemunha ... não foi espontâneo, por ter sido interrompido por um terceiro não identificado, sem qualquer autorização do Tribunal, que retomou a inquirição da testemunha sem qualquer advertência e indagação sobre a identidade desse terceiro, a fim de se assegurar que a testemunha não estava a ser instruída por aquele.
Na verdade, ouvida a gravação da inquirição de tal testemunha [e o tribunal ouviu-a], não é isso que decorre e o trecho da gravação que os recorrentes citam em sede de recurso para sustentar tal conclusão [a saber:
MP – Olhe, lembra-se qual dos indivíduos é que da parte da tarde foi lá recolher o dinheiro?
Testemunha - Era o puto mais novo, era o senhor mais novo.
MP - Era o mais novo de todos, lembra-se no nome?
Testemunha – Eles nunca disseram o nome.
MP – Era o mais novo de todos, é isso?
Testemunha – Era um que dizia que era o chefe, que era assim de meia-idade, tinha dois senhores com idade mais avançada e tinha esse rapaz que na altura devia estar na casa de 20 e poucos anos. Notava-se logo que era o mais novo deles.
00:23:30
MP - Portanto, esse mais novo que tinha ido buscar o dinheiro, na parte da manhã ele tinha...
Testemunha – Só, só um minuto.... Só um minutinho aqui.
Terceiro não identificado: (Impercetível)
Testemunha - Pode continuar.
MP - Muito obrigada. Olhe da parte da manhã disse que ficaram dois ao portão, entretanto, depois entrou o chefe e já lá estava um dentro, certo?] não permite tirar esse ilação, ou seja, que a testemunha estivesse a ser instruída por terceiro, tanto mais que, cfr. o referem os recorrentes, a testemunha encontrava-se numa maternidade em Portugal a acompanhar o seu filho nascituro.
De qualquer forma, diga-se, ainda que se considerasse, por mera hipótese, que tal “ambiente” não tenha sido o propício à inquirição da referida testemunha e que o tribunal não tomou qualquer diligência com vista a assegurar-se de que a testemunha não estava a ser instruída por terceiro, o vício que daí pudesse decorrer já há muito que se encontraria sanado, pois tratar-se-ia de uma mera irregularidade, que deveria ter sido arguida no ato [e não foi] pelos ora recorrentes, através do seu ilustre mandatário, que no ato estava presente [artigos 119.º e 120.º, à contrário, e 123.º do Código de Processo Penal][4].
Acresce atentar que a decisão de admissão do recurso pela primeira instância não vincula o tribunal superior - artigo 414º, n.º 3 do Código de Processo Penal -.
Consequentemente, face ao disposto no artigo 401.º, n.º1, b), à contrário, 414.º, n.º2 e 420.º, n.º1, alínea b), todos do Código de Processo Penal, por falta de legitimidade dos recorrentes para recorrer do despacho em questão, o que determinaria a rejeição do recurso em apreço, do mesmo não se conhece.
»

II.3.2.– Do recurso da decisão final:

II.3.2.1- Considerações gerais:
Como vem sendo unanimemente defendido na jurisprudência a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: através do âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do referido diploma legal.
No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios formais, também designados de vícios decisórios, que se encontram previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, que, conforme decorre do referido preceito legal, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento[5]. Tratam-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que visam o erro na construção do silogismo judiciário.
No segundo caso estamos perante um erro do julgamento [designadamente na apreciação da prova] cuja apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, sempre tendo presente os limites fornecidos pelo recorrente em obediência ao ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
Como realçou o STJ, no acórdão de 12-06-2008[6], a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que se debruçando sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b), do nº 3, do citado artigo 412.º do Código de Processo Penal] [sublinhado nosso].
Não se poderá esquecer, portanto, que o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio jurídico com vista a colmatar erros do julgamento na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, sendo, portanto, manifestamente errado pensar que basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova.
Tem sido este o sentido defendido quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, designadamente:
Assim refere Germano Marques da Silva[7] que “o poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância”.
No mesmo sentido se pronuncia Damião Cunha[8], ao afirmar que os recursos são entendidos como juízos de censura crítica e não como «novos julgamentos».
“O recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros[9].
»

II.3.2.2Apreciando o caso concreto:
                   
VÍCIO DO ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA [artigo 410.º, n.º2, al. c), do Código de Processo Penal]:
Analisada a motivação do recurso, constata-se que os recorrentes confundem erro de julgamento com o invocado vício do erro notório na apreciação da prova.
Com efeito:
Defendem os recorrentes que não deverão ser considerados provados os factos vertidos em 8.; 9.; 10.; 11.; do ponto 186. que os arguidos se tivessem deslocado, no decurso do mês de julho de 2013, ao depósito de sucata do Fe que se tivessem lá deslocado em concretização do plano que alegadamente haviam previamente delineado; os factos vertidos em 193. a 223. [factos respeitantes à vítima F]; os factos vertidos em 326. a 330. [factos respeitantes ao elemento subjetivo do tipo de crime pelo qual os arguidos foram condenados - no que se reporta à vítima F] e todos os factos relacionados com o ofendido ... ..., pois nenhuma prova foi produzida que tivesse a virtualidade de afastar a presunção de inocência dos arguidos, consagrada no artigo 32.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa, nada mais tendo emergido da prova produzida em tribunal a não ser a subsistência de uma dúvida razoável, pelo que ao condenar-se os arguidos se violou grosseiramente o princípio in dubio pro reo.
Para tal, apontam:
A indevida desvalorização das declarações prestadas em audiência de julgamento pelos arguidos;
A indevida desvalorização dos depoimentos prestados em audiência de julgamento pelas testemunhas J, L, M, N e O.;
A indevida valorização dos depoimentos prestadas em audiência de julgamento pelas testemunha ... [ofendido], H e I [ofendido];
A inexistência de prova concreta;
A violação do princípio in dubio pro reo.

Vejamos:

A este respeito cumpre trazer aqui à colação o disposto no artigo 410.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe, “Fundamentos do recurso”, de onde decorre que:
1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a)-A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b)-A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c)-Erro notório na apreciação da prova.
3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.”
Da análise de tal preceito legal decorre, portanto, que a decisão sobre a matéria de facto é suscetível de ser posta em causa por via dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, vícios decisórios esses que, conforme se referiu supra, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal, ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício reporta-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não com a falta de prova para a decisão da matéria de facto provada[10].
Trata-se de uma insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito,  de um “vício de confecção da matéria de facto”, (…) impeditivo de bem se decidir, tanto no plano objectivo como subjectivo, o julgador quedou –se por uma investigação lacunar, deixou de indagar factos essenciais à decisão de direito, figurando na acusação, defesa ou resultantes da decisão da causa, impedindo de bem decidir no plano do direito, comprometendo a conclusão final  do silogismo judiciário”.[11]
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal, consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. O que ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o erro notório na apreciação da prova, vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis.
Trata-se de um erro de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido[12].
“Com a invocação do vício de erro notório questiona-se, não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, cujo teor se aceita, mas a utilização que foi dada à referida prova, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto, na medida em que o tribunal valorizou a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados ou então quando da decisão se extrai de modo óbvio que optou por decidir, na dúvida, contra o arguido”[13].
Resumindo, “o erro notório traduz-se, basicamente, em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando determinado facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo”.[14]
Tal erro já não se verifica se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não conduz ao referido vício[15].
Importa, porém, não esquecer, quando a este vício – erro notório na apreciação da prova – que, salvo no caso de prova vinculada, o tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção, tal como o dispõe o artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminados de valor a atribuir à prova [salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial] e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre convicção da prova e na sua convicção pessoal.
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada, sempre sem esquecer que a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável.
Por fim, relembre-se, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.

Aqui chegados:

Cumpre, desde já, referir que analisado o texto da decisão recorrida não se constata a existência do apontado vício do “erro notório na apreciação da prova” a que alude o artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Penal, pois do texto do acórdão não resulta que o tribunal tenha violado as regras da experiência ou que tenha efetuado uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, e, muito menos, que tenha violado qualquer regra sobre prova vinculada ou da legis artis. 
Na verdade, no caso, a impugnação da matéria de facto efetuada pelos recorrentes, nos termos supra descritos, não se integra nos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, uma vez que a discordância sobre a factualidade dada como provada não se limita, como exigem estes vícios, “ao texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum”.Efetivamente, os recorrentes invocam, designadamente, a prova produzida oralmente em audiência de julgamento, remetendo para alguma dessa prova gravada, que transcrevem, bem como para a prova documental, cujas páginas a que se encontram indicam.
Em suma, o que está verdadeira e unicamente em causa no recurso em apreço é que os recorrentes não se conformam com a circunstância de a sua posição sobre os factos que relataram ao tribunal não ter sido acolhida no julgamento da 1ª instância, que, pelo menos, não tenha suscitado a dúvida no julgador, aí fazendo os recorrentes radicar o aludido vício que apontam à decisão recorrida e que, expressa e erradamente, apodam de erro notório na apreciação da prova.
Da concreta argumentação expendida nas conclusões de recurso, complementadas com a respetiva motivação, decorre que os recorrentes limitam-se a extrair as ilações que tem por pertinentes da prova produzida, que contrapõem à do julgador, sem que da análise da leitura do próprio texto do acórdão recorrido decorra a existência de qualquer ilogismo de percurso ou conclusão contrária à lógica das coisas, ao alcance, pela sua evidência, do homem comum.
Não existe, portanto, qualquer um dos vícios a que alude o artigo 410.º do Código de Processo Penal, designadamente o invocado erro notório na apreciação da prova.

