Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
184/12.5TELSB-B.L1-3
Relator: CONCEIÇÃO GONÇALVES
Descritores: CONHECIMENTOS FORTUITOS
CORREIO ELECTRÓNICO
COMPETÊNCIA
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- Na fase de inquérito, a declaração de nulidade tem carácter materialmente judicial, competindo ao Juiz de instrução criminal praticar ou sindicar todos os actos que contendem com direitos fundamentais, como o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, inviolabilidade da correspondência e segredo das telecomunicações, sendo que tal competência em nada interfere com a linha de investigação definida pelo Ministério Público e em nada belisca a autonomia do Ministério Público.
II- O aproveitamento extraprocessual relativamente a e-mails (correio electrónico) insere-se na hipótese normativa prevista no art.º 187º, nº 7 do CPP a propósito das intercepções telefónicas.
III- A obtenção dos meios de prova a transportar para outro processo exige autorização judicial, sendo competente para autorizar tais meios de prova o juiz de instrução do processo no qual se visa obter tais meios de prova, assim como para decidir sobre a legalidade dos mesmos e sobre a verificação dos requisitos legais estabelecidos no citado art.º 187º, nº 7 do CPP.
IV- Assim, a junção ao outro processo dos meios de prova que contêm os conhecimentos fortuitos não está dependente de qualquer validação ou autorização judicial pelo juiz de instrução neste último processo, uma vez que a autorização e validação do aproveitamento extraprocessual de tais meios de prova produziu-se no processo originário ao abrigo de uma autorização judicial legítima que apreciou da existência dos respectivos pressupostos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

1. No processo de Inquérito a correr termos no Departamento Central de Investigação e Acção Penal - Secção Única (DCIAP), com o número supra identificado, em que são arguidos AL... e JN... com os demais sinais dos autos, foi proferido pelo Sr.º Juiz de Instrução Criminal - Secção Única - em 23 de Maio de 2018, o despacho exarado a fls. 4744 a 4808, no âmbito do qual decidiu o seguinte:
“1. Caso venha a ser copiado ou obtido correio electrónico relativo aos arguidos AL... e JN..., dado que os visados não deram o seu consentimento e não estando o aproveitamento extraprocessual do correio electrónico previsto na lei como um meio de obtenção de prova e considerando o direito à reserva da vida privada, não podemos deixar de concluir que é proibida a valoração dos meios de prova obtidos dessa forma, por abusiva intromissão na vida privada dos visados.
2. Em consequência, dado que a decisão do Mº Pº constante de fls. 3763 a 3778, 3954 ss, 3957 verso e 4189 verso, relativa aos arguidos AL... e JN..., foi proferida em violação do disposto no artigo 126º nº 3 do CPP tem-se por inválida qualquer prova que venha a ser obtida na sequência dessa decisão e que esteja relacionada com correio electrónico, nos termos do disposto no artigo 126.º n.º 3 e 122º nº 1 do CPP.
3. Caso se verifique a selecção de correio electrónico no âmbito dos processos 324/14.OTELSB e 122/13.8TELSB, nos termos dos despachos do Mº Pº de fls. 3763 a 3778, 3954 ss, 3957 verso e 4189 verso, essa decisão padecerá de nulidade insanável prevista no artigo 119º al. e) do CPP, por violação do princípio do juiz natural consagrado no seu art.º 32º, nº 9 da CRP.
4. Dado que o fundamento legal invocado pelo Mº Pº no despacho constante de fls. 3787ss não tem aplicação ao caso concreto e dado que o levantamento do segredo do Banco de Portugal não seguiu os trâmites previstos no artigo 135º do CPP, conclui-se o despacho em causa padece de ilegalidade, pelo que, nos termos do artigo 118º nº 2 e 123º nº 1 do CPP, declaro a sua irregularidade, na parte relativa aos arguidos AL... e JN....
5. Por ser tempestiva e invocada por quem tem interesse, ao abrigo do artigo 123º nº 1 do CPP, julgo verificada, também, a irregularidade, por falta de fundamentação, do despacho do Mº Pº que decretou a quebra do segredo do Banco de Portugal, constante de fls. 3787 verso e, em consequência, dou o mesmo sem efeito, na parte relativa aos arguidos AL... e JN....
6. Mais julgo verificada a ilegalidade do despacho de fls. 3787 verso por violação do efeito devolutivo do recurso de fls. 3002. Esta ilegalidade é, por força do disposto no artigo 118º nº 2 do CPP, cominada como irregularidade o que faz com que, também por aqui, o despacho de fls. 3787 também sofra de irregularidade processual nos termos do artigo 123.º, n.º 1, CPP, na parte relativa aos arguidos AL... e JN....
7. Mais julgo verificada a ilegalidade do despacho de fls. 3 verso por violação do efeito devolutivo do recurso de fls. 3002. Esta ilegalidade é, por força do disposto no artigo 118º nº 2 do CPP, cominada como irregularidade o que faz com que, também por aqui, o despacho de fls. 3787 também sofra de irregularidade processual nos termos do artigo 123.º, n.º 1, CPP.

Dispõe o artigo 123º nº 1 do CPP “Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado”.
Em face do exposto, uma vez que as irregularidades em causa foram invocadas tempestivamente pelos arguidos e dado que as mesmas afectam o valor dos actos praticados pelo Mº Pº, julgo verificada a irregularidade dos despachos de fls. 3787 e 3954 ss, na parte relativa aos arguidos AL... e JN..., bem como dos actos subsequentes praticados ao abrigo dos despachos em causa, ou seja, as solicitações dirigidas à AT e ao Banco de Portugal e as respostas remetidas ao processo por estas instituições. As informações bancárias em causa, assim como as fiscais, constantes dos autos sob os Apensos VII-2, VII-3, VII-2 eVIII-3, devem ser desentranhadas e acondicionadas em envelope fechado até ao trânsito em julgado deste despacho”.

2. Inconformado com o assim decidido, recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
“1. O presente recurso decorre da plena discordância com a decisão tomada no dia 23.05.2018, constante de fls. 4744 a 4808 - vol. 15 dos autos.
2. Em bom rigor jurídico, uma decisão que não existe não seria passível de recurso, como ensina, por todos, Cavaleiro de Ferreira. Mas a segurança jurídica e a "jurisprudência da cautela" determinou a necessidade do presente recurso.
3. Aliás, o MP já venceu, no âmbito dos presentes autos, dois recursos em situação simétrica à presente (competência restrita do MP e poderes do JIC) tendo as decisões do Tribunal da Relação de Lisboa, datadas de 08-05-2018 e 15-5-2018, sido favoráveis.
4. O despacho recorrido consubstancia a prática de um acto para o qual o JIC não se mostra legalmente habilitado, já que a obtenção de informações bancárias e fiscais e a solicitação de autorização judicial noutro processo para pesquisa de e-mails se assumem, materialmente, como actos de inquérito da competência exclusiva do Ministério Público (art.º 262º, nº 1, do CPP).
5. Tal actividade é constitucionalmente vedada ao juiz de instrução, sendo violadora dos arts. 32º, n.º 5, e 219º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, uma interpretação dos arts. 17º, 53º, nº 2, al b), 262º, nº 1, 263º, nº 1, 268º ou 269º do Código de Processo Penal, que admita uma conformação e uma quase permanente sindicância do processo em fase de inquérito pelo juiz de instrução à revelia do poder decisório do Ministério Público.
6. Na realidade toda a actividade de investigação protagonizada e processualizada pela acção do MP em sede de inquérito contende, num determinado grau, com direitos, liberdades e garantias. Os legisladores, constitucional e ordinário, não desconheciam essa circunstância quando estabeleceram o figurino legal em vigor.
7. O Mmo. JIC dos presentes autos, viola o princípio do juiz natural (dos processos BES e Marquês) ao pretender intervir intermediando o pedido do MP de autorização judicial de pesquisa de e-mails naqueles processos (sendo que os resultados dessa mesma pesquisa sempre serão apresentados posteriormente ao JIC dos presentes autos): de uma assentada, viola a autonomia do MP e a competência/independência do seu próprio Colega no TCIC!
8. O Sr. JIC imiscuiu-se, de forma flagrante e infundamentada, na estrutura acusatória do processo, e no modo de condução da investigação por parte do MP, actuação essa que obsta à aquisição de prova indiciária, e ainda antes de se saber se ela existe e, muito menos, o seu teor.
9. Uma previsão legal susceptível de ser convocada para aferição do JIC competente para, em primeira mão, apreciar pedido do MP de autorização para extração/pesquisa de escutas/e-mails é o art.º 187º n.º 8 do CPP.
10. Conforme sustenta Paulo Pinto de Albuquerque (CPA anotado à luz da CRP e da CEDH, 2ª edição, UCE, Lisboa, p. 511, anotação n.º 13, destaques nossos), "Há que distinguir claramente os poderes do juiz do processo onde foram realizadas as escutas telefónicas e os poderes do juiz do "outro processo" onde elas serão aproveitadas. O juiz do processo onde foram realizadas as escutas é competente para decidir sobre a legalidade das mesmas e sobre a verificação dos requisitos legais estabelecidos no artigo 187°, n° 7.”
11. Conforme sustenta o Venerando Conselheiro Santos Cabral (CPP Comentado, Almedina, 2016, 2ª edição revista, p. 738, anotação nº 16 ao art.º 187º n.º 7 e 8, destaques nossos): “a utilização das escutas, que contêm os conhecimentos fortuitos, no processo sequente onde as mesmas foram juntas não está dependente de qualquer validação, ou autorização judicial, uma vez que as mesmas produziram-se no processo originário ao abrigo de uma autorização judicial que apreciou da existência dos respectivos pressupostos. Tal decisão, tomada validamente, não poderá ser colocada em causa num outro processo e, se tal acontecer, existirá uma manifesta intromissão processual, proferida por quem não detém a necessária competência, ferindo uma decisão tomada legalmente. Dito de outro modo, a escuta autorizada pelo juiz de instrução num processo não pode ser colocada em causa por um outro juiz de instrução num outro processo para onde as mesmas escutas foram exportadas. Aliás, no rigor dos princípios, não há, neste último processo, lugar a qualquer intervenção judicial para validar escutas pois elas já foram validadas. A questão é, então e somente, da valoração das escutas. A escuta autorizada por um juiz de instrução no respeito dos pressupostos materiais e procedimentais prescritos na lei é uma escuta válida para todos os efeitos e tal realidade, que entra no mundo do direito, não pode ser colocada em causa."
12. NINGUÉM alude à necessidade de intermediação do JIC do processo de destino das escutas/e-mails entre o MP do mesmo processo e o JIC do processo de origem desses elementos de prova. E ninguém o faz porque essa exigência é destituída de todo e qualquer sentido e fundamento legal.
13. Mutatis mutandis, a competência para apreciar da bondade da extração de certidões de prova relativas a e-mails pertence ao JIC do inquérito onde tal acervo probatório se encontra originalmente, competindo no limite ao JIC do processo receptor das mesmas proferir despacho de junção dessa prova, excluindo apenas a que respeite à reserva da vida privada sem relevo para a prova ou a conversas entre arguidos e os seus advogados de defesa relativas ao processo-crime ao qual se destinam (sendo que estas, obviamente, não se encontram nos processos BES e Marquês).
14. A propósito, sustenta RUI CARDOSO (Revista do SMMP n.º 153, Janeiro a Março de 2018, fls. 209 a 211, destaques nossos): "A interpretação conjugada do artigo 17º da LCC e do artigo 179º do CPP no sentido de aí fundar uma norma com o sentido de que é o juiz de instrução que, no inquérito, em primeiro lugar toma conhecimento das mensagens de correio electrónico ou semelhantes e que é ele que, oficiosamente, procede à selecção daquelas que são de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, para além de não se traduzir em qualquer real garantia, viola a estrutura acusatória do processo, pois essa é matéria essencial à direcção do inquérito e à definição do seu objecto, assim comprometendo a posição de imparcial juiz das liberdades. O juiz de instrução não pode ter qualquer "influência" ou "manipulação" sobre a definição do objecto do inquérito; deve ser alheio à definição da estratégia de investigação do Ministério Público e OPCs (....) Exigir que seja o juiz a oficiosamente a seleccionar as mensagens relevantes é tão fundamentado como seria exigir que o Ministério Público apresentasse ao juiz de instrução uma lista de casas onde, em abstracto, pudessem existir objectos relacionados com um crime ou que pudessem servir de prova, ou uma lista de pessoas que, em abstracto, pudessem ter conhecimento dos factos, e ser o juiz de instrução a ordenar em quais dessas casas se fariam buscas e quais dessas pessoas seriam inquiridas como testemunhas, a realizar tais diligências e a apresentar depois ao Ministério Público os resultados que considerasse relevantes para a prova."
15. Não está atribuída ao JIC do processo destinatário a competência para intermediar o pedido de pesquisa de e-mails efetuado pelo MP ao JIC do respetivo processo de origem (é obviamente uma decisão investigatória e o contrário significaria uma tutela paternalista judicial do MP, flagrantemente inconstitucional), nem igualmente, como pretende o Mmo. JIC destes autos no processo em crise, decidir o que pode ou não ser feito nos outros processos, competência reservada, em exclusivo, aos JICs desses processos.
16. Duvidamos que em algum outro processo se tenha colocado sequer esta questão (precisamente porque inexiste razão de ser para a mesma, é matéria pacífica), no que configura mais uma actuação judicial inédita do Mmo. JIC nestes autos, a qual será, estamos em crer, declarada pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa INEXISTENTE ou, ao menos, NULA, como já ocorreu categoricamente com outras duas decisões.
17. Nenhuma hesitação ou dúvida tiveram os Exmos. Colegas do MP titulares dos processos BES e Marquês e o respetivo Mmo. JIC em doutamente (pois tal não se mede pelo número de páginas de um despacho, por mais que tal possa impressionar alguns) promover e deferir o pedido dos titulares deste inquérito (cfr. fls. 4575 e 4576 - vol. 14 dos autos principais deste inquérito, relativo ao processo BES).
18. Este despacho judicial do processo BES encontra-se junto aos autos cerca de duzentas folhas antes do despacho em crise, o que leva a crer que o Mmo. JIC destes autos não o viu ou o ignorou ostensivamente.
19. A decisão em crise, além de INEXISTENTE, padece assim das seguintes NULIDADES INSANÁVEIS (as quais apenas foram arguidas à cautela):
- al. e) do art.º 119º do CPP (nulidade insanável respeitante à violação das regras de competência do tribunal), por aplicação analógica quanto ao MP relativamente à matéria do acesso às informações bancárias e fiscais e, por outro lado, quanto à competência exclusiva do Sr. JIC dos processos "BES" e "Marquês" para decidir sobre tudo o que integre o âmbito desses processos, isto sem prejuízo, naturalmente e, como se tinha referido na promoção de fls. 4729 vº (que aparentemente o Mmo. JIC destes autos olvidou), da apresentação de eventuais "emails" que provenham daqueles processos ao Mmo. JIC destes autos nos estritos limites definidos, por exemplo, pelo Conselheiro Souto Moura no (seu e de outros) Comentário ao CPP. Caso contrário, estar-se-ia não perante uma "dupla conforme", cuja necessidade é já em si mesma controvertida, mas face a uma "tripla conforme" (como parece pretender o Mmo. JIC destes autos), exigência manifestamente destituída de fundamento legal.
- al. b) do art.º 119º do CPP, também nulidade insanável, por o órgão judicial se ter substituído ao MP para a apreciação da matéria relativa ao acesso à documentação económico-financeira de natureza bancária e fiscal e a pedidos de colaboração a outros Tribunais.
20. Não tem qualquer sentido que o MP - como o Sr. JIC pretende - tenha de dirigir (ao Mmo. JIC) um pedido prévio a habilitar o MP (titular da investigação!) a, seguidamente, poder solicitar a outros autos autorização judicial para, nesses mesmos autos, se proceder a uma pesquisa de e-mails que, evidentemente, por fim, teriam de regressar ao JIC dos presentes autos quando o resultado dessa pesquisa fosse obtido.
21. O capítulo II do CPP tem o título "dos actos de inquérito" e principia com o art.º artigo 267.° do CPP que refe os actos do Ministério Público "O Ministério Público pratica os actos e assegura os meios de prova necessários à realização das finalidades referidas no n° 1 do artigo 262 º", nos termos e com as restrições constantes dos artigos seguintes".
22. A esmagadora maioria da doutrina, desde Dá Mesquita, Germano Marques da Silva, Souto Moura, Maia Gonçalves, Costa Pimenta e Paulo Pinto de Albuquerque consideram que ao Ministério Público compete declarar a inexistência, a nulidade, a irregularidade e a proibição de prova no inquérito, ressalvada a competência própria do juiz de instrução.
23. Paulo Dá Mesquita estabelece a fronteira entre a competência para conhecer da invalidade e efeitos de conhecimento de invalidade como critério de análise pois (2003, p. 96) afirmando competir ao MP "conhecer das nulidades na fase de inquérito e apreciá-las, designadamente como questão prévia da decisão de encerramento do inquérito (...) enquanto autoridade judiciária com poder decisório nessa fase, contudo essa decisão do Ministério Público, sendo definitiva na sequência procedimental do inquérito, não vincula o órgão judicial que vier a intervir em fases subsequentes do processo, apenas produzirá efeitos definitivos na ordem jurídica na medida da força do despacho de arquivamento não revogado".
24. Assim, a intervenção provocada do JIC na fase pré-acusatória é limitada legalmente pelo CPP, em consonância com a estrutura acusatória do processo que dimana da nossa Constituição da República.
25. É de grande relevo recordar neste contexto toda a linha de argumentação defendida por Figueiredo Dias quanto à estrutura acusatória do processo e as suas implicações a qual tem sido repetidamente utilizada pelo Tribunal Constitucional na sua argumentação sobre a reserva de jurisdição que influenciou decisivamente toda a jurisprudência do TC em matérias de repartição da competência entre os dois órgãos.
26. O legislador prescreveu no art.º 267º do CPP que o "Ministério Público pratica todos os actos e assegura os meios de prova necessários à realização das finalidades referidas no nº 1 do artigo 262º, nos termos e com as restrições constantes dos artigos seguintes", elencando, então, os actos a praticar pelo JIC e os actos a ordenar ou autorizar pelo mesmo.
27. Se observarmos as competências do JIC em nenhum local se encontra prevista como competência reservada a questão das invalidades processuais em sede de inquérito. Consequentemente só lhe competem as que se relacionam com os actos da sua competência reservada em sede de inquérito.
28. Na súmula feliz de Paulo Dá Mesquita (2003, p. 174-5): "A competência do juiz de instrução durante a fase processual presidida pelo Ministério Público, sempre que estejam em causa actos que interferem com direitos fundamentais e outras matérias que a lei reserva ao juiz, obedece a um quadro de intervenção tipificada e provocada (...). Assim, a prática pelo juiz de instrução na fase de inquérito de actos que atingem direitos, liberdades e garantias, depende do impulso do Ministério Público, cabendo, exclusivamente, a este órgão o juízo sobre a sua oportunidade e a primeira avaliação da sua necessidade".
29. Importa recordar, ainda, um elemento histórico: na revisão de 1998 ao CPP o projeto da comissão revisora previa uma nova alínea e) no nº 1 do art.º 268º do CPP permitindo ao juiz de instrução "decidir as questões relativas ao reconhecimento efetivo de direitos processuais do arguido ou do assistente". Contudo, esta proposta da Comissão Revisora embora tenha sido discutida foi abandonada, e foi duramente criticada por Figueiredo Dias.
30. Assim, a repartição de competências constante da legal é perfeitamente clara e, no nosso entendimento, a que mais se adequa ao nosso modelo Constitucional, não tendo merecido qualquer reparo por parte do Tribunal Constitucional que tem, reiteradamente, sancionado a mesma com nitidez. Existe todo um conjunto de jurisprudência dos tribunais superiores nesse sentido, alguma dela ilustrativamente citada nas presentes alegações, nomeadamente do TRL.
31. Ou seja, não tem cabimento na nossa arquitetura jurídico-constitucional que se revela depois nas normas do CPP a interpretação - que tem sido adotada pelos arguidos e pelo Sr. JIC - segundo a qual o juiz de instrução em sede de inquérito funciona como uma "instância de recurso" das decisões próprias do MP.
32. Tal significaria - como tem significado no âmbito dos presentes autos (em que recorde-se o inquérito nem goza de segredo interno, nem mesmo externo exclusivamente por decisão judicial) - (a) a manifesta violação do princípio do acusatório, (b) a impossibilidade de se prosseguir uma investigação célere e eficaz, e (c) o comprometimento do princípio da autonomia do MP.
33. De outra forma existe um ataque efetuado às funções e ao estatuto do MP.
34. Assim, o despacho de que ora se recorre atenta contra a autonomia da magistratura do MP - relativamente ao poder judicial - e padece do vício de inconstitucionalidade, por violação do art.º 219º nº 2 (autonomia do MP) da Constituição.
35. Donde, a decisão recorrida viola as disposições legais que versam sobre esta matéria, arts 18º n.º 2 e 219º n.º 1 da Constituição, arts. 17º, 53º, n.º 2, al. b), 262º n.º 1 e 269 n.º 1 al. f) do CPP, revelando-se, por isso, ilegal e inconstitucional.
36. A decisão judicial recorrida encerra a intrusão nas competências que em sede de inquérito pertencem funcionalmente ao núcleo privativo do MP.
37. Deve declarar-se o JIC incompetente para fiscalizar o teor dos despachos dos MP em causa.
38. Como refere Souto de Moura (1990, p. 119), a "lei processual não fala em lado algum de inexistência de actos processuais e percebe-se porquê. É que a lei processual regulamenta actos de processo. Não actos que não são processuais", e continua relembrando "Os actos têm que revestir-se de certas características, têm que assumir uma forma que se encontra associada à respetiva eficácia processual. Ora a regularidade e efeitos processuais dos actos podem ser prejudicados se eles estiverem viciados. (...) é possível configurar um conjunto de circunstâncias, que nem sequer chegam a atacar os actos de processo para os viciar, porque impedem, que actos com efectiva existência material, tenham além disso existência jurídica. São circunstâncias que fazem com que o acto de processo nem sequer surja, e portanto, seja como tal, um acto inexistente".
39. Trata-se, segundo Calmon dos Passos, de um "não-acto, por que desprovido dos pressupostos que informam a existência do acto processual".
40. Cavaleiro Ferreira distingue a nulidade da inexistência nos seguintes termos: "o acto nulo não produz quaisquer efeitos, mas, em si mesmo não seria inidóneo para os produzir; inexistente que não só não produz quaisquer efeitos, mas que em caso algum os poderia produzir.
41. Considerando-se o velho princípio da segurança jurídica, o MP vem recorrer de um despacho judicial que está ferido com o vício da inexistência jurídica, devendo considerar-se como não escrito, pois trata-se de uma decisão que não só padece de nulidade por ausência de fundamentação de facto e de direito como procura transmitir decisão manifestamente ilegal violando não só as regras processuais penais e princípios fundamentais alegados como, inclusive, a própria Constituição.
42. Subsidiariamente, defende-se que a decisão judicial é nula (se não for considerada inexistente) sendo evidente para o MP que, por um lado, não só pode aceder a informações bancárias e fiscais dos arguidos em causa como, por outro, pedir e receber do JIC dos processos BES e Marquês certidões de e-mails e apresentá-los ao Sr. JIC destes autos para junção aos mesmos.
43. Não se afigura legalmente admissível que a fase de inquérito possa ser o momento adequado para o JIC se pronunciar sobre o modo e o timing das atuações próprias do MP, uma vez que não nos encontramos nem em sede de instrução nem de julgamento.
44. Apesar dos actos investigatórios em causa (e da apreciação de alegados vícios dos mesmos, da sua declaração ou sanação) serem actos de inquérito materialmente da competência do MP, o Sr. JIC veio a apoderar-se dessas funções e decidiu-se ilegalmente pela existência de alguns dos vícios invocados pelos arguidos.
Termos em que se requer que o presente recurso seja julgado procedente, declarando a inexistência jurídica do despacho do Sr. juiz de instrução por ser incompetente para sindicar os despachos do Ministério Público em causa e, em consequência, seja o despacho a quo revogado, subsidiariamente, por ser nulo em face das competências em causa pertencerem ao MP”.

