Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
184/12.5TELSB-R.L1-3
Relator: RUI MIGUEL TEIXEIRA
Descritores: CORREIO ELECTRÓNICO
REGIME DE APREENSÃO
ENTIDADE COMPETENTE
PROVA
INADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: 1)–A apreensão, em processo penal, de correio electrónico (e-mails), obedece ao figurino constante da Lei do Cibercrime (Lei 109/2009 de 15 de Setembro);

2)–Tal como a correspondência em papel, a correspondência digital segue regimes de apreensão diferentes consoante a mesma ainda não haja sido remetida, tenha sido remetida e esteja em trânsito, haja sido recebido e não lida ou haja sido recebida e lida.

3)–Nas situações em que a correspondência haja sido recebida mas ainda não haja sido lida pelo destinatário é de aplicar o disposto no artº 17º da Lei do Cibercrime, tudo se processando como se de uma apreensão de correspondência nos termos do CPP se tratasse;

4)–Sendo, ab initio, autorização judicial para tal;

5)–Se assim for, a correspondência apreendida terá de ser presente e seleccionada por um juiz antes de ser junta ao processo e poder aí ser considerada;

6)–A omissão desta formalidade constitui nulidade e acarreta a inadmissibilidade da prova obtida;

7)–Nas situações em que a mensagem está em trânsito e for interceptada é de aplicar o artº 18º da Lei do Cibercrime;

8)–Nas situações em que a correspondência ainda não haja sido remetida ou haja sido recebida e lida é de aplicar o disposto no artº 16º da Lei do Cibercrime;

9)–O e-mail não é diferente de uma folha de excel ou um documento word num computador.

10)–Nestas situações (e não existindo qualquer outro segredo a preservar v.g. o profissional) a apreensão pode ser ordenada pelo Ministério Público e por este executada não sendo necessária qualquer autorização judicial prévia à busca ou validação judicial subsequente da mesma.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes que compõem a 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I–Relatório:


Inconformado com o despacho proferido em 22.09.2020, o arguido JN _______ veio do mesmo recorrer.
Este despacho surge na sequência do requerido pelo arguido no sentido de ver declarado "a nulidade dos Despachos do Ministério Público de fls. 1370-1371 e 1379 ss., assim como do Despacho proferido a 14.08.2020, pelo qual foi ordenada a junção aos presentes autos, para serem utilizadas e valoradas enquanto meio de prova, das mensagens de correio eletrónico apreendidas ao Requerente, assim como de quaisquer outros posteriores a este (e posteriores à apresentação e conhecimento do presente Requerimento) que igualmente determinem, nos termos do artigo 179.3, n.3 3, do CPP, ex vi do artigo 17.º da Lei do Cibercrime, a junção aos autos das demais mensagens de correio eletrónico apreendidas ao Requerente, por violação das disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, 126º, n.º 3 e 179.º do Código de Processo Penal e 17.º da Lei do Cibercrime" e que fossem "julgadas meio de prova de utilização e valoração proibida, todas as mensagens de correio eletrónico de que o Requerente é titular e que se encontram apreendidas à ordem dos presentes autos”.
Ao recorrido respondeu o Ministério Público.

Assim, após motivações, apresenta o recorrente as seguintes conclusões:
A.–O presente recurso vem interposto do Despacho de 23.09.2020 (cf. fls…), que, após requerimento do Recorrente JN______ (cf. fls. 17360 ss.), apresentado na sequência do Despacho de 14.08.2020, que determinou a junção aos autos de 3277 mensagens de correio eletrónico resultantes da pesquisa de correio eletrónico pela palavra-chave "AT”, decide indeferir a invocada proibição de prova resultante dessa selecção de mensagens de correio eletrónico.
B.–A Decisão Recorrida acarreta, como consequência directa e imediata, a utilização probatória de mensagens de correio eletrónico tituladas pelo Recorrente, apreendidas abusivamente, sem mandado jurisdicional, sem o consentimento deste e, por conseguinte, implica uma violação imediata de direitos fundamentais do Recorrente e, desse modo, a Decisão recorrida colide frontalmente com direitos, liberdades e garantias, constitucionalmente reconhecidos e consagrados e, em particular, com o direito à tutela jurisdicional efetiva que quanto aos mesmos foi oportuna e tempestivamente reclamada pelo Recorrente.
C.–Assim, o Recurso da Decisão Recorrida deve ser imediatamente conhecido, por um seu conhecimento posterior frustrar o seu único propósito (impedir a violação irremediável de direitos fundamentais), i.e., e nos termos da lei, por uma sua retenção o tornar "absolutamente inútil" (artigo 407.2, n.2 1, CPP).
D.–Pelas mesmíssimas razões, tudo quanto dependa da Decisão Recorrida, não pode senão ficar suspenso até que o Recurso seja decidido e a validade ou invalidade da Decisão Recorrida seja firmada, de modo definitivo, por decisão transitada em julgado; contudo, porque a investigação como um todo não depende da validade da Decisão Recorrida, a suspensão dos presentes autos apenas se justifica em relação aos concretos actos que estão na dependência directa da validade da Decisão Recorrida, e não em relação ao processo na sua globalidade (artigo 408.º, n.º 3; in fine, CPP).
E.–A Decisão recorrida é sustentada em pressupostos de facto não verificados e, portanto, não verdadeiros, ao sugerir uma (pretensa) entrega voluntária das mensagens de correio eletrónico tituladas pelo Recorrente e pelo Arguido AM______e o consentimento na sua apreensão à ordem destes autos.
F.–De igual modo, a Decisão recorrida interpreta o artigo 179.º, n.° 3; do CPP, ex vi do artigo 17.º da Lei do Cibercrime em sentido materialmente inconstitucional, ao sustentar que é ao Ministério Público que compete proceder à selecção das mensagens de correio electrónico apreendidas que devam valer como meio de prova no processo.
G.–Assente nesses dois fundamentos, indeferiu a alegada proibição de prova e de utilização das referidas mensagens, apesar de o Recorrente - e o Arguido AM______ - ter evidenciado a inexistência do seu consentimento para a ordenada (pelo Ministério Público) apreensão.
H.–Em face do artigo 126.º, n.º 3, do CPP, impôs-se à Decisão recorrida, como peticionado, declarar a nulidade e inutilizabilidade probatória das mensagens de correio eletrónico que foram apreendidas sem o consentimento do respectivo titular (no caso, o Recorrente JN_______).
I.– Assim, a Decisão recorrida interpretou os artigos 179.º, n.º 3 do CPP e 17.º da Lei do Cibercrime em sentido materialmente inconstitucional e, por outro lado, violou o artigo 126.º, n.º 3, do CPP, ao não declarar, como devia, a proibição de prova resultante da (inválida e não consentida) apreensão do correio eletrónico de que o Recorrente é titular.

DO INEXISTENTE CONSENTIMENTO EXPRESSO DO RECORRENTE (E DO ARGUIDO AM_______, NA ACEPÇÃO DO ARTIGO 126.º, N.º 3, DO CPP E A INCONSTITUCIONALIDADE DE UMA INTERPRETAÇÃO DESCONFORME DA NORMA

J.–O pressuposto da realização da diligência de abertura e selecção de correio eletrónico é ter ocorrido uma apreensão, na acepção dos artigos 17.º da Lei do Cibercrime e 179.º, n.º 3, do CPP, regimes esses apenas trazidos à colação se, in casu, o titular do correio eletrónico pretendido apreender não consentir expressamente na respectiva apreensão.
K.–Tivesse o correio eletrónico permitido aceder pela Decisão recorrida sido, realmente, voluntariamente entregue e a sua apreensão expressamente consentida por alguém e, obviamente, não teria o Ministério Público promovido junto do Juiz de Instrução Criminal (e este determinado) a realização de diligências como as ocorridas a 06.08.2020, 13 e
14.08.2020 e 25.09.2020.
L.–Precisamente por esse consentimento expresso não ter sido, em caso algum, manifestado por qualquer um dos Arguidos (AM_______ e JN______), é que, de facto, se vêm realizando nos presentes autos um conjunto de diligências como as que nos vimos referindo - as realizadas, p. ex., a 10.10.2017, 15.11.2018, 06.08.2020, 13.08.2020, 14.08.2020 e 25.09.2020.
M.–O consentimento na apreensão de correio eletrónico deve ser expresso, inequívoco, pessoal livre e esclarecido.
N.–Efectivamente, o consentimento para qual aponta o artigo 126.º, n.º 3, do CPP, tem que ser pessoal, no sentido de se dever garantir a presença de um quid específico de vontade da pessoa afectada, na medida em que o que está em causa é, precisamente, uma restrição extraordinária, por via de acto abdicativo, dos seus direitos fundamentais, só assim se garantindo uma cabal homenagem à ratio que subjaz ao artigo 126.º, n.º 3, CRP e, bem assim, ao artigo 32.2, n.es 1 e 8, CRP, que sinaliza, a nível constitucional, a imperatividade do respeito por aquele primeiro preceito e pelos interesses que protege.
O.–O consentimento previsto no artigo 126.º, n.º 3 CPP só pode ser prestado pelo titular dos direitos fundamentais afectados ou por mandatário forense a quem aquele confira poderes especiais para o efeito, específica, inequívoca e expressamente plasmados em procuração forense, não se admitindo a presunção de tais poderes (artigos 44.º, n.º 3, a contrario, e 45.º CPC aplicáveis ex vi artigo 4.º CPP).
P.–As Procurações Forenses outorgadas pelo Recorrente e pelo Arguido AM______ aos Defensores nestes autos não são dotadas de tais características.
Q.–Na circunstância meramente hipotética de, em peças processuais, existir uma afirmação expressa, por parte dos respectivos mandatários subscritores, no sentido de os Arguidos AM______ e JN______ prestarem consentimento para efeitos do artigo 126.º, n.º 3, CPP (que não existe (!)), estar-se-ia perante um típico caso de insuficiência de mandato, a qual apenas poderia ser suprida através de uma ratificação do processado, específica e, necessariamente também, expressa, inequívoca, pessoal, livre e esclarecida, nesse sentido (artigo 48.º CPC, aplicável ex vi artigo 4.º CPP, e artigo 126.º, n.º 3, CPP) - coisa que, manifestamente, também não teve lugar nos presentes autos.
R.–Ora, mesmo que se concebesse existir, nas peças processuais (referenciadas na promoção do Ministério Público que antecede e é dada por reproduzida na Decisão recorrida) de dias 09.11.2017 e 15.12.2017, uma qualquer afirmação que apontasse para um consentimento dos Arguidos AM______ e JN______ para efeitos da intromissão na sua vida privada e na sua correspondência, de molde a sanar qualquer nulidade de prova (o que não existe (!)), certo seria que, de tais afirmações feitas pelos seus mandatários, nunca se poderia extrair um consentimento válido dos mesmos para efeitos do artigo 126.º, n.º 3, CPP, por falta de poderes de representação para o efeito.
S.–É materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, 26.º, n.º 1, 34.º, n.ºs 1 e 4, e 32.º, n.ºs 1 e 8, todos da CRP, a norma que se retire do artigo 126.º, n.º 3, do CPP, isolado ou conjugadamente aplicado com outro dispositivo legal, como sejam os artigos 44.º,n.º s 1 e 2, e 45.9, n.9s 1 e 2, CPC (ex vi 4.9 CPP), quando interpretada no sentido de admitir que o consentimento de titular dos direitos ao respeito da vida privada e à inviolabilidade da correspondência pode ser válido e vinculativo em processo penal, para efeitos de sanação de nulidade de prova existente por intromissão na vida privada e na correspondência, quando haja sido apenas expresso por mandatário forense que não se encontre munido de poderes especiais especificamente concedidos para o efeito em procuração forense e em relação a cuja afirmação, proferida nesses termos, não haja existido ratificação posterior, expressa e especificada, nos autos, por parte do titular dos direitos, seu mandante - inconstitucionalidade que se deixa arguida para os efeitos do artigo 72.º, n.º 2, Lei de Organização do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro - LTC).
T.–A "voluntariedade" da entrega de emails a que alude a Decisão recorrida (ao dar por reproduzida a anterior Promoção do Ministério Público) não acarreta (nem acarretava) qualquer nota de consentimento quanto à intromissão que o acesso às caixas de correio eletrónico dos arguidos AM_____e JN_____ comporta (e comportava), nem a mesma afasta (ou afastava) a ideia de obrigatoriedade, decorrente de uma ordem, a priori,emanada pelas autoridades, in casu, aquando diligência de busca e apreensão de dia 02.06.2017.
U.–Ou seja, a entrega voluntária da cópia das caixas de correio electrónico que teve lugar não revela qualquer tipo de consentimento relevante para efeitos do artigo 126.º, n.º 3, CPP, pois tal entrega, em todo o caso, foi obrigatória, contra a vontade do Recorrente (e do Arguido AM______e - mais (!) - nem sequer foi feita pelos mesmos.
V.–É inequívoco, por decorrer da mera análise dos autos e, bem assim, de factos notórios de conhecimento geral, que não foram os arguidos - mas sim a E... - E... de P..., S.A. (E...) -, quem entregou a cópia das suas caixas de correio eletrónico nos presentes autos.
W.–Existe uma clara diferença entre aquilo que, por um lado, dizem ou fazem os arguidos (ou que é dito ou feito em seu nome) e aquilo que, por outro lado, afirma ou executa a empresa na qual são membros dos órgãos sociais (a E...), qualquer um dos seus órgãos estatutários (como seja o CGS) ou, ainda, qualquer um dos seus accionistas (como seja a GTC), donde resulta não ser possível extrair das declarações ou acções destes qualquer consentimento, necessariamente pessoal, por parte dos Arguidos AM_____ e JN_____, quanto à intromissão na sua vida privada e correspondência, para efeitos do artigo 126.º, n.º 3, CPP.
X.–Pela mesmíssima ordem de razões, tudo quanto se relacione com a postura e acções da E.., em sede de buscas, não pode ser imputado aos Arguidos, uma vez que a E.. não é (nem nunca foi) controlada por aqueles, a ponto de se dizer que aquela é uma longa manus destes ou vice-versa.
Y.–Conforme decorre de prova documental constante nos presentes autos, foi a E..., visada nas buscas, quem decidiu não se opor à apreensão dos emails e a E..., visada nas buscas, quem procedeu, posteriormente, à entrega das cópias das caixas de correio eletrónico apreendidas, o que fez em estrito cumprimento de ordem expressa que lhe fora dirigida pelas autoridades, em sede de diligência de busca e apreensão no dia 02.06.2017 e por razões de ordem prática.
Z.–Tendo sido a E... quem juntou tais elementos de prova ao processo, é impossível considerar-se que existe, nos presentes autos, mesmo desta perspectiva, um qualquer consentimento, desde logo, pessoal dos arguidos AM______ e JN______ quanto ao acesso aos seus emails (artigo 126.2, n.° 3, CPP).
AA.–Mas mesmo que assim não se considere, é incontornável uma outra conclusão: em momento algum poderá resultar dos autos um consentimento dos arguidos que seja expresso e inequívoco no sentido do acesso aos seus emails (essencial para efeitos do artigo 126.º, n.º 3, CPP), não tendo a entrega "voluntária" (acima devidamente explicada e definida) a virtualidade de alterar tal realidade.
BB.–Nesta linha de considerações, não pode ser outra a interpretação a dar ao texto do Acórdão deste Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de dia 08.05.2018, quando refere que, "no âmbito do inquérito, o MP determinou a realização de buscas não domiciliárias, designadamente, na sede da E..., com apreensão de correspondência electrónica, entre outros, do arguido AM______. Tal veio a ser efectuado, tendo sido apreendido o correio electrónico constante do endereço .... @...e....pt.pst, de resto, voluntariamente fornecido", porquanto (i) aí não se refere (e bem) que foram os arguidos quem procedeu a tal entrega e, em todo o caso, porque (ii) aí também não se segue uma interpretação (que seria errada em face do significado linguístico das palavras e, bem assim, da realidade dos factos) de que ao advérbio "voluntariamente", utilizado neste contexto, deve ser retirada a nota de obrigatoriedade / imposição externa, que o mesmo sempre acarreta.
CC.–Uma vez que a questão do (pretenso) consentimento na entrega do correio eletrónico não integrava o objeto do recurso decidido pelo referido Acórdão de 08.05.2018, não é possível extrair da eficácia do caso julgado formado pelo respectivo trânsito qualquer sentido como o sugerido pelo Mm.º Juiz a quo e pelo Ministério Público: isto é, que haja já sido definitivamente resolvida nos presentes autos a questão que agora se discute, referente ao (não) consentimento na apreensão do correio electrónico titulado pelos Arguidos AM_____ e JN_____.
DD.–Não se poderá dizer que pela circunstância de ser realizada uma isolada referência na fundamentação do Acórdão de 08.05.2018 a uma entrega voluntária do correio eletrónico titulado pelo arguido AM______, se tenha formado, pela fundamentação do Acórdão, caso julgado quanto a essa mesma questão.
EE.Apenas quando a própria fundamentação - e o raciocínio nela expendido - concorre para a compreensão e efetiva estruturação da decisão, é que se poderá afirmar que o alcance do caso julgado formado por esta alcança aquela.
FF.–Ora, de modo a decidir pela nulidade do Despacho recorrido que antecede o Acórdão de 08.05.2018, em circunstância alguma este Venerando Tribunal procedeu a qualquer raciocínio ou fundamentação que visasse discutir sobre o (pretenso) consentimento na apreensão do correio eletrónico apreendido aos arguidos AM______ e JN______, nem o Ministério Público - aí Recorrente - cuidou, sequer minimamente, de delimitar o objeto do recurso ao conhecimento dessa questão.
GG.–Assim, inexiste, à presente data, qualquer caso julgado formal sobre a questão do
(pretenso) consentimento na apreensão de correio eletrónico dos Arguidos AM______ e JN_____, não se encontrando os Tribunais, por ora, vinculados a qualquer decisão jurisdicional anterior, pela singela circunstância de tal questão não ter sido ainda conhecida e, por maioria de razão, decidida.