ERRO DO JULGAMENTO, ERRADA VALORAÇÃO DA PROVA, VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO in dubio pro reo:
Os recorrentes servem-se dos mesmos argumentos para invocar, também, a existência de erro de julgamento, errada valoração da provae violação do princípio in dubio pro reo, por referência aos depoimentos que serviram para fundamentar a convicção do tribunal a quo, alegando, designadamente, que os depoimentos prestados pelas testemunhas H, Fe I devem ser analisados com sérias reservas, ora porque não presenciaram diretamente os factos, ora porque recaem em manifestas contradições e inverosimilhanças.
Porém, desde já se deve atentar que o tribunal a quo não fundamentou a factualidade provada apenas nos depoimentos prestados pelas referidas testemunhas, mas também na demais prova testemunhal e documental que elencou e, diga-se, é extensa [cfr. ali se pode ler: MOTIVAÇÃO: A convicção do tribunal assentou na concatenação ponderada das declarações dos 1º, 2º, 3º e 4º arguidos, com o depoimento das testemunhas ouvidas e os documentos dos autos nomeadamente de fls.1, 2, 13 a 15, 17, 45, 83, 109 a 124, 132 a 4, 146 a 171 (e cd anexo a estas), 183 a 191, 214 a 20, 224 a 237 (e cd anexo a estas), 252 a 6 (e cd anexo a estas), 309 a 323, 325 a 337, 339 a 60, 362 a 402, 414, 415, 420 a 423, 435 a 467, 471, 479 a 85, 489 a 97, 499 a 512, 520, 571 a 5, 578 a 82v, 594 a 620, 624 a 653, 663 a 78, 681 a 6, 696 a 746, 751 e 2, 762 a 5, 781 a 93, 796 a 813, 824, 854 a 62, 874 e 8, 881 a 5, 889 a 91-A, 896 e 7, 911 a 951, 959 a 69, 973 a 83, 990 a 997, 1003 a 8, 1011 a 1080, 1081 a 1117, 1154 a 60, 1166, 1176, 1182, 1187, 1195, 1219 a 21, 1254 e 5, 1256 e 7, 1314 a 29, 1332, 1345, 1347 a 57, 1361 a 7, 1381 e 3, 1384, 1393 e 4, 1397 a 9, 1411, 1413 e 14, 1432 a 41, 1520, 1538, 1663 e 4, 1670, 1677 e 9, 1710 a 14, 1722 a 4, 1727 a 9 (e CD em contracapa do vol.5), 1975 a 8, 2001 a 18, 2050 a 96, 2111 e 12, 2129 a 33, 2164 a 2253, 2503 a 6, 2511 a 2631, 2634 a 9v, 2717, 2807 a 57, 2867 a 9-a, 2907 a 35, 2955, 2955v, 2959 a 61, 2972 e 3, 2987 a 91, 3046 a 9, 3055 a 60, 3065 a 8, 3072 a 7, 3089 a 94, 3139 e 40, 3148 e 9, 3157 a 87, 3222 a 7, dos autos principais; fls.1 e 245 a 257 do apenso A (de reclamação), bem como vertidos no citius, ainda não numerados [os quais incluem nomeadamente CRCs, relatórios sociais, autos de notícia, de selagem, de encerramento, de vigilância, RDEs, de visionamento de imagens, de reconhecimento pessoal, apreensão, exame e avaliação, fotografias, fotogramas e vídeos, elementos bancários e profissionais] (…).”].

Conforme decorre da fundamentação da matéria de facto explanada no acórdão recorrido, foram apresentadas duas versões: a dos arguidos que negaram a prática dos factos suscetíveis de acarretar para os mesmos responsabilidade criminal e a do ofendido F que os afirmou, tendo o julgador, através de um processo lógico da formação da sua convicção, decidido dar credibilidade as declarações do ofendido F. .

Ora, como se escreveu no acórdão do TRC de 19.02.2009[16] “Na tarefa de valoração da prova e de reconstituição dos factos, tendo em vista alcançar a verdade – não a verdade absoluta e ontológica, mas uma verdade histórico-prática e processualmente válida –, o julgador não está sujeito a uma “contabilidade das provas”. (…). A função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os depoimentos prestados, não lhe é imposto ter de aceitar ou recusar cada um deles na globalidade, cumprindo-lhe antes a missão de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece ou não crédito e em que termos”, devendo, com vista a valorar, ou não, um dado meio de prova, designadamente um depoimento, o julgador aferir da credibilidade dos factos relatados pela testemunha/depoente, para o que deverá socorrer-se de raciocínios lógicos e dedutivos, pautados nas regras decorrentes da experiência comum.

E, diga-se, foi isso o que fez o tribunal a quo.

Com efeito, ao contrário do defendido pelos recorrentes, decorre da motivação da matéria de facto supra transcrita a razão pela qual o tribunal a quo deu como provados os factos aqui controvertidos [e, diga-se, até quanto aos não provados], explicando, de forma razoável, lógica, racional e plausível, porque assim o fez, no caso, explicou porque considerou os factos em apreço como provados e, designadamente, porque razão deu credibilidade às declarações do ofendido e não deu às dos arguidos, na parte em que negaram a autoria dos factos suscetíveis de os responsabilizar criminalmente [indicando-se, a título meramente exemplificativo, os seguintes trechos do acórdão recorrido:
Assim, desde já se diga que os arguidos prestaram declarações onde admitiram parte do imputado, no que se tiveram os mesmos por credíveis, por corroborados por demais elementos probatórios, no que contribuíram para os factos dados como provados.
Negaram o essencial dos mesmos quanto aos dois aludidos ofendidos ora em apreço.
No que cabe distinguir:
-quanto ao ofendido ..., por o depoimento deste ter sido inconsistente e contraditório, face ao aludido “in dubio”, contribuíram os arguidos para os factos dados como não provados;
-quanto ao ofendido F, por o depoimento deste ter sido consistente e credível, por corroborado por demais elementos probatórios, contribuíram os arguidos, não credíveis por quanto a este ofendido por consistentemente infirmados, também para os factos dados como não provados.
(…)
O 3º arguido, C, foi credível (por corroborado por demais elementos probatórios) na parte em que mencionou que foram os quatro arguidos de manhã ao estabelecimento do F e então não o encontraram; que então falaram com um indivíduo à entrada do estabelecimento; ao admitir que à tarde se deslocaram ao mesmo local os 2º, 3º e 4º arguidos; ao mencionar que não viram matéria de crime junto do ofendido F; que na situação do ofendido ... o 4º arguido conduziu o veículo policial; ao confirmar as suas apuradas condições pessoais; ao admitir que na situação aludida em 186 a 223 o 2º arguido perguntou se o ofendido F estava; que o aludido funcionário respondeu que o mesmo estaria à tarde; que na tarde desse dia o 2º arguido falou com o ofendido F; ao explicar o seu âmbito e área de actuação, no que contribuiu para os factos dados como provados.
Já não foi credível (por infirmado por prova em contrário) no mais, nomeadamente ao aventar que o 1º arguido não se deslocou à tarde ao estabelecimento do F; ao negar que tenha pedido dinheiro; ao negar que tenha visto pedirem dinheiro; ao aventar que tal é impossível; ao negar que tenha levado máquina fotográfica; ao aventar que na situação aludida em 186 a 223 ficou à porta juntamente com o 2º e 4º arguidos; ao negar que um dos arguidos tenha tido conversa mais à parte com o ofendido F; ao negar que tenha existido a aludida conversa com o ofendido F; ao negar que lhe tenham dito para cooperar; que tenha visto o aludido gesto; ao aventar que não lhe foi pedido dinheiro
(…)