3. O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.

4. Os arguidos AL... e JN... vieram responder ao recurso apresentado, terminando as contra-alegações com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):
“A. O Recurso sob resposta foi interposto do Despacho do Mm.º Juiz de Instrução Criminal, de dia 23.05.2018, a fls. 4744 e ss. (doravante, Despacho Recorrido), que, em sentido favorável à pretensão dos Arguidos AL... e JN... antes manifestada em requerimentos de fls. 3983 e ss., 3997 e ss. e 4640 e ss., decidiu (i) acerca da impossibilidade de importação, do Processo BES e do Processo Marquês, para os presentes autos, de pesquisas de correio eletrônico aí apreendido, (ii) acerca da impossibilidade do pedido de informações dirigido à e da resposta da Autoridade Tributária, em relação aos Arguidos AL... e JN..., e, por fim (iii) acerca da impossibilidade do pedido de informações dirigido ao e da resposta do Banco de Portugal, também em relação aos mesmos Arguidos - tudo isto depois de o Mm.º Juiz a quo reconhecer ser sua a competência para o tratamento das matérias em questão, que se reconduziam à apreciação da validade de actos praticados pelo Ministério Público em sede de inquérito que contendiam com direitos fundamentais dos Arguidos.
B. O Recorrente delimitou o âmbito do presente recurso (e, por isso, da presente Resposta) à discussão de parte dos temas considerados no Despacho Recorrido, ao abordar, tão-só, (i) a questão da (alegada) incompetência do Juiz a quo para proferir o Despacho Recorrido (tema que tem repercussões em todos os segmentos decisórios do Despacho Recorrido - a saber: no tema da solicitação dos emails a outros processos e no tema da solicitação de informação ao Banco de Portugal e à Autoridade Tributária) e (ii) a questão da validade do pedido de pesquisa de emails, dirigido pelo Ministério Público ao Juiz de Instrução Criminal dos processos BES e Marquês (tema que se reporta especialmente a um dos três setores decisórios do Despacho Recorrido, i.e., ao tema da importação de emails dos Processos BES e Marquês).
C. As decisões do Ministério Público apreciadas pelo Mm.º Juiz a quo no Despacho Recorrido contendiam com direitos fundamentais dos Arguidos - a saber: o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar (no caso das decisões respeitantes à quebra do sigilo bancário e fiscal e às decisões atinentes à importação de mensagens de correio eletrónico dos Processo BES e Marquês) e o direito à inviolabilidade da correspondência e ao segredo das telecomunicações (apenas relativamente ao segundo grupo de decisões). Tais direitos fundamentais encontram-se previstos, respetivamente, nos artigos 26°, n° 1, e 34°, n°1, CRP, mas também nos artigos 8.° da CEDH, 12.° da Declaração Europeia dos Direitos do Homem, 17.° do Pacto sobre Direitos Civis e Políticos e 7.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
D. A competência do Juiz de Instrução para a apreciação da invalidade de actos praticados em inquérito, pelo Ministério Público, que contendam com direitos, liberdades e garantias, decorre da lei ordinária (artigo 17º do CPP ou dos artigos 268°, n° 1, alínea f), e 269.°, n° 1, alínea f), CPP, interpretados como "normas em branco", para todos os casos, e artigo 17.° Lei do Cibercrime, também para o específico caso da apreensão de correio eletrônico).
E. Essa competência do Juiz de Instrução Criminal para a declaração de invalidade de actos do Ministério Público, em sede de inquérito, que violem direitos, liberdades e garantias, decorre, também, diretamente da Lei Fundamental (artigos 18.°, n° 1, 20°, n°s 1, 4 e 5, 32.°, n.°s 1, 4 e 5, 202°, n° 2, CRP), significando que, em bom rigor, nem sequer seria necessária qualquer norma ordinária que concretizasse essa função / poder.
F. Quanto ao específico caso da apreensão de correio eletrónico, há um argumento adicional: o artigo 17.° da LCC expressamente estipula que compete ao juiz de instrução a competência exclusiva para autorizar e ordenar a apreensão de correio eletrônico, pelo que, desde logo por razões de ordem lógica, é igualmente ao juiz de instrução que compete conhecer dos vícios processuais em sentido lato (incluindo proibições de prova) derivados da falta de ordem ou autorização para apreensão das mensagens de correio eletrônico objecto dos presentes autos.
G. É insustentável o argumento do Recorrente de que a defesa da competência do Juiz a quo nos termos definidos no Despacho Recorrido deve ser afastada porque impede que a prossecução de uma investigação célere e eficaz. Se "celeridade" e "eficácia" na investigação são, para o Recorrente, sinónimo de "conivência e convivência com ilegalidades processuais que afetam direitos fundamentais" (porquanto o seu discurso se desenvolve no sentido de impedir que os Arguidos alertem o Mm.º Juiz a quo para tais ilegalidades, bem sabendo que seria essa a única entidade que lhes poria cobro), então a presente discussão dá-se por terminada, bastando que se admita, de uma vez por todas, a defesa de diferentes (rectius: de antagónicas!) concepções de Estado: enquanto que os Arguidos e o Mm.º Juiz a quo se apresentam como partidários de um verdadeiro Estado de Direito democrático; o Recorrente nega-o frontalmente, assumindo-se como defensor de uma "investigação a todo o custo" que ignora a necessidade de concordância prática entre as finalidades da descoberta da verdade material e da proteção de direitos, liberdades e garantias dos arguidos e que, nessa medida, "não olha a meios para atingir fins".
H. É também indefensável o argumento do Recorrente de que a defesa da competência do Juiz a quo nos termos definidos no Despacho Recorrido deve ser afastada, porque violadora do princípio do acusatório, previsto no artigo 32°, n° 5, CRP. Assim se deve entender por ser o próprio princípio do acusatório aquele que apela para que o controlo dos limites da investigação, nomeadamente quanto à afetação de direitos, liberdades e garantias dos visados, não seja confiada ao próprio responsável pela investigação (o Ministério Público), que, por mais objectividade que tenha, será sempre "juiz em causa própria", mas antes confiada a uma entidade diferente e, mais concretamente, a um órgão jurisdicional que será, precisamente, o Juiz de Instrução Criminal.
I. É ainda infundado o argumento do Recorrente de que a defesa da competência do Juiz a quo nos termos definidos no Despacho Recorrido deve ser afastada, porque violadora do princípio da autonomia do Ministério Público, previsto no artigo 202°, n° 2, CRP. Assim se deve entender, porque a autonomia do Ministério Público apenas exprime a ideia de que as opções tomadas no seio dessa magistratura ocorrem sem interferências externas à mesma, não significando, também, que a CRP admite a possibilidade de o Ministério Público se furtar ao controlo jurisdicional da legalidade, comum a todos os órgãos de soberania na Administração Pública, sobretudo quanto estejam em causa a afetação de direitos fundamentais.
J. Acresce que a prática judiciária tem revelado que a procedência da tese do Recorrente levaria a uma situação insustentável de insindicância das decisões do Ministério Público, em inquérito, que afetassem direitos fundamentais: em primeiro lugar, a arguição da irregularidade / nulidade feita perante o próprio decisor não se revela como um verdadeiro mecanismo de sindicância do acto (pois dificilmente o decisor, a quem a arguição de ilegalidade é dirigida, "dá o dito por não dito"); em segundo lugar, a reclamação para o Superior Hierárquico do decisor, em caso de indeferimento da pretensão do visado referida anteriormente, tem levantado problemas de ordem prática que redundam na declaração de incompetência para o conhecimento das matérias em questão, por parte da hierarquia do Ministério Público, por força do princípio da legalidade e da autonomia do Ministério Público.
K. Diferentemente, se se optar pela via defendida pelo Mmº Juiz a quo no Despacho Recorrido, a decisão do Ministério Público será efectivamente apreciada por um Juiz, entidade diferente, podendo, depois, vir a ser definitivamente decidida por um Tribunal Superior, atento o facto de a decisão do Juiz de Instrução Criminal ser recorrível, nos termos gerais - solução que se afigura bem mais consentânea com o Texto Constitucional, já que mal se compreenderia que prevista na lei (e, assim, violar o princípio da legalidade da prova previsto no artigo 125° CPP) e por beliscar, de forma incomportável, direitos fundamentais à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à inviolabilidade da correspondência e ao segredo das telecomunicações dos visados (assim, contrariando o artigo 126°, n° 3, CPP e entrando em colisão directa com os artigos 26°, n° 1, e 34°, n° 1 da CRP e 8°, n° 1, CEDH).
Q. Uma interpretação diversa dos artigos 17° da Lei do Cibercrime e dos artigos 125° e 126°, n°3, CPP seria claramente inconstitucional, por violação dos artigos 18°, n° 2, 20°, n° 4, 26°, n°1, 32°, n.°s 1 e 8, 34°, n° 1, CRP, e violadora de normas internacionais, como sejam os artigos 6°, n° 1, e 8°, nºs 1 e 2 CEDH, aplicáveis ex vi artigo 8°, n° 2, CRP.
R. Por outro lado, a concreta forma de execução do meio de obtenção de prova equacionada pelo Recorrente é inadmissível, por colocar em causa o princípio do juiz natural ou legal (constitucionalmente previsto no artigo 32°, n° 9, CRP), juiz natural / legal este que, nos termos do artigo 17° da Lei do Cibercrime, é (apenas e só) o Mm° Juiz a quo.
S. Uma interpretação diversa do artigo 17° da Lei do Cibercrime atentaria frontalmente contra os artigos 18°, n° 2, 20°, n.°4, e 32°, n°s 1 e 9, CRP, bem como contra os artigos 6°, n° 1, CEDH, aplicável ex vi artigo 8°, n° 2, CRP.
T. Mesmo que se considerasse admissível a importação do regime do artigo 187°, n° 7 e 8, CPP para a prova obtida através de emails, ex vi do artigo 189.°, n° 1, CPP - tese que se rejeita e que só por cautela de patrocínio se equaciona -, certo é que, mesmo nesse caso, a pretensão do Recorrente não conseguiria proceder, porquanto o caso em apreço não se insere na hipótese normativa prevista no artigo 187°, n° 7 e 8, CPP, sendo flagrante a falta de preenchimento dos requisitos legais necessários para o efeito. Com efeito:
U. Em primeiro lugar, nos termos do regime que o Recorrente considera aplicável, a gravação de conversação ou comunicação (ou neste caso, do email) teria que ser vista como indispensável à prova da comissão de crimes indicados no artigo 187°, n° 1, CPP (artigo 187°, n° 7, CPP), indispensabilidade esta que não foi devidamente alegada e provada pelo Ministério Público.
V. Em segundo lugar, o Recorrente visa a realização, ex novo e de acordo com palavras-chave por si determinadas, de pesquisas nas caixas de correio eletrónico apreendidas à ordem dos Processos do BES e do Marquês, seguida de uma tomada de conhecimento dos resultados dessa pesquisa, ao abrigo do artigo 187°, n°s 7 e 8, CPP, quando, a mal da sua pretensão, tais normas, diferentemente, exigem um conhecimento "fortuito" aquando de uma "intercepção de comunicações", neste caso, de emails, necessariamente em tempo real - coisa que, in casu, nunca aconteceria.
W. Em terceiro e último lugar, a pretensão do Recorrente sempre seria ilegal, considerando o facto de, ao abrigo do artigo 187°, n° 8, CPP, a iniciativa de se destacar determinada prova e de a mesma ser transmitida para outro processo parte sempre das autoridades competentes no processo onde a escuta (ou neste caso, o email) surge e do qual ela (ele) teria que ser exportada (exportado) (in casu, o Processo BES e o Processo Marquês), e não, como quer o Recorrente defender, daquele processo onde a informação se diz ser necessária (in casu, dos presentes autos).
X. Assim, e mesmo da perspetiva do Recorrente, a pretensão recursória deve ser afastada, por ser ilegal, (i) seja porque a concretização de pretensão apelaria, uma vez mais, à violação do principio da legalidade da prova (artigo 125° CPP) e do princípio segundo o qual não se pode valorar provas proibidas (artigo 126°, n° 3, CPP), pois estar-se-ia a aplicar um meio de obtenção de prova tipicizado de uma forma não prevista pela lei (lógica aplicável aos segundo e terceiro argumentos); (ii) seja porque a validade da concretização de uma tal pretensão sempre faleceria, ao estar contagiada pelo vício de falta de fundamentação (artigo 97°, n° 5, CPP) de que irremediavelmente padeceriam os despachos a que o Despacho Recorrido obstou (lógica aplicável ao primeiro argumento).
Y. Uma interpretação diversa dos artigos 125° e 126°, n°3, e 187°, n° 7 e 8, CPP atentaria frontalmente contra os artigos 18°, n° 2, 20°, n° 4, 26°, n° 1, 32°, n°s 1 e 8, 34°, n° 1, CRP, e violadora de normas internacionais, como sejam os artigos 6°, n° 1, e 8°, nºs. 1 e 2 CEDH, aplicáveis ex vi artigo 8°, n° 2, CRP.
Z. Por seu turno, uma interpretação diversa dos artigos 97°, n°5, 126°, n°3, e 187°, n° 7, CPP seria claramente inconstitucional, por violação dos artigos 18°, n° 2, 20°, n° 4, 26°, n° 1, 32°, n°s. 1 e 8, 34°, n° 1, 205°, CRP, e violadora de normas internacionais, como sejam os artigos 6°, n° 1, e 8°, nºs. 1 e 2 CEDH, aplicáveis ex vi artigo 8°, n° 2, CRP.
AA. O Despacho Recorrido não padece da nulidade prevista na alínea e), do artigo 119° CPP, quando perspetivada no sentido da violação da competência do Ministério Público: (i) seja porque o preceito em causa não compreende uma situação em que esteja em causa a violação da competência do Ministério Público (e não do Tribunal, como expressamente previsto), atenta a regra segundo a qual as normas excepcionais (como esta) não podem ser interpretadas analogicamente (artigo 11.° CC); (ii) mas também porque, em todo o caso, a intervenção do Mm.° Juiz a quo se encontra plenamente justificada, nos termos dos artigos 17°, 268°, n° 1, alínea f) e 269°, n° 1, aliena f), CPP , bem como artigo 17.° da Lei do Cibercrime e, desde logo e directamente (artigo 18°, n°1, CRP), pelos artigos 20.°, n°s 1, 4 e 5, 32°, n°s 1, 4 e 5, 202°, n° 2, CRP.
BB. O Despacho Recorrido também não padece da nulidade prevista na alínea e), do artigo 119.° CPP, quando perspetivada no sentido da violação da competência do Mm.º Juiz de Instrução Criminal dos Processos BES e Marquês, porque, salvo o devido respeito, a tal Mm.º Juiz de Instrução Criminal não pode ser reconhecida, no presente contexto, qualquer competência que mereça ser respeitada, seja considerando a legislação aplicável (artigo 17° Lei do Cribercrime), seja atendendo à legislação que o Recorrente defende ser aplicável, considerando o facto de a situação por si equacionada não se enquadrar na norma que invoca (artigo 187.°, n.°7 e 8, CPP).
CC. Por outro lado, o Despacho Recorrido também não padece da nulidade prevista na alínea b), do artigo 119.° CPP: (i) primeiro, porque o Mm.º Juiz a quo se limitou a aferir da validade dos actos do Ministério Público, não tendo existido nenhuma substituição do Ministério Público na apreciação da matéria relativa ao acesso à documentação de natureza fiscal e bancária ou mesmo na apreciação da matéria relativa ao acesso aos emails provenientes do processo BES e Marquês; (ii) segundo, porque o Ministério Público efetivamente promoveu (mal, porém) no sentido de ter o acesso a emails dos processos BES e Marquês e a informações bancárias e fiscais relativas aos Arguidos, tendo sido esse, justamente, o objecto do Despacho Recorrido, não tendo sido obstado nessa sua atuação; (iii) terceiro, porque o Ministério Público não esteve ausente de actos relativamente aos quais a lei exija a sua presença física, como a norma pressupõe; e (iv) quarto, porque (mesmo na lógica do Recorrente, segundo a qual o Mmº Juiz a quo se substituiu ao Recorrente em actos da sua (suposta) exclusiva competência), a nulidade ora em apreço pressupõe que não seja o Ministério Público a presidir à diligência / ao acto processual em causa - ideia que entra em colisão com a própria alegação do Recorrente e, por isso, lhe retira qualquer réstia de sustento.
DD. Por fim, o Despacho Recorrido não é inexistente, seja porque tal conclusão decorre naturalmente do facto de o mesmo nem sequer padecer de qualquer nulidade insanável (vicio por definição mais leve), seja sobretudo porque o Despacho Recorrido, longe de padecer de falta de elementos essenciais à consideração do mesmo como acto processual (característica típica da inexistência), corporiza, apenas, uma diferente perspetiva jurídica daquela defendida pelo Recorrente quanto ao tratamento da questão respeitante ao âmbito dos poderes do Juiz de Instrução Criminal, em sede de inquérito.