DA INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DOS ARTIGOS 17.º DA LEI DO CIBERCRIME E 179.º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, QUANDO INTERPRETADOS NO SENTIDO DE COMPETIR AO MINISTÉRIO PÚBLICO PROCEDER À JUNÇÃO AOS AUTOS DAS MENSAGENS DE CORREIO ELETRÓNICO QUE (POR SI) FOREM CONSIDERADAS RELEVANTES PARA A PROVA

HH.–A solução normativa sustentada nos autos pelo Ministério Público, acolhida na Decisão recorrida, no sentido de competir ao Ministério Público decidir sobre a relevância para a prova, das mensagens de correio eletrónico que se encontrem apreendidas à ordem dos presentes autos, contende com diversas normas e princípios constitucionais, mormente o princípio da legalidade e o direito à inviolabilidade da correspondência e comunicações.
II.–A Decisão recorrida cria uma etapa não legalmente prevista nos procedimentos regulados pelos artigos 17.º da Lei do Cibercrime e 179.º, n.º 3, do CPP, fazendo surgir no procedimento de selecção de mensagens de correio electrónico - previsto na segunda parte do artigo 179.º, n.º 3, do CPP -, uma competência paralela à que se acha regulada para as intercepções telefónicas (artigo 188.º, n.º 6 do CPP).
JJ.–Ademais, reescreve a competência legalmente acometida ao JIC, no artigo 179.º, n.º 3, do CPP, ex vi artigo 17.º da Lei do Cibercrime, atribuindo-a ao Ministério Público, o que resulta claro quando sustenta que é ao Ministério Público "que compete dirigir o inquérito e verifica que emails gravados nos suportes digitais devem ser juntos em papel aos autos e quando", a fim de valerem como meio de prova.
KK.–Apenas fazendo recair sobre o JIC, em inquérito, a competência para determinar quais as mensagens de correio eletrónico que deverão integrar os autos para valer como meio de prova, se adotará uma solução normativa constitucionalmente conforme, adequada a tutelar os direitos fundamentais que o legislador quis salvaguardar, ao exigir uma dupla intervenção do JIC no âmbito da apreensão de correspondência (electrónica).
LL.–Por ser a apreensão de correspondência electrónica uma forma de ingerência em direitos fundamentais, só se alcançará uma tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações de direitos fundamentais como a privacidade ou a reserva da intimidade da vida privada, se se assegurar que o conhecimento de mensagens apreendidas é, primeiramente, acometido a um Juiz e não, como sustentado pela Decisão recorrida, ao Ministério Público.
MM.–A atribuição dessa competência ao Juiz de Instrução não contende, de todo, com a estrutura acusatória do processo penal português, na medida em que no momento em que as mensagens apreendidas são apresentadas ao Juiz de Instrução - para delas tomas primeiro conhecimento e, após, determinar quais as que deverão ser juntas ao processo, para valer como meio de prova -, já o objeto da investigação terá sido delimitado pelo Ministério Público, cabendo apenas ao Juiz de Instrução avaliar, do conjunto das mensagens apreendidas que lhe são apresentadas quais as que, em face do objecto da investigação, tal como delimitado pelo Ministério Público, relevam para a prova desse mesmo objeto.
NN.–Sempre que esteja em causa a potencial ingerência em direitos fundamentais de natureza particularmente sensível, o legislador impôs uma garantia acrescida da respectiva tutela, acometendo a um Juiz a competência para, antes de quem titula a ação penal, ajuizar sobre a relevância do elemento a apreender ou apreendido para a prova do objeto do processo.
00.–Ao dar por reproduzida a promoção do Ministério Público que a antecede e ao afirmar que "é ao M.P., enquanto titular da acção penal, que compete dirigir o inquérito e verificar que emails gravados nos suportes digitais devem ser juntos em papel aos autos e quando", a Decisão recorrida retira do artigo 179º, n.º 3, do CPP (in casu, aplicável ex vi artigo 17.º da Lei do Cibercrime) um sentido normativo que ofende a Lei Fundamental, os direitos fundamentais à tutela jurisdicional efectiva e à inviolabilidade da correspondência e, assim também, o direito ao juiz das liberdades.
PP.–É materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, 32.º, n.ºs 1, 4 e 8 e 34.º, n.ºs 1 e 4, todos da Constituição da República Portuguesa, a interpretação, concretizada e aplicada na Decisão recorrida, do artigo 179.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do artigo 17.º da Lei do Cibercrime, no sentido de competir ao Ministério Público determinar quais as mensagens de correio eletrónico gravadas nos suportes digitais apreendidos à ordem dos autos que devem ser juntas aos autos, para valerem como meio de prova - inconstitucionalidade que se deixa arguida para os efeitos do artigo 72.9, n.9 2, Lei de Organização do Tribunal Constitucional (Lei n.9 28/82, de 15 de novembro - LTC).
QQ.–Julgando integralmente procedente o presente Recurso, deverá ser revogado o Despacho recorrido e declarada a nulidade dos Despachos do Ministério Público de fls. 13701371 e 1379 ss., assim como do Despacho proferido a 14.08.2020, pelo qual foi ordenada a junção aos presentes autos, para serem utilizadas e valoradas enquanto meio de prova, das mensagens de correio electrónico apreendidas ao Recorrente JN_____ , assim como de quaisquer outros posteriores a este que igualmente determinem, nos termos do artigo 179.º, n.º 3, do CPP, ex vi do artigo 17.º da Lei do Cibercrime, a junção aos autos das demais mensagens de correio eletrónico apreendidas ao Recorrente, por violação das disposições conjugadas dos artigos 32.9, n.9 8, da Constituição da República Portuguesa, 126.9, n.9 3 e 179.9 do Código de Processo Penal e 17.9 da Lei do Cibercrime.
RR.–Consequentemente, deverão ser julgadas meio de prova de utilização e valoração proibida, todas as mensagens de correio electrónico de que o Recorrente é titular e que se encontram apreendidas à ordem dos presentes autos.”

Ao assim recorrido veio responder, como afirmado o Ministério Público, o qual após longo e prolixo arrazoado, pugna, sem delimitação por via de conclusões, pela improcedência do recorrido.

Os autos subiram a esta instância, foram ao Ministério Público o qual teve vista no processo e pugnou pela improcedência do recurso em consonância com o defendido pelo Ministério Público junto da 1ª instância.

Os autos foram a vistos e à conferência.

***

São as seguintes as questões a decidir:
a)-O determinar se existiu entrega voluntária de documentação digital, designadamente e-mails;
b)-A definição relevante do que seja correspondência electrónica e/ou correio electrónico para efeitos dos artº 17º e 16º da Lei do Cibercrime;
c)-O determinar qual o regime aplicável em concreto.
d)-Em função da resposta anterior, saber se os procedimentos levados a cabo se mostram correctos, designadamente o saber se o MP poderia ter procedido à apreensão do material digital em causa.
e)-Concluir pela licitude ou ilicitude da conduta … *

É relevante a seguinte factualidade:
1.–Por despacho de 24.05.2017 foram, entre outros, emitidos mandados de busca não domiciliária por parte do Ministério Público às instalações da E...- E... de P..., SA (E...) tendo como alvos o arguido AM______e o o aqui arguido e recorrente JN______.
2.–No despacho em causa fez-se constar expressamente que:

3.–Em razão de tal despacho vieram a ser emitidos e cumpridos mandados de busca onde consta expressamente, além do mais que para o caso não releva, que o Magistrado do Ministério
Público titular do inquérito:

4.–Na sequência de tal despacho, veio a PJ, em 02.06.2017, a dar cumprimento ao mandado tendo, além do mais, feito consignar o seguinte no mesmo(…)

5.Em 06.06.2017 foi lavrado nos autos o seguinte termo de recebimento

6.Na sequência do termo supra referido e da junção de documentação digital pelo mesmo operada foi proferido o seguinte despacho em 09.06.2017

7.–Ante tal remessa o Mmº JIC solicitou a presença de um técnico de informática e designou data, nos termos do artº 179º nº 3 do C.P.P. para conhecimento do correio electrónico.
8.–No dia 30.06.2017, o Mmº JIC presidiu a diligência onde fez constar, no que para o caso releva, o seguinte:
Foi ordenada a abertura do Correio electrónico pelo Mmo JIC e ordenado o desencapsulamento com recurso ´s palavras chave.
(...)

9.–No dia 10.10.2017, na sequência do anteriormente decidido, houve lugar a diligência com o seguinte teor:



11.–O despacho supra foi cumprido.
12.–Após vicissitude várias que para o caso não relevam, em 15.10.2018, o arguido JN_____(e o arguido AM_____) atravessam nos autos um requerimento que mereceu a seguinte resposta do Tribunal:

13.–Deste despacho recorreu o Ministério Público e a tal recurso respondeu o aqui arguido.

14.–Por despacho de 24.03.2020 (fls. 10599 – refª citius 4153396), o Mmº Juiz titular reparou o despacho referido em 11. e decidiu, além do mais:

15.–O acórdão referido no despacho mencionado em 13. é o acórdão desta Relação de 11.07.2019 proferido na sequência de recurso interposto pelo Ministério Público no apenso “F”(B) destes autos (e que ipso facto admite a junção a estes autos de e-mails apreendidos no âmbito de outros processos)
16.–Desta feita foi a vez do arguido JN_______ e outro virem recorrer do despacho mencionado em 13.

17.–Mais tarde, a abertura dos e-mails foi designada para 06.08.20 a pedido do MP;

18.–Contudo, por despacho de 14.07.2020, foi determinada a entrega dos e-mails para análise, impressão e junção aos autos;

19.–No dia 06 de Agosto procedeu-se a uma diligência com o seguinte teor:




(...)
20.–Nos dias 13 e 14.08.2020, foi realizada diligência a que alude o artigo 179.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (CPP), aplicável ex vi artigo 17.º da Lei do Cibercrime (tomada de conhecimento de conteúdo), com referência a mensagens de correio eletrónico tituladas pelo recorrente e pelo arguido AM______, cuja apreensão se realizou a 02 e 06.06.2017, na sequência de despacho ordenante proferido pelo Ministério Público.
21.–Previamente a essa diligência de 13 e 14.08.2020, a partir da totalidade do correio electrónico apreendido ao Recorrente e ao Arguido AM______, procedeu-se à "triagem com recurso a ferramentas específicas devidamente certificadas e em uso pela Polícia Judiciária e por todas as congéneres a nível internacional, no sentido da localização de ficheiros (independentemente do seu formato ou tipo) que reunissem os quesitos da investigação designadamente face à palavra- chave fornecida "AT”,
22.–Tendo sido "localizados 3277 ficheiros no disco externo selado pela Polícia Judiciária, selo n.3 000049102, melhor descrito a fls. 2868 e ss., que corresponde ao disco externo de marca My Passport "WD" melhor identificado no auto de abertura e verificação de ficheiros de 10.10.2017, constante de fls. 2868 e ss. dos autos cujo selo teve de ser rompido, passando a constar do interior de um saco prova Série B, com o n.5 072012; e, bem assim, no Saco Prova n.3 Série An.3 087658, com a inscrição "Correio Electrónico do arguido AM______ ", 30-06-2017”.
23.–A partir de um total de 3277 mensagens de correio eletrónico, pelo Mm.º Juiz a quo foi proferido Despacho, segundo o qual, "[p]or considerar relevantes para a descoberta da verdade os ficheiros já seleccionados e ora requeridos pelo detentor da acção penal, defere-se o doutamente promovido, pelo que determino a junção aos autos, para valer como meio de prova, dos 3277 ficheiros, nos termos do disposto no art.º 1 79º, n.º 3 do C.P.P.”.
24.–Em face dessa mesma Decisão, a 24.08.2020, foi pelo Recorrente peticionado ao Mm.º Juiz a quo, entre o mais, que fosse "declarada a nulidade dos Despachos do Ministério Público de fls. 1370-1371 e 1379 ss., assim como do Despacho proferido a 14.08.2020, pelo qual foi ordenada a junção aos presentes autos, para serem utilizadas e valoradas enquanto meio de prova, das mensagens de correio eletrónico apreendidas ao Requerente, assim como de quaisquer outros posteriores a este (e posteriores à apresentação e conhecimento do presente Requerimento) que igualmente determinem, nos termos do artigo 179.º, n.º 3, do CPP, ex vi do artigo 17.º da Lei do Cibercrime, a junção aos autos das demais mensagens de correio eletrónico apreendidas ao Requerente, por violação das disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, 126º, n.º 3 e 179.º do Código de Processo Penal e 17.º da Lei do Cibercrime",

25.–E que fossem "julgadas meio de prova de utilização e valoração proibida, todas as mensagens de correio eletrónico de que o Requerente é titular e que se encontram apreendidas à ordem dos presentes autos”.