A testemunha ... (ofendido nos autos) foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que trabalhava com sucata em T____; que apareceram na mesma “esses policiais”; que teve, como tem, receio dos mesmos; ao mencionar que perante a conduta dos arguidos contactou a polícia; que guardava a sucata em armazém em T_____; que os aludidos polícias trajavam à civil; que se identificaram como polícia abrindo e fechando carteira muito rápido; ao mencionar que trabalhava com rapaz de nome Carlos; que os arguidos estavam com máquina fotográfica; que tiraram fotografias e lhe pediram a identificação; que também lhe perguntaram por licença; ao mencionar que não tinha licença (para a aludida actividade); que então lhe foi dito que iria preso, por estar a trabalhar ilegal; ao confirmar o teor da apurada conversa; que lhe foi perguntado se estava disposto a cooperar; que depois veio o “chefe”; que este lhe perguntou se estava disposto a contribuir; que propôs dar 40€, 10€ para cada um deles, ao que o “chefe” se riu; ao mencionar que lhe foram solicitados 400€ para trabalhar à vontade; que não tinha tal quantia; que mencionou que a podia pedir emprestada; que o pediu e obtidos os 400€ um dos arguidos passou pelo local e levou tal quantia; ao mencionar que trabalhava de porta fechada porque não tinha licença; ao mencionar que os arguidos voltaram ao local depois de ter entregue os 400€, pedindo mais dinheiro; ao mencionar que lhe foi pedida quantia semanal; ao mencionar as características físicas dos arguidos que reconheceu pessoalmente e conduta dos mesmos; ao confirmar o teor dos aludidos reconhecimentos pessoais que fez dos 1º, 2º e 3º arguidos; que estes eram os mais velhos; ao mencionar que a sua aludida actividade não era muito lucrativa; e bem ainda no seu depoimento de fls.679 a 680, lido em audiência (nomeadamente para avivamento de memória sobre quem lhe emprestou o dinheiro para pagar aos arguidos). No que contribuiu para os factos dados como provados, bem como para a mencionada formação da convicção do Tribunal e bem ainda para infirmar os em contrário, nesta última parte contribuindo para os factos dados como não provados.
Note-se que embora não tenha conseguido fazer reconhecimento pessoal do 4º arguido, da concatenação de toda a prova (inclusive declarações confessórias desse 4º arguido) foi possível chegar com certeza à identidade de todos os autores dos factos aludidos em 1 a 11 e 186 a 223.
(…)

A testemunha ... foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que é agente da PSP; ao confirmar o teor de autos de apreensão de máquina de lavar e de reconhecimento pessoal dos arguidos (designadamente do 1º arguido pelo ofendido F). No que contribuiu para os factos dados como provados, bem como para a mencionada formação da convicção do Tribunal e bem ainda para infirmar os em contrário, nesta última parte contribuindo para os factos dados como não provados.

A testemunha H foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos) ao referir que é Chefe da PSP; ao mencionar que depois da denúncia o ofendido F procurou protecção policial; ao mencionar que esse ofendido evidenciava medo dos arguidos; que o mesmo fechou o aludido estabelecimento; ao confirmar o teor de RDE que fez; que apurou que se tratava de veículo da GNR; ao mencionar que viu a GNR a fazer vigilância ao aludido estabelecimento do ofendido F; ao mencionar que a oficina do ofendido ... foi encerrada por acção do NPA da GNR; ao mencionar que quanto ao ofendido Borges estariam em causa ilícitos meramente contraordenacionais; ao mencionar que foi gravada conversa com os 1º e 2º arguidos na oficina de G (transcrita nos autos) que dá uma ideia de conjunto; ao mencionar que estavam previstas mais gravações para além da mencionada feita na oficina do Alan. No que contribuiu para os factos dados como provados, bem como para a mencionada formação da convicção do Tribunal e bem ainda para infirmar os em contrário, nesta última parte contribuindo para os factos dados como não provados.
Note-se que embora a conversação transcrita dê a aludida ideia, mencionada por esta testemunha, no entanto da mesma o Tribunal não conseguiu extrair com o necessário grau de segurança a prova do imputado quanto ao ofendido .... Com efeito, uma coisa é alguém vangloriar-se de ter feito algo e outra é ter contribuído para o mesmo. É que, conforme apurado, quem efectivamente encerrou o estabelecimento do ... foi o NPA e não os arguidos. No que tal juízo, face ao aludido “in dubio”, contribuiu para os factos dados como não provados.
(…).

A análise crítica das declarações e dos depoimentos [prestados quer pelos arguidos, quer pelo ofendido, quer pelas testemunhas ouvidas em audiência de julgamento] efetuada pelo julgador e o grau de credibilidade, ou de descrédito, atribuído aos mesmos mostra-se conferido, de acordo com a perceção própria permitida pelo imediatismo que acompanhou a produção daqueles meios de prova.

E não se diga que em momento algum do acórdão se justifica o porquê de dar mais relevância ao depoimento de F, do que às declarações dos arguidos, pois não é isso que decorre da motivação da factualidade provada e não provada constante do acórdão recorrido [citando-se a título de exemplo o seguinte trecho do acórdão recorrido: “A testemunha ... (ofendido nos autos) foi credível (por corroborado pelos demais elementos probatórios dos autos …” e ainda “o 3º arguido, C, foi credível (por corroborado por demais elementos probatórios) na parte em que (…) Já não foi credível (por infirmado por prova em contrário) no mais …], tendo, aliás, os próprios recorrentes citado idênticos trechos do acórdão recorrido quanto as demais arguidos.

Alegam os arguidos que esclareceram de forma lógica e fundamentada o contexto em que trabalhavam e como procuravam ganhar a confiança do G para os auxiliar a detetar, investigar e combater a criminalidade relacionada com crimes de furto e recetação de cobre e derivados, pois integravam uma equipa de investigação, criada no seio da Direção de Investigação Criminal do Posto Territorial da GNR de A_____, auxiliada por outros elementos que integravam outros departamentos dentro da GNR, entre eles a NPA, sendo que lhes estavam atribuídas investigações maioritariamente relacionadas com o furto e recetação de cobre e derivados, encontrando-se os arguidos, legalmente, nos locais alvo de vigilâncias, o que, prosseguem os recorrentes, foi corroborado pelos depoimentos das testemunhas J, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, U e V e ....

Porém, diga-se, nenhum dos elementos de prova concretamente aludidos pelos recorrentes revelam que a decisão do Tribunal a quo se mostre desajustada ou incoerente face à prova produzida no julgamento e, neste sentido, nenhuma dessas provas impõe decisão diversa da que foi tomada pelo Tribunal recorrido.

Note-se que não se põe em causa, e o tribunal a quo também não pôs [tendo, até, dado como provado - em 2. da factualidade provada], que, os arguidos, no âmbito da Circular nº.3/2012, de 13 de Fevereiro, da PGR, integravam a referida equipa de investigação relacionada com o furto e recetação de cobre e que o faziam por força das suas qualidades curriculares e capacidades na área da investigação, aliás, o tribunal até deu como provada a boa reputação que os arguidos tinham aos olhos de algumas das referidas testemunhas, designadamente colegas de trabalho dos arguidos e até superiores hierárquicos destes.

Porém, não são as capacidades profissionais dos recorrentes que estão aqui em causa, como estes bem o sabem, tal como, certamente, saberão que a forma como cada um dos seus colegas de trabalho os vê não passa disso mesmo, de uma visão pessoal de cada um deles. Acresce relembrar que o facto de fazerem parte da mesma equipa de investigação não implica, necessariamente, uma abordagem em simultâneo dos mesmos investigados, uma presença em simultâneo no mesmo local por parte dos arguidos e das testemunhas, pelo que é facilmente compreensível que estas não tenham assistido a qualquer “fechar de olhos” [como o referiu a testemunha P], ou visto qualquer um dos arguidos a pedir dinheiro [como o referiu a testemunha Q]. Tratam-se, portanto, de factos insuscetíveis de abalar a convicção a que chegou o tribunal a quo ou de impor uma decisão diversa da que foi tomada por aquele.

No caso dos autos, o que os recorrentes fazem é discordar da avaliação probatória que o tribunal recorrido fez da apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, pretendendo substituir a convicção do tribunal pela sua.

Ou seja, o que realmente resulta, desde logo, das conclusões do recurso, é a divergência entre a convicção pessoal dos arguidos recorrentes sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal firmou, e que no entendimento dos recorrentes não deveria ter firmado, sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, do qual decorre que, salvo no caso de prova vinculada, o tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção.

Relembre-se que rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminados de valor a atribuir à prova [salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial] e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre convicção da prova e na sua convicção pessoal. Sempre sem esquecer que a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, o que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.

A apreciação da prova não pode deixar de ser “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - , mas em todo o caso , também ela (deve ser) uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros.”[17]

A convicção do Tribunal a quo é formada da conjugação dialética de dados objetivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.[18]

Se o Tribunal a quo, que beneficiou plenamente da imediação e da oralidade da prova, explicou racionalmente a opção tomada, e o Tribunal da Relação entender que da reapreciação da prova não se impõe decisão diversa, nos termos do art.127.º do Código de Processo Penal, deve manter a decisão recorrida.

Ou seja, como é jurisprudência corrente dos nossos Tribunais Superiores, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum.

Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção”[19].
“Dos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência, podemos concluir que a valoração das provas, reportada à credibilidade dos depoimentos que é eminentemente subjetiva, depende, essencial e substancialmente, da imediação, princípio que, pressupondo a oralidade, domina a recolha das provas de índole testemunhal, permite, num quadro de emissão e receção de sinais de comunicação - que não apenas de palavras, mas também de gestos ou outras formas de ação/reação, como o próprio silêncio - potenciar a adequada apreciação dos depoimentos”[20], sendo as declarações indissociáveis da atitude e postura de quem as presta, dos seus olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reações comportamentais às diversas perguntas e questões abordadas, isoladas ou entre si combinadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade dos comportamentos humanos.

Tal não significa que a apreciação, eminentemente subjetiva, conducente a conferir maior ou menor credibilidade de um depoimento, é insindicável, pois ao julgador é imposto o dever de explicitar as razões da sua convicção pessoal, na fundamentação da decisão, isto é, que revele não só os motivos por que certo depoimento mereceu maior credibilidade do que outro, mas também que explicite o raciocínio lógico que utilizou na apreciação global e lógica de toda a prova no cumprimento do dispõe o nº 2 do artigo 374º, do Código de Processo Penal, e, no presente caso, o tribunal a quo fê-lo.

E se os critérios subjetivos expressos pelo julgador se apresentarem com o mínimo de consistência para a formulação do juízo sobre a credibilidade dos depoimentos apreciados e, com base no seu teor, alicerçar uma convicção sobre a verdade dos factos, para além da dúvida razoável, tal juízo há de sempre sobrepor-se às convicções pessoais dos restantes sujeitos processuais, como corolário do princípio da livre apreciação da prova ou da liberdade do julgamento.

Não interessa, assim, neste recurso, o que os juízes desta Relação decidiriam se tivessem efetuado o julgamento em primeira instância. Também não está em causa o modo como decidiria o recorrente se fosse o Juiz a quo. Na verdade, como se referiu, o recurso em matéria de facto não tem por finalidade a realização de um segundo julgamento, mas tão só a apreciação da decisão proferida na 1ª instância, apreciação essa limitada ao exame [controlo] dos elementos probatórios valorados pelo tribunal recorrido e feita à luz das regras da lógica e da experiência, mas sempre sem colidir com os fundamentos da decisão que só a imediação e a oralidade permitem atingir - imediação e oralidade que não estão presentes no julgamento do recurso, porque aos juízes do tribunal superior apenas são facultados registos [em suporte magnético].

Por isso ao tribunal superior cumpre verificar a existência da prova e controlar a legalidade da respetiva produção, nomeadamente, no que respeita à observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação, contraditório e publicidade, verificando, outrossim, a adequação lógica da decisão relativamente às provas existentes. E só em caso de inexistência de provas, para se decidir num determinado sentido, ou de violação das normas de direito probatório [nelas se incluindo as regras da experiência e/ou da lógica] cometida na respetiva valoração feita na decisão da primeira instância, esta pode ser modificada, nos termos do artigo 431.º do Código de Processo Penal.

Assim, o que esta instância pode e deve fazer em tal matéria, em sede de recurso [precisamente porque o seu propósito é, essencialmente, o de remédio jurídico], é verificar, controlar, se o tribunal a quo, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho que prosseguiu para chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, verificar, ponto por ponto, se os concretos erros de julgamento indicados pelo recorrente, de facto, existem e, na afirmativa, proceder à sua correção.

In casu, o recorrente não concorda com a análise que o tribunal a quo fez da prova produzida em audiência de julgamento. Porém, o Tribunal a quo, imbuído da imediação, explicitou, de forma lógica e ponderada, as razões da sua convicção, explicou a formulação do juízo que formou sobre a falta de credibilidade ou de credibilidade das declarações/depoimentos apreciados e, da respetiva fundamentação não decorre que tenha ficado com quaisquer dúvidas no que respeita aos factos respeitantes ao ofendido F, pelo que não lhe cumpria fazer qualquer uso do ora invocado princípio in dubio pro reo.

Note-se que quanto ao ofendido I o tribunal a quo já fez uso de tal princípio, perante as dúvidas com que se deparou, concretamente no que respeita à identificação dos autores dos factos de que foi vítima, de que “os quatro indivíduos” a que se alude na matéria de facto provada a respeito do ofendido I fossem os arguidos, razão pela qual, e bem, deu apenas como provado que se tratavam de “quatro indivíduos cuja identidade não se conseguiu em concreto apurar” e como não provado que “os quatro indivíduos aludidos em 292 a 311 fossem os quatro arguidos; ou que qualquer dos arguidos seja um dos indivíduos aludidos em 292 a 311”, facto que fundamentou da seguinte forma:
 “(…) Pelo contrário, já quanto ao ofendido ..., o mesmo em sede de inquérito procedeu a um reconhecimento pessoal então positivo, mas em sede de audiência infirmou o teor de tal auto de reconhecimento, nomeadamente alegando que se enganou. No que tal, em concatenação com o aludido “in dubio”, contribuiu para os factos dados como não provados”.

Pretendem os recorrentes que toda a matéria que o tribunal a quo deu como provada respeitante ao ofendido I seja considerada não provada, pelo facto do respetivo depoimento, na ótica dos recorrentes, ter sido contrário ao ali vertido.

Porém, tal pretensão não pode proceder, desde logo porque na factualidade que foi dada como provada relativamente ao ofendido I em momento algum se imputa a respetiva autoria aos arguidos que, nessa sequência, vieram a ser absolvidos do respetivo crime de corrupção passiva de que vinham acusados de ter praticado.

Como tal, por não se tratar de qualquer decisão contra si proferida ou de qualquer facto que lhes diga respeito, quanto aos mesmos carecem de legitimidade para reagir, atento o disposto no artigo 401.º, n.º1, b) e n.º2, do Código de Processo Penal. Na verdade, vedando-lhes a lei o direito ao recurso quanto à sua absolvição, não podem agora, servindo-se do recurso interposto em reação à sua condenação relativamente a outro ofendido, de forma velada, levantar questões respeitantes a tal matéria que, como dissemos, não lhes diz respeito.

Consequentemente, a matéria factual respeitante ao ofendido I manter-se-á intocada.

Igualmente, deverá permanecer intocada a matéria impugnada respeitante ao ofendido F. .

Com efeito, o Tribunal a quo deixou claro que analisou as declarações prestadas pelos arguidos, os depoimentos prestados pelos ofendidos e pelas restantes testemunhas e que analisou a prova documental junta aos autos e explicou, como vimos, porque formou a sua convicção no sentido em que o levou a dar os factos como provados e não provados, respetivamente.

Perante a análise da prova, expressamente indicada pelo Tribunal recorrido, sem que, em momento algum, se tenha quedado pela dúvida, outra conclusão não lhe restava, a não ser aquela a que chegou [em considerar provados os factos ora impugnados no que respeita ao ofendido F].

Pois, como se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça [21] “«a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador - juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável (…). Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» (ibidem).” [sublinhado nosso].

Na verdade, também quanto aos factos respeitantes ao ofendido F, o que os recorrentes fazem é discordar da avaliação probatória que o tribunal recorrido fez da apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, pretendendo substituir a convicção do tribunal pela sua.

Com efeito, limitam-se a discorrer sobre a sua versão dos factos, à qual pretendem dar credibilidade, baseada na argumentação de que o tribunal não deveria dar os factos impugnados como provados, porque “não é verdade, e não se provou, que…”, sem especificar quais as provas que impunham decisão diversa da firmada pelo tribunal a quo.

Ora, diga-se, para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla, a que alude o artigo 412.º, n.º3 do Código de Processo Penal, sempre teriam os recorrentes de especificar, nas conclusões, quais as provas que impunham decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigariam à alteração da matéria de facto, o que estes não fizeram, com exceção da pontual transcrição respeitante ao depoimento da testemunha F, efetuada com vista a sustentar que o seu depoimento não foi espontâneo, nem isento de perturbação, por ter sido  interrompido por terceiro não identificado pelo tribunal [questão que já abordamos supra aquando da apreciação do recurso do despacho interlocutório] ou para colocar em causa a credibilidade do seu depoimento [por não se recordar que amigo lhe havia emprestado os 400€ exigidos pelos arguidos; por não se recordar se este valor foi ou não todo emprestado por aquele; por ter referido, em audiência, que entregou tal quantia ao arguido mais novo, quando em 2013 referiu ter entregue ao arguido SC..., quando não é o mais novo dos arguidos, mas sim o arguido D], o que, diga-se, não foi suscetível de afastar a conclusão a que chegou o tribunal a quo, ao dar como provados os factos impugnados.