Nestes termos (...) deverá julgar-se totalmente improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público proferido pelo Mmº Juiz de Instrução Criminal no dia 23.05.2018, a fls. 4744 e ss, mantendo-se integralmente o teor do mesmo.
Nos termos do art.º 72º, nº 2 da Lei do Tribunal Constitucional, mais se requer que (...) apreciem as inconstitucionalidades suscitadas”.

5. Neste Tribunal o Exmº Procurador Geral Adjunto emitiu parecer subscrevendo a motivação de recurso, realçando, em síntese, o seguinte:
- O Sr.º Juiz de Instrução não pode nunca intrometer-se na investigação criminal e determinar o que o Ministério Público pode ou não investigar, sendo o momento próprio para declarar o que eventualmente julgue ilegal, a instrução e não o inquérito.
- O Ministério Público tem a competência e o dever legal de procurar a prova onde ela se encontrar, e se tal ocorrer num outro processo em que já foram realizadas diligências com recolha de prova (legalmente), que possa ser útil, pode e deve utilizar essa prova já recolhida.
 -E tratando-se, como neste caso, de processo de grande volume e elevada complexidade importa fazer pesquisas apesar de os elementos terem sido já recolhidos, e sem que com isso haja qualquer ofensa ao juiz natural. A prova recolhida noutros processos foi feita sob supervisão do JIC competente titular desses processos, diga-se que sempre houve certidões que se solicitaram a outros processos e na era da informática não se trata de mais do que isso, com a diferença que neste caso importa pesquisar os elementos.
-Por fim, a prova recolhida nos outros processos foi recolhida legalmente com a intervenção dos Juízes titulares, e mesmo relativamente às pesquisas solicitou-se a intervenção dos mesmos juízes que são os competentes.

7. Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do CPP, vindo os arguidos recorridos responder, reafirmando a posição defendida no recurso interposto, juntando aos autos uma Consulta, com ampla e proficiente fundamentação, subscrita pelos Ilustres Professores Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão da Faculdade de Direito de Coimbra na qual concluíra que "nenhuma censura merecem, antes sim irrestrito aplauso, as decisões do Tribunal a quo de conhecer os requerimentos referidos na Consulta (...) dada a inegável competência do juiz de instrução para apreciar e decidir” (cfr. fls.370 a 392 e 395 a 441).

8. Foram colhidos os Vistos legais.

9. Procedeu-se então à Conferência com observância do legal formalismo.

Cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO.

1. Conforme entendimento pacífico da doutrina e jurisprudência, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, vindo o presente recurso a colocar as seguintes questões:
- Saber se o Juiz de instrução em fase de inquérito tem competência para se pronunciar, a requerimento dos arguidos, sobre os pedidos feitos pelo Ministério Público, a outros processos, de aquisição de  meios de prova como certidão de e-mails (correio electrónico), informações bancárias (Banco de Portugal) e fiscais (Autoridade Tributária), e concluir pela existência de invalidades e nulidades processuais dos actos do Ministério Público, em face do disposto no art.º 126º, nº 3, do CPP?
 - O despacho proferido pelo Juiz de instrução, sob promoção do Ministério Público, que autorizou a transferência dos elementos de prova (no âmbito dos processos 324/14.0TELSB e 122/13.8TELSB) padece de nulidade insanável por violação da competência do tribunal e do princípio do Juiz natural?
- O despacho do Mº Pº que decretou a quebra do segredo do Banco de Portugal, constante de fls. 3787 verso, padece de irregularidade, nos termos do art.º 123º do CPP, por falta de fundamentação, devendo ser dado sem efeito?

2. Para melhor enquadramento das questões suscitadas, vejamos com relevância os requerimentos e despachos que desencadearam este procedimento:

2.1. No dia 13 de Março de 2018 (fls.3763 a 3778), o Ministério Público proferiu o seguinte despacho: PEDIDO DE E-MAILS AO PROCESSO BES.

“Da documentação recolhida no âmbito dos presentes autos é possível concluir que o arguido AL... foi administrador em .... do BES (Banco Espírito Santos) Investimento (BESI), controlado pelo GRUPO ESPÍRITO SANTO (GES).
O arguido MP... integrou em .... o Conselho de Administração do Banco Espírito Santo, então controlado pelo Grupo Espírito Santo (GES) onde foi responsável pela área de mercado de capitais em várias empresas participadas, designadamente a Espírito Santo Investement (ESI), a Espírito Santo Activos Financeiros (ESAF) e a Espírito Santo Resarch.
Os arguidos MP... e AL... conhecem-se, pelo menos, desde esse período, em que trabalharam simultaneamente no GRUPO ESPÍRITO SANTO (GES), hoje insolvente na sequência da intervenção do Banco de Portugal no BES.
Em 2007 o BES (Banco Espírito Santo) era acionista de referência na EDP, na qual se manteve pelo menos até ao final de 2013, como resulta do respetivo relatório e contas.
O arguido AL... foi, entre 17 de Julho de 2004 e 12 de Março de 2005, Ministro ..., e, entre 12 de Março de 2005 e 26 de Outubro de 2009, Ministro ... no Governo de Portugal liderado pelo ex-primeiro ministro José Sócrates.
Investiga-se no presente inquérito, entre o mais e em suma, eventuais benefícios indevidos concedidos pelo arguido MP..., enquanto Ministro ...., em 2007 à E..., já então liderada prelo arguido AL... e a troco de um emprego para aquele como professor na Universidade ...., na concretização da passagem dos CAE (contratos de relativos aos Custos de Manutenção do Equilíbrio Contratual), os quais permitem à E..., numa posição de quase monopólio, receber anualmente uma receita fixa, pois embora essa empresa seja obrigada a comercializar a energia no mercado ibérico, a preço variáveis, no final de cada ano recebe sempre o mesmo montante.
Mais se averigua a decisão do Governo, do qual o arguido MP... era Ministro...., de estender as concessões de água atribuídas à E... por um total de 759 milhões de euros, passando a companhia a deter 27% da capacidade do País em gerar energia por mais 45 anos.
Ou seja, investiga-se a decisão do Governo, no qual o arguido MP... teve um papel decisivo, de permitir à E... continuar a explorar 27 centrais hidrelétricas sem concurso público, através de uma subconcessão de direitos de utilização dos recursos hídricos por parte da Rede ..., à data empresa estatal, a quem estes seriam concessionários pelo Estado, por valores anormalmente baixos relativamente ao valor de mercado.
(...)
Após ser, entre ....., membro do Conselho de Administração do Grupo BES,  o qual, como se disse, detinha interesses na E..., onde era acionista de referência, a seguir a deixar o Governo o arguido MP... veio a integrar novamente o GES/BES através do BES África, onde se manteve de .....
Com efeito, na revisão dos CMC e na extensão sem concurso das concessões das barragens, a EDP pagou uma quantia muito inferior à que seria efectivamente devida, cerca de €1.200.000.000,00. 
O arguido MP... teve uma intervenção activa determinante nos acontecimentos que se relacionam com o fim dos CAE e com a celebração dos contratos referentes aos Custos para Manutenção do Equilíbrio Contratual (vulgarmente mencionados como CMEC) nomeadamente determinando toda a actividade legiferante de natureza executiva que culminou na operacionalidade de tal mecanismo.
Ora, como é do conhecimento público, resulta dos documentos juntos ao processo nº 122/13.8TELSB (no qual R.... e J.... foram acusados de crimes de corrupção, fraude fiscal e branqueamento) que, entre o dia 21 de Fevereiro de 2013 e 11 de Abril de 2014 e a partir de contas no BANQUE .... o arguido MP... recebeu um total de 315.062,00 euros da sociedade offshore ..., accionista da E... através do BES).
(...)”.
“Por conseguinte, minute ofício, que subscreveremos, a solicitar ao Exmo. Colega titular do inquérito nº 324/14.0TELSB que promova, nesse processo, a  necessária autorização judicial, nos termos do art.º 179º, nº 3 do CPP ex vi do art.º 17º da lei do Cibercrime (nº 109/2009, de 15 de Setembro), para a realização de pesquisa nas caixas de correia electrónico de colaboradores, funcionários e administradores do BES aí apreendidas, em particular na de MP... e sua secretária M.... (m... @...pt), com recurso às palavras-chave adiante especificadas, a apresentação dos e-mails que daí resultarem ao Mmº JIC desse processo para exclusão dos que integrarem a reserva da vida privada e a remessa, a estes autos, de cópia digital dos restantes que se mostrem relevantes para a constituição da prova indiciária dos presentes autos, considerando a descrição dos factos acima mencionados.
(...)”.
           
2.2. No dia 15.03.2018, o Ministério Público proferiu o seguinte despacho:
“Os presentes autos reportam-se a factos susceptíveis de integrar a prática de crimes de titulares de cargos políticos ou, pelo menos, os seguintes crimes comuns:
-corrupção passiva (art.º 373º do CP);
-corrupção activa com a gravação (arts. 374º e 374º-A do CP);
-participação económica em negócio (art.º 377º do CP).
Na sequência do nosso despacho datado de 09.06.2016, e atenta toda a prova entretanto recolhida, de acordo com o disposto  no art.º 79º, nº 2, al. e) do RGICSF (DL nº 298/92, de 31/12), oficie-se ao BdP solicitando o envio de informação relativamente a todas as contas bancárias em nome de (1) MP..., bem como naquelas em que é interveniente a qualquer outro título (nomeadamente autorizado, representante ou procurador).
Por identidade de razões e com os mesmos fundamentos constantes do despacho anterior (mutatis mutandis), oficie-se ao BdP, em idênticos termos, relativamente aos outros arguidos (2) AL..., (3) JN..., (4) PR... (...).
Para o efeito remetam-se todos os dados de identificação necessários ao BdP (...)”.