26.–Em resposta, foi pelo Mm.º Juiz, em 22.09.2020, sustentado o seguinte:

"Requerimento de JN_______ de fls. 17360/17381 e resposta do M.P. de fls. 18.055/vº a 18.078.

“Entendo que o acto que pratiquei de selecção e junção aos autos, em suporte digital, da totalidade dos e-mails dos arguidos JN_____ como também de AM______, apresentados em resultado da pesquisa pelo nome "AT", corresponde aos emails referentes, directa ou indirectamente, ao arguidos JN_______, AM_______, AT e ao pai deste, com o mesmo nome, num segmento em investigação a contratação pela E..., num momento temporal em que ainda desempenhava as funções de secretário-geral da ANMP e membro do Conselho Tarifário da ER........, além dos referentes às decisões tomadas pelo Dr.AT (filho) enquanto Secretário de Estado da Energia.

Concordamos com a fundamentação ora exposta pelo detentor da acção penal.

Sem prejuízo das funções de garante da legalidade do JIC é ao Mº.Pº., enquanto titular da acção penal, que compete dirigir o inquérito e verificar que emails gravados nos suportes digitais devem ser juntos em papel aos autos e quando.”

Dou, pois, por reproduzida a promoção ora sob apreciação e indefiro o requerido”.

26.–Da promoção dada por reproduzido consta:

I.– OS FACTOS

1.-Por despacho proferido a 24-05-2007 (fls. 1379-1383), o Ministério Público ordenou, na sequência do relatório intercalar da PJ (fls. 1360 a 1363 e 1375-1376 e despachos do M° P° de fls. 1356-1357, e 1371- 1372), a realização de buscas não domiciliárias à E... sendo o local a sede social sita na Avª..., n° ..., em L..., e os alvos__________.

2.-Esclareceu-se então que “As buscas deverão incidir sobre toda a documentação encontrada nos respectivos postos de trabalho e arquivos utilizados pelos visados, ou pela instituição respectiva, incluindo toda a que se encontre em formato digital, ainda que se trate de documentos originados ou recebidos via correio eletrónico no período em causa nos autos” (cf. despacho de fls. 1380 e mandado de busca de fls. 1392 a 1395 que foi passado a 30.05.2017).

3.-Esta busca (na Avª..........) veio a ser realizada no dia 02.06.2017 (cf. certidão a fls. 1400) e foi, aliás, acompanhada pelo Exmo. Dr.JM..., um dos II. Mandatários dos arguidos JN_______ e AM_______ (cf. fls. 1401 a 1405).

4.-No gabinete do arguido JN______ acedeu-se ao respetivo computador através das palavas-passe que o MP considerou atinentes ao objecto da investigação no seu despacho acima referido (saco de prova da PJ, com a referência SÉRIE A 087232 - DOC 22).

5.-No gabinete do arguido AM______ “nada de relevante foi encontrado” (fls. 1404).

6.-Na Secretaria Geral da E... “foram efectuadas pesquisas informáticas pelas palavras-chaves constantes do despacho que ordena a presente busca, tendo sido encontrados ficheiros do tipo documentos datado de julho de 2006 a 2014, as quais foram gravados em suporte óptico (DVD- R), com o título «Documentos Servidor E...» o qual foi acondicionado em saco de prova Série A, n.0 089103” (fls. 1405)

7.-A 30.05.2017 (fls. 1409) foi ainda passada busca na E.. - DSI Centro de Segurança Operacional, localizada na Rua ... ... ..., n° ..., ... (... de ...), em L..., sendo também visados ________.

8.-Por se ter apurado na busca que os documentos/correio eletrónico antigo que se visava examinar não se encontrava armazenado na sede da E.., o MP veio a ter de se deslocar para o local onde, segundo a informação aí recolhida, a E... armazenava essa documentação digital em “arquivo morto”, necessitando de um procedimento faseado e moroso na sua obtenção: precisamente a Rua ... ... ... n° ..., ..., em L... (cf. mandado de busca não domiciliária e apreensão de fls. 1406 a 1409).

9.-Assim, cerca das 16:30h do dia 2 de junho de 2017 o MP, acompanhado pela PJ, dirigiu-se a esse local (cf. certidão de fls. 1406) e foi no DSI da E... que o Diretor Adjunto para a Segurança da Informação da E..., PM______, acompanhado do II. Mandatário da E... - JS..., após tomar conhecimento do que se visava encontrar (as caixas de correio de AM_____, JN_____, PR______ e JM______ para o período compreendido entre 2004 e 2014) se apurou que, quanto a AM______e JN______, “Atendendo ao volume dos dados pesquisados atingir previsivelmente 139 GB, à consequente morosidade na sua extração e gravação e ao adiantado da hora, foi concedido um prazo de cinco dias úteis para a buscada proceder à entrega desses elementos em suporte digital (em disco rígido)“ (cf. fls. 1410-1411).

10.–Deste modo, foi só quatro dias após as buscas que, no dia 6 de junho de 2017, a PJ recebeu das mãos do II. Mandatário da E..., , um disco rígido com o resultado das pesquisas informáticas efectuadas pela própria E... nos moldes em que muito bem entendeu, e entregue voluntariamente por um advogado da E...), tudo como resulta do termo de recebimento de fls. 1472, onde se pode, ainda, ler que o disco rígido está selado com fita- cola na qual foi aposta a assinatura do diretor Adjunto para a Segurança da Informação da E..., e contém o seguinte:

“1.- Registo do resultado da pesquisa efectuada nas caixas de correio electrónico de

JN______ e AM______, no período compreendido entre 2004 e 2014, com base na listagem de palavras-chave constante dos autos;
2.- Listagem do resultado da pesquisa efectuada no sistema de gestão documental da E..., com base nas já referidas palavras-chave, tendo por referência o período compreendido entre 2004 e 2006”

11.– No dia 17 de junho de 2017, a accionista maioritária (CTG) da E... e a própria E... expressaram as seguintes declarações públicas (não desmentidas até à data):

‘‘Sem mencionar o nome dos arguidos, a CTG apela a que estes disponibilizem ao DCIAP acesso "ilimitado à informação" de forma a que a investigação decorra sobre os "princípios da abertura, transparência e objectividade", (destaques nossos) Cf.: https://www.dn.pt/portuqal/...-...-...-...-...-...-...-e-...-...-...-8.......html

“A E... não vai opor-se à apreensão do correio electrónico levado a cabo durante as buscas do inquérito-crime sobre as chamadas ‘rendas energéticas. Fonte oficial da energética portuguesa garantiu ao S...... que «pese embora consciente do direito de o fazer, optou-se por não se proceder à arguição de qualquer nulidade relativamente às buscas, para não permitir uma qualquer leitura enviesada segundo a qual, com a referida arguição, se procurava evitar que o Ministério Público tivesse acesso a emails comprometedores para a E...».

Cf.: https://....sapo.pt/artiqo/.../...-...-...-...-...-...-

A empresa explica ainda que, por consulta ao processo ficou a saber que foi declarada a nulidade da apreensão do correio eletrónico a JC______ e PF______. A empresa contestou a apreensão da correspondência electrónica, afirmando que o Ministério Público (MP) não tinha competência para a ordenar, devendo tal ordem ter partido de um juiz, o que não aconteceu. Face a estes argumentos, o juiz de Instrução Criminal ordenou a nulidade da apreensão da referida correspondência electrónica devido à Lei do Cibercrime.

O mesmo aconteceu à correspondência apreendida a RC_____- ex- presidente da R... e atual chairman do N...B... - que com o mesmo fundamento, também requereu a nulidade desta apreensão. Cf.:
https://mvw.... /..../.../... /.../...-...-...-...-a-...-...-...-...- ...-...

-...-8....... html

Com esta decisão, a empresa liderada por AM______, garante que «quer deixar bem claro que não partilha desta interpretação, nem acha que foi tal razão que levou os restantes arguidos a pedir a anulação da apreensão da correspondência, a que aliás tinham direito, como veio a ser reconhecido pelo Juiz de Instrução criminal», garante fonte oficial ao S.......

A eléctrica portuguesa lembra ainda que «enquanto sociedade cotada em bolsa, a E... tem especiais responsabilidades para com os acionistas e para com o mercado e por isso optou por esta solução. O que a E... pretende é que o caso seja cabalmente esclarecido e com celeridade, porquanto o processo tem reflexos negativos na imagem e no valor da empresa». ” (destaques nossos).

12.–Por despacho de 9 de junho de 2017 (fls. 1559 - vol. 5), o MP remeteu ao Sr. JIC do TCIC todos os dados que foram extraídos em suporte digital para que procedesse - em primeira mão - ao seu exame e decisão sobre a sua eventual junção aos autos nos termos do artigo 17° da Lei n° 109/2009 e art° 179° n° 3 e 188°n° 1 e 4 do CPP, se existissem dados com relevo para a matéria em investigação no inquérito.

13.–Por despacho de 15 de junho de 2017 (fls. 1753/54, vol. 5), e “com vista a que o JIC possa aceder ao conteúdo do correio electrónico e escolher entre as mensagens as que são relevantes para a prova", o Sr. JIC nomeou para o coadjuvar um técnico da UTI da PJ e designou o dia 26 de junho de 2017, pelas 14h00, para “a tomada de conhecimento do correio electrónico (..) quanto ao arguido AM______”.

14.–Nesse dia e hora (fls. 1931 a 1934 - vol. 6), o Sr.JIC determinou pesquisa aos e-mails com base nas palavras-chave de fls. 1370 e, de seguida e face “à grande quantidade de mensagens para visualizar na caixa de correio electrónico , pelo Mmo. JIC foi determinada a triagem à referida caixa de correio electrónico através das seguintes palavras-chave que se mencionam: equilíbrio contratual, m... p..., columbia, decreto-lei, directiva, cessação antecipada e sistema eléctrico nacional.” (destaque nosso) (o que a Mma. JIC ignorou no despacho ora em crise)

15.–No dia 26/06/2017, na presença dos II. Mandatários do arguido AM______ e sem o Ministério Público (por entender, o MP, que tal diligência não deve ser sujeita a contraditório imediato, apenas de eventual recurso posterior), o anterior Mmo. JIC determinou a junção de DVD com alguns (poucos) e-mails do arguido AM______ (fls. 1931 a 1933 - vol. 6). (realidade que a Mma. JIC ignorou no despacho doutamente reparado)
16.–No dia 13/09/2017, o Mmo. JIC proferiu o seguinte despacho (fls. 2589 - vol. 9): Fls. 2502:
Atenta a dimensão do requerimento solicite suporte informático do mesmo.

Para tomada de conhecimento do correio electrónico relativo ao arguido JN_______ (fls. 2582), designo o dia 10-10 pelas 14.00h.

Solicite a comparência do sr. Técnico informático para me coadjuvar na tarefa em causa.

Notifique o arguido para, querendo, estar presente.

Comunique ao M° P° para igualmente, querendo, estar presente.

Lisboa 13-09-2017 ----JIC

17.–No dia 10/10/2017, na presença do II. Mandatário do arguido JN______ e sem o Ministério Público (por entender, o MP, que a diligência não deve ser sujeita a contraditório imediato, apenas de eventual posterior), o anterior Mmo. JIC determinou a junção aos autos de DVD com 250 ficheiros de e-mails do arguido JN_______ (fls. 2866 a 2869 - vol. 9). (realidade que a Mma. JIC ignorou no despacho doutamente reparado)

18.–Nesse auto, ficou ainda a constar o seguinte (fls. 2868 - vol. 9):

Consigna-se que, relativamente ao endereço electrónico .../.... ...-1..@....pt, não foi possível aceder ao conteúdo do ficheiro de email, datado de 12-02-2014, com o título "Telefonema Dr. MP_____".

19.–O Ministério Público não determinou, até à presente data, a junção em papel de todos os e-mails do arguido JN______ gravados no aludido DVD.

20.–Nesse suporte digital também se encontram, em resultado da selecção efectuada pelo Mmo. JIC ......, alguns e-mails de notícias.

21.–No dia 09/11/2017, o arguido AM_____ em resposta a recurso do Ministério Público declarou que tinha entregue voluntariamente os seus e-mails (fls. 3023 - vol. 10):

92, Ora, se assim é quando a entrega é, digamos, coerciva, não pode ser pelo simples facto de, no presente caso, o Arguido AM______ ter entregado voluntariamente um certo arsenal de mensagens de correio eletrónico que a solução se deve alterar - isto sob pena de se tratar mais desfavoravelmente um arguido que colabora com a justiça, do que aquele que se mantém passivo em face dela (!).

22Os arguidos AM______ e JN_______ vieram, no dia 13/11/2017 (fls. 3042 - vol. 10) e precisamente por aceitarem a validade daquela diligência, juntar aos autos aquele e-mail (fls. 3044 a 3046 - vol. 10) a cujo conteúdo não foi possível aceder pelo Mmo. JIC .......