Aliás, ao contrário do argumentado pelos recorrentes, não se tratam de manifestas contradições e muito menos respeitantes a aspetos fundamentais dos factos provados, realçando-se a título de exemplo, quanto à alegada contradição relativamente à identidade do arguido a quem o ofendido procedeu à entrega do dinheiro que, para além, de se desconhecer que aparência tinham os arguidos quando o ofendido foi ouvido em 2013, para se concluir que a aparência correspondia necessariamente à idade real, por outro lado, ao contrário da afirmação dos recorrentes, nunca em audiência de julgamento o ofendido indicou, sem qualquer dúvida, o arguido D como aquele a quem entregou os €400,00, pois limitou-se a referir que os entregou ao arguido “mais novo”, e apenas isso, já para não falar que atuando em coautoria, com comunhão de esforços, meios e fins, mediante plano previamente elaborado entre eles, sempre seria irrelevante a qual dos arguidos o dinheiro foi entregue pelo ofendido.

Mostra-se, igualmente, irrelevante para a decisão do mérito da causa ou para a concessão ou não de credibilidade a determinada testemunha saber de quem foi a iniciativa de proceder à denúncia, ou a razão pela qual a mesma foi feita, parecendo os recorrentes esquecer que a denúncia, que apodam de caluniosa, já levou à sua condenação por idênticos factos, embora respeitantes a outros quatro ofendidos, mediante acórdão, proferido por este Tribunal da Relação, já transitado em julgado.  

Sempre se dirá que embora o ofendido F tenha referido que de facto nunca teve intenção de denunciar os arguidos e que o fez a solicitação de G, daí não decorre que não tenha relatado ao tribunal a verdade dos factos, pois o que decorre das suas declarações é que tinha receio dos arguidos e sempre se sentiu um elo mais fraco, por aqueles serem “policiais” e este um cidadão brasileiro que explorava um estabelecimento sem qualquer licença.

É, igualmente, inócuo, com vista a afastar a convicção do tribunal, que os arguidos não apresentem sinais exteriores de riqueza incompatíveis com os rendimentos provenientes do trabalho dos respetivos agregados familiares, ou que tal não se reflita no seu património geral, designadamente na suas contas bancárias, pois, como é consabido, em regra, este tipo de atuações são efetuadas de forma a não deixar rasto.

Acresce dizer que sempre caberia aos recorrentes ao apontar na decisão recorrida os segmentos que impugna, colocá-los em relação com as provas, demonstrando a verificação de erro judiciário que entendessem existir, o que os recorrentes não fizeram.

Na verdade, o que os recorrentes fazem é invocar a existência de fragilidades e contradições no depoimento do ofendido F, designadamente com depoimentos anteriormente prestados, relativamente a factos que nem sequer são essenciais ao preenchimento do tipo de crime pelos quais foram condenados.

No caso, como referimos, os recorrentes não concordam com a análise que o tribunal a quo fez da prova produzida em audiência de julgamento. Porém, o Tribunal a quo, imbuído da imediação, explicitou, de forma lógica e ponderada, as razões da sua convicção, explicou a formulação do juízo que formou sobre a falta de credibilidade ou de credibilidade das declarações/depoimentos apreciados e, da respetiva fundamentação não decorre que tenha ficado com quaisquer dúvidas relativamente à factualidade respeitante ao ofendido F, pelo que não lhe cumpria fazer qualquer uso do ora invocado princípio in dubio pro reo.

Aliás, diga-se, pese embora os recorrentes não tenham dado cabal cumprimento ao disposto no artigo 412.º, n.º3, do Código de Processo Penal, o tribunal analisou os elementos de prova sobre os quais se insurgem os recorrentes e nenhum deles, de per si ou mesmo conjugadamente, impõem decisão diversa da proferida pelo tribunal a quo quanto à factualidade que foi dada como provada e que os recorrentes pretendem ver não provada.

Veja-se, a título de exemplo, que os recorrentes chamam à colação [em abono da sua tese e com vista a descredibilizar o depoimento do ofendido F], a Informação de Serviço junta aos autos a fls. 438, alegando que “face às características do local e natureza do material que os arguidos apuraram existir na oficina de F, foi elaborada Informação de Serviço pelo arguido C, de 18/09/2013, e despachada pelo arguido A, que propôs uma fiscalização pelo Núcleo de Proteção Ambiental”, na sequência da qual foi desencadeada ação conjunta entre DIC e o NPA com vista ao encerramento do armazém deste ofendido, pelo que, na ótica dos recorrentes, não deixava de ser curioso que o F tenha dito que os arguidos foram ter com ele no dia 23-set-2013 a pedir dinheiro, quando, 5 dias antes, concretamente em 18-set-2013, haviam já dado início ao procedimento com vista ao encerramento do armazém.

Ora, se por um lado não se descortina de que forma é que tal facto pudesse por em causa a factualidade provada, por outro lado não se pode deixar de notar, da análise de tal documento que, pese embora tal informação de serviço se encontre datada de 18-set-2013, aborda, entre outras, uma vigilância que ainda nem sequer tinha ocorrido, pois só foi realizada a 03-out-2013, o que, usando a expressão dos recorrentes, não deixa de ser curioso.

Em suma, não se vê que a decisão recorrida tenha de algum modo desrespeitado os princípios que regem a livre apreciação da prova, não merecendo, por isso, qualquer censura por parte deste Tribunal de recurso.

Aqui chegados, cumpre, portanto, concluir pela improcedência do recurso interposto pelos arguidos quanto a este segmento.

DA GRAVAÇÃO ÁUDIO EFETUADA PELA TESTEMUNHA G – prova declarada nula - e CAPTAÇÃO DE SOM E IMAGEM SUBSEQUENTE:                                                                                
Defendem os arguidos recorrentes que o Tribunal a quo não poderia ter valorado a transcrição da gravação das escutas efetuadas por G, uma vez que tal gravação foi declarada nula e inadmissível como meio de prova, pelo tribunal a quo aquando da prolação do primeiro acórdão que absolveu os arguidos e mediante acórdão do Tribunal da Relação que apreciou o recurso interposto pelo Ministério Público e veio a condenar os arguidos relativamente a quatro dos ofendidos dos autos. [Trata-se de gravação efetuada pela testemunha G, quando alegadamente mantinha conversação com dois dos arguidos, aqui recorrentes, sem conhecimento ou consentimento destes].

Vejamos:

De facto, mediante acórdão absolutório proferido a 24 de setembro de 2018, pelo Juízo Central Criminal de Cascais – Juiz 3, constante dos autos a fls. 2164 e ss., a título de questão prévia, o tribunal a quo indeferiu o requerimento do Ministério Público no sentido de se proceder à reprodução em julgamento da gravação efetuada pela testemunha ... quando mantinha conversação com os arguidos, sem conhecimento e consentimento destes, que considerou nula e inadmissível como meio de prova, nos termos dos artigos 32.º, n.º 8 da Constituição da República Portuguesa, e 126.º do Código de Processo Penal.

Mediante tal acórdão, os arguidos foram absolvidos da prática, em coautoria material, em concurso real e na forma consumada, dos seis crimes de corrupção passiva previstos e punidos pelos artigos 373.º, n.º1 e 386.º, n.º1, al. d) do Código Penal, de que vinham acusados e pronunciados.

Interposto recurso do referido acórdão, por parte do Ministério Público,  veio este Tribunal da Relação de Lisboa, mediante acórdão proferido a 23-01-2020 [a  fls. 2511 e ss.], a apreciar a questão respeitante à valoração da referida gravação, na sequência do que decidiu nos termos seguintes:
“(…)  ser de não admitir a sua valoração na 1.ª instância, o que se decide … Improcede, assim, nesta parte, o recurso do M.P.”

Tal decisão transitou em julgado.

Assim sendo, entendemos que assiste razão aos recorrentes quando invocam que tal meio de prova não poderia ser valorado pelo tribunal a quo, como este o fez, no acórdão recorrido.

Aliás, precisamente por tal gravação não poder ser atendida é que faz sentido ter o Ministério Público [mediante promoção de 9 de novembro de 2021, com a referência citius n.º 133734129] formulado requerimento no sentido de o tribunal a quo determinar que se procedesse “à transcrição das gravações efetuadas pelo ofendido G indicando tal Auto de transcrição enquanto elemento de Prova documental [sublinhado nosso], requerimento que viu deferido, cuja transcrição foi efetuada e junta aos autos a fls. 3157 a 3187, e como tal valorada pelo Tribunal a quo no acórdão recorrido.

Ora, se a gravação [leia-se: reprodução da gravação] não poderia ter sido usada como meio de prova pelo tribunal a quo, por ter sido considerada nula e inadmissível a sua valoração, mediante decisão transitada em julgado, como é bom de ver, a transcrição da mesma não só não deveria ter sido efetuada, quanto mais atendida, a coberto do “rótulo” de “prova documental”,sob pena de se fazer entrar pela janela o que não se permitiu entrar pela porta, ou seja, sob pena de se estar a contornar o decidido em sentido contrário.