2.3. No dia 23.03.2018 (fls. 3954 a 3957 verso) o Ministério Público proferiu o seguinte despacho:
 “Por referência ao despacho de 13 de Março de 2018 (fls.3763 e ss.), a qual damos aqui por reproduzido por economia processual, e do qual já foi remetido cópia, minute ofício, que subscreveremos, a solicitar ao Exmº Colega do inquérito nº 122/13.8TELSB que promova, nesse processo, a necessária autorização judicial, nos termos do art.º 179º, nº 3 do CPP ex vi art.º 17º da Lei do Cibercrime (nº 109/2009, de 15 de Setembro), para:
            (i) a realização de pesquisa nas caixas de correio electrónico de colaboradores, funcionários e administradores do ... aí apreendidos, com recurso às palavras-chave adiante especificadas,
            (ii) bem como a pesquisa por outra palavra chave relativas a pessoas singulares ou colectivas que nesses autos se mostrem relacionados com os arguidos MP... e AL...,
(iii) a apresentação dos e-mails que daí resultarem ao mmº JIC desse processo para exclusão dos que integrarem a reserva da vida privada e
(iv) a remessa, a estes autos, de cópia digital dos restantes que se mostrem relevantes para a constituição da prova indiciária dos presentes autos, considerando a descrição dos factos mencionados na anterior promoção já remetida a esses autos.
(...).
                                                                     *
Na sequência e nos termos do despacho de 9 de Junho de 2017 (fls. 1560 do 5º volume) solicite à AT o envio das declarações fiscais de todos os arguidos relativas aos anos de 2006 a 2016. Prazo 5 dias: Remeta cópia do despacho no segmento aplicável”.
(...)”.

2.4. Em 17.04.2018, o Mmo. Juiz de Instrução no âmbito do processo nº 122/13.8TELSB (processo Marquês), proferiu o seguinte despacho (fls. 4575/6):

“Fls. 48754 a 48755 - Promoção do MºPº o acesso a dados informáticos, que infra se transcreve:
O processo 184/12.5TELSB veio solicitar o acesso aos elementos informáticos apreendidos nos presentes autos, tendo em vista a identificação, por pesquisa através de palavras chave, de documentos com interesse para o mesmo.
Nada temos a opor a que seja deferida a pesquisa pretendida, entendendo-se que, atenta a fase processual actual e a natureza dos acervos a pesquisas, a mesma deverá ser precedida de autorização judicial e sancionada por decisão judicial a transmissão dos documentos encontrados.
Atenta a dimensão do acervo informático a pesquisar, caso seja deferida a dita pesquisa, entendemos dever ser suscitada a coadjuvação do OPC que interveio nos presentes autos, que deverá produzir um novo suporte informático onde, por pastas referidas a apensos bucas e suportes apreendidos, sejam gravados todos os documentos que foram encontrados pela pesquisa a realizar.
Tal novo suporte com ficheiros encontrados será depois sujeito a nova apreciação judicial, antes de ser formalizada a disponibilização de informação ao processo nº184/12.5TELSB.
Promovemos assim que, antes de mais, se autorize o acesso por parte do OPC a todos os ficheiros informáticos recolhidos nos autos, no sentido de poder satisfazer a pretensão requerida pelo proc. 184/12.5TELSB.

Cumpre decidir:

Nos termos e com os fundamentos doutamente promovidos, autorizo o acesso por parte do OPC, a todos os ficheiros informáticos recolhidos nos presentes autos agindo-se conforme promovido, no sentido de poder satisfazer a pretensão requerida pelo processado 184/12.5TELSB.
Notifique”.

2.5. Os arguidos AL... e JN..., em 27.04.2018, tendo tido conhecimento dos pedidos formulados pelo Ministério Público a solicitar ao processo nº 324/14.0TELSB (processo BES) e ao processo nº 122/13.8TELSB (processo Marquês) variados elementos de prova, em 27.04.2018 vieram pugnar pela ilegalidade e nulidade de tais pedidos feitos pelo Ministério Público, (fls.24640 a 4808).

2.6. O Mmº Juiz de Instrução no presente inquérito, face ao requerimento apresentado pelos arguidos, a 23 de Maio de 2018 (fls. 4744 a 4808), proferiu o seguinte despacho, ora sob recurso:
 
1. Fls. 3983: Requerimento dos arguidos AL... e JN... (6-4-2018).
No qual pedem a ilegalidade dos despachos do Mº Pº de a fls. 3763 e ss., através dos quais o Ministério Público solicitou ao processo n.º 324/14.0TELSB (o chamado “Processo BES”) e ao processo n.º 122/13.8TELSB (o chamado “Processo Marquês”) variados elementos de prova.
Tendo, para o efeito, alegado o seguinte:
No passado dia 26.03.2018 teve conhecimento da conclusão de fls. 3763 e ss. e, por isso, dos pedidos de documentação (lato sensu) efectuados aos apelidados “processo BES” e “processo Marquês”.
Nestes termos, tiveram os arguidos conhecimento fortuito das solicitações acabadas de mencionar e com as quais, de resto, não se conformam.
Mais alegam, que a autorização judicial a que o legislador apela não será uma qualquer autorização judicial, mas sim – e obviamente – a autorização judicial do juiz do processo em questão.
Com efeito, o Ministério Público, através do pedido de fls. 3763 e ss., pretende que a autorização judicial seja dada, não por V. Exa., mas pelo Senhor Juiz de Instrução Criminal destacado para o processo n.º 324/14.0TELSB (processo de onde se pretende obter informação).
Ora, em termos processuais, o pedido formulado pelo Ministério Público a fls. 3763 e ss., que, no fundo, consubstancia uma autêntica fraude à lei e uma flagrante fraude ao juiz, sempre terá que considerar-se nulo por visar o acesso e apreensão de mensagens de correio electrónico sem a autorização judicial competente, em flagrante violação dos artigos 17.º da Lei do Cibercrime, do artigo 178.º, n.º 1, CPP, do artigo 269.º, n.º 1, alínea d), CPP, e por, assim, desrespeitar as regras de competência do tribunal, nos termos do artigo 119.º, alínea e), CPP, nulidade que aqui se deixa arguida para todos os efeitos legais.

2-1-Fls. 3997: Requerimento dos arguidos AL... e JN... (6-4-2018).

No qual pedem que seja declarada a invalidade do pedido do Mº Pº formulado no despacho de fls. 3787.
Para tanto, alegaram, em resumo, o seguinte:
No passado dia 26.03.2018 a defesa teve conhecimento do despacho de verso de fls. 3787 e, bem assim, dos ofícios de fls. 3817 e 3818 que lhe seguiram, através dos quais o Ministério Público solicitou ao Banco de Portugal informação respeitante a todas as contas bancárias registadas em nome de vários arguidos, entre os quais, os aqui Requerentes, e, bem assim, informação sobre as contas bancárias em que tais arguidos, entre eles, os aqui Requerentes, fossem intervenientes a qualquer título (nomeadamente, com autorizados, representantes e procuradores).
Mais alegam que:
No despacho de verso de fls. 3787, o Ministério Público pretende a quebra do sigilo bancário do Banco de Portugal, invocando, para o efeito, o artigo 79.º, n.º 2, alínea e), RGICSF.
De uma análise global do RGICSF, decorre que os artigos 78.º e 79.º do diploma regulam o segredo profissional (bancário) das instituições de crédito – nos termos do artigo 2.º-A, alínea w), do RGICSF, «empresa[s] cuja actividade consiste em receber do público depósitos ou outros fundos reembolsáveis e em conceder crédito por conta própria», conceito onde se entende que não cabe o Banco de Portugal.
E que, diferentemente, os artigos 80.º a 84.º, do mesmo diploma, regulam o segredo profissional (bancário) do Banco de Portugal – entidade distinta daquelas e que, ademais, sobre si exerce poder de supervisão (artigo 76.º, 92.º e 93.º do RGICSF) e poder sancionatório (artigo 213.º do RGICSF).
Nestes termos aplicar-se o regime do artigo 79.º, n.º 2, alínea e), RGICSF, in casu, não tem cabimento, por a norma invocada não conseguir abranger a realidade factual a que se pretende aludir.
Nessa medida, o pedido de informações do Ministério Público não se encontra legitimado.
Numa palavra: aquela simplificação do procedimento de quebra do sigilo e aquela derrogação tácita da aplicação do regime do artigo 135.º CPP, ambas trazidas pela Lei n.º 36/2010, de 02 de Setembro, podem defender-se em relação aos casos que se inserem no artigo 79.º RGICSF, mas já não quanto aos casos que se inserem no artigo 80.º, n.º 2, e 81.º-A, n.º 4, do mesmo diploma.
Termos em que o despacho de verso de fls. 3787 do Ministério Público deve ser considerado irregular, nos termos do artigo 123.º, n.º 1, CPP, por indicar um fundamento legal desadequado para a sua pretensão (artigo 79.º, n.º 2, alínea e), RGICSF) e por, nessa medida, não se encontrar legitimado.
Devendo reconhecer-se, ainda, que o tipo de informação pedida, sendo abrangida, com toda a probabilidade, pelo sigilo profissional do Banco de Portugal (artigo 80.º, n.º 1, RGICSF),
Apenas poderia ser facultada por força de consentimento dos interessados (in casu, dos aqui Requerentes), devidamente comunicado ao Banco de Portugal (artigo 80.º, n.º 2, primeira parte, do RGICSF) – o que, desde já, se nega ter feito ou poder vir a fazer.
Ou após seguidos os trâmites descritos no artigo 135.º CPP (artigo 80.º, n.º 2, segunda parte, do RGICSF) – cujo devido cumprimento só o futuro revelará.

Para além disso, mais alegam a falta de fundamentação do despacho do Mº Pº.

O despacho do Ministério Público que decreta a quebra de sigilo bancário e fiscal é um acto decisório, materialmente administrativo e que restringe direitos fundamentais, o que reivindica invariavelmente o cumprimento de um mandato de fundamentação. 
Ora, a atribuição de uma natureza administrativa a este tipo de despacho do Ministério Público (e a qualquer outro despacho do Ministério Público) preclude, sem mais, a interpretação de que o Ministério Público estaria dispensado do cumprimento do dever de fundamentação, tanto mais não seja porque, também no seio da administração, é imposto o dever de fundamentação de medidas restritivas de direitos fundamentais (artigo 268.º, n.º 3, CRP).
Mais: para além de ser um acto materialmente administrativo de restrição de direitos fundamentais e de, nessa medida, o mesmo apontar para um dever de fundamentação geral, a natureza decisória de um despacho do Ministério Público como aquele que visa ser o de verso de fls. 3787 sujeita-o à imposição constitucional e infraconstitucional de fundamentação própria dos actos decisórios (artigos 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 4, 32.º, n.º 1, n.º 1, 205.º, n.º 1, e 219.º, n.º 1, CRP – na linha do imposto pelo artigo 6.º, n.º 1 CEDH, ex vi artigo 8.º, n.º 2, CRP – e artigo 97.º, n.º 5, do CPP).

Em face de tudo quanto se expôs, mais não fazem os Requerentes do que apelar pelo cumprimento do imperativo constitucional de fundamentação das decisões do Ministério Público proferidas em processo penal, decorrente dos artigos 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 4, 32.º, n.º 1, n.º 1, 205.º, n.º 1, e 219.º, n.º 1, CRP – na linha do imposto pelo artigo 6.º § 1 CEDH, ex vi artigo 8.º, n.º 2, CRP –, o qual se encontra devidamente vertido no artigo 97.º, n.º 5, CPP, norma por cujo cumprimento se invoca.

A leitura das 20 (vinte) linhas que compõem o despacho sob escrutínio, ao contrário do expectável, denuncia que:
(i) Não foram elencados os crimes que a investigação liga a cada suspeito / arguido em particular e, para o que aqui mais interessa, aos ora Requerentes;
(ii) Não foram referidos os indícios da prática de tais crimes pelos mesmos;
(iii) Não foi referida a razão pela qual, agora (e não antes ou depois), a quebra do sigilo bancário foi considerada indispensável, concretamente, em relação aos aqui Requerentes;
(iv) E nem muito menos foi alegada e justificada a indispensabilidade e a importância da quebra do sigilo bancário e da obtenção das informações solicitadas para a investigação em curso e, por conseguinte, para a descoberta da verdade material.
A isto sempre acresce a falta de concretização do âmbito do levantamento do referido segredo, já que o Ministério Público optou por uma espécie de pedido genérico e aberto onde – perdoe-se o coloquialismo da expressão – cabe tudo quanto o mesmo quiser (recorde-se que se requer através do despacho em apreço o seguinte: «informação relativamente a todas as contas bancárias em nome de […]», «bem como aquelas em que é interveniente a qualquer título [nomeadamente como autorizado, representante e procurador]»).
O despacho de verso de fls. 3787, no seu penúltimo parágrafo, estende aquele pedido, inicialmente feito em relação ao Arguido MP... a outros arguidos, entre eles os aqui Requerentes, com base na insípida expressão «[p]or identidade de razões e com os mesmos fundamentos constantes do despacho anterior (mutatis, mutandis)».
Termos em que o despacho de verso de fls. 3787 e s. terá que considerar-se irregular, nos termos do artigo 123.º, n.º 1, CPP, por padecer de flagrante falta de fundamentação, em violação do disposto no artigo 97.º, n.º 5, CPP e dos imperativos constitucionais que tal norma corporiza.

3-1-Fls. 4640: Requerimento dos arguidos AL... e JN... – 27-4-2018.

No qual pedem que o tribunal:
Declare a invalidade dos pedidos do Ministério Público de fls. 3954 e s., de verso de fls. 3957 e de verso de fls. 4189 quanto aos pedidos de emails aos Processos BES e Marquês;
E, em consequência:
Declare a inadmissibilidade da valoração da prova resultante de tal solicitação;
Declare a invalidade do pedido do Ministério Público, dirigido à Autoridade Tributária, de verso de fls. 3954;
Rejeite a informação veiculada em resposta pela Autoridade Tributária, constante de fls. 4028 e ss. e dos Apensos VII-2 e VII-3, porque inválida e, em todo o caso, porque não passível de válida valoração;
Depois de declarada a invalidade do pedido do Ministério Público de fls. 3787 (tema objecto de requerimento de fls. 3997 e ss., ainda não decidido), rejeite a informação veiculada em resposta pelo Banco de Portugal, constante de fls. 4033 e ss. e dos Apensos VIII-2 e VIII-3, porque inválida e, em todo o caso, porque não passível de válida valoração.