23.–A fls. 3231 (n.° 3) - vol. 10, no dia 15/12/2017, os arguidos AM______ e JN______ assumiram ter sido os próprios a ordenar a entrega dos seus e-mails: (destaque nosso)
“ (…) foram os mesmos quem, desde cedo, prestou aberta colaboração com a presente investigação, nomeadamente através da entrega voluntária do conteúdo das suas caixas de correio eletrónico. ’’

24.–No dia 23/03/2018, o Ministério Público promoveu o seguinte (fls. 3957 - vol. 13):

Pelo exposto, por se afigurar bastante provável que o reitor da SIPA tenha usado um e-mai! pessoal para tais conversações/negociações4, e de modo a conhecer o mais possivei o circunstancialismo da troca da aludida, ou de outra, correspondência entre o arguido AM______ e o reitor da SIPA, v.g. o relativo à omissão na segunda missiva do nome do arguido MP_____, promove-se que o Mmo. JIC determine:

(i)-a realização de pesquisa nos e-mails juntos aos autos pela E... através do recurso à palavrachave C............. e,

(ii)-a junção aos autos daqueles que se mostrarem relevantes para a prova, seguramente a maioria ou mesmo a totalidade considerando o novo critério de pesquisa ora indicado.

25.–No dia 13/04/2018, na presença da II. Mandatária do arguido AM______e sem o Ministério Público (por entender, o MP, que a diligência não deve ser sujeita a contraditório imediato, apenas de eventual recurso posterior), o anterior Mmo. JIC determinou, pela segunda vez, a junção aos autos de DVD com mais e-mails do arguido AM______ (fls. 4178 a 4181- vol. 13): (mais uma realidade que a Mma. JIC ignorou novamente no despacho doutamente reparado)

Em seguida, pelo Mm.º JIC foi proferido o seguinte:

DESPACHO

Proceda-se de imediato à gravação de um novo suporte autónomo, devendo conter as duas mensagens e respectivos anexos, relacionadas com o memorando de entendimento entre a E... e a Universidade de Columbia, resultantes da presente diligência, devendo ser inscrito no suporte o NUIPC, a identificação "AM______", bem como a data da diligência, ordenando- se, desde já, a sua junção aos autos por estarem relacionados com o objecto da investigação.— Deposite em cofre deste TCIC o suporte original B!u-ray, contido no saco prova n2 A087648, conforme decidido anteriormente.--

Oportunamente, remeta ao DCIAP o suporte magnético autónomo que contêm unicamente os ficheiros cujos conteúdos poderão vir a revelar-se imprescindíveis para a prova a produzir nos autos.- Notifique.-

26.–Os e-mails contidos nesse segundo DVD vieram a ser impressos e juntos pelo Ministério Público aos autos a 19/04/2018 (fls. 4187 a 4189 e 4191 a 4225 - vol. 13).

27.–No dia 08/05/2018, o Tribunal da Relação de Lisboa deu provimento a recurso do Ministério Público, determinado a análise de todos os e-mails entregues pela E... e pelo arguido AM_______, referindo no seu douto acórdão expressamente, entre o mais, que “o correio electrónico constante do endereço foi “de resto, voluntariamente fornecido” (sublinhado nosso):

Encontra-se em investigação nos presentes autos a eventual prática de crimes de corrupção passiva (art. 373°, C. Pen.); corrupção activa com agravação (arts. 374° e 374°-A, C. Pen.) e participação económica em negócio (art. 377°, C. Pen.). Assim, no âmbito do inquérito, o MP determinou a realização de buscas não domiciliárias, designadamente, na sede da E..., com apreensão de correspondência electrónica, entre outros, do arguido AM______. Tal veio a ser efectuado, tendo sido apreendido o correio eiectrónico constante do endereço , de resto, voluntariamente fornecido. De entre a correspondência apreendida, o MP, determinou que fossem pesquisados os e-mails que correspondessem às palavras-chave enunciadas a fls. 1370.

28.–Chegados a este ponto temos objectivamente de concluir que, quer os arguidos AM______ e JN______, quer a E..., quer o Tribunal da Relação de Lisboa e mesmo os anteriores JIC e o próprio MP todos sempre agiram no pressuposto expresso (e não numa mera assunção tácita) de que foi vontade dos arguidos e da E... entregarem os e-mails colaborando com a Justiça, declarando e publicitando (nomeadamente na Comunicação Social)

29.–Resulta, deste modo, que a aceitação pela Mma JIC do facto contrário ao facto acima referido - i.e., que foi vontade dos arguidos e da E.. entregarem os e-mails colaborando com a Justiça -, e com esse fundamento dando provimento à pretensão dos arguidos em função do novo entendimento dos mesmos arguidos não só consubstanciou uma verdadeira decisão surpresa para o MP, pois completamente inesperada e incompreensível, como foi ao arrepio de tudo o que perpassa do processado nos presentes autos.

30.–A mudança de discurso por parte da defesa mais não revela do que um venire contra factum proprium, ou nemo potest venire contra factum proprium, brocardo latino que proclama o princípio geral da inaceitabilidade de se vir contra seus próprios atos, no sentido de que ninguém pode comportar-se contra seus próprios atos anteriores.

31.–Este princípio - que se prende com o valor da boa-fé objectiva - já foi aplicado diversas vezes no STJ e pelas Relações no âmbito processual penal visando impedir-se a prática de comportamentos contraditórios de uma parte (ou mesmo do MP).

32.–Assim, havendo real contradição entre dois comportamentos, significando o segundo quebra injustificada da confiança gerada pela prática do primeiro, em prejuízo de uma de contraparte ou do MP/investigação, não é admissível dar-se eficácia à última conduta até por imposição dos princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança consagrados nos artigos 2o e 13° da Constituição.

33.–Do ponto de vista da eficiência dos direitos de defesa e das atendíveis expectativas processuais, seria inaceitável um sistema processual que tolerasse que, formulado um requerimento ou tomada uma posição pública processualmente relevante - com a alegação de um facto - posteriormente, sem justificação plausível, viesse essa mesma parte a tomar a posição diametralmente oposta, tal como ocorreu in casu.

34.–A alteração de uma posição por parte da defesa é algo de normal. Contudo, essa alteração deve ter coerência interna relativamente a factos concretos por si praticado e manter a boa fé processual.

35.–Em suma, anormal é, no interior de uma mesma relação jurídico- processual, dizer-se uma coisa e o seu contrário. Como ensina Gomes Canotilho (Direito Constitucional. 6a edição. Almedina, 1993), os princípios da segurança jurídica e da confiança do cidadão são considerados como os principais elementos constitutivos do Estado de Direito desde seu surgimento.

36.–A tutela do princípio da segurança jurídica decorrente da previsibilidade de atuação dos sujeitos processuais, como do julgador ou do MP, é um vaior legalmente tutelado sendo as decisões surpresa objecto de desvalor jurídico ao nível processual penal (como ao nível do direito civil ou administrativo).

37.–Tal situação representa uma manifesta violação grosseira do princípio do processo equitativo ou fair process - o denominado due process of law -, direito a um processo justo e equitativo, também denominado da lealdade processual, vertidos nos artigos 2.° e 20.°, n.° 4, da Constituição da República Portuguesa, bem como no artigo 6.°, n.° 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

38.–O Supremo Tribunal de Justiça tem focado repetidamente a vigência e importância do principio da lealdade processual no domínio do processo penal, nomeadamente nas seguintes decisões:

Proc. n º 77/00.9GAMUR.S1 – 3ª Secção

“X-Neste domínio são de realçar os deveres de vigilância e de boa fé processual: o primeiro obriga os sujeitos processuais a «reagir contra nulidades ou irregularidades que considerem cometidas e entendam relevantes, na perspectiva de defesa, não podendo naturalmente escudar-se na sua própria negligência no acompanhamento das diligências ou audiências para intempestivamente vir reclamar o cumprimento da lei relativamente a actos em que estiveram presentes e de que, agindo com a prudência normal, não puderam deixar de se aperceber»; o segundo impede que os sujeitos processuais possam «aproveitar-se de alguma omissão ou irregularidade porventura cometida ao longo dos actos processuais em que tiveram intervenção, guardando-a como um “trunfo”, para, em fase ulterior do processo, se e quando tal lhes pareça conveniente, a suscitarem e obterem a destruição do processado» - cf. Ac. n.° 429/95 do TC. ..

XI-Assim, é inteiramente adequado o entendimento de que aquele que admite a possibilidade de, no futuro, vir a impugnar a matéria de facto, colabore e, evidenciando uma postura de lealdade processual, verifique, no final da respectiva audiência ou no prazo de arguição da irregularidade, se existiu alguma deficiência.

XII-E não se argumente com razões gongóricas de impossibilidade burocrática, uma vez que, realizada a respectiva diligência, impende sobre o tribunal que efectuou o registo a obrigação de facultar cópia no prazo máximo de oito dias após a realização daquele - art. 7.° do aludido DL.

XIII-Por último, seria ofensivo do princípio da proporcionalidade o facto de, a pretexto de uma fracção milimétrica da gravação, cuja relevância nem sequer é averiguada, se anular um julgamento realizado com observância de todas as formalidades legais e com a possibilidade do mais amplo exercício dos direitos de defesa e do contraditório.

Proc. n.º 1077/00.4JFLSB-C.S1 - 3 a Secção:

“(...) III - Na verdade, consubstanciaria uma afronta ao princípio da lealdade processual admitir que o requerente da revisão apresentasse os factos como novos não obstante ter inteiro conhecimento no momento do julgamento da sua existência. Tal entendimento, que não se sufraga, faria depender a revisão de sentença de um juízo de oportunidade do requerente formulado à revelia de princípios fundamentais como o da verdade material ou da lealdade.

Proc. n.° 228/07.2GAACB-A.S1 - 5.a Secção

“/// - Há um elemento sistemático de interpretação que não pode ser ignorado a este propósito, e que resulta da redacção do art. 453.°, n.° 2, do CPP. Por aqui se vê que o legislador não terá querido abrir a porta, com o recurso de revisão, a meras estratégias de defesa, ou dar cobertura a inépcias ou desleixos dos sujeitos processuais. O que teria por consequência a transformação do recurso de revisão, que é um recurso extraordinário, num expediente com risco de banalização, assim se podendo prejudicar o interesse na estabilidade do caso julgado, para além do aceitável, ou facilitar faltas à lealdade processual

39.–Veja-se, ainda, toda a jurisprudência citada pelo Conselheiro Santos Cabral no Acórdão do STJ datado de 16-12-2010, Proc. n° 287/99.OTABJA - 3a Secção, acessível no site da DGSI para o qual remetemos em bloco por razões de economia processual, cf.:
http://www.dgsi.pt/jsti.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0a5f4cb6a6d8ec9d802578230035bc9d?Qpe nDocument

40.–No dia 15/11/2018, a Mma. JIC determinou a junção de mais de quatro mil e quinhentos e-mails do arguido AM______(seleccionando um por um de um universo maior), em cumprimento do citado douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08/05/2018, relatado pelo Exmo.Desembargador e também subscrito pela Exma.Desembargadora , que a Mma. JIC ,salvo o devido respeito, que é muito, também parece ter olvidado.

41.No dia 28/11/2018, o arguido AM______apresentou o requerimento de fls. 7060 a 7084 - vol. 22 (cujo teor se dá aqui reproduzido por economia processual).

42.–No dia 20/12/2018 (fls. 7369/79 - vol. 23), o Ministério Público respondeu a esse requerimento nos seguintes termos:

“Notificado no dia 12/12/2018, na sequência de douto despacho da Mma. JIC de 11/12/2018 (fls. 7355), para responder ao requerimento do arguido AM______ de fls. 7060 a 7084 no prazo de 10 dias, o Ministério Público vem, desde já, clarificar o seguinte:

Como decorre do despacho proferido a 24-05-2007 (fls. 1379-1383), o Ministério Público ordenou, na sequência do relatório intercalar da PJ, fls. 1360 a 1363 e 1375-1376 e despachos do M° P° de fls. 1356-1357, e 1371-1372, a realização de buscas não domiciliárias à E... sendo o local a sede social sita na Avª....., n° ..., em L..., e os alvos.

Esclareceu-se, então, que “As buscas deverão incidir sobre toda a documentação encontrada nos respetivos postos de trabalho e arquivos utilizados pelos visados, ou pela instituição respetiva, incluindo toda a que se encontre em formato digital, ainda que se trate de documentos originados ou recebidos via correio eletrónico no período em causa nos autos” (cf. Despacho de fls. 1380 e mandado de busca de fls. 1392 a 1395 que foi passado a 30.05.2017).

Esta busca (na Avª. .....) veio a ser realizada no dia 02.06.2017 (cf. certidão a fls. 1400) e foi, aliás, acompanhada pelo dr..... . Mandatários dos arguidos JN_______ e AM______ (cf. fls. 1401 a 1405), o qual, por isso, bem sabe que:

-no gabinete do arguido JN______acedeu-se ao respectivo computador através das palavas-passe que o MP considerou atinentes ao objeto da investigação no seu despacho acima referido (saco de prova da PJ, com a referência SÉRIE A 087232 - DOC 22);

-no gabinete do arguido AM_____“nada de relevante foi encontrado" (fls. 1404); e

-na Secretaria Geral da E... “foram efetuadas pesquisas informáticas pelas palavras-chaves constantes do despacho que ordena a presente busca, tendo sido encontrados ficheiros do tipo documentos datado de julho de 2006 a 2014, as quais foram gravados em suporte ótico (DVD-R), com o título «Documentos Servidor E...» o qual foi acondicionado em saco de prova Série A, n. ° 089103” (fls. 1405)

A 30.05.2017 (fls. 1409) fora, ainda, passada busca para a E... - DSI Centro de Segurança Operacional, localizada na Rua ... ... ... n° ..., ... (... ...), em L..., sendo também visados.

Por se ter apurado na busca que os documentos/correio eletrónico antigo que se visava examinar não se encontrava armazenado na sede da E..., o MP veio a ter de se deslocar para o local onde, segundo a informação aí recolhida, a E... armazenava essa documentação digital em “arquivo morto”, necessitando de um procedimento faseado e moroso na sua obtenção: precisamente a Rua ... ... ..., n°..., ..., em L... (cf. mandado de busca não domiciliária e apreensão de fls. 1406 a 1409).