Aqui chegados, conclui-se não ser de valorar tal transcrição.

De qualquer forma, a mesma respeita a G e não, diretamente, ao ofendido F, pelo que, quando muito, serviria para reforçar a restante prova indicada na motivação do acórdão recorrido, que, diga-se, é extensa.

Consequentemente, a aventada alegação dos recorrentes de que estamos perante uma gravação fictícia revela-se inócua. 

Prosseguem os recorrentes requerendo que seja declarada nula e sem nenhum efeito a prova alcançada através da captação de som e imagem na oficina de G, por se encontrar contaminada com o vício que inquina a gravação ilícita que lhe deu origem.

Argumentam, para o efeito, que foi após ter acesso a esta gravação [ilícita] que a PSP deu início às diligências investigatórias de vigilância e com vista à solicitação ao JIC a instalação de uma câmara no interior do estabelecimento comercial do G, para gravar as imagens e som quando os arguidos ali se deslocavam, diligência que mereceu deferimento por parte do JIC.

A gravação ilícita foi o único meio que permitiu a instalação de uma câmara no estabelecimento do G para captar som e imagens.

Assim, no entendimento dos recorrentes, daqui resulta que se não tivesse sido utilizada uma gravação ilícita não teria sido realizada a captação de som e imagem na oficina de G, o que, de acordo com a teoria dos frutos da árvore envenenada ou da proibição em cascata resultante do recurso à prova proibida, torna ilegal esta captação de som e imagem.

Porém, desde já se adiante que não lhes assiste razão.

Com efeito, não corresponde à verdade que tenha sido com base na referida gravação ilícita que a autoridade policial deu início às diligências investigatórias, bastando, para tanto, atentar que a referida gravação ocorreu a 16-10-2013 e já existiam diligências em curso, com base numa denúncia efetuada por ..., a 26-09-2013, ou seja, 20 dias antes da referida gravação, sendo exemplo disso a própria inquirição como testemunha de G ocorrida a 03-10-2013 [fls. 106 e ss.],  não se compreendendo o motivo pelo qual os recorrentes sindicam a investigação por meios de prova e muito menos por ofendidos, uma vez que se tratava de uma investigação conjunta que os abarcava a todos, tendo, aliás, sido deduzida uma única acusação e um único despacho de pronúncia que apenas veio a determinar a repetição do julgamento quanto aos ofendidos aqui em causa, por razões estritamente processuais.

Acresce dizer, não se ver que necessidade teria a autoridade policial de obter previamente a referida gravação ilícita para dar início às diligências investigatórias de vigilância, tanto mais que não necessitou da mesma para a avançar com a investigação relativamente a outros ofendidos.

Consequentemente, não se descortina de que forma a gravação permitida pelo JIC possa constituir prova proibida, tanto mais que os recorrentes não indicam qualquer disposição legal em que sustente tal afirmação.

Assim sendo, improcede tal segmento recursivo.

DA INVOCADA NULIDADE DOS RECONHECIMENTOS EFETUADOS e subsequente prova:
Argumentam os recorrentes que os reconhecimentos efetuados pelas testemunhas no início do inquérito [que os situam a fls. 65 e seguintes, 68 e seguintes, 71 e seguintes e 74 e seguintes], são nulos, por violarem os artigos 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa e 126.º do Código de Processo Penal, o que deverá ser declarado, com as devidas consequências nos atos deles derivados, por terem sido efetuados com recurso a fotos retiradas do perfil dos arguidos do Facebook mostradas às testemunhas, em violação do n.º1, do artigo 15.º da Lei do Cibercrime [Lei n.º 109/2009].

Concluem os recorrentes que se o início deste processo sustenta-se numa nulidade insanável relacionada com o modo como foram obtidos os reconhecimentos iniciais dos arguidos, todos os atos subsequentes aos reconhecimentos só foram possíveis por terem sido utilizadas estas provas proibidas, pelo que  estes reconhecimentos foram a causa direta e necessária do prosseguimento do inquérito.

Assim, deve ser declarada nula e sem nenhum efeito a prova alcançada na sequência dos reconhecimentos ilícitos, por se encontrar contaminada com o vício que os inquina.

Encontra-se nesta situação toda a prova recolhida após a realização dos reconhecimentos. Em boa verdade, se não tivessem sido realizados reconhecimentos com recurso a métodos proibidos de prova, as diligências subsequentes não teriam ocorrido.

Porém, não lhes assiste razão.

De facto, resulta dos artigos 126.º do Código de Processo Penal e 32.º, n.º 8, da CRP, que as provas obtidas mediante métodos proibidos pela lei, são nulas, não podendo, por isso, ser utilizadas, sendo que tal nulidade torna inválido não apenas o ato em que se verifica, mas também os que dele dependerem e aquelas puderem afetar [artigo 122.º, n.º1, do Código de Processo Penal].

É o chamado efeito à distância [«fruit of the poisonous tree» ou «ferwirkung des bewweisverbots»], que se refere ao efeito de contágio que as proibições de prova produzem ou podem produzir, nos meios de prova e/ou nos meios de obtenção de prova que se sucedem, na tramitação processual, a partir da prova proibida, à «comunicabilidade ou não da proibição de valoração aos meios secundários de prova tornados possíveis à custa de meios ou métodos proibidos de prova».[22]

Porém, cumpre atentar que se por um lado o artigo 122.º n.º 1 do Código de Processo Penal preve que a invalidade do ato nulo se estende aos que deste dependerem ou que ele possa afetar, por outro lado no seu n.º 3 o legislador salvaguarda o aproveitamento de todos os atos que ainda puderem ser salvos do efeito da nulidade.

Ou seja, a projeção dos efeitos da invalidade emergente das proibições de prova, nos atos processuais subsequentes não é ilimitada, nem absoluta.
As três limitações: a da fonte independente, a da descoberta inevitável e a da mácula dissipada[23] desenvolvidas pela jurisprudência norte-americana, como excepções ao efeito inelutável de dominó da invalidade da prova original proibida sobre toda a que se lhe seguir, são conciliáveis com os princípios constitucionais que inspiram o sistema jurídico-penal português.

De resto, constituem importantes factores de equilíbrio entre os valores que justificam as proibições de prova – o interesse em assegurar a descoberta da verdade material indispensável à administração da justiça penal, por um lado, e a necessidade de investigar crimes com respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos, por outro lado.

Todas têm em comum a inexistência ou uma substancial dissipação do nexo de causalidade ou de imputação objetiva entre a violação da proibição da produção da prova originária e a prova secundária, a tal ponto, que desconsiderar esta última seria atentatório do equilíbrio dos valores em jogo e constituiria um exercício meramente diletante, fútil e, porventura, fraudulento, impedindo o exercício do jus puniendi do Estado, quando já nem sequer se poder afirmar que aquele resultado probatório não seria obtido com os meios disponibilizados segundo a conceção do Estado de Direito democrático, seguindo as regras próprias deste e sem qualquer afronta a direitos fundamentais.

«A fonte independente respeita a um recurso probatório destacado do inválido, usualmente com recurso a meio de prova anterior que permite induzir, probatoriamente, aquele a que o originário tendia, mas foi impedido, ou seja, quando a ilegalidade não foi conditio sine qua da descoberta de novos factos.
«O segundo obstáculo ao funcionamento da doutrina da «árvore envenenada» tem lugar quando se demonstre que uma outra actividade investigatória, não levada a cabo, seguramente iria ocorrer na concreta situação, não fora a descoberta através da prova proibida, conducente inevitavelmente ao mesmo resultado, ou seja, quando, apesar da proibição, o resultado seria inexoravelmente alcançado.
«A terceira limitação da «mácula dissipada» (purged taint limitation) leva a que uma prova, não obstante derivada de outra prova ilegal, seja aceite sempre que os meios de alcançar aquela representem uma forte autonomia relativamente a esta, em termos tais que produzam uma decisiva atenuação da ilegalidade precedente.»[24]

A relação de causa e efeito entre a prova inválida e a prova secundária que se lhe segue, tem de ser estabelecida num plano objectivo, avaliado casuisticamente e o efeito remoto da invalidade gerada pela prova proibida à prova ou provas subsequentes só se verificará, quando existir entre a primeira e as segundas uma conexão substancial, real e efectiva.