Para tanto alegam, em resumo, o seguinte:
No passado dia 19.04.2018, a defesa teve conhecimento, entre o mais, do seguinte:
Quanto ao pedido de mensagens de correio electrónico às autoridades judiciárias dos Processos BES e Marquês: despachos de fls. 3954 e s. e de verso de fls. 3957, dos ofícios de fls. 3696 e s. e 3971;
Quanto ao pedido de informação fiscal à Autoridade Tributária e respectiva resposta: despacho de verso de fls. 3954, do ofício de fls. 3967 e da resposta de fls.  4028 e ss. e Apensos VII-2 e VII-3;
 Quanto à resposta ao pedido de informação bancária extraída da base de dados de contas pelo Banco de Portugal: ofícios do Banco de Portugal de fls. 4033 e ss. e Apensos VIII-2 e VIII-3.
Posteriormente, no dia 24.04.2018, a Defesa voltou a deslocar-se ao DCIAP para nova consulta do processo, tendo tido, nessa sede, conhecimento do seguinte:
Ainda quanto ao pedido de mensagens de correio electrónico às autoridades judiciárias do Processo Marquês: despacho de verso de fls. 4189 e ofício de fls. 4251.
Nestes estritos termos, tiveram os arguidos, aqui Requerentes, conhecimento fortuito das comunicações acabadas de mencionar, iniciando-se aí o prazo de que dispõem para a apresentação de qualquer requerimento sobre a matéria – prazo esse que, in casu, se encontra plenamente respeitado.
Mais alegam que, com o despacho do Mº Pº de fls. 3954 verso o Ministério Público considerou letra morta o despacho de fls. 2618 e ss., de 03.10.2017, que, deferindo a irregularidade arguida pelos Arguidos através de requerimento de fls. 2502 e ss., decretou a invalidade do despacho de fls. 1560 e s. (referido na citação), em relação aos aqui Requerentes.
Ou seja: ao se ter sido atribuído um efeito meramente devolutivo ao recurso interposto da decisão de fls. 2618 e ss., que decretou a não quebra do sigilo bancário e fiscal, tal recurso pretendeu tão-só a reapreciação da decisão, e não também, até lá, o “congelamento” dos seus efeitos.
Nestes termos, não pode o Ministério Público ignorar, por um lado, que a decisão de fls. 2618 e ss. de não quebra do sigilo bancário e fiscal em relação aos aqui Requerentes se mantém válida e eficaz, mesmo na pendência do recurso, como também não pode ignorar, por outro lado, que a mesma decisão recorrida é manifestamente contrária, nos seus termos e efeitos, ao despacho de verso de fls. 3954, agora proferido, o qual, por isso mesmo, se mostra absolutamente ilegal.
Termos em que o despacho de verso de fls. 3954, visando a obtenção de informação junto da Autoridade Tributária, mesmo quando existe uma decisão, no presente processo, que o proíbe e que é perfeitamente aplicável, é manifestamente irregular, nos termos do artigo 123.º, n.º 1, CPP, por não respeitar o efeito meramente devolutivo que foi atribuído, nos termos do artigo 408.º, a contrario, CPP, ao recurso do despacho de fls. 2618 e ss., através do despacho de fls. 3002.
Alegam, ainda, que o Banco de Portugal, através de ofícios que constam de fls. 4033 e ss., enviou informação extraída da sua base de dados de contas, para os presentes autos – informação que, quanto aos aqui Requerentes, consta dos Apensos VIII-2 e VIII-3 –, não obstante o pedido que lhe foi dirigido e ao qual responde (despacho de verso de fls. 3787) estar, na convicção dos aqui Requerentes, ferido de ilegalidade.
Com efeito, os aqui Requerentes arguíram a irregularidade do despacho de verso de fls. 3787 através do requerimento de fls. 3997 e ss., o qual deu entrada neste Tribunal Central de Instrução Criminal no dia 06.04.2018.
Aí, e em suma, foi apontada a falta de legitimação do Ministério Público para dirigir ao Banco de Portugal o pedido constante do despacho de verso de fls. 3787 e, bem assim – mas de outra perspectiva –, a falta de fundamentação desse mesmo despacho.
Mais: a estes argumentos sempre acrescerá, ainda, o desrespeito do despacho de verso de fls. 3787 pelo efeito meramente devolutivo atribuído ao recurso do despacho de fls. 2618 e ss. (vide fls. 3002),
Pois, como bem sabe (e sabia) o Ministério Público (ali, Recorrente), o despacho de fls. 2618 e ss. determinava, numa palavra, a não quebra do sigilo bancário e fiscal e essa decisão continua válida, mesmo na pendência do recurso.
«Na sequência e nos termos do despacho de 9 de Junho de 2017 (fls. 1560 do 5º volume) solicite à AT o envio de declarações fiscais de todos os arguidos relativas aos anos de 2006 a 2016. Prazo: 5 dias. Remeta cópia do despacho no segmento aplicável».

A fls. 3967 consta o ofício dirigido à AT.
A fls. 4028 consta a resposta da AT a qual deu origem ao Apenso VII 2 e 3 quanto aos arguidos AL... e JN.... (fls. 4032).
A fls. 3971 consta o ofício a dar cumprimento ao despacho de fls. 3957 verso.
No Apenso IX consta a informação documental extraída do NUIPC 122/13-8TELSB.

II. O Mº Pº foi notificado para se pronunciar, conforme consta de fls. 4184 e 4639.

O Mº Pº pronunciou-se, conforme consta de fls. 4727, alegando, em resumo, que a competência para conhecer das ilegalidades invocadas cabe ao Mº Pº e não JIC.

III-Da Competência do JIC.
A primeira questão que se coloca é de saber se a pretensão dos requerentes é da competência do JIC ou exclusiva do Ministério Público, conforme é defendido pelo Mº Pº na sua resposta constante de fls. 4727. Para chegarmos a uma conclusão segura e porque está dependente dela, antes de entramos na sua análise, cumpre saber qual a natureza dos direitos que foram objecto de restrição com as decisões do Mº Pº, constantes dos despachos acima identificados, nomeadamente, se estaremos perante direitos fundamentais garantidos pela constituição.

1-Segredo Bancário.
A matéria do segredo bancário está regulada nos artigos 78.º a 84.º (integrados no capítulo III intitulado segredo profissional) do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro (com as sucessivas alterações).
O segredo bancário pretende salvaguardar uma dupla ordem de interesses: por um lado, um interesse de ordem pública, o regular funcionamento da actividade bancária, baseada num clima generalizado de confiança, sendo o segredo um elemento decisivo para a criação desse clima de confiança; por outro lado, o segredo visa também a protecção dos interesses dos clientes da banca, para quem o segredo constitui a defesa da discrição da sua vida privada, tendo em conta a relevância que a utilização de contas bancárias assume na vida moderna, em termos de reflectir aproximadamente a «biografia» de cada sujeito, de forma a que o direito ao sigilo bancário se pode ancorar no direito à reserva da intimidade da vida privada, previsto no artigo 26º da Constituição da República Portuguesa - cfr. acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ n.º 2/2008, de 13/2/2008, publicado no DR 1ª Série, n.º 63, de 31/3/2008, páginas 1879 e seguintes.
Porém, dado o segredo bancário não constituir um fim em si mesmo, nem sequer um valor absoluto, a lei prevê diversas situações em que o mesmo pode ser derrogado em face de outros interesses públicos ou privados.
Em face do exposto, verifica-se que o segredo bancário, nas situações referidas, cede por imposição legal (e independentemente de autorização do titular da conta), ao interesse público de investigação criminal.
Para concluirmos quanto à natureza do sigilo bancário importa ter presente alguma jurisprudência do Tribunal Constitucional produzida a propósito desta questão.
No Ac. n.º 278/95, o TC assumiu o segredo bancário enquanto forma de tutela da reserva de vida privada presente nos dados bancários, numa situação em que o Tribunal foi chamado a pronunciar-se acerca da inconstitucionalidade do disposto na alínea e) do artigo 57º do Decreto-Lei nº 513-Z/79, de 27 de Dezembro, que autorizava o acesso a elementos das contas dos particulares. O TC considerou que importava decidir «se os dados relativos à situação económica de uma pessoa em poder de estabelecimentos bancários, respeitantes designadamente às suas contas de depósito e movimentos destas e a operações bancárias, cambiais e financeiras, fazem parte do âmbito de protecção do direito à reserva da intimidade constitucionalmente protegida».
Pois, tendo em conta a extensão que assume na vida moderna o uso de depósitos bancários em conta corrente, é, pois, de crer que o conhecimento dos seus movimentos activos e passivos reflecte grande parte das particularidades da vida económica, pessoal ou familiar dos respectivos titulares. Através da investigação e análise das contas bancárias, torna-se, assim, possível penetrar na zona mais estrita da vida privada. Pode dizer-se, de facto, que, na sociedade moderna, uma conta corrente pode constituir “a biografia pessoal em números».
 O TC concluiu, no sentido de que a situação económica do cidadão, espelhada na sua conta bancária, «faz parte do âmbito de protecção do direito à reserva da intimidade da vida privada, condensado no artigo 26º, nº 1, da Constituição, surgindo o segredo bancário como uma dimensão essencial do direito à reserva da intimidade da vida privada constitucionalmente garantida».
Deste modo, verifica-se que o TC, através desta decisão, adoptou, uma definição ampla do direito à intimidade da vida privada, permitindo considerar que a matéria do segredo bancário constitui uma dimensão fundamental do direito à reserva da intimidade privada previsto no artigo 26º nº 1 da CRP.
No mesmo sentido temos os Acórdãos do TC nºs 602/2005 e 442/2007. Neste último, é dito que não é tanto o conhecimento da situação patrimonial de uma pessoa que é intrusivo da sua privacidade, mas sim o facto de, com base nesse conhecimento, «propiciar um retrato fiel e acabado da forma de condução de vida privada, do respectivo titular», realçando-se a importância do sigilo bancário que, ao ser instrumento de garantia de dados referentes à vida pessoal, vai buscar o seu fundamento de tutela à própria Constituição.
E faz todo o sentido esta conclusão, na medida em que, através da análise do destino das importâncias pagas na aquisição de bens ou serviços, pode facilmente ter-se uma percepção clara das escolhas e do estilo de vida do titular da conta, dos seus gostos e propensões.
Assim sendo, não restam dúvidas que o conhecimento de dados económicos permite, afinal, a invasão da esfera pessoal do sujeito, com revelação de facetas da sua individualidade própria, ou seja, permiti-nos saber não apenas aquilo que ele tem mas, também, aquilo que ele é.
Por sua vez, no Acórdão nº 42/2007, de 23-01-2007, do TC é dito que «o âmbito da privacidade atingido pelo levantamento do sigilo bancário não é equiparável à liberdade pessoal (afectada com a aplicação de medidas de coacção) ou ao núcleo da reserva de privacidade que é afectada com uma escuta telefónica ou com uma busca domiciliária».
Posteriormente, no Acórdão nº 442/ 2007, de 14/08/2007, do mesmo Tribunal, diz-se que das três manifestações em que se desdobra o direito à reserva da intimidade – direito à solidão, direito ao anonimato, e autodeterminação informativa – é esta última a mais relevante, e a que mais interessa quando está em causa o estatuto constitucional do sigilo bancário. Quanto à delimitação da vida privada é dito que, «poderá dizer-se que o conceito cobre a esfera de vida de cada um que se deve ser resguardado do público, como condição de plena realização da identidade própria e da salvaguarda da integridade e da dignidade pessoais» e mais adiante diz-se que «é sobretudo como instrumento de garantia de dados referentes à vida pessoal, de natureza não patrimonial, que, de outra forma, seriam indirectamente relevados, que o sigilo bancário deve ser constitucionalmente tutelado» - parece que, aqui, se pretende por em destaque que, por via do acesso aos movimentos bancárias, se poderão vir a saber muitos outros passos da vida privada.
O STJ, em Acórdão, de 17/12/2009, considerou não violadora da reserva de intimidade da vida privada a «exigência da divulgação dos elementos da conta bancária de uma das partes que permitam o apuramento da situação patrimonial da outra, em causa pendente, no âmbito do, estritamente, indispensável à realização dos fins probatórios visados por aquela, e com observância rigorosa do princípio da proibição do excesso, é garantia da justa cooperação das partes com o Tribunal, com vista à descoberta da verdade à luz da doutrina da ponderação de interesses».
Do que acabamos de referir, extrai-se que o dever de sigilo bancário, constitui um sigilo de carácter profissional a observar pelos profissionais do sector, destina-se a proteger os direitos pessoais ao bom nome e à reserva da privacidade (pelo menos das pessoas singulares), bem como o interesse privado da protecção das relações de confiança entre as instituições financeiras e os respectivos clientes.
Extrai-se, ainda, que a jurisprudência do Tribunal Constitucional considera que o segredo bancário constitui uma dimensão essencial do direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada, constitucionalmente previsto no n.º 1 do artigo 26.º da CRP, protegendo dados relativos à vida pessoal e patrimonial dos indivíduos.

2-Quanto ao sigilo fiscal, o mesmo encontra-se previsto no artigo 64.º da Lei Geral Tributária do qual resulta que o dever de sigilo fiscal recai sobre “dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária”, encontrando-se estes “obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributário dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado».
Diz o artigo em causa: 1 - Os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado.
2 - O dever de sigilo cessa em caso de:
a) Autorização do contribuinte para a revelação da sua situação tributária;
b) Cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas, na medida dos seus poderes;
c) Assistência mútua e cooperação da administração tributária com as administrações tributárias de outros países resultante de convenções internacionais a que o Estado Português esteja vinculado, sempre que estiver prevista reciprocidade;
d) Colaboração com a justiça nos termos do Código de Processo Civil e mediante despacho de uma autoridade judiciária, no âmbito do Código de Processo Penal; (…).
7-Para efeitos do disposto na alínea d) do n.º 2, e com vista à realização das finalidades dos processos judiciais, incluindo as dos inquéritos em processo penal, as autoridades judiciárias acedem directamente às bases de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira.
8-A concretização do acesso referido no número anterior é disciplinada por protocolo a celebrar entre o Conselho Superior da Magistratura, a Procuradoria-Geral da República e a Autoridade Tributária e Aduaneira.»
O sigilo fiscal encontra-se assim necessariamente relacionado com a situação tributária do contribuinte, designadamente com a sua capacidade contributiva e, tal como o sigilo bancário, encontra a sua razão de ser no princípio constitucional da reserva da intimidade da vida privada garantida pelo artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa.

3-correio electrónico.
Quanto a este ponto, não existe qualquer dúvida que os direitos fundamentais em causa se reconduzem ao direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar – artigo 26º n 1 e ao direito à inviolabilidade da correspondência – artigo 34º 1, ambos da CRP.
Estes direitos estão previstos e salvaguardados, também, em diversos diplomas de direito internacional, como se pode verificar pelo disposto na Declaração Universal do Direitos do Homem no seu artigo 12.º “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, família, domicílio ou correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Todas as pessoas têm direito à protecção da lei contra tais intromissões e ataques.” – entenda-se correspondência em sentido lato, ou seja, nas diferentes formas de comunicação.
O Pacto Sobre Direitos Civis e Políticos – adoptado por Portugal pela Lei n.º 29/78, de 12 de Julho, vincula quer os entes públicos quer os privados a respeitar os direitos, liberdades e garantias dos indivíduos que “in casu” se prendem com as escutas telefónicas. No seu artigo 17.º consagra que “Ninguém será objecto de intervenções arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem atentados ilegais à sua honra e à sua reputação”.
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, logo no seu preâmbulo designa as liberdades fundamentais como “as verdadeiras bases da justiça e da paz”. No seu artigo 8.º estabelece que “Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência”- limita a acção pública de intromissão ou o ferir destes direitos à previsão legal, ao princípio da necessidade e da proporcionalidade e a finalidades de prevenção penal e de garantia e defesa de direitos de terceiros.
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia consagra no seu artigo 7.º que “Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua vida familiar, pelo seu domicílio e pelas suas comunicações.”
Assim, não restam dúvidas quanto à natureza dos direitos em causa.

Uma vez chegados a esta conclusão e tendo presente que o sigilo bancário e fiscal, assim como a correspondência electrónica, têm subjacente um direito fundamental, cumpre, agora, saber se a apreciação da questão colocada pelos arguidos é da competência do JIC ou exclusiva do Mº Pº.
Neste sentido decidiu o Ac. do Trib. Constitucional no Acórdão n° 172/92 de 6 de Maio dizendo: “O processo penal de um Estado de direito há-de cumprir dois objectivos fundamentais: assegurar ao Estado a possibilidade de realização do seu jus punendi e oferecer aos cidadãos as garantias necessárias para os proteger contra os abusos que possam cometer-se no exercício do poder punitivo (...). Um tal processo há-de, por conseguinte, ser um processo equitativo (a due process, a fair process), que tenha por preocupação dominante a busca da verdade material, mas sempre com inteiro respeito pela pessoa do arguido, o que, entre o mais, exige que se assegurem a este todas as garantias de defesa e que se não admitam provas que não passem pelo crivo do contraditório (...)“.
Deste modo, tendo em conta os direitos fundamentais invocados pelos requerentes - direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, inviolabilidade da correspondência e segredo das telecomunicações (artigo 26º, nº 1, in fine, e nº 2 e 34º da CRP) – e referindo que existe uma decisão que restringe esse direito faz com que lhes assista legitimidade e interesse em agir para defesa desses direitos.
Nesta conformidade, assiste legitimidade aos requerentes para virem aos autos requererem a pretensão acima enunciada.

O artigo 32º no 5 da C.R.P. consagra como princípio fundamental enformador do processo penal, o princípio do acusatório, estabelecendo que o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de discussão e julgamento e os actos que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”.

Deste modo, não se levantam quaisquer dúvidas que a fase de inquérito no nosso ordenamento processual, está cometida exclusivamente ao Ministério Público, que determinará as diligências reputadas pertinentes e adequadas à investigação do crime e dos seus agentes, desse modo recolhendo as provas que irão fundamentar a sua decisão de acusar ou não, (artigos 263º, 264º e 267º do CPP).

O artigo 219º nº 2 da CRP consagra a autonomia do Ministério Público o que significa que as opções tomadas no seu seio ocorrem sem interferências externas daquela magistratura, mas não lhe confere o princípio da independência consagrado no artigo 203º do mesmo diploma atribuído aos tribunais e aos juízes. Deste modo, as decisões do Ministério Público tomadas na fase de inquérito, desde que contendam com direitos e liberdades fundamentais, não estão excluídas do controlo judicial.