Assim, cerca das 16:30h do dia 2 de junho de 2017 o MP, acompanhado pela PJ, dirigiu-se a esse local (cf. certidão de fls. 1406) e foi no DSI da E... que o Diretor Adjunto para a Segurança da Informação da E..., PM______, acompanhado do II. Mandatário da E... JS_____, após tomar conhecimento do que se visava encontrar (as caixas de correio de AM______, JN_____, PR ______ e JM ______ para o período compreendido entre 2004 e 2014 se apurou que:

a)- relativamente a PR_____ e JM ________ nada existia; e,

b)- quanto a AM_______, JN_______ “Atendendo ao volume dos dados pesquisados atingir previsivelmente 139 GB, à consequente morosidade na sua extração e gravação e ao adiantado da hora, foi concedido um prazo de cinco dias úteis para a buscada proceder à entrega desses elementos em suporte digital (em disco rígido)” (cf. fls. 1410-1411).

Deste modo, foi só quatro dias após as buscas que, no dia 6 de junho de 2017, a PJ recebeu das mãos do II. Mandatário da E... um disco rígido com o resultado das pesquisas informáticas efetuadas pela própria E... nos moldes em que muito bem entendeu, e entregue voluntariamente por um advogado da referida empresa, tudo como resulta do termo de recebimento de fls. 1472, onde se pode, ainda, ler que o disco rígido está selado com fita-cola na qual foi aposta a assinatura do diretor Adjunto para a Segurança da Informação da E..., PM______ e contém o seguinte:

1.- Registo do resultado da pesquisa efectuada nas caixas de correio electrónico de JN _______ e AM______, no período compreendido entre 2004 e 2014, com base na listagem de palavras-chave constante dos autos;
2.- Listagem do resultado da pesquisa efectuada no sistema de gestão documental da E..., com base nas já referidas palavras-chave, tendo por referência o período compreendido entre 2004 e 2006;”

Na sequência das buscas a E... requereu, a fls. 1405 que a acta n° 2/2010 fosse acondicionada em envelope fechado com fundamento na mesma poder conter matéria de teor confidencial e não relevante para os autos, o que foi deferido pelo MP, e onde permanece até ao presente momento no cofre do DCIAP.

Há já cerca de ano e meio, no dia 26 de junho de 2017, na presença dos II. Mandatário do arguido AM______ e sem o Ministério Público (por entender que tal diligência não deve ser sujeita a contraditório), o anterior Mmo. JIC determinou a junção de DVD com alguns (poucos) e-mails do arguido AM______ (fls. 1931 a 1933 - vol. 6).

Há já cerca de um ano e dois meses, no dia 10 de outubro de 2017, na presença do II. Mandatário do arguido JN_______ e sem o Ministério Público (por entender, o MP, que a diligência não deve ser sujeita a contraditório), o anterior Mmo. JIC determinou a junção aos autos de DVD com 250 ficheiros de e-mails do arguido JN_______ (fls. 2866 a 2869 - vol. 9).

Há já cerca de oito meses, no dia 13 de Abril de 2018, na presença da II. Mandatária do arguido AM______ e sem o Ministério Público (por entender, o MP, que a diligência não deve ser sujeita a contraditório), o anterior Mmo. JIC determinou a junção aos autos de DVD com mais e-mails do arguido AM______ (fls. 4178 a 4181- vol. 13), os quais vieram a ser impressos e juntos pelo Ministério Público aos autos, a 19 de abril de 2018 (fls. 4187 a 4189 e 4191 a 4225 - vol. 13).

No dia 15 de novembro de 2018, a Mma. JIC determinou a junção de mais alguns milhares de e-mails do arguido AM______, em cumprimento de douta decisão do TRL.

Ou seja, só decorrido cerca de ano e meio da junção inicial de e-mails seus pelo anterior Mmo. JIC (e cerca de um ano após o Acórdão que anulou as apreensões de e-mails na BCG, aliás aqui inaplicável, tal como o relativo às apreensões de e-mails na R..., proferido em março de 2018) é que o arguido AM______ disse alguma coisa contra tal, algo que até esta data o arguido JN______ não fez.

E porquê só agora? Terá a ver com a relevância do teor dos novos e- mails para a descoberta da verdade? Por causa da mudança de JIC? E qual a diferença (com a excepção da questão da dimensão) entre a seleção de e-mails do anterior Mmo. JIC e aquela que a Mma. JIC recente e doutamente levou a cabo?
Nenhuma, evidentemente! Todos assumem uma dimensão de relação com o objeto da investigação.

O anterior Mmo. JIC também ordenou a junção de e-mails que, após análise do MP e pelo menos até à data, não foram impressos e juntos aos autos pelo MP mas daí nada de lesivo (sem relação com os factos em investigação) para a vida comercial da E... ou para a vida pessoal do arguido AM______ decorreu, precisamente porque não foram impressos, permanecendo inacessíveis a terceiros, os quais assim continuarão, tal como todos aqueles que, selecionados pela Mma. JIC, o MP entenda não impnmir e juntar aos autos, por julgar não serem relevantes para efeitos de prova indiciária dos factos em investigação.

A propósito e pela sua relevância e profundidade, cumpre aqui dar conta do que recentemente RUI CARDOSO, docente do CEJ, publicou num artigo da Revista do SMMP n.° 153, Janeiro a Março de 2018 (fls. 209 a 211, destaques nossos):

“A interpretação conjugada do artigo 17.° da LCC e do artigo 179° do CPP no sentido de aí fundar uma norma com o sentido de que é o juiz de instrução que, no inquérito, em primeiro lugar toma conhecimento das mensagens de correio electrónico ou semelhantes e que é ele que, oficiosamente, procede à selecção daquelas que são de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, para além de não se traduzir em qualquer real garantia, viola a estrutura acusatória do processo, pois essa é matéria essencial à direcção do inquérito e à definição do seu objecto, assim comprometendo a posição de imparcial juiz das liberdades.

O juiz de instrução não pode ter qualquer “influência” ou “manipulação” sobre a definição do objecto do inquérito; deve ser alheio à definição da estratégia de investigação do Ministério Público e OPC’s, devendo actuar apenas no campo da admissibilidade legal das instrução a ordenar em quais dessas casas se fariam buscas e quais dessas pessoas seriam inquiridas como testemunhas, a realizar tais diligências e a apresentar depois ao Ministério Público os resultados que considerasse relevantes para a prova.

Tal interpretação é um regresso ao sistema que vigorou para as escutas telefónicas na versão original do CPP - que não permitia aos OPC’s e ao Ministério Público tomarem conhecimento do seu conteúdo antes do juiz de instrução que, após críticas, veio a ser modificado, primeiro na reforma de 1998 e depois na de 2007.

Por tudo o que fica exposto, nessa interpretação, o artigo 17.° da LCC conteria uma norma desconforme ao n.° 5 do artigo 32.° da CRP. Ora, nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados - artigo 204° da Lei Fundamental.

Em consequência, deve proceder-se a uma interpretação conforme à Constituição, que é aquela que antes apresentámos. ”

Cumpre, ainda, sublinhar a diferença na obtenção de e-mails da E... com a dos da BCG (20/12/2017) e R... (07/03/2018).

Ao passo que os e-mails da BCG e da R... foram logo recolhidos e trazidos no dia da busca pela Polícia Judiciária (fls. 1451/2 e 1466 e - vol. 5), nem um e-mail (em suporte digital) sequer para amostra se trouxe da E... (fls. 1401 a 1405 e 1410/11- vol. 5).

Como se disse, foi a própria E... (fls. 1472 - vol. 5), naturalmente apenas com a autorização do arguido AM______ (presidente do intervenções requeridas[53], sendo por isso sua obrigação, “uma vez verificados os pressupostos formais de procedência, deferir o requerido pelo Ministério Público”[54], “não podendo, em caso algum, examinar a utilidade da medida requerida”[55]. “A competência do juiz de instrução durante a fase processual presidida pelo Ministério Público, sempre que estejam em causa actos que interferem com direitos fundamentais e outras matérias que a lei reserve ao juiz, obedece a um quadro de intervenção tipificada e provocada, pois a magistratura judicial por natureza não actua ex offício em processos de que não é titular”, devendo acentuar-se que este princípio da inoficiosidade “não deriva de um preconceito histórico, mas de um modelo garantista em que se condiciona a intervenção do único órgão com poderes em áreas fundamentais de direitos liberdades e garantias à intervenção prévia de uma outra entidade. ”[56].

A interpretação que criticamos coloca no juiz de instrução a competência para verdadeiramente investigar os factos noticiados e impor ao Ministério Público a utilização de concretos meios de prova: analisar cada uma das comunicações, conjugá-las entre si, relacioná-las com os demais meios de prova existentes, aferir da sua relevância para o que demais se planeia fazer, tudo elevado a uma escala que, em processos complexos, cada vez mais frequentes, não será exequível sem meios técnico-informáticos adequados.

Exigir que seja o juiz a oficiosamente seleccionar as mensagens relevantes é tão fundamentado como seria exigir que o Ministério Público apresentasse ao juiz de instrução uma lista de casas onde, em abstracto, pudessem existir objectos relacionados com um crime ou que pudessem servir de prova, ou uma lista de pessoas que, em abstracto, pudessem ter conhecimento dos factos, e ser o juiz de respetivo Conselho de Administração), que decidiu entregar um disco com e-mails e documentos, algo que naturalmente podia perfeitamente ter- se abstido de fazer. Mas fizeram-no e assumiram-no como uma demonstração de colaboração com a investigação - aliás externa e pública de uma aparente colaboração (certamente sobretudo por questões reputacionais) -, querendo ora dar o dito por não dito (venire contra factum proprium) muito provavelmente por vislumbrarem, e quererem evitar, a junção de prova essencial à descoberta da verdade.

A fls. 3231 (n.° 3) - vol. 10, no dia 15 de dezembro de 2017 (há cerca de um ano) os arguidos AM______ e JN_______ assumem essa mesma vontade de colaborar e entrega dos emails: (destaque nosso)

“(...) foram os mesmos quem, desde cedo, prestou aberta colaboração com a presente investigação, nomeadamente através da entrega voluntária do conteúdo das suas caixas de correio eletrónico.”

Atente-se, ainda, nas declarações feitas em nome da acionista maioritária (CTG) da E... e da própria E... citadas por jornais e não desmentidas até à data:

“Sem mencionar o nome dos arguidos, a CTG apela a que estes disponibilizem ao DCIAP acesso "ilimitado à informação" de forma a que a investigação decorra sobre os "princípios da abertura, transparência e objetividade". (destaques nossos) https://....sapo.pt/artiqo/.../...-...-...-...-...-...-

“A E... não vai opor-se à apreensão do correio eletrónico levado a cabo durante as buscas do inquérito-crime sobre as chamadas ‘rendas energéticas’. Fonte oficial da energética portuguesa garantiu ao S... que «pese embora consciente do direito de o fazer, optou-se por não se proceder à arguição de qualquer nulidade relativamente às buscas, para não permitir uma qualquer leitura enviesada segundo a qual, com a referida arguição, se procurava evitar que o Ministério Público tivesse acesso a emails comprometedores para a E...».

A empresa explica ainda que, por consulta ao processo ficou a saber que foi declarada a nulidade da apreensão do correio eletrónico a _______ da consultora BCG. A empresa contestou a apreensão da correspondência electrónica, afirmando que o Ministério Público (MP) não tinha competência para a ordenar, devendo tal ordem ter partido de um juiz, o que não aconteceu. Face a estes argumentos, o juiz de Instrução Criminal ordenou a nulidade da apreensão da referida correspondência electrónica devido à Lei do Cibercrime.

O mesmo aconteceu à correspondência apreendida a RC______ - ex- presidente da R... e atual chairman do N...B... - que com o mesmo fundamento, também requereu a nulidade desta apreensão.

Com esta decisão, a empresa liderada por AM_____ , garante que «quer deixar bem claro que não partilha desta interpretação, nem acha que foi tal razão que levou os restantes arguidos a pedir a anulação da apreensão da correspondência, a que aliás tinham direito, como veio a ser reconhecido pelo Juiz de Instrução criminal», garante fonte oficial ao S.......

A elétrica portuguesa lembra ainda que «enquanto sociedade cotada em bolsa, a E... tem especiais responsabilidades para com os acionistas e para com o mercado e por isso optou por esta solução. O que a E... pretende é que o caso seja cabalmente esclarecido e com celeridade, porquanto o processo tem reflexos negativos na imagem e no valor da empresa».” (destaques nossos).

Porventura, mais dia menos dia - seguindo esta lógica de (extemporaneamente) arguir “nulidades” que outros já arguiram - o arguido AM_______ acompanhará o exemplo do arguido MP_______ e invocará a nulidade da sua constituição como arguido, isto mesmo tendo já decorrido mais de seis meses desde a (juridicamente inexistente) decisão do anterior Mmo. JIC (e relativamente à qual ainda pende recurso no Tribunal da Relação interposto pelo MP apenas para esclarecer em definitivo a matéria, e sem conceder quanto à inexistência dessa decisão).

Em síntese:

1.-Depois de o Tribunal da Relação de Lisboa ter determinado que os emails de AM_______ entregues pela E..., logo com autorização expressa do CEO AM_______, teriam todos de ser juntos aos autos e analisados judicialmente (desencapsulados e visualizados por um JIC),

2.-E mesmo já após o anterior Mm° JIC (......) ter junto alguns desses emails de AM______ aos autos por os ter considerado válidos e relevantes para a prova,

3.-Após a própria E... e AM_______ terem publicamente - e processualmente, no caso do arguido - assumido que pretendiam colaborar com a Justiça e não colocariam em causa a utilização dos emails (nos termos acima mencionados),

4.-E, ainda, depois de a actual Mma JIC ter aberto e visualizado, um por um, durante mais de três horas, os quase 5000 emails,

5.-Isto na presença de um ilustre mandatário do arguido AM______ que não se opôs à seleção e junção dos mesmos, durante essa diligência ou nos três dias seguintes (art. 123° n° 1 do CPP),

6.-Recordando o referido no ponto 3. (o arguido AM______ referiu, neste inquérito - cf. vol. 10, fls. 3231 [n° 3]-e junto da Comunicação Social que não colocaria em causa a entrega dos emails), tal configura renúncia expressa a arguir a nulidade nos termos descritos pelo art. 121° n° 1 al a) do CPP. afirmando-se expressamente:

3.- O que decerto se compreenderá tendo em conta que foram os mesmos quem, desde cedo, prestou aberta colaboração com a presente investigação, nomeadamente através da entrega voluntária do conteúdo das suas caixas de correio eletrónico

7.-Assim, é com espanto que se verifica que, aliás extemporaneamente pois o requerimento apenas deu entrada no nono dia útil seguinte à diligência de abertura dessa correspondência electrónica , vem a ser colocada em causa a utilização processual dos aludidos emails ,

8.-Vem, agora, o arguido AM______considerar que os emails que os seus serviços, sob suas ordens, escrutinaram e entregaram ao MP há mais de um ano, não podem ser utilizados.