«Para a comunicação da nulidade aos actos posteriores é necessário que eles estejam numa relação de dependência ou derivação do acto declarado nulo. Dependência real e efectiva, e não apenas acidental, ocasional, ou relação de coincidência episódica.
«Por outras palavras, o acto declarado nulo tem de constituir premissa lógico-jurídica dos actos sucessivos, de tal modo que, caindo tal premissa, deve igualmente falecer validade dos actos que lhe seguem.» [25]
“(…) VI.- A doutrina dos “frutos da árvore venenosa”, não tem o sentido de um forçoso e inevitável “efeito dominó” que arraste, forçosamente, em cascata, todas as provas que, em quaisquer circunstâncias, apareçam em momento posterior à prova proibida e com ela possam, de alguma forma, ser relacionadas, antes abrindo um amplo espaço à ponderação das situações concretas, não conduzindo necessariamente à invalidação de todas as provas posteriores à prova ilegal;
VII.- Assumindo a decisão recorrida que as denúncias e documentos anexos constituíram a “prova primária” nula, todas as demais provas não podiam ser “anuladas” indiscriminadamente, sem que a fosse ponderada “prova” a “prova”, analisando a conexão de sentido existente entre cada prova e a dita “prova primária.”.[26]

In casu, a prova que os recorrentes colocam em causa suscetível de, na sua ótica, inquinar a prova subsequente, consistem nos autos de reconhecimento fotográfico dos arguidos e estes não foram sequer tidos em conta pelo tribunal a quo na fundamentação da matéria de facto provada, que não os valorou, o que decorre, não só, à contrário, dos meios de prova que elencou para sustentar a sua convicção, do qual os reconhecimentos fotográficos não fazem parte, como o tribunal a quo o referiu expressamente [“não se valoraram reconhecimentos meramente fotográficos. Pelo que improcede arguição de vício atinente aos reconhecimentos dos autos”].

Acresce que não se descortina de que forma se possa concluir que todos os atos subsequentes aos reconhecimentos fotográficos só tenham sido possíveis por terem sido utilizadas estas provas proibidas, ou que estes reconhecimentos foram a causa direta e necessária do prosseguimento do inquérito, sendo certo que os próprios recorrentes não o concretizam, seguramente porque tal relação causa-efeito não existe.

Aliás, embora originariamente a doutrina dos “frutos da árvore envenenada”, iniciada nos Estados Unidos, afirmasse, em princípio, um total efeito-à-distância das proibições de prova, a jurisprudência foi elaborando um conjunto de exceções, como forma de atenuar esse efeito.

Entre as exceções ou limitações ao efeito-à-distância, o Supremo Tribunal de Justiça reconhece a exceção da fonte independente, podendo ler-se no acórdão de 12 de março de 2009[27], que “nada obsta a que as provas mediatas possam ser valoradas quando provenham de um processo independente de conhecimento independente e efetivo, uma vez que não há nestas situações qualquer relação de causalidade entre o comportamento ilícito inicial e a prova mediatamente obtida. Pode afirmar-se que o efeito metastizante da violação de regras de proibição de prova apenas tem razão de ser em relação à prova que se situa numa relação de conexão de ilicitude.”

Também uma simples leitura da fundamentação da matéria de facto do acórdão recorrido permite perceber que o ilícito pelos quais os ora recorrentes se mostram condenados fundou-se em meios de prova autónomos, sem qualquer correlação ou interdependência lógica, funcional ou valorativa.

Não se descortina de que forma é que as declarações dos arguidos e os depoimentos das testemunhas poderiam ser diferentes daqueles que foram prestados ou que os documentos indicados como fontes da motivação da decisão de facto tenham sido obtidos a partir dos referidos reconhecimentos fotográficos.

Ou seja, não existe qualquer comunicabilidade da proibição de prova para os meios de prova usados e valorados pelo Tribunal a quo que o levou a fixar os factos que considerou provados no acórdão recorrido, apresentando-se a prova tida em atenção bastante para convencer e fundamentar a condenação imposta.
Assim sendo, improcede a requerida declaração de nulidade e inerente ineficácia da prova alcançada após os ditos reconhecimentos fotográficos.

DA ALEGADA INEXISTÊNCIA DO ELEMENTO SUBJETIVO ESPECIAL DO TIPO:
Os arguidos recorrentes encontram-se condenados pela prática de um crime de corrupção passiva, previsto e punido pelo artigo 373.º, n.º 1, em conjugação com o disposto no artigo 386.º, n.º 1, al. d), ambos do Código Penal.
Dispõe o artigo 373.º, n.º 1, do Código Penal que:
1 - O funcionário que por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para a prática de um qualquer acto ou omissão contrários aos deveres do cargo, ainda que anteriores àquela solicitação ou aceitação, é punido com pena de prisão de um a oito anos.

Por sua vez, o artigo 386.º, n.º1, al. d) do Código Penal, vigente na data dos factos [Lei n.º 32/2010, de 02 de Setembro], define como funcionário “Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.”.

O n.º 1, do artigo 373.º do Código Penal prevê a chamada corrupção passiva própria ou corrupção passiva para ato ilícito que, como a própria designação deixa transparecer, é marcada pelo caráter ilícito da conduta do funcionário.

A criminalização da corrupção é exigida pela proteção dos valores indispensáveis à realização livre da pessoa, elevando-se à categoria de bem jurídico-penal a própria esfera da autoridade pública, tutelando a autonomia intencional do Estado enquanto momento imprescindível na preservação de quaisquer expectativas de convivência social.

O bem jurídico protegido com a incriminação é a autonomia intencional do Estado e o núcleo da corrupção reside, justamente, na manipulação ou violação dessa autonomia.

Estando o Estado (entendido num sentido amplo, incluindo o poder político, judicial, executivo e administrativo), incumbido da prossecução de interesses considerados essenciais ao bem-estar das pessoas, a sua realização mostra-se ameaçada se aqueles que estão adstritos de os fazer prosseguir ― os funcionários, na sua aceção ampla que resulta do artigo 386.º ― derem primazia a interesses particulares seus, ao invés de privilegiar o interesse público pautando a sua conduta por critérios de legalidade, imparcialidade, objetividade e independência.

Ao transacionar com o cargo, o empregado público corrupto coloca os poderes funcionais ao serviço dos seus interesses privados, o que equivale a dizer que, abusando da posição que ocupa, se «sub-roga» ou «substitui» ao Estado, invadindo a respetiva esfera de atividade.

Socorrendo-se do Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa, de 28 de setembro de 2011, prolatado no âmbito do processo n.º 76/10.2GTEVR-3, invocam os recorrentes que “O tipo subjetivo pressupõe, para além do dolo, que tem por referência todos os elementos do tipo objetivo, de um elemento subjetivo especial que se traduz numa determinada conexão do comportamento objetivo do agente com a prática de um acto ou omissão contrários aos deveres do cargo, compreendidos na sua competência funcional ou nos poderes de facto dela decorrentes.”, mas que, in casu, tal elemento subjetivo especial não se encontra reunido, pois dos factos provados não consta que determinados estabelecimentos se encontravam ilegalmente em funcionamento e, por isso, deviam ter sido encerrados, mas não se procedeu ao seu encerramento.

Concluem, assim, os recorrentes que os arguidos não praticaram nenhum ato, nem são responsáveis por qualquer omissão contrária aos deveres funcionais a que se encontravam obrigados pela qualidade de funcionários que todos eles detinham, pelo que não sendo possível preencher o elemento subjetivo especial do tipo do crime de corrupção passiva, p. e p. no artigo 373.º, n.º 1 do Código Penal, tal facto torna impossível a subsunção da conduta dos agentes à estatuição da norma, o que determina a sua consequente absolvição.

Pese embora o argumentado, não assiste qualquer razão aos recorrentes.

Com efeito, como é consabido, na corrupção, o núcleo do ilícito reside no “mercadejar” com a função ou nesse perigo, o que acaba por modelar o tipo legal, quer na corrupção passiva, quer na corrupção ativa, podendo mesmo dizer que é no “mercadejar” com a função que se esgota o ilícito.

A corrupção passiva própria prevista no n.º 1 do artigo 373.º, é, de um prisma material, um tipo agravado ou qualificado em que se “lhe acrescenta a natureza ilícita da atividade visada pelo suborno”.

A atividade proibida da corrupção concretiza-se no mero solicitar [ou aceitar] o suborno, isto é, na manifestação [expressa ou tácita] de vontade do funcionário em ser corrompido, consumando-se o delito no momento em que essa solicitação [ou aceitação] chega ao conhecimento do destinatário, “ainda que este não «compreenda» o seu sentido”, bastando que, “atento o respetivo teor, ela se apresente compreensível por um terceiro, segundo os parâmetros da adequação social”.

Ou seja, a consumação do crime não está dependente da prática, pelo funcionário, de qualquer ato ou omissão contrária aos seus deveres funcionais, sendo irrelevante até, para este efeito, que nunca sequer tenha tido a intenção de o praticar ou omitir[28], sendo, portanto, irrelevante se da factualidade provada em apreço consta ou não se o estabelecimento do ofendido F foi ou não encerrado por se encontrar numa situação ilegal.

De qualquer forma, sempre se dirá que, ao contrário do invocado pelos recorrentes, dos factos provados consta que o estabelecimento se encontrava ilegalmente em funcionamento e, por isso, devia ter sido encerrado, mas não se procedeu ao seu encerramento [artigo 328 da factualidade provada].