Assim, a autonomia estatutária do Ministério Público prevista no artigo 221º da Constituição e nos artigos 1º e 2º do respectivo Estatuto (Lei nº 47/86, de 15-10), refere-se à relação orgânica do Mº Pº com os demais órgãos da administração do Estado. Para além disso, o Ministério Público, enquanto sujeito processual, não está imune ao dever de obediência às decisões judiciais quando a determinação se coloca na relação entre o juiz e um sujeito do processo e não na relação orgânica entre o Ministério Público e o tribunal, enquanto instituições com atribuições legais distintas. Uma decisão do JIC enquadra-se, deste modo, no âmbito da relação processual de autoridade que se estabelece entre o juiz e os sujeitos do processo.
Na fase de inquérito os actos praticados pelo Mº Pº assumem uma natureza materialmente administrativa sendo que os actos praticados pelo juiz de instrução revestem uma natureza jurisdicional e aqueles actos, como os de todos os órgãos do Estado, não estão isentos, por força dos princípios estruturantes do Estado de Direito, de controlo jurisdicional.

Diz o artigo 17º do CPP que, compete ao juiz de instrução proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até remessa do processo para julgamento.
A intervenção do JIC no inquérito opera-se, basicamente, através dos artigos 268º e 269º do CPP.
Segundo o primeiro, que ostenta exactamente tal epígrafe:
1. Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução:
a) Proceder ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido;
b) Proceder à aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção da prevista no artigo 196.º, a qual pode ser aplicada pelo Ministério Público;
c) Proceder a buscas e apreensões em escritório de advogado, consultório médico ou estabelecimento bancário, nos termos dos artigos 177. °, n° 3, 180°, n° 1, e 181.°;
d) Tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida, nos termos do artigo 179. °, n° 3;
e) Declarar a perda, a favor do Estado, de bens apreendidos, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277 °, 280° e 282°;
f) Praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução.”

Os actos contemplados no preceito seguinte como sendo da sua competência exclusiva naquela fase, são os de ordenar ou autorizar:
a) Buscas domiciliárias, nos termos e com os limites do art.º 177°,
b) Apreensões de correspondência, nos termos do art.º 179°, n° 1;
c) Intercepção, gravação ou registo de conversações ou comunicações, nos termos dos artigos 187º e 190º;
d) A prática de quaisquer outros actos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução.

Não restam dúvidas que, na al. f) do nº 1, daquele artigo 268º, cabem diversos actos dispersamente prevenidos no CPP em que a intervenção do JIC é convocada. Assim, entre outras, a título de exemplo, a admissão de assistente (art.º 68.°, nº 3), a detenção perante falta injustificada (art.º 116º, nº 2), as declarações para memória futura (art.º 271.°) ou em outros diplomas legais, artigo 16º nº 3 e 17º da lei 109/2009 de 15/09, apreensão de correio electrónico e dados informáticos relativos à vida privada, artigo 6º da Lei 5/2002 de 11-01 recolha de imagem e som, artigo 17º nº 3 da Lei 25/2008 de 5/06 suspensão de operações bancárias.
 
Ora, tendo em conta a situação suscitada pelos requerentes verifica-se que a mesma não encontra cabimento expresso em nenhum desses actos avulsos especialmente regulados.
Para além disso, se tivermos em conta a estruturação acusatória do nosso processo, parece-nos, à partida, que a competência para apreciar a mesma seria da exclusiva competência do Ministério Público.
Parafraseando o Prof. Germano Marques da Silva – Curso de Processo Penal Verbo, III Vol., pág. a 81 “se a lei confia ao Ministério Público a direcção da investigação, permitindo-lhe dispor quais os actos que entenda necessários à realização da finalidade do inquérito, não se compreenderia que depois submetesse a actividade desenvolvida a fiscalização judicial. O que fica sujeito a fiscalização judicial é a decisão do Ministério Público no termo do inquérito”.

Ainda o mesmo autor na obra já citada, pág.s 79/80 “(...) competindo a direcção do inquérito ao Ministério Público, não é curial que o juiz possa intrometer-se na actividade de investigação e recolha de provas, salvo se tratar de actos necessários à salvaguarda de direitos fundamentais. Para a prática de algum desses actos pode necessitar da intervenção do juiz, quer para os consentir, quer mesmo para os praticar mas só por sua promoção podem ter lugar (o que não é a situação dos autos), a menos que se trate de actos necessários à salvaguarda de direitos fundamentais dos requerentes”.
Mas será mesmo assim? Parece-nos que não.
O que está em causa com a pretensão dos arguidos não é a autonomia do Mº Pº e nem, muito menos, a titularidade do inquérito, mas sim a defesa de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Ora, como já dissemos anteriormente nestes autos, tratando-se de direitos fundamentais a questão não poderá estar fora da sindicância jurisdicional a exercer pelo juiz de instrução criminal, enquanto juiz de garantias e de liberdades, por força do artigo 202º nº 2 da CRP quando afirma que, na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e do artigo 17º do CPP quando estatui que o juiz de instrução tem competência, além do mais, (…) exercer todas as funções jurisdicionais até a remessa do processo a julgamento».

Para além disso, este entendimento não colide com estrutura acusatória do processo penal, consagrada no artigo 32º nº 5 da CRP, nem com a separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas que se verifica mesmo na fase de inquérito e nem, muito menos, poderá ser tida como uma posição de sindicante por parte do JIC da actividade do Ministério Público. Esta posição é, em nosso entender, a que melhor se coaduna com as funções do juiz de instrução enquanto garante de direitos fundamentais dos cidadãos.

No mesmo sentido se pronunciou João Conde Correia, para quem a declaração de nulidade tem carácter materialmente judicial, e porque na fase do inquérito compete ao juiz de instrução criminal praticar ou sindicar todos os actos que contendem com direitos, liberdades e garantias individuais, onde se inclui o conhecimento das nulidades (In Contributo para a Análise da Inexistência e das Nulidades Processuais Penais, pág. 189 e ss, nota 439).
Para além disso, o n.º 4 do artigo 32º da CRP prossegue a tutela de defesa dos direitos do cidadão no processo criminal e, nessa exacta medida, determina o monopólio pelo juiz da instrução, juiz-garante dos direitos fundamentais dos cidadãos (“reserva do juiz”).

Neste sentido, veja-se o AC do Tribunal Constitucional nº 228/2007 quendo diz que: «Decisivamente, entende o Tribunal que, tratando se de uma intervenção significativa nos direitos fundamentais do arguido, se impõe um controlo prévio pelo juiz como expressão da separação de poderes e competências decorrente da estrutura acusatória do Processo Penal consagrada nos artigos 32º, nºs 4 e 5 do Código de Processo Penal».
«…, o n.º 4 do artigo 32º da CRP prossegue a tutela de defesa dos direitos do cidadão no processo criminal e, nessa exacta medida, determina o monopólio pelo juiz da instrução, juiz-garante dos direitos fundamentais dos cidadãos (“reserva do juiz”)».

Sob a epígrafe “Outros direitos pessoais” a Constituição da República consagra no seu artigo 26º um conjunto de direitos fundamentais que protegem “um círculo nuclear da pessoa, correspondendo, genericamente, a direitos de personalidade”. Entre esses direitos, está o direito fundamental à reserva da vida privada, cuja tutela se projecta em sede processual penal, o direito ao bom nome e reputação. Por sua vez, o artigo 32º nº 2 consagra o princípio da presunção de inocência.
Cumpre referir, também, que estando em causa direitos fundamentais a sua restrição, no âmbito dos presentes autos, apenas se justifica para prossecução das finalidades específicas do processo penal, ou seja, com vista à investigação da existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão (artigo 262º nº1 do CPP).
No mesmo sentido, o AC do TC nº 213/2008: «Por outras palavras e no concreto caso, o n.º 4 do artigo 32.º da CRP prossegue a tutela de defesa dos direitos do cidadão no processo criminal e, nessa exacta medida, determina o monopólio pelo juiz da instrução, juiz-garante dos direitos fundamentais dos cidadãos (“reserva do juiz”).
Intervenção do juiz que vale - e só vale - no âmbito do núcleo da garantia constitucional.
Assim ocorre em toda a fase de inquérito ao Ministério Público confiada pelo CPP actual, compreendendo o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles, descobrir e recolher provas em ordem à decisão sobre a acusação (artigo 262.º, n.º 1), justificando-se a intervenção do juiz-garante sempre que afectado aquele núcleo - consoante o elenco de situações descritas nos artigos 268.º e 269.º»
(…)
A independência da magistratura judicial e o seu maior distanciamento da actividade investigatória confere-lhe uma maior disponibilidade funcional e psicológica para, com objectividade, decidir os limites toleráveis do sacrifício dos direitos fundamentais em favor do interesse da realização da justiça penal»
Sobre este tema, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24.09.2015, é dito que: “Tendo em atenção esta perspectiva, a argumentação expendida em alguma doutrina e jurisprudência citadas, segundo as quais, mesmo conhecendo o Ministério Público das invalidades, sempre haverá um controlo judicial das mesmas, seja ao nível de incidentes judiciais, seja nas fases jurisdicionalizadas do processo, não nos parece que seja a que melhor se adequa aos princípios do processo penal. Nesta tese teríamos que aguardar alguma intervenção incidental do juiz de instrução ou que o processo passasse para a fase de instrução, para a ser apreciada jurisdicionalmente a alegada violação do direito de defesa. Inexistindo tal intervenção a apreciação jurisdicional nunca se verificaria. Com o devido respeito não nos parece que esta solução mereça acolhimento. Em questões de alegada violação de direitos liberdades e garantias, a intervenção jurisdicional impõe-se, no imediato, independentemente da fase processual em que a mesma ocorra, assim se garantindo a tutela jurisdicional consagrada no texto constitucional e materializando o “direito ao juiz” que a mesma comporta. Perfilhando nós a corrente doutrinal e jurisprudencial que confere ao juiz de instrução competência para apreciar as invalidades cometidas em inquérito sempre que contendam com direitos liberdades e garantias, tanto mais que as normas constitucionais são de aplicação directa (artigo 18º Constituição da República Portuguesa), não pode, no caso em apreço, o juiz de instrução deixar de apreciar o requerimento apresentado pelo recorrente».

E diz mais: «Esta solução em nada contende com a circunstância de a direcção do Inquérito ser da competência do Ministério Público, nem coloca em crise o princípio do acusatório que rege o processo criminal. O princípio do acusatório resultante do artigo 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa, visa assegurar o direito a um julgamento, imparcial, justo e equitativo assegurando que a acusação é feita por um órgão diferente do julgador. Isto não significa que não existam articulações, em momentos diferentes das fases do processo, entre os vários órgãos, como, aliás, se constata das várias intervenções do juiz de instrução na fase de Inquérito que é da competência do Ministério Público».

No Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07.12.2016 (Proc. n.º 333/14.9TELSB-3) é dito que: «Na verdade é ao MP que cabe exclusivamente a direcção do inquérito – artº 263º CPP –  devendo dirigir a investigação, ordenar a recolha de meios de prova necessários à recolha de indícios, determinar os agentes de um crime e as respectivas responsabilidades  tudo com vista à formulação do libelo acusatório ou ao arquivamento da investigação/ inquérito.
No entanto, em toda esta actividade de investigação cabe ao JIC zelar e velar para que os Direitos Liberdades e Garantias dos envolvidos nos processos sejam protegidos/observados como podemos concluir da leitura rápida dos artigos 205 º, 268º e 269º do CPP e sem esquecer o art.º 17º do CPP e a nossa Lei Fundamental.

O MP não define ou delimita direitos, não se pronuncia pela sua eventual violação ou, pelo menos, não decide da invocada violação dos mesmos, assim como das garantias e das liberdades.
 
Ora, entendendo que existem aqui duas situações que devem ser tidas em conta, uma que se prende com a conduta do MP e que só pode ser atacada por via hierárquica enquanto for ele o Dominus do Inquérito e outra, em que, nesta fase processual o JIC é chamado como o Juiz dos Direitos Liberdades e Garantias e em relação às quais tem necessariamente de se pronunciar, há que tomar posição quanto ao recurso em causa (...).

É sem dúvida ao JIC que compete pronunciar-se quanto a estas questões – art.º 202.º CRP, porque compete aos tribunais assegurar a “defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos” – artigo 32.º da CRP, nº 1 do artigo 20º CRP».

No mesmo sentido veja-se o acórdão do TRL de 20-12-2017, proferido nestes autos, quando afirma que: «Neste mesmo sentido vai o pensamento de João Conde Correia, para quem a declaração de nulidade [ou irregularidade] tem carácter materialmente judicial, e porque na fase do inquérito compete ao juiz de instrução criminal praticar ou sindicar todos os actos que contendem com direitos, liberdades e garantias individuais, onde se inclui o conhecimento das nulidades [e das irregularidades].

Na jurisprudência dos nossos tribunais superiores vem-se acolhendo esse último entendimento. Também nós, com a devida vénia a perfilhamos por considerarmos ser a posição mais curial.
(…)

É irrefutável que o inquérito é da competência do Ministério Público [cf. arts. 563.º, n.º 2, alínea b), 263.º, n.º 1 e 267.º, todos do CPP] e que compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e respectiva responsabilidade, bem como descobrir e recolher provas, tudo em ordem à decisão sobre a acusação (cf. art. 262.º n.º 1 do mesmo Corpo de leis).
É igualmente incontestável que certos actos do inquérito só podem ser praticados ou autorizados pelo juiz de instrução criminal.
Ora, de harmonia como disposto no art.º 17.º do CPP, compete ao Juiz de instrução praticar todos os actos que consubstanciem o exercício de funções jurisdicionais relativas a inquérito.
Estes actos mostram-se relacionados metodicamente, de forma feral, nos arts. 268.º e 269.º do CPP, encontrando-se outros dispersos no mesmo Corpo de leis (…).
Além destes, há também que considerar os actos necessários à salvaguarda dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, tal como previsto no artigo 202.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
(…)
Assim, no encadeamento dos arts. 122.º n.º 3 e 7.º, ambos do Código de Processo Penal e do art. 202.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, há que concluir, como aqui efectivamente se conclui que compete exclusivamente ao juiz de instrução apreciar as arguidas nulidades.
Na verdade, num Estado de direito democrático, baseado na dignidade da pessoa humana como é a República Portuguesa (arts. 1.º e 2.º da Constituição da República Portuguesa) parece-nos que a sindicância jurisdicional dos actos do Ministério Público em matéria de direitos, liberdades e garantias não belisca minimamente a sua autonomia».
No mesmo sentido veja-se, ainda, o ARL de 7-3-2018, igualmente proferido nestes autos: «chegados aqui e cientes de que a declaração de nulidade tem sempre carácter materialmente judicial, sendo na fase de inquérito que compete ao juiz de instrução a prática de todos os actos que contendem com direitos, liberdades e garantias individuais».
Face ao exposto, conclui-se que, contendendo a situação em causa, com direitos, liberdades e garantias fundamentais dos arguidos em causa, a sua admissibilidade no decurso da fase de inquérito depende, pelas mesmas razões que justificam essa dependência no caso dos actos que constam da lista constante dos artigos 268º e 269º do CPP, de apreciação por parte do juiz de instrução.

V- Aqui chegados, cumpre saber se assiste razão aos requerentes quanto à invalidade dos despachos do Mº Pº supra identificados.

Por uma questão de organização, dado que são várias as questões as apreciar neste despacho, iremos conhecer de acordo com a ordem dos requerimentos apresentados pelos arguidos.

1-Requerimento de fls. 3983.
Os arguidos pedem a ilegalidade dos despachos do Mº Pº de a fls. 3763 e ss., 3954, 3957 e 4189 através dos quais solicitou ao processo n.º 324/14.0TELSB (o chamado “Processo BES”) e ao processo n.º 122/13.8TELSB (o chamado “Processo Marquês”) variados elementos de prova.
O despacho (fls. 3763ss) em causa tem o seguinte teor:
«minute ofício, que subscreveremos, a solicitar ao Exmo. Colega titular do inquérito nº 324/14.0TELSB que promova, nesse processo, a necessária autorização judicial, nos termos do art. 179º nº 3 do CPP ex vi art. 17º da Lei do Cibercrime (n.º 109/2009, de 15 de Setembro), para a realização de pesquisa nas caixas do correio electrónico de colaboradores, funcionários e administradores do BES aí apreendidas, em particular na de MP... e da sua secretária M... [M... @ ... pt], com recurso às palavras-chave adiante especificadas, a apresentação dos e-mails que daí resultarem ao Mmo. JIC desse processo para exclusão dos que integrarem a reserva da vida privada e a remessa, a estes autos, de cópia digital dos restantes que se mostrem relevantes para a constituição da prova indiciária dos presentes autos, considerando a descrição dos factos acima mencionados.
Palavras-chave a utilizar: CMEC, Custos para a Manutenção, CAE, Contratos de Aquisição de Energia, SEM, Sistema Eléctrico Nacional, ERSE, DPH, mecanismo de manutenção, energia eléctrica, custos ociosos, extensão do domínio hídrico, central Termoeléctrica, custos ociosos, extensão do domínio hídrico, Central Termoeléctrica de ..., ...., Universidade de Columbia....(...).
Remeta-se cópia do presente despacho ao Ex.º Colega titular do inquérito nº 324/14.0TELSB» (fls. 3776 e s.).
Por outro lado, o Ministério Público ordenou que:
«Considerando todo o circunstancialismo, e os factos, acima descrito afigura-se-nos ser crível que no processo “Marquês”, também, possam existir documentos com relevo indiciário para a prova dos presentes autos.
Pelo exposto, elabore ofício, que subscreveremos, a solicitar ao Exmo. Colega titular do processo n.º 122/13.8TELSB certidão de toda a documentação relativa a eventuais pagamentos efectuados por sociedades do universo GES ao arguido AL..., bem como a de todos os realizados ao arguido MP..., nomeadamente pela ES Enterprises.
Remeta-se cópia do presente despacho ao Ex.º Colega titular do inquérito nº 122/12.3TELSB» (fls. 3777 e s.).

A fls. 3782 consta o ofício dirigido ao NUIPC 122/13.8TELSB para cumprimento do despacho do Mº Pº acima referido.

A fls. 3783 consta o ofício dirigido ao NUIPC 324/14.0TELSB para cumprimento do despacho do Mº Pº acima referido quanto ao correio electrónico.
O Despacho do Mº Pº de fls. 3954 tem o seguinte teor:

«Por referência ao despacho de 13 de Março de 2018 (fls. 3763ss) (….) minute ofício, que subscreveremos, a solicitar ao Exmo colega titular do inquérito nº 122/13.8TELSB que promova, nesse processo, a necessária autorização judicial, nos termos do artº 179º nº 3 do CPP ex vi art. 17º da Lei do Cibercrime para:

Realização de pesquisa nas caixas de correio electrónico de colaboradores, funcionários e administradores do BES aí apreendidas, com recurso às palavras-chave adiante especificadas, bem como a pesquisa por outras palavras-chave relativas a pessoas singulares ou colectivas que nesses autos se mostrem relacionados com os arguidos MP... e AL...

Apresentação dos e-mails que daí resultarem ao Mmo. JIC desse processo para exclusão dos que integrarem a reserva da vida privada e,
A remessa, a estes autos, de cópia digital dos restantes que se mostrarem relevantes pasta a constituição da prova indiciária dos presentes autos, considerando a descrição dos factos mencionada na anterior promoção já remetida a esses autos…».

A fls. 3969 consta o ofício dirigido ao NUIPC 122/13.8TELSB para cumprimento do despacho do Mº Pº acima referido quanto ao correio electrónico.

O despacho do Mº Pº de fls. 3957 verso tem o seguinte teor:
Minute ofício, que subscreveremos, a solicitar ao Exmo Colega titular do inquérito 324/14 (BES) que adite à pesquisa de e-mails oportunamente solicitado a palavra-chave B....
A fls. 3971 consta o ofício a dar cumprimento ao despacho de fls. 3957 verso.
O Despacho do Mº Pº de fls. 4189 verso tem o seguinte teor:
Minute ofício, que subscreveremos, a solicitar ao Exmo Colega titular do inquérito 324/14 (BES) que adite à pesquisa de e-mails e documentação solicitada as palavras-chave (…)».
A fls. 4250 consta o ofício dirigido ao NUIPC 324/14.0TELSB a dar cumprimento ao despacho referido
A fls. 4251 consta o ofício dirigido ao NUIPC 122/13.8TELSB a dar cumprimento ao despacho referido.
A fls. 4575: consta a cópia do despacho judicial proferido no NUIPC 122/13.8TELSB, no qual foi autorizado o acesso, na sequência do pedido feito pelo Mº Pº nestes autos, por parte do OPC a todos os ficheiros informáticos recolhidos nos autos 122/13.8TELSB.

Quanto ao processo 122/13.8TELSB, conhecido como operação Marquês, é um facto público que o inquérito já se mostra encerrado dado que o mesmo já contém acusação, sendo que os arguidos AL... e JN... não se mostram entre os acusados nesses autos.

Destes autos não consta, também, qualquer informação dando conta que arguidos AL... e JN... tenham sido suspeitos no processo 122/13-8TELSB ou que são suspeitos ou arguidos no processo 324/14.0TELSB.  
Dos autos não consta, pelo menos dos elementos remetidos a este TCIC, qualquer resultado relacionado com os pedidos formulados aos processos 122/13.8TELSB e 324/14.0TELSB.

Conhecendo
Cumpre referir, desde já, que quanto ao pedido relativo a outra documentação que não envolva correio electrónico, a competência para o mesmo cabe em exclusivo ao titular da acção penal não competindo, nesta parte, ao JIC qualquer poder de sindicância sob pena de violação do princípio do acusatório.
Deste modo, quanto a esse segmento do requerimento dos arguidos o tribunal não irá tomar qualquer posição.

Vejamos, então, a questão relativa ao correio electrónico.
Como se vê dos despachos do Mº Pº supra referidos, aquilo que o Mº Pº solicitou aos referidos processos foi que aí fosse promovida uma autorização judicial, nos termos 179º nº 3 do CPP ex vi art.º 17º da Lei do Cibercrime (n.º 109/2009, de 15 de Setembro), para a realização de pesquisa nas caixas do correio electrónico e uma vez feita essa pesquisa, a apresentação dos e-mails que daí resultarem ao Mmo. JIC desse processo para exclusão dos que integrarem a reserva da vida privada e a remessa, a estes autos, de cópia digital dos restantes que se mostrem relevantes para a constituição da prova indiciária dos presentes autos.
Por sua vez, da cópia do despacho judicial proferido no NUIPC 122/13.8TELSB, verifica-se que foi autorizado o acesso, na sequência do pedido feito pelo Mº Pº nestes autos, por parte do OPC a todos os ficheiros informáticos recolhidos nos autos em causa.
Daqui resulta, desde logo, que aquilo que o Mº Pº solicitou junto dos referidos processos não foi a extracção de certidão de correio electrónico já aberto, judicialmente validado e junto aos autos como meio de prova, mas sim, a realização de uma pesquisa nas caixas de correio electrónico apreendidas à ordem dos referidos autos, seguida de uma tomada de conhecimento, nos termos do artigo 179º nº 3 do CPP, pelo juiz dos referidos processos para posterior junção a estes autos.
Antes de mais, cumpre verificar o regime jurídico relativo ao correio electrónico.
A matéria relativa à apreensão de correio electrónico mostra-se regulada pelo Art.º 17° da Lei nº 109/2009, de 15/09.
A Lei do Cibercrime, lei nº 109/2009, de 15 de Setembro, a qual transpõe para a ordem jurídica interna a Decisão Quadro nº 2005/222/JAI, do Conselho da Europa, de 24 de Fevereiro, relativa a ataques contra sistemas de informação e adapta o direito interno à Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa, determina no seu art.º 17º, sob a epigrafe da “apreensão de correio electrónico e registo de comunicações de natureza semelhante”, que, quando no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados armazenados nesse sistema informático ou noutro que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime de apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.
Daqui resulta que, aplicando-se o regime de apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal, o mesmo terá que seguir a disciplina do art.º 179º, o qual estabelece, desde logo, no nº 1 que tais apreensões sejam determinadas por despacho judicial, “sob pena de nulidade” expressa (nº 1), e que “o juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida”, o que se aplica ao correio electrónico já convertido em ficheiro legível, o que constitui acto da competência exclusiva do Juiz de Instrução Criminal, nos termos do art.º 268º nº 1 alínea d) do CPP, o qual estabelece que “compete exclusivamente ao juiz de instrução, tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida”, o que se estendeu ao conteúdo do correio electrónico, por força da subsequente Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro, constituindo a sua violação nulidade expressa absoluta e que se reconduz, a final, ao regime de proibição de prova.
Por sua vez, diz o artigo 17º da Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro: «Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal».
Como refere David Silva Ramalho, in Métodos Ocultos de investigação Criminal em Ambiente Digital, p 278: «Assim, com a criação do artigo 17º da Lei do Cibercrime, o legislador tornou clara a sua intenção de submeter toda a apreensão de correio electrónico e registos de comunicações de natureza semelhante ao regime de apreensão de correspondência, independentemente de as mensagens se encontrarem lidas ou não lidas». «..O resultado foi a atribuição de uma tutela acrescida à mensagem em formato digital, submetendo a sua apreensão sempre aos requisitos da apreensão da correspondência, em nome, desde logo da privacidade e da autodeterminação informacional».
No mesmo sentido, Paulo Dá Mesquita considera que o artigo 17.º da Lei do Cibercrime foi «o primeiro passo da directa revogação de algumas implicações do regime do Código de Processo Penal sobre intromissão em comunicações.». Assim, para este Autor, a extensão legal prevista no artigo 189.º número 1 do Código de Processo Penal deixa de se aplicar quando esteja em causa a apreensão de mensagens de correio electrónico e registos de comunicações de natureza semelhante o que faz com que o regime da apreensão de correio electrónico e registos de comunicações de natureza semelhante esteja regulado directamente pelo artigo 17.º da Lei do Cibercrime e, subsidiariamente (por remissão expressa do mesmo), pelos pressupostos e requisitos legais relativos à apreensão de correspondência, previstos nos artigos 179.º e 252.º (nº 2 e 3) do Código de Processo Penal.
Por sua vez, Pedro Verdelho, in A Nova Lei do Cibercrime, defende que ao regime da apreensão de correspondência electrónica deve ser aplicado, por remissão expressa, o regime processual previsto nos artigos 179.º do CPP.
No mesmo sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11-1-201: «Quanto à apreensão de mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, a Lei do Cibercrime, ao remeter para o regime geral previsto no Código de Processo Penal, determina a aplicação deste regime na sua totalidade, sem redução do seu âmbito - tais apreensões têm de ser autorizadas ou determinadas por despacho judicial, devendo ser o juiz a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida, sob pena de nulidade».

Uma vez aqui chegados, cumpre agora saber se, ao caso concreto, é aplicável o regime de apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal na sua totalidade.
Nos termos do artigo 179.º do Código de Processo Penal:
1. A apreensão de correspondência só poderá ser ordenada ou autorizada quando existirem “fundadas razões para crer que:
a) a correspondência foi expedida pelo suspeito ou lhes é dirigida, mesmo que sob nome diverso ou através de pessoa diversa;
b) está em causa crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos e c);
 a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova”
2. A referida diligência terá de ser previamente autorizada ou ordenada pela autoridade judicial, só sendo permitida, em casos excepcionais, que os órgãos de polícia criminal procedam à sua apreensão sem prévia autorização;
3. O juiz que tiver ordenado ou autorizado a apreensão “deverá ser o primeiro a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida.
Tendo em conta o estatuído no artigo 17º da Lei do cibercrime e os direitos fundamentais em causa – direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar – artigo 26º n 1 e inviolabilidade da correspondência – artigo 34º 1, ambos da CRP – entendemos que o legislador não quis, através da Lei do Cibercrime, consagrar uma menor protecção à correspondência electrónica do que aquele que consagra em relação à correspondência física. Na verdade, não faria sentido, deixar de considerar os restantes requisitos, fazendo a apreensão de correio electrónico depender apenas de a diligência “se afigurar ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova”, e ignorar os demais previstos no citado artigo 179º do CPP.
Para além disso, porque estão em causa direitos, liberdades e garantias constitucionalmente protegidos, como o direito à privacidade e reserva da vida privada e familiar e à inviolabilidade da correspondência e comunicações (cf. arts. 26.º, n.º 1, 34.º, n.º 1 e 18.º, n.ºs 2 e 3, todos da CRP), as respectivas restrições têm de obedecer aos pressupostos materiais da necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido restrito, (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2007, págs. 388 e 392).
Por outro lado, é pacífico o entendimento de que, quando se trata de interpretar e aplicar normas restritivas de direitos fundamentais, o critério interpretativo não pode deixar de ser aquele que assegure a menor compressão possível dos direitos afectados, ou seja, a restrição do direito fundamental em causa há-de limitar-se ao estritamente necessário à salvaguarda do interesse (também constitucionalmente tutelado) na descoberta de um concreto crime e na punição do(s) seu(s) agente(s).
Como é sabido, uma pesquisa informática realizada sem o recurso a um «motor de busca», ou seja, sem um objecto concreto, tem um elevado potencial de se transformar numa «fishing expedtion» ou implicar a obtenção injustificada de informação não relacionada com o objecto da investigação que justificou a pesquisa e apreensão do correio electrónico. Com efeito, existe um potencial de demonstração de elementos profundamente reveladores da vida e personalidade do visado o que justifica a tutela acrescida exigida pelo legislador quanto a este meio de obtenção de prova.
Assim sendo, subjacente à decisão que autoriza o recurso a um meio intrusivo de obtenção de prova, como é este, estará sempre um juízo de ponderação sobre a necessidade, adequação e proporcionalidade da afectação dos direitos fundamentais, ou direitos fundamentais com natureza análoga, do visado.   
Deste modo, a remissão para o regime da apreensão de correspondência está, pois, condicionada aos seguintes aspectos:
A referência à nulidade, em caso de inobservância dos requisitos legais (artigo 179.º número 1 e 2);
Quando se tratar de correspondência electrónica que foi “expedida pelo suspeito ou lhe é dirigida, mesmo que sob nome diverso ou através de pessoa diversa” (artigo 179.º, número 1, alínea a));
A apreensão de correspondência electrónica entre arguido e o seu defensor é proibida, “salvo se o juiz tiver fundadas razões para crer que aquela constitui objecto ou elemento de um crime.” (artigo 179.º número 2).
Que a diligência se revele de grande interesse para a descoberta da verdade ou para prova, tendo em conta um juízo de ponderação sobre a necessidade, adequação e proporcionalidade – artigo 18º da CRP.
O juiz (que ordenou ou autorizou a diligência) deverá ser o primeiro a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência electrónica apreendida (artigo 179.º número 3).
Tendo em atenção o despacho do Mº Pº supra citado, verifica-se que estaremos perante um meio de obtenção de prova atípico, na medida em que não se trata de uma apreensão de correio electrónico propriamente dita, uma vez que esse correio electrónico já se mostra apreendido à ordem de outro processo, como não se trata, também, de uma apreensão de prova documental, na medida em que, conforme resulta do despacho em causa, o correio electrónico, agora pretendido, não foi aberto judicialmente e não consta desses autos como meio de prova.
Do regime legal acima referido, verifica-se que o legislador, ao contrário do regime previsto para as intercepções telefónicas, não consagrou qualquer norma legal a prever e a regular o aproveitamento extraprocessual da prova obtida mediante a apreensão de correio electrónico.
Com efeito, o nº 7 do artigo 187º do CPP dispõe que sem prejuízo do disposto no artigo 248º, a gravação de conversações ou comunicações só pode ser utilizado em outro processo, em curso ou a instaurar, se tiver resultado de intercepção de meio de comunicação utilizado por pessoa referida no nº 4 e na medida em que for indispensável à prova de crime previsto no nº1.
Como já dissemos acima, seguindo os ensinamentos de Paulo Dá Mesquita, o artigo 17.º da Lei do Cibercrime foi “o primeiro passo da directa revogação de algumas implicações do regime do Código de Processo Penal sobre intromissão em comunicações.”. Deste modo, a extensão legal prevista no artigo 189.º número 1 do Código de Processo Penal deixa de se aplicar quando esteja em causa a apreensão de mensagens de correio electrónico e registos de comunicações de natureza semelhante.
Assim sendo, o regime da apreensão de correio electrónico está regulado directamente pelo artigo 17.º da Lei do Cibercrime e, subsidiariamente (por remissão expressa do mesmo), pelos pressupostos e requisitos legais relativos à apreensão de correspondência, previstos nos artigos 179.º e 252.º (nº 2 e 3) do Código de Processo Penal, pelo que, no caso em apreço, não se poderá lançar mão do regime previsto no citado artigo 187º nº 7 do CPP a propósito das intercepções telefónicas.
Tal como foi referido no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 29 de Março de 2011, a redacção introduzida pelo legislador em 2007 ao artigo 189.º número 1 do CPP foi “infeliz” uma vez que incluíram no regime das “escutas telefónicas” o produto do acto comunicacional, que nada tem a ver com o fundo do regime, nomeadamente, a intromissão nas telecomunicações, tratando-se antes de meros arquivos digitais.
Deste modo, a questão que se coloca é a de saber se um meio de obtenção de prova intrusivo de direitos fundamentais, como é o caso, que, como já verificamos, não se equipara com a intercepção das comunicações, é, à luz do nosso regime legal, permitido, dada a ausência de lei que legitime a sua utilização, delimite os crimes que permitem essa utilização, o procedimento a adoptar e fixe a competência para autorizar o seu uso e controlar todo o procedimento que tiver lugar.
Nos termos do artigo 125º do CPP, são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.
Daqui resulta que o CPP consagra o princípio da não taxatividade dos meios de prova. O que a lei exige é que todos os meios de prova, mesmo os não previstos na lei, estejam subordinados aos demais limites constitucionais e legais de admissibilidade da prova, previstos no artigo 32º nº 8 da CRP e artigo 126º do CPP.
No que concerne aos meios de obtenção de prova, igualmente estão sujeitos ao mesmo princípio, ou seja, da não taxatividade. Porém, sempre que estivermos em presença de um meio de obtenção de prova que comporte um elevado grau de intrusão na privacidade do suspeito ou de outros direitos fundamentais ele deve estar previsto, de forma expressa, na lei.
Assim sendo, não existindo, como no caso em apreço, consentimento dos titulares do direito e não estando o aproveitamento extraprocessual do correio electrónico previsto na lei como um meio de obtenção de prova e considerando o direito à reserva da vida privada, não podemos deixar de concluir que é proibida a valoração dos meios de prova obtidos dessa forma, por abusiva intromissão na vida privada. É o que resulta do artigo 32.º, n.º 8, da Constituição e do artigo 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Por fim, se tivermos em atenção o disposto no nº 3 do artigo 179º do CPP, parece evidente que o legislador não admite o aproveitamento extraprocessual da correspondência, na medida em que diz, de forma clara, que o juiz, no caso de considerar que a correspondência apreendida não tem relevância para a prova, restitui-a a quem de direito, contrariamente ao que acontece no regime das escutas telefónicas, onde apenas são eliminadas intercepções abrangidas pelas situações previstas no nº 6 do artigo 188º do CPP.
Mesmo que se admita como boa prática, como é nosso entendimento, que o correio electrónico apreendido e não considerado relevante para a prova, se mantenha à guarda do tribunal para acautelar eventuais interesses da investigação ou da defesa, essa decisão apenas visa acautelar os interesses relativos ao processo concreto e não para todo e qualquer processo.
Para além disso, cumpre referir que ainda que fosse possível o recurso a este meio de obtenção de prova, o mesmo teria sempre que respeitar os requisitos previstos no artigo 179º nº 1 do CPP.
Nos processos onde foi apreendido o correio electrónico o visado da apreensão teria de ser um suspeito da prática de um crime punível com pena de prisão máximo superior a 3 anos ou pessoa diversa do suspeito se tiver existido razões para suspeitar que ele sabia que a sua correspondência estava a ser utilizada pelo suspeito para um fim ilícito e que essa apreensão tenha tido lugar segundo um critério da necessidade (a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova).
Assim sendo, aos arguidos destes autos, uma vez que, segundo consta, não são arguidos nos processos acima referidos, sempre teria de ser dada a oportunidade de conhecer, na sua íntegra, das razões de facto e de direito que levaram à apreensão do correio electrónico nos aludidos processos. Com efeito, só com o acesso aos elementos dos referidos processos, nomeadamente promoção do MºPº, despacho que autorizou a apreensão, auto de apreensão e de tomada de conhecimento judicial, bem como dos demais elementos indiciários é que aos arguidos destes autos estariam asseguradas as garantias de defesa e o exercício do contraditório.
Cumpre referir, ainda, conforme resulta claro do artigo 179º nº 3 do CPP, que o juiz é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida. Se a considerar relevante para a prova, fá-la juntar ao processo; caso contrário restitui-a a quem de direito, não podendo ser utlizada como meio de prova.
Deste modo, é ao juiz que compete a decisão sobre a junção da correspondência ao processo seguindo o critério da relevância para a prova ou para a descoberta da verdade material. Aliás, como diz o Mº Pº a fls. 4105, trata-se de um acto unipessoal do JIC. Assim, toda a correspondência estranha ao objecto do processo ou relativa a factos que, mesmo que provados, não teriam qualquer influência na decisão, deverá ser excluída e restituída ao respectivo titular ou eliminada dos autos. Deste modo, o critério para junção da correspondência terá de ser positivo e não, como parece resultar da promoção do Mº Pº constante de fls. 3777 e ofício de fls.3783, por exclusão de partes.
Quando a lei diz que é ao juiz que compete a decisão sobre a junção da correspondência ao processo, naturalmente que a lei está a falar do juiz competente, de acordo com as regras da distribuição dos processos, para a prática dos actos jurisdicionais na fase de inquérito no processo em causa e não o juiz de outro processo. Com efeito, só o juiz «titular» dos presentes autos, por conhecer o processo e o seu objecto, estará em condições de aferir sobre a relevância da correspondência para a prova.
Assim sendo, também por aqui sempre se verificaria a nulidade insanável prevista no artigo 119º al. e) do CPP, por violação do princípio do juiz natural consagrado no seu artº 32º, nº 9 da CRP.
Outra questão que se coloca é a de saber se, tratando-se de correio electrónico, como é o caso concreto, já recebido e armazenado, o mesmo deverá ser objecto de tratamento semelhante relativamente à apreensão de arquivo físico já recebido/lido e armazenado, podendo, neste caso, a autoridade judiciária (incluindo o Ministério Público al. b) artº 1º do CPP), ordenar a sua apreensão nos termos do artigo 16º da Lei do Cibercrime ou se, pelo contrário, deverá continuar a merecer o mesmo tratamento relativo às intercepções de correio electrónico em tempo real.
Em primeiro lugar, se tivermos em atenção o texto do artigo 17º da Lei do Cibercrime verifica-se que o legislador fala em «…forem encontrados, armazenados nesse sistema informático…», o que pressupõe que a comunicação já foi recebida/lida e, consequentemente, armazenada. Assim, recorrendo ao argumento literal somos levados a concluir que o legislador não quis fazer distinção entre correio armazenado e correio não armazenado.
Para além disso, da leitura do citado artigo 17º, verifica-se, como já dissemos acima, que, no que diz respeito ao correio electrónico, o legislador foi mais exigente, na medida em que criou um regime específico para apreensão de «correio electrónico e registos de comunicação de natureza semelhante» o que faz com que esta matéria esteja fora do âmbito do regime para a apreensão de dados informáticos previsto no artigo 16º da Lei do Cibercrime.
Por fim, se tivermos presente os direitos fundamentais em conflito, nomeadamente, os constantes nos artigos 26º nº 1 e 34º da CRP – reserva da intimidade da vida privada e inviolabilidade da correspondência – teremos de concluir que se justifica uma tutela acrescida nos casos de ingerência nas comunicações armazenadas em suporte digital em relação à ingerência nos arquivos físicos que não contenham comunicações.
«A nulidade da prova proibida pode ser conhecida quer a prova já tenha sido utilizada pelo tribunal, quer ainda não tenha sido. Neste caso, a nulidade da prova há-de ser declarada, com a consequência da sua rejeição» Paulo Pinto de Albuquerque, Cometário ao Código Processo Penal, pag. 320, nota 7. 
Conclusão
Assim sendo, caso venha a ser copiado ou obtido correio electrónico relativo aos arguidos AL... e JN..., dado que os visados não deram o seu consentimento e não estando o aproveitamento extraprocessual do correio electrónico previsto na lei como um meio de obtenção de prova e considerando o direito à reserva da vida privada, não podemos deixar de concluir que é proibida a valoração dos meios de prova obtidos dessa forma, por abusiva intromissão na vida privada dos visados.
Em consequência, dado que a decisão do Mº Pº constante de fls. 3763 a 3778, 3954ss, 3957 verso e 4189 verso, relativa aos arguidos AL... e JN..., foi proferida em violação do disposto no artigo 126º nº 3 do CPP tem-se por inválida qualquer prova que venha a ser obtida na sequência dessa decisão e que esteja relacionada com correio electrónico, nos termos do disposto no artigo 126.º n.º 3 e 122º nº 1 do CPP.
Caso se verifique a selecção de correio electrónico no âmbito dos processos 324/14.OTELSB e 122/13.8TELSB, nos termos dos despachos do Mº Pº de fls. 3763 a 3778, 3954 ss, 3957 verso e 4189 verso, essa decisão padecerá de nulidade insanável prevista no artigo 119º al. e) do CPP, por violação do princípio do juiz natural consagrado no seu artº 32º, nº 9 da CRP.

2-Fls. 3997 e 4640: Requerimento dos arguidos AL... e JN....

Os arguidos pedem que seja declarada a invalidade do pedido do Mº Pº formulado no despacho de fls. 3787 através do qual solicitou ao Banco de Portugal informação respeitante a todas as contas bancárias registadas em nome dos requerentes e, bem assim, informação sobre as contas bancárias em que fossem intervenientes a qualquer título (nomeadamente, com autorizados, representares e procuradores).
No despacho em causa o Ministério Público invocou a quebra do sigilo bancário do Banco de Portugal, ao abrigo do artigo 79.º, n.º 2, alínea e), RGICSF, quando o regime legal aplicável ao Banco de Portugal é o previsto nos artigos 80.º a 84.º, do mesmo diploma.
Termos em que o despacho de verso de fls. 3787 do Ministério Público deve ser considerado irregular, nos termos do artigo 123.º, n.º 1, CPP, por indicar um fundamento legal desadequado para a sua pretensão (artigo 79.º, n.º 2, alínea e), RGICSF) e por, nessa medida, não se encontrar legitimado.
Mais alegam que o despacho de verso de fls. 3787 e s. terá que considerar-se irregular, nos termos do artigo 123.º, n.º 1, CPP, por padecer de flagrante falta de fundamentação, em violação do disposto no artigo 97.º, n.º 5, CPP e dos imperativos constitucionais que tal norma corporiza.

Despacho do Mº Pº de fls. 3787 verso, proferido a 15-3-2018, consta o seguinte:
“Os presentes autos reportam-se a factos susceptíveis de integrar a prática de crimes de titulares de cargos políticos ou, pelo menos, os seguintes crimes comuns:
Corrupção passiva (artigo 373º do CP).
Corrupção activa com agravação (artº 374º A do CP).
Participação económica em negócio (artº 377º do CP).
Na sequência do nosso despacho datado de 9.6.2016 e atenta a toda a prova entretanto recolhida, de acordo com o disposto no artigo 79º nº 2 al. e) do RGICSF (DL nº 298/92, de 31/12), oficie-se ao BdP solicitando-se o envio de informação relativamente a todas as contas bancárias em nome (1)….
Por identidade de razões e com os mesmos fundamentos constantes do despacho anterior oficie-se ao BdP, em idênticos termos, relativamente aos restantes arguidos (2) AL..., (3) JN... o (3)…
Para o efeito remetam-se todos os dados de identificação necessários para o efeito ao BdP».
Antes de mais cumpre referir que o despacho em causa contém um lapso de escrita. Com efeito, onde refere «o nosso despacho datado de 6-6-2016» parece-nos que será 9-6-2017, dado que o despacho em causa é o que consta de fls. 1560 com data de 9-6-2017.
A fls. 3817 e 3818, constam os ofícios dirigidos ao BdP, no dia 15-3-2018, a dar cumprimento ao despacho citado.
A Informação veiculada pelo Banco de Portugal na sequência do despacho do Mº Pº de fls. 3787v, consta de fls. 4033 e ss. e dos Apensos VIII-2 e VIII-3.
Cumpre conhecer:
O Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (aprovado pelo Dec. Lei nº 298/92 de 31 de Dezembro, com a última alteração introduzida pela Lei n.º 109/2017, de 24/11 e, doravante, designado por RGICSF) no seu artigo 78.º determina que, «os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços», designadamente, «os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias», o qual, «não cessa com o termo das funções ou serviços.» Igual dever de segredo recai sobre as autoridades de supervisão, nos termos do artigo 80.º do mesmo RGICSF, designadamente as pessoas que exerçam ou tenham exercido funções no Banco de Portugal.
Estão ainda sujeitos ao dever de segredo, por força do n.º 3 do artigo 81.º RGICSF, todas as autoridades, organismos e pessoas que participem nas trocas de informações referidas nos n.ºs 1 e 2 do mesmo preceito, designadamente a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), o Instituto de Seguros de Portugal, a Caixa Central do Crédito Agrícola Mútuo, as pessoas encarregadas do controlo legal das contas das instituições de crédito, etc. Este conjunto de disposições, directamente estabelecido para as instituições de crédito, é aplicável às sociedades financeiras, por força do disposto no artigo 195.º do RGICSF.
As excepções ao dever de segredo encontram-se previstas no art.º 79º do mesmo RGICSF.
Assim, nos termos do seu nº 1, os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição bancária podem ser revelados mediante autorização do cliente transmitida à instituição.
Quando não exista autorização do cliente devidamente comunicada à instituição, nos termos do nº 2 do mesmo artigo, os factos e elementos sujeitos ao segredo só podem ser revelados:
Ao Banco de Portugal, à Comissão de Mercado de Valores Imobiliários, ao Fundo de Garantia de Depósitos e ao Sistema de Indemnização de Investidores, no âmbito das respectivas atribuições;
Às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal.
Com a alteração introduzida pela Lei nº36/2010, de 2 de Setembro, ao artº 79º, nº2, al.d) do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, o legislador pretendeu agilizar o procedimento relativo à obtenção de informações cobertas pelo segredo bancário, atribuindo, às autoridades judiciárias, competência para as solicitar. Desse modo, a lei reconheceu que o interesse da investigação prevalece face ao direito de reserva da vida privada do titular de uma conta bancária e que, por essa razão, o dever de segredo cai perante a solicitação de uma autoridade judiciária efectuada no âmbito de um processo penal.
Quanto ao Banco de Portugal, regem os arts. 80º e 81º. Estabelece o primeiro, na parte relevante:
1–As pessoas que exerçam ou tenham exercido funções no Banco de Portugal, bem como as que lhe prestem ou tenham prestado serviços a título permanente ou ocasional, ficam sujeitas a dever de segredo sobre factos cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício dessas funções ou da prestação desses serviços e não poderão divulgar nem utilizar as informações obtidas.
2–Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal.
(…).
Por sua vez, o art.º 81º, regulando a cooperação do Banco de Portugal com outras entidades, dispõe não obstar ao segredo a troca de informações com determinadas entidades, nacionais e europeias (nºs 1 e 2), a troca de informações no âmbito de acordos de cooperação (nº 3), a troca de informações, e a troca de informações entidades não nacionais nem europeias (nº 4), observados os respectivos requisitos.
O desrespeito do segredo pode fazer incorrer o agente na prática de um crime de violação de segredo, p. e p. pelo art.º 195º do C. Penal (cfr. ainda art. 84º do RGICSF).
O C. Processo Penal regula o incidente de quebra do segredo profissional nos seus arts. 135º e 182º.
Daqui resulta que o segredo bancário não constitui um fim em si mesmo, nem sequer um valor absoluto, na medida em que a lei prevê diversas situações em que o mesmo pode ser derrogado em face de outros interesses públicos ou privados.
No caso em apreço, está em causa o dever de segredo do Banco de Portugal, regulado nos arts. 80.º, 81.º-A n.º 4, a contrario sensu, 84.º do RGICSF, aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro. Ora, nos termos do disposto no art.º 80.º n.º 2 do referido diploma, «Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal.».
Tendo em conta o teor das normas referidas, verifica-se que o regime, quanto ao dever segredo, não é idêntico. Com efeito, o Banco de Portugal está sujeito ao dever de segredo regulado no artigo 80º e 81º A nº 4 e 84º do RGICSF, enquanto, que as entidades referidas no artigo 78º estão sujeitas ao regime previsto no artigo 79º. Verifica-se, também, que, quanto às entidades identificadas no artigo 78º o dever de segredo cessa mediante solicitação de uma entidade judiciária no âmbito do processo penal, enquanto quanto ao Banco de Portugal os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal.
Assim sendo, tendo em conta o teor da norma constante do nº 2 do citado artigo 80º, conclui-se que, quanto ao Banco de Portugal, continua a ter aplicação o disposto no artigo 135º do CPP.    
Nestes termos, na medida em que a solicitação dirigida pelo Mº Pº ao Banco de Portugal não seguiu instruída com autorização por parte dos titulares das contas, os arguidos AL... e JN..., nem tal autorização se retira ou alcança da conduta processual adoptada pelos arguidos nos autos, cabe concluir que não estavam reunidos os pressupostos para que o Banco de Portugal procedesse à entrega da informação em causa.
Em suma, o despacho do Mº Pº de fls. 3787 verso, viola o disposto no n.º 2 do art.º 80.º e nos n.ºs. 4 e 5 do art.º 81.º-A (estes, a contrario), todos do RGICSF.
E erra na invocação do