9.-Acresce considerar que, como resulta líquido do que foi acima exposto, inexiste concretamente qualquer nulidade, nem mesmo em abstrato a mesma se pode admitir.

Por todo o exposto, evidentemente, o MP opõe-se ao requerido.

43.- Cumpre repetir que a interpretação do art. 17° da Lei do Cibercrime da Mma JIC no despacho da Mma. JIC é manifestamente inconstitucional por violação da estrutura acusatória do processo, enquanto princípio estruturante do processo penal consagrado pelo n° 5 do art. 32° da Constituição.

Vejamos então o que se. deve entender por princípio do acusatório. Comentando o citado n° 5 do art0 32°, escreveram Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa, 2a ed., 1o vol., pág. 217):
"A 'densificação' semântica da estrutura acusatória (n°5, 1a parte) faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjectiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjectivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (orgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e o órgão acusador.

Rigorosamente considerada, a estrutura acusatória do processo penal implica: (a) proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação; (b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também o orgão julgador; (c) proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento, isto é, o órgão que faz a instrução não faz a audiência de discussão e julgamento e vice-versa."

Figueiredo Dias, por seu lado, (Direito Processual Penal, I volume, pág. 136 e 137), descreve deste modo o processo de tipo acusatório: "A imparcialidade e objectividade que, conjuntamente com a independência, são condições indispensáveis de uma autêntica decisão judicial só estarão asseguradas quando a entidade julgadora não tenha também funções de investigação preliminar e acusação das infracções, mas antes possa apenas investigar e julgar dentro dos limites que lhe são postos por uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferenciado (em regra o Ministério Público ou um juiz de instrução). É precisamente com este conteúdo que modemamente se afirma o princípio da acusação."

Castanheira Neves, nesta mesma linha doutrinária (Sumários de Processo Criminal, págs. 33 e 34), escreve o seguinte:

"Ora o que o princípio da acusação se propõe é justamente a conciliação do interesse público (e portanto da função estadual) da repressão com as exigências, de não menor interesse público, da imparcialidade e objectividade no julgamento das infracções. O que se consegue atribuindo a órgãos públicos fundamentalmente distintos, por um lado, a função de investigação e acusação dos delitos — que compete em regra ao Ministério Público, magistratura com um estatuto administrativo — e, por outro lado, a função de julgamento dessa acusação — que compete ao tribunal criminal, como órgão de estatuto e estrutura jurisdicional desse modo, e já além disso ao acusado será dada a mais ampla possibilidade de contradição e de defesa da acusação feita, o julgador, se se encontra numa situação super partes, também não está interessado senão na apreciação objectiva do 'caso' criminal que lhe é submetido."

Assim entendido, o princípio do acusatório, constitucionalmente afirmado no artigo 32° n°5 da CRP, é manifestamente incompatível com a interpretação dada pela Mma JIC por insistir na necessidade de intervenção prévia do juiz de instrução na delimitação dos e-mails que pretende investigar ainda antes de os ter recolhido (e mesmo de saber se existem num exercício que recorda os precogs do conhecido filme Minority Report) coloca o juiz numa posição de conhecimento prévio de questão de mérito, sobre o fundo, ainda antes de ocorrer uma investigação e uma acusação. Este julgamento antecipado sobre a subsistência de um pedido da investigação (que ultrapasse o mero saneamento de juiz das liberdades) implica um pré- juízo sobre a imputação criminal e o campo da investigação incompatível com o principio do acusatório. E implica, necessariamente, também estar a pôr em causa as necessárias garantias de objectividade e imparcialidade que deveriam ser dadas pelo juiz das liberdades.

Concluindo, ao ser exigido que tenha de ser o JIC que deve permitir a recolha dos emails pelo MP existe uma flagrante violação do princípio do acusatório - por o juiz de instrução não poder ter qualquer domínio ou, de algum modo “manipular” a definição do objecto do inquérito antes devendo ser alheio à definição da estratégia de investigação do MP e OPC’s, actuando apenas no campo da admissibilidade legal das intervenções requeridas -, o que se traduz numa inconstitucionalidade.

44.-No dia 11/12/2018, a Mma JIC solicitou esclarecimentos à E... (fls. 7356 - vol. 23), a qual respondeu a 21/12/2018 (fls. 7362ss - vol. 23).

45.-No dia 04/02/2019, a Mma. JIC solicitou informação adicional à E... (fls. 7386-vol 23), a qual respondeu a fls. 8337ss - vol 27.

46.-No dia 23/10/2019 (fls. 9912/5v - vol. 31), o Ministério Público remeteu os autos ao TCIC para apreciação do requerimento do arguido AM______de fls. 7060 a 7084 com as seguintes promoções:

3- Requerimento do arguido AM_______ de fls. 7060 a 7084 (em suma, alegada mas inexistente nulidade na entrega de e-mails seus pela E..., empresa à qual preside): Recorda-se que a resposta do Ministério Público se encontra a fls. 7372 a 7377 - vol. 23. —

Acrescenta-se que a E... veio a assumir a posição a 21/12/2018, a fls. 7362ss - vol. 23 (na sequência de despacho da Mma JIC de fls. 7355) e, ainda, posteriormente - na sequência de novo despacho da Mma. JIC de fls. 7386-vol 23, a E... prestou uma última informação a fls. 8337-vol 27.

Em suma, não vislumbramos nenhum fundamento para alterar a nossa promoção de fls. 7372 a 7377 - vol. 23, a qual mantém toda a sua atualidade e reflete a verdade histórica dos factos bem como a melhor interpretação dos normativos legais aplicáveis.”

47.-No dia 10/12/2019 (fls. 9922 - vol. 31), a Mma. JIC decidiu o seguinte:

C- Fls. 9933

“Ora, atento o supra explanado, tratando-se, todas as mensagens de correio electrónico apreendido e relativas ao arguido AM_______obtidas por força das buscas autorizadas pelo Ministério Público, nos termos supra, de prova proibida, não pode nenhuma das mensagens ser considerada, quer em sede de inquérito, de instrução e de julgamento, como meio dê prova.

Também, assim e por consequência, se terá que considerar o despacho proferido a fls. 6982 a 6986 (volume 22) nulo, porquanto relativo a meio de prova obtido de forma ilegal, ou seja, a prova proibida.

Notifique.

Após trânsito, proceda-se à eliminação de todos os suportes informáticos relativos exclusivamente a todo o correio electrónico apreendido ao arguido, AM_______, ficando os mesmos, até lá, acondicionados no cofre deste TCIC.

No recurso interposto pelo Ministério Público da decisão da Mma. JIC que antecede, o qual não chegou a subir pois foi doutamente reparado, reafirmou-se tudo o que consta na promoção de fls. 7372 a 7377 - vol. 23, detalhada e desenvolvida o bastante para que a Mma. JIC pudesse decidir com todos os elementos e em sentido diverso mas tal de nada valeu.

Salienta-se aí a inexistência de qualquer referência no despacho reparado à declaração do próprio arguido AM______ínsita na resposta de 9 de novembro de 2017 (fls. 3023 - vol. 10) a recurso do MP e no requerimento 15 de dezembro de 2017 (fls. 3231- vol. 10) em que assume, conjuntamente com o arguido JN______, ter entregado voluntariamente os seus e- mails.

Tal faz logo cair por terra o pressuposto fundamental do despacho: inexistência de consentimento.

A ser acolhida a tese dos arguidos teríamos um processo penal esquizofrénico, no âmbito do qual se permitiria que os defensores adoptassem uma determinada estratégia e, assim que a mesma se revelasse um fracasso, invocariam a ausência de poderes para o efeito.

Sendo que, in casu, o arguido nem sequer pode alegar desconhecimento da suposta estratégia independente dos seus II. Mandatários nem da E... (da qual o arguido AM______ é presidente e o arguido JN_______ administrador, empresa que assumiu a defesa pública dos atos de ambos, obviamente por sua ordem), pois a empresa também afinou pelo mesmo diapasão, afirmando aos quatros ventos que não colocaria em causa a utilização dos seus e-mails.

Durante cerca de três anos o arguido JN______ viu e-mails seus serem revelados nos autos, o seu teor noticiado (visto que o Mmo. JIC autorizou a consulta dos autos por jornalistas) e confrontado publicamente com o teor dos mesmos e só agora vem dizer que não tinha dado o seu consentimento para tal no âmbito do processo? E que aquilo que os seus II. Mandatários andaram a dizer nos autos foi além do mandato que lhes conferiu? Chega a ser surreal.

Se, como foi reconhecido no citado Acórdão de 08/05/2018 proferido nestes autos, no decurso da selecção de e-mails nem os arguidos nem o MP podem intervir, apenas assistir e por uma questão de transparência, a partir do momento em que determinado e-mail é junto aos mesmos só lhes resta impugnar a decisão de junção de concretos e-mails, coisa que o arguido JN______ acaba por não fazer, apesar de qualificar alguns como irrelevantes no início do requerimento, optando antes por arguir a nulidade da apreensão do disco rígido, o que abrange todos os emails.

Ou seja, dá o dito por não dito, dizendo que, afinal, a junção dos e-mails (que assumiu, por mais do que uma vez e publicamente, tal como a E..., ter entregado voluntariamente e nada ter a temer da sua revelação) aos autos era inválida.

Validar esta postura processual e acolher a tese peregrina do arguido com fundamento, apenas, na inexistência de um consentimento assinado pelo punho do arguido equivaleria, salvo o devido respeito e devolvendo a qualificação que os arguidos fazem à promoção de medidas de coacção do MP nestes autos, equivaleria a sancionar uma verdadeira fraude à lei.

O arguido (e a E...) somente declarou que tinha facultado à investigação voluntariamente os seus emails porque publicamente (dado que a E... é empresa cotada na EUR...........) lhe convinha criar a ideia de nada terem a temer e mostrar uma aparente tranquilidade e despreocupação com o teor de tais emails.

A partir do momento em que se apercebe que afinal o Ministério Público iria ter acesso, por via de intervenção judicial, a um conjunto mais alargado de e- mails relevantes para a descoberta da verdade é que se terá arrependido de tais colaboração e declarações e, tarde de mais (como se espera que V. Exa. reconheça), vem agora dar o dito por não dito.

Acresce a inexistência, no despacho da Mma. JIC, de qualquer alusão às anteriores duas diligências judiciais de abertura, análise, selecção e junção de e-mails do arguido AM_____(assim como a dos do arguido JN_____) pelo anterior Mmo. JIC ....... Já assistimos neste inquérito à revogação pelo Tribunal da Relação de Lisboa de diversas decisões do anterior Mmo. JIC ......, obviamente na sequência de recursos do Ministério Público. Como se não fosse o bastante, tivemos dois actos do mesmo, logo por azar reveladores de prova (ao invés dos anteriores), revogados por uma das Mma. JIC que lhe sucedeu.

Mas não só. Com tal despacho e de uma só penada, a Mma. JIC, além de revogar as aludidas três (e ignorar a selecção de e-mails do arguido JN______ pelo Mmo. JIC ......) anteriores decisões dos Mmos. JIC e ....., igualmente, e pior, tornou letra morta o douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de Maio de 2018, no qual se determinou a análise integral de todos os e-mails apreendidos e se refere expressamente, entre o mais, que “o correio electrónico constante do endereço . fpbedp.pt.psr foi “de resto, voluntariamente fornecido”.

Voltamos ao mesmo problema, agora amplificado pela sua repetição - que já se torna monótona - de violação do direito constitucional ao recurso agora reconvertido numa possibilidade de reciclagem das decisões do TRL a todo o tempo pela primeira instância.

Ao ignorar e, na prática, revogar esse douto acórdão e as quatro anteriores selecções de e-mails dos arguidos AM______ e JN______ pelos Mmos. JIC e ...., a Mma. JIC ... não só extravasou o âmbito dos seus poderes (o que faz com que o despacho padeça de nulidade insanável de incompetência do tribunal, nos termos do art. 119° al. e) do CPP) como violou o caso julgado formal dessas decisões, em concreto quanto à validade da obtenção, abertura, análise, selecção e junção dos e-mails em causa aos autos, assim como quanto ao reconhecimento da entrega voluntária desses e-mails e, logo, à existência de consentimento (de qualquer modo desnecessário) dos arguidos para a sua junção aos autos.

Tanto o Tribunal Central de Instrução Criminal, através dos anteriores referidos quatro despachos dos Mmos. JIC e ....., como o Tribunal da Relação de Lisboa determinaram a selecção e junção de e-mails porque julgaram válida a junção aos autos do disco rígido entregue voluntariamente pela E....

Admitir que uma nova JIC (a terceira neste inquérito) colocasse em causa essas decisões e atos processuais anteriores (de dois colegas seus e, pasme-se, de um Tribunal Superior) conduziria à derrogação, inadmissível, dos princípios da segurança jurídica e da estabilidade processual, sendo até em termos sistémicos incoerente, por exemplo, com a impossibilidade do Ministério Público alterar a posição anteriormente assumida sobre determinada matéria no decurso de um processo.

É que o princípio do Estado de Direito concretiza-se através de elementos retirados de outros princípios, designadamente, o da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos. Esse princípio encontra-se expressamente consagrado no artigo 2o da CRP.

Os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança assumem-se como princípios classificadores do Estado de Direito Democrático, e que implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e da comunidade e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, consagrados nos artigos 2º e 13° da Constituição.

No que concerne ao efeito do caso julgado formal, atente-se nos seguintes segmentos do sumário do douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-01-2012 (processo n.° 263/06.8JFLSB.L1.S1, destaques nossos):
http://www.dqsi.pt/isti.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a05bc7b27d1e9648025798b005ba879?Qpe nDocument

“X- O arguido, aqui recorrido, invocou diversas ilegalidades susceptíveis de tomarem alguns meios de prova proibidos e, portanto, nulos. Todavia, como bem decidiu o acórdão recorrido, toda essa matéria foi objecto de decisão do Tribunal da Relação de ..., proferida em 21-10-2008 e já transitada em julgado.

XI- Ora, se o Tribunal da Relação já decidiu essas questões por acórdão transitado em julgado, não podia o mesmo tribunal na decisão recorrida - como não pode agora o STJ neste recurso - voltar a discutir o mesmo assunto, sob pena de violação do caso julgado formal.

XII- Segundo o art.° 672° do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo penal, as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.

XIII- O caso julgado formal existe para impedir que no âmbito do mesmo processo recaiam uma ou mais decisões contraditórias com outra que, sendo susceptível de recurso, já tenha transitado em julgado.

Nesse acórdão cita-se ainda um outro (destaques nossos):

“Conforme se diz no Ac. do STJ de 24-05-2006, proc. 1041/06, relatado pelo Cons. Henriques Gaspar (também citado no acórdão recorrido): VI- O caso julgado que fixa, no processo e fora dele, a vinculação de efeitos materiais, quanto à definição e concretização judicial da relação controvertida ou objeto material do processo, é o caso julgado material. VII- Em processo penal, pode dizer-se que existe caso julgado material quando a decisão se torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer processo que tenha por objeto a apreciação do mesmo ou dos mesmos factos ilícitos. VIII- O caso julgado formal não assume semelhante função, nem contém, no essencial, dimensão substancial. IX- O caso julgado formal traduz-se em mera irrevogabilidade de ato ou decisão judicial que serve de continente a uma afirmação jurídica ou conteúdo e pensamento, isto é, em inalterabilidade da sentença por ato posterior no mesmo processo. X- No caso julgado formal (art. 672. ° do CPC), a decisão recai unicamente sobre a relação jurídica processual, sendo, por isso, a ideia de inalterabilidade relativa, devendo falar-se antes em estabilidade, coincidindo com o fenómeno de simples preclusão. XI- Há, pois, caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferidar conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução (actio judicati). XII- O caso julgado formal constitui apenas um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta a relação processual.»”

Ainda que assim não fosse, o que não se concede, a verdade é que o Ministério Público é competente para apreender cautelarmente caixas de correio electrónico e apresentar ao/à JIC as mensagens que entenda relevantes para a prova a fim deste/a determinar, ou não, a sua junção aos autos.

Salvo o devido respeito, que é muito, a Mma. JIC (assim como ora o arguido) confundiu apreensão cautelar com a revelação da prova.

A propósito, e pela clareza, acerto e bondade da argumentação contida no mesmo, cumpre citar o teor do douto despacho proferido a 11/10/2018 pela Mma. JIC de Instrução ...... do TIC do Porto no âmbito do processo n.° 3681/15.7JAPRT (relativo ao Turismo do Porto, já com acusação deduzida), no qual se dá conta da evolução jurisprudencial a que se tem assistido nesta matéria:

Quanto ao pedido de apreensão de correio electrónico:

Vem o M°P° requerer, ao abrigo do disposto no artigo 17°, da Lei do Cibercrime, a apreensão de mensagens de correio electrónico.

Refere o art.° 1°, al. b), do CPP que, para efeitos do disposto no presente Código considera-se: b) «Autoridade judiciária» o juiz, o juiz de instrução e o Ministério Público, cada um relativamente aos actos processuais que cabem na sua competência.

A figura do juiz é autonomizada no artigo 17° da lei 109/2009, de 15.IX, artigo esse que tem como epígrafe, “Apreensão de correio electrónico e registos de comunicações de natureza semelhante”.

Dispõe então aquele artigo que: “Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no CPP."

Prescreve por seu turno o n° 3 do artigo 179.°, do CPP, que “O juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida. Se a considerar relevante para a prova, fá-la juntar ao processo; caso contrário, restitui-a a quem de direito, não podendo ela ser utilizada como meio de prova, e fica ligado por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tomado conhecimento e não tiver interesse para a prova. No artigo 252.°, do mesmo diploma, incluído no capítulo das medidas cautelares e de polícia, diz-se que, “Nos casos em que deva proceder-se à apreensão de correspondência, os órgãos de polícia criminal transmitem-na intacta ao juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência”.

Pela leitura literal destes preceitos tem-se vindo a entender que quando esteja em causa apreensão de correio electrónico e registos de comunicações de natureza, deve haver uma autorização prévia do JIC para o efeito, sendo que o conhecimento inicial do material apreendido, bem como a escolha do que deve ser integrado nos autos como prova relevante, são actos de competência do juiz.

No entanto, este entendimento literal não pode ser acolhido, sob pena de, desde logo, traduzir uma clara violação do Princípio do Acusatório (consagrado no artigo 32.°, n.° 5, da CRP), pois não pode ser o JIC (juiz das garantias) a entidade que determina e seleciona o que é relevante para a investigação, impondo ao Ministério Público a utilização de concretos meios de prova, uma vez que tal matéria é essencial à direcção do inquérito e à definição do seu objecto, colocando em causa a imparcialidade inerente ao juiz.

Pedro Verdelho, in “A Nova Lei do Cibercrime” Scientia lurídica, Tomo LVIII, N° 320, refere que a Lei do Cibercrime adaptou para o mundo virtual o regime das buscas e apreensões definidos no Código de Processo Penal, referindo que no artigo 17° acima transcrito se cria um regime especial de apreensão de dados. Explicitando que no artigo 17.°,o legislador quis transpor para o ambiente digital o regime da apreensão de correspondência, previsto no Código de Processo Penal, com as necessárias adaptações, defende que, “pode proceder-se a uma apreensão cautelar de mensagens de correio electrónico mesmo que não tenha havido nenhuma anterior ordem judicial nesse sentido. É o que se retira do texto do art. 17.° da Lei do Cibercrime, quando se prevê a possibilidade de o juiz autorizar a apreensão de mensagens que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, se as mesmas forem descobertas ou encontradas no decurso de uma pesquisa informática outro acesso legítimo a um sistema informático. Se assim é, então o despacho judicial deverá ser ulterior à chegada ao conhecimento das mensagens a quem está a conduzir a investigação. (...) Este regime vai ao encontro das exigências práticas dos casos concretos, permitindo flexibilizar o procedimento a este propósito. De facto, em regra, as mensagens de correio electrónico são detectadas e apreendidas no decurso de uma pesquisa, eventualmente realizada no decurso de uma busca. Ora, em regra, antes de uma busca ainda não se sabe se vai encontrar-se no seu decurso um computador. E menos ainda se sabe se em tal computador vão encontrar-se mensagens de correio electrónico ou análogas. E muito menos pode prever-se se essas mensagens podem ou não vir a ter interesse para a investigação. A vida real revela que seria inviável um sistema oposto, que exigisse, antes de toda e qualquer busca, a obtenção de autorização judicial para a eventual possibilidade de vir a ser encontrado, no decurso da busca, um computador e que, tal computador contivesse registos de comunicações, e que tais comunicações fossem prova necessária à investigação do caso concreto”.(...). Entendendo-se a lei de outra forma, estaria a optar-se por uma solução processual inviável, que exigiria a verificação, pelo juiz, de todas as mensagens de correio electrónico, em todos os computadores que fossem encontradas no decurso de pesquisas. Na verdade, esta solução seria inviável face à grande quantidade de computadores que nos dias de hoje se apreendem. Além disso, não tem suporte na letra da lei, como se disse. Em parte, portanto, não será aplicável o regime da apreensão de correspondência do Código de Processo Penal. Ou seja, não se requererá, para a apreensão de mensagens de correio electrónico, que haja uma prévia decisão judicial. Por outro lado, não se exige que seja o juiz o primeiro a ter conhecimento de todas as mensagens (como acontece com o correio fisico). A letra da lei aponta antes para a possibilidade de quem procede à pesquisa encaminhar para o juiz mensagens concretas, com relevância para o caso concreto, que aquele depois apreenderá ou não.”
No mesmo sentido e com uma exposição que não deixa margem para dúvidas, conclui Rui Cardoso, in “Apreensão de correio electrónico e registos de comunicações de natureza semelhante — artigo 17.° da Lei n.® 109/2009, de 15.IX in Revista do Ministério Publico, N° 153 : Janeiro: Março 2018, pp. 167-214”.

Refere (contrariando muita jurisprudência e doutrina sobre a distinção entre correio electrónico aberto/fechado), que, “No CPP, o âmbito objectivo é o de correspondência em trânsito ou ainda não aberta; na LCC, todas as mensagens de correio electrónico ou semelhantes, nos termos supra expostos, não havendo verdadeiramente regime aberto-lido e fechado-não lido”. (...) No que respeita aos procedimentos, no CPP os OPC’s transmitem a correspondência intacta ao juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência e é este que procede à abertura e primeiro toma conhecimento do seu conteúdo; na LCC, durante o inquérito, o Ministério Público, depois de tomar conhecimento do seu conteúdo, deve apresentar ao juiz suporte com as mensagens de correio electrónico ou semelhantes cautelarmente apreendidas (ou melhor, os dados informáticos que as constituem),

Juntamente com requerimento fundamentado para apreensão daquelas que considere de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, após o que o juiz apreciará, tomando conhecimento do seu conteúdo, e decidirá autorizar ou não autorizar a apreensão formal. (...) Se fosse intenção do legislador aplicar íntegralmente o regime de apreensão da correspondência do CPP, bastar-lhe-ia ter dito que “à apreensão de mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante é aplicável o regime de apreensão de correspondência previsto no CPP". Não o fez. (...) Exigir o prévio conhecimento pelo juiz significaria, na prática, impedir a apreensão desses dados, o que constituiria uma interpretação contra a CCiber e o âmbito de apreensão de dados que Portugal, como Estado-parte, deve assegurar na sua legislação.* (...) Nessa interpretação, o artigo 17.° da LCC conteria uma norma desconforme ao n.° 5 do artigo 32.° da CRP”.

Nestes termos, nada se ordena, sendo o M°P° a autoridade judiciária competente para os actos referidos na promoção que antecede.

Face a tudo isto, impunha-se a reparação liminar do aludido despacho da Mma. JIC ...., o que o Mmo. JIC... fez, e muito bem, em termos não só cristalinos como sólidos.

O arguido (e a E...) quis retirar dividendos reputacionais das suas manifestações de vontade de colaborar com a investigação (ao declarar ter procedido à entrega voluntária dos seus e-mails), esquecendo-se porém do que tal significava processualmente (provavelmente por achar que ninguém iria invocar isso). E quando se apercebeu das consequências já era demasiado tarde.

Para tentarem ultrapassar (sem sucesso) a incoerência de ter participado em duas diligências judiciais de selecção de e-mails, e até ter junto posteriormente uma que numa delas não foi possível aceder, sem nada ter dito sobre a validade da sua junção aos autos, o arguido invoca uma suposta ausência de consentimento para arguir a nulidade da apreensão dos e-mails.

Mas o tempo para isso já (há muito) lá vai, pois formou-se entretanto caso julgado formal quanto à validade da apreensão, abertura, análise, selecção e junção de tais mensagens de correio electrónico, não só por via das decisões anteriores de dois JIC no mesmo processo nesse sentido como, igualmente, pelo facto do Venerando TRL ter determinado a análise integral dos e-mails do arguido AM_______, considerando expressamente que os mesmos foram voluntariamente entregues (conforme se desenvolveu no nosso recurso e cujo teor se dá aqui por reproduzido).

A Mma. JIC anterior , no seu despacho (reparado) de 10/12/2019 (fls. 9922 a 9934 - vol. 31), omitiu qualquer referência às declarações do próprio arguido AM______ no requerimento 15 de dezembro de 2017 (fls. 3231- vol. 10), no qual assume, conjuntamente com o arguido JN______, ter entregado voluntariamente os seus e-mails.

Acresce a inexistência, no despacho da Mma. JIC anterior, de qualquer alusão às anteriores três diligências judiciais de abertura, análise, selecção e junção de e-mails do arguido AM______(assim como a dos do arguido JN_______) pelos anteriores Mmos. JIC... e .....

Pior, ignorou ainda o douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08/05/2018, no qual se determina a análise integral de todos ose- mails apreendidos e se refere expressamente, entre o mais, que “o correio electrónico constante do endereço . @edp.pt.psf foi “de resto, voluntariamente fornecido"'.

A selecção e junção aos autos (em suporte digital) da totalidade dos e-mails dos arguidos JN______ (e também de AM_______ apresentados em resultado da pesquisa por “AT”, determinada pelo Mmo. JIC após visualização individual dos e-mails não tem nada de estranho, visto que estão em causa apenas e-mails referentes, directa ou indirectamente, aos arguidos JN______, AM______, AT e ao pai deste (com o mesmo nome), cuja contratação pela E... (enquanto ainda era secretário-geral da ANMP e membro do Conselho Tarifário da ER........, daí a relevância da junção também desses) é também objecto da presente investigação, além claro das decisões tomadas pelo seu filho enquanto Secretário de Estado da Energia.
A exemplo do que ocorreu com alguns dos e-mails seleccionados pelo Mmo. JIC ......, que também determinou a sua junção aos autos em suporte digital, é ao Ministério Público, enquanto titular da acção penal, que incumbe, naturalmente, a tarefa de verificar que e-mails gravados nos suportes digitais devem ser juntos em papel aos autos, o que aliás já se fez relativamente a alguns, não estando ainda concluída a sua análise.

O argumento do arguido de que o requerimento inicial do Ministério Público para nova análise se cingia a um número mais limitado de e-mails igualmente não é de acolher, pois assim que, no início da diligência, se vislumbrou que existiam mais do que os anteriormente referidos, o Ministério Público requereu que a análise do Mmo. JIC abrangesse a totalidade dos e-mails, o que doutamente foi determinado.

O arguido esteve representado pelos seus II. Mandatários na diligência de selecção de e-mails seus presidida pelo Mmo. JIC ......, nada tendo dito sobre o seguinte despacho judicial: “Deposite em cofre deste TCIC o disco externo entregue pela E... - E... de P..., S.A.,”, fls. 2868 - vol. 9), sendo que inexistia e continua a inexistir fundamento para determinar a sua destruição.

Se, como reconheceu o TRL por douto acórdão de 11/07/2019 proferido no âmbito destes autos, os Mmos. JICs...... dos processos 324/14.OTELSB e 122/13.8TELSB estavam legalmente habilitados a analisar, selecionar e enviar aos presentes autos, entre outros elementos de prova, os e-mails existentes nesses processos relevantes para esta investigação, por maioria de razão o Mmo. JIC destes autos também é legalmente competente para analisar e seleccionar, dentre todos os e-mails que foram entregues voluntariamente há cerca de três anos pela E... (a qual apenas publicamente se pronunciou sobre tal e assumindo que nenhum obstáculo iria levantar à análise desses e- mails) e se encontram juntos aos presentes autos desde então, os relevantes para a prova, como doutamente se fez e continuará a fazer em breve.

Pelo exposto, promove-se o indeferimento do requerimento do arguido JN______qual se acabou de responder.”

***

Enquadramento jurídico-penal

Como é sabido, e resulta do disposto nos artº 368º e 369º ex-vi artº 424º nº 2 , todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:

Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.

Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto, e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e depois dos vícios previstos no artº 410º nº 2 do Código do Processo Penal.

Por fim, das questões relativas à matéria de Direito.

Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas pelo recorrente.

Em termos simples o que há que decidir é o determinar se, ante o devir dos autos, é correcta a junção dos e-mails e a autorização dos mesmos serem usados como prova.

É desta Decisão – a referida e transcrita em 25. - que o Recorrente apresenta o presente Recurso.

Antes, contudo, algumas precisões e clarificações.

Infelizmente nos processos começamos a ver a fulanização dos juízes. O Juiz “A” fez isto, decidiu a favor do arguido “B”, o juiz “C” é mais para este lado e o “D” para aquele, como se os processos judiciais fossem algum jogo de futebol ou de uma qualquer play-station (tendo-se inclusivamente neste feito alusões a produções cinematográficas de ficção cientifica como relevantes para o caso concreto)

Não podemos deixar de criticar a reprodução, no despacho recorrido, de uma promoção levada a cabo por um dos intervenientes com referências a condutas, pelo nome de juízes, como se estes não fossem titulares do órgão de soberania mas sim alguém mais conexo com este ou aquele interesse processual. Todas as decisões proferidas no processo –certas ou erradas –foram tomadas pelo juiz. O Juiz e não o “A”, “B” ou “C” e se alguém não concordar com a decisão do Tribunal dela recorre e um outro Tribunal apura do acerto da mesma.

Um segundo reparo prende-se com a matéria da constitucionalidade.

No despacho recorrido deu-se como reproduzida a promoção do Ministério Público e tal técnica, conquanto não proibida, não é a mais segura.

É que na promoção, dada como reproduzida no despacho, defende-se que o artº 17º da LCCrime é parcialmente inconstitucional quando impõe que seja o JIC o primeiro a conhecer do teor das apreensões de correio digital.

Ora, se assim é, impunha-se que o MP tivesse recorrido do despacho para o TC, o que não fez (e nem sequer para este Tribunal recorreu, diga-se).

Tercius: fontes de Direito são várias. Com toda a certeza notícias de jornais não são uma delas.

De nada interessa que notícias, se algumas, algum órgão de informação veiculou. O que interessa, isso, sim é a conduta dos intervenientes e não a notícia que alguém dá das mesmas.

Por fim, e nesta introdução, lembrar-se-á que o despacho de que se recorre é do despacho de 22.09.2020.

Tal é importante porque todas as incidências processuais anteriores ao despacho são irrelevantes excepto se as mesmas tiverem reflexo, quer no despacho, quer nos pressupostos em que a decisão se alicerçou.

Dito isto analisemos a questão.

A razão assiste ao recorrente quando refere, nas conclusões J e K que “O pressuposto da realização da diligência de abertura e selecção de correio eletrónico é ter ocorrido uma apreensão, na acepção dos artigos 17.º da Lei do Cibercrime e 179.º, n.º 3, do CPP, se (…) o titular do correio eletrónico pretendido apreender não consentir expressamente na respectiva apreensão.”

Na verdade, “Tivesse o correio electrónico permitido aceder pela decisão recorrida sido, realmente, voluntariamente entregue e a sua apreensão expressamente consentida por alguém e, obviamente, não teria o Ministério Público promovido junto do Juiz de Instrução Criminal (e este determinado) a realização de diligências como as ocorridas a 06.08.2020, 13 e 14.08.2020 e 25.09.2020.”

Na decisão recorrida sustentou-se, por via da remissão operada para a promoção do Ministério Público, que o recorrente (e o recorrente aqui é o arguido JN_____ e não o arguido AM_____) deu o seu consentimento.

Tivesse tal acontecido e não se colocaria, sequer a questão de uma prova proibida já que o artº 126º nº 3 do C.P.P. é claro ao referir que são nulas as provas obtidas através da intromissão na correspondência sem o consentimento do titular.

Assim, a preocupação do Ministério Público em ver chancelada a apreensão decorre da sua própria convicção (interna ou intima) de que a houve uma apreensão e não uma entrega voluntária.

E foi precisamente uma apreensão o que ocorreu.

Foi ordenada uma busca, no âmbito desta foram percepcionados ficheiros que foram tidos como abstractamente relevantes para a investigação. Iniciou-se (bem ou mal não releva agora) a extracção de tais ficheiros. Determinou-se um enorme volume de material a apreender e (mal ou bem) ordenou-se à detentora dos ficheiros (a E.... e não os arguidos) a entrega dos ficheiros, o que esta fez.

Não há aqui nenhum acto voluntário de entrega de prova. Não existe qualquer acto que tacitamente transmita a noção que os arguidos prescindiram do seu direito à intimidade/segredo de comunicações.

De igual sorte, não é pelo facto de terem estado representados em diligências processuais, pessoal ou através de mandatário, e nada terem dito quanto às apreensões, que faz com que se haja solidificado qualquer posição de que aceitaram a apreensão voluntariamente.

Repete-se: se se tivesse considerado que existia consentimento do arguido na apreensão nem sequer eram necessárias as operações de junção aos autos de prova que se contestam. Bastava juntar sem mais.

E nem sequer se diga, como se diz no despacho recorrido (dada a remissão para a promoção) que os arguidos vieram a terreiro (leia-se aos jornais) apregoar que autorizavam que se juntassem e-mail como prova. Os jornais, repete-se, têm o seu lugar no mundo, mas não são fonte de Direito.

Para que tivesse o consentimento por certo, o Tribunal não tinha de ter lido jornais, tinha de ter afirmado por via de prova, que o consentimento fora dado. Consentimento expresso, inequívoco e claro e não um consentimento relatado por uma folha de um qualquer jornal.

E nem se quer se diga, como o faz o despacho recorrido, que este Tribunal afirmou (e que tal transitou em julgado) que o arguido recorrente (o arguido JN______) haja alguma vez entregue voluntariamente vários ou um e-mail. O que este Tribunal afirmou em anterior decisão foi que os e-mails foram entregues voluntariamente e foram-no na acepção de que a E..., que era quem os detinha, os entregou sem levantar qualquer objecção ao acto de busca.

Mais: Constitui um facto não demonstrado nos autos que o arguido recorrente (arguido JN______) haja, de qualquer forma, influenciado na seriação dos mails. Contudo, mesmo que o tivesse feito tal era apenas imputável ao Ministério Público o qual, estranhamente, concedeu um prazo para extracção de material e deixou a buscada fazer a escolha quem lhe aproveu.

Temos, pois, como certo que o arguido não deu o seu consentimento à apreensão e a junção aos autos dos e-mails aqui em causa.

Prejudicada fica a questão da inconstitucionalidade suscitada na conclusão “S”.

Dispõe o artº 17 da Lei do Cibercrime que: “Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.”

São pressupostos da aplicação do preceito:

Estar em curso uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático;

Serem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante.

Concomitantemente, dispõe o artº 16º da Lei do Cibercrime:

1- Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados dados ou documentos informáticos necessários à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho a apreensão dos mesmos.

2- O órgão de polícia criminal pode efectuar apreensões, sem prévia autorização da autoridade judiciária, no decurso de pesquisa informática legitimamente ordenada e executada nos termos do artigo anterior, bem como quando haja urgência ou perigo na demora.

3- Caso sejam apreendidos dados ou documentos informáticos cujo conteúdo seja susceptível de revelar dados pessoais ou íntimos, que possam pôr em causa a privacidade do respectivo titular ou de terceiro, sob pena de nulidade esses dados ou documentos são apresentados ao juiz, que ponderará a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto.

(…)

São pressupostos da aplicação do preceito:

-Estar em curso de uma pesquisa informática ou um outro acesso legítimo a um sistema informático;

-Serem, no decurso da mesma encontrados dados ou documentos informáticos;

-necessários à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade.

Terá de existir uma diferença entre os preceitos, sendo que os seus pressupostos são semelhantes.

A diferença radica no facto de, no âmbito do artº 17º, estarem em causa mensagens de correio electrónico.

Fundamental é que se define o que é que tal seja para efeitos do preceito.

Numa situação corriqueira o segredo das comunicações aquando do envio de uma carta inicia-se com o circuito normal do correio e termina com o fim do mesmo.

Vale por dizer que a carta, mesmo selada e fechada só é abrangida pelo segredo das comunicações quando sai da disponibilidade do remetente e é entregue ao cuidado do serviço postal. Esta carta, depois de entregue, só pode ser violada por ordem judicial.

Entregue a carta ao seu destinatário e aberta a mesma por este, o documento que é a carta deixou de beneficiar do segredo e inviolabilidade de correspondência (cfr. artº 179º do C.P.P. e 34º nº 1 da CRP; vide Ac. desta Relação de 02.03.2011, proc. 463/07.3TAALM-A.L1, in www.dgsi.pt)

O mesmo se passa com o documento digital: este só é correio electrónico quando fechado (ou seja, não aberta pelo destinatário).

Como salienta Duarte Alberto Rodrigues Nunes in “Os meios de obtenção de prova previstos na Lei do Cibercrime”, Gestlegal, Abril de 2018, 139 e segs. “ O artº 17º da Lei 109/2009, que configura uma norma especial face ao artº 16º da mesma Lei, aplica-se à apreensão de mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante (…) que se encontrem armazenados no sistema informático que tenha sido acedido pelas autoridades e não à sua intercepção em tempo real. (…)”

Mais à frente escreve o autor (ob. cit pág. 141) “Diversamente da apreensão de correspondência regulada no CPP, que se aplica à correspondência que se encontra em trânsito entre o remetente e o destinatário (…) a apreensão de correio electrónico e registos de comunicação de natureza semelhante, regulada no artº 17º da Lei 109/2009, aplica-se não à obtenção em tempo real, de mensagens de correio electrónico, SMS, etc., mas à obtenção de correio electrónico, SMS, etc. que já foi recebido pelo destinatário e que se encontra armazenado no sistema informático que foi legitimamente acedido pelas autoridades, inexistindo qualquer lesão do direito à inviolabilidade da correspondência e de outros meios de comunicação privada, tutelado pelo artº 34º da CRP.

Para além disso não vemos em que medida o correio electrónico já recebido será diferente de outros dados informáticos, como ficheiros contendo documentos resultantes de um processador de texto, folha de cálculo ou de um programa para criação ou apresentação digital de slides (que serão apreendidos à luz do regime do artº 16º da Lei nº 109/2009) que também poderão incluir informações de cariz privado ou até intimo (…).

Refere ainda o autor e com o mesmo concordamos (ob. cit pág. 145) que “a fim de minimizar o desacerto e os efeitos nefastos da opção legislativa, não falta quem, considerando que o artº 17º da Lei 109/2009 deverá ser interpretado de forma hábil, entenda que a remissão para o regime da apreensão de correspondência só deverá ter lugar nos casos em que o e-mail, SMS, MMS, EMS, etc., apesar de já recebidos, ainda não tenham sido lidos pelo destinatário, como sucede com a correspondência (que, uma vez aberta pelo destinatário, poderá ser apreendida nos termos gerais como qualquer outro documento e não à luz do artº 179º do CPP), entendimento que subscrevemos de jure condito (…)” (vide também no mesmo sentido Costa Andrade, "Bruscamente no Verão Passado", a Reforma do Código de Processo Penal, Observações Críticas sobre uma Lei que Podia e Devia ter sido Diferente, Coimbra Editora, Julho de 2009, pág 159 a 160.

Ora, no caso concreto, os mails apreendidos eram correspondência aberta, e-mails lidos sendo que tal afirmação resulta inequívoca, quer do facto de uns serem amiúde resposta a outros, quer ainda (e mais importante) do facto de terem sido sacados do sistema de gestão documental da E... como flui do termo de recebimento referido em 5. dos factos assentes.

Aliás, dúvidas não restam que os mails estavam em “arquivo morto” tendo sido necessário um procedimento faseado e moroso para a sua extracção a qual teve lugar na Rua ... ... .... n° ..., ..., em L... (cf. mandado de busca não domiciliária e apreensão de fls. 1406 a 1409).

Assim sendo, é nosso entendimento que o regime aplicável ao caso dos autos é o constante do artº 16º da Lei do Cibercrime, cabendo ao MP seriar o material apreendido e determinar ele – e não o JIC – qual o material probatório que tem por relevante dado que os mails, porque previamente abertos, mais não são do que meros documentos digitais.

O que foi feito nos autos foi um exacerbar de direitos, uma excessiva afirmação de direitos dos arguidos quando a situação não reclama a larga e profunda protecção levada a cabo.

Neste circunspecto o processamento foi irregular (artº 123º do C.P.P.) mas tal irregularidade, porque traduzida na assumpção de um procedimento mais garantístico do reclamado por lei, não leva a que o Tribunal tenha de repetir qualquer acto.

Assim, e desde logo cai por base qualquer inconstitucionalidade do artº 17º da Lei do Cibercrime a conhecer nestes autos por tal preceito não ter qualquer aplicação no caso concreto (posto que o aplicável é o artº 16º).

Em suma:

-correspondência digital (correio electrónico) só existe a partir do momento em que o remetente envia uma mensagem de correio a partir do seu posto de trabalho, isto é, a partir do momento em que perde o domínio da mensagem;

-a intercepção dessa mensagem em tempo real (quando em trânsito) não cai no escopo dos artºs 17º e 16º da Lei do Cibercrime;

-Se a mensagem não tiver sido aberta quando recepcionada pelo destinatário da mesma e permanecer no computador, a sua abertura rege-se pelo disposto no artº 17º da Lei do Cibercrime demandando interferência judicial.

-Se, ao invés, a mensagem tiver já disso aberta a mesma não será diferente de outros dados informáticos, como ficheiros contendo documentos resultantes de um processador de texto, folha de cálculo ou de um programa para criação ou apresentação digital de slides que serão apreendidos à luz do regime do artº 16º da Lei nº 109/2009.

-No caso concreto, por se tratarem de mensagens já abertas não tinha o JIC de sancionar a sua junção ou delas tomar prévio conhecimento competindo ao MP decidir-se pela sua junção ou não.

Assim, embora por razões diferentes daquelas que constam do despacho recorrido, é de julgar improcedente o recurso.

***

V–Dispositivo

Por todo o exposto, acordam os juízes que compõem a 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso interposto e, consequentemente, confirmar na íntegra a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente que se fixam em 5 (cinco) U.C..

Notifique.

Acórdão elaborado pelo 1º signatário em processador de texto que o reviu integralmente sendo assinado pelo próprio e pela Mmª. Juíza Adjunta.

Lisboa e Tribunal da Relação, 27 de Janeiro de 2021

Rui Miguel de Castro Ferreira Teixeira -Relator -
Cristina Almeida e Sousa -1ª Adjunta -