Assim sendo, e revertendo ao caso dos autos, uma vez que os arguidos são agentes da força militarizada GNR, exerciam, por isso, funções públicas, fica preenchido o conceito de funcionário definido no artigo 386.º, n.º1, al. d) do Código Penal.

Tal como já referido no Acórdão proferido por este Tribunal da Relação de Lisboa, a 23-01-2020, que procedeu à condenação dos arguidos pelo mesmo crime relativamente a quatro outros ofendidos, fazendo o paralelismo com a fundamentação ali vertida, “temos que os arguidos abordaram alguns dos proprietários das sucateiras [neste caso o ofendido F]e, após, realizarem uma fiscalização aos respetivos locais de trabalho, fazendo menção da existência de violações às normas legais em vigor [que conduziriam, a elaboração dos respetivos autos e consequente encerramento, selagem e lacragem do local], exigiam a entrega de uma quantia monetária, em dinheiro, para que as infrações detetadas  não fossem registadas ou comunicadas, com o intuito de obter quantias monetárias [no caso €400,00], que utilizaram em seu proveito próprio, às quais sabiam não ter direito e que não podiam solicitar, bem sabendo que, no exercício das suas funções, na qualidade de militares da GNR, não podiam solicitar e aceitar receber dinheiro, como condição de não elaborar os respetivos autos de contraordenação, nem darem início às respetivas investigações e procederem ao fecho das instalações dos identificados que sabiam encontrarem-se em situação ilegal, ao que estavam obrigados em face da qualidade que detinham.

Desde modo, em face desta factualidade que resultou provada é manifesto que a mesma integra o tipo legal de crime de corrupção passiva, pelo qual os arguidos se encontram acusados, pronunciados e condenados, encontrando-se preenchidos todos os elementos do tipo [quer objetivos, quer subjetivos], pelo que também nesta vertente o recurso terá de improceder.

Uma última palavra para dizer que os arguidos invocam, ainda, a existência de “erros que o acórdão recorrido comete na aplicação do direito, por falta de imputação dos factos às normas legais aplicáveis”.

Ora, desde já não se descortina a que erro se referem os recorrentes, que norma legal tenha sido violada pelo tribunal a quo e que pretendem que este tribunal aprecie, pois os recorrentes não a identificam.
 
De qualquer forma, caso se estejam a referir aos requisitos da sentença, cumpre dizer que, de facto, do artigo 374.º, n.º2, do Código de Processo Penal resulta que “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

E o tribunal a quo fê-lo, efetuando uma análise extensa sobre o tipo legal de crime de corrupção passiva, intercalada com a análise do caso concreto [do qual os seguintes trechos são exemplo:Isto sendo certo que no caso vertente, perante o provado recebimento de quantia, no que respeita ao ofendido F, há, claramente crime consumado e não tentado, quer na forma activa, quer passiva.” e “É ainda necessário que o agente saiba que a sua conduta é punida por lei e actue, consciente, livre e voluntariamente. A sua conduta terá de ser dolosa (sob qualquer das formas de que o dolo se pode revestir, directo, necessário ou eventual - cfr. artigo 14º do Código Penal), o que também se provou no caso vertente quanto ao ofendido F.] e concluindo que “os arguidos praticaram cada um o crime imputado de corrupção passiva para acto ilícito na forma consumada, previsto e punido pelo artº.373º., nº.1, do Código Penal, no que respeita ao ofendido F, distintamente do que sucede quanto ao alegado ofendido ....
Tendo, finalmente, actuado a título de dolo directo.
Conforme resulta da factualidade apurada não subsistem dúvidas que se encontram verificados os elementos constitutivos do tipo legal mencionado, pelo que conclui-se que a conduta dos ditos arguidos além de típica é ilícita porque violadora de bens jurídicos com tutela penal.
Ao agir do modo descrito os ditos arguidos actuaram com dolo directo, porquanto agiram livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.”.

Ou seja, o tribunal a quo fez, como devia, a concreta subsunção dos factos ao direito, ao contrário do defendido pelos recorrentes.
Assim sendo, também pelo presente argumento o recurso não poderá proceder.
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IIIDISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em:

A.Face ao disposto no artigo 401.º, n.º1, b), à contrário, 414.º, n.º2 e 420.º, n.º1, alínea b), todos do Código de Processo Penal, o que implicaria a rejeição do recurso da decisão interlocutória, por falta de legitimidade dos recorrentes, não se conhece do mesmo.

B.Nega-se provimento ao recurso interposto pelos arguidos relativamente ao acórdão proferido nestes autos, o qual se mantém nos seus precisos termos, quer no que respeita à matéria de facto, quer no que respeita à matéria de direito.
 
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça individualmente devida em 5 UCS [artigos 513º, n.ºs 1 e 3 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III].
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Lisboa, 28 de março de 2023



[Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]


 
Os Juízes Desembargadores


Isilda Maria Correia de Pinho
Luís Almeida Gominho 
Jorge Gonçalves



[1]Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.
[2]Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95.
[3]Neste sentido, entre outros, Acórdão do TRG de 28-02-2019, Proc. n.º 2281/17.1T8VRL.G1, in www.dgsi.pt e Acórdão do TRL de 28-10-2021, Processo n.º 394/20.1PBVFX.L1-9, ambos in www.dgsi.pt.
[4]Acórdão do STJ de 07-04-2022, Processo n.º 89/20.6PCCSC.L1.S1, in www.dgsi.pt Acórdão do TRP de 25-05-2022, Processo n.º 532/20.4T9VNG.P1, in www.dgsi.pt
[5]Cfr. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 279; Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss..
[6]Proc. nº 07P4375, acessível in www.dgsi.pt
[7]In Forum Iustitiae, Ano I, Maio de 1999.
[8]In «O caso Julgado Parcial», 2002, pág. 37.
[9]Cfr, neste sentido, Acórdão do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, acessíveis em www.dgsi.pt
[10]A propósito deste vício veja-se, entre outros, o Ac. do TRP de 15.11.2018 e de 09.01.2020, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[11]Acórdão do STJ de 08-01-2014, Processo n.º 7/10.0TELSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.
[12]Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., pág. 74.
[13]Acórdão do TRC de 24-04-2018, P. n.º 1086/17.4T9FIG.C1, in www.dgsi.pt.
[14]Acórdão do STJ, de 98-07-09, Proc. 1509/97, citado por Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 77.
[15]A propósito deste vício, veja-se, entre outros, os Acórdãos do TRP de 15.11.2018, do TRC de 24-04-2018 e do STJ de 18.05.2011, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[16]Acessível in www.dgsi.pt
[17]Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, 1º volume, Coimbra, ed. 1974, pág. 203 a 205.
[18]Cfr. Acórdão do TRC, de 16-09.2015, in www.dgsi.pt.
[19]Cfr. Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa, de 02.11.2021, Processo nº 477/20.8PDAMD.L1-5, disponível em www.dgsi.pt.
[20]Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-02-2008, Processo nº 07P4729, acessível em www.dgsi.pt.
[21]Datado de 10-01-2008, Proc. n.º 07P4198, in www.dgsi.pt
[22]Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra, 1992, pág. 61.
[23]Jerold H. Israel e Wayne R. Lafave, Criminal Procedure, 6.ª Ed., St. Paul, Minnesota, 2001, págs. 291-301; Gallardo, CH Fidalgo, Las Pruebas Ilegales: de la exclusionary rule estadonidense al artículo 11.1 LOPJ, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, Madrid, 2003, Franco Cordero, Procedura penale, 2.ª ed., Milão, 1993, pág. 582.
[24]Acórdão do STJ de 20-02-2008, Proc. 07P4553. No mesmo sentido, Acórdãos do STJ de 12-03-2009, Proc. 09P0395; de 06.02.2013, Proc. 593/09.7TBBGC.P1.S1; de 12-11-2015, Proc. 320/13.4 GCBNV.E1.S1; Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 13-07-2010, Proc. 712/00.9JFLSB.L1-5 e de 03-07-2012, Proc. 14538/10.4TFLSB.L1-5, todos in http://www.dgsi.pt e Acórdão do TC n.º 198/2004, de 24-03-2004, in http://www.tribunalconstitucional.pt.
[25]José da Costa Pimenta “Código de Processo Penal Anotado – 2ª Edição”, no comentário ao artigo 122º CPP. No mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal (Anotado), Lisboa, 2007, p. 328; Frederico de Lacerda da Costa Pinto “Supervisão do mercado, legalidade da prova e direito de defesa”, Coimbra, 2000, p. 120; Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de prova em Processo Penal, Coimbra Editora, 2006, pág. 316.
[26]Acórdão do TRL, de 03-07-2012, Processo n.º 14538/10.4TFLSB.L1-5, in  www.dgsi.pt
[27]Proc. n.º 09p0395, in www.dgsi.pt..
[28]Acórdão do TRP de 14-04-2021, Proc. n.º 102/16.1TRPRT.P1, in www.dgsi.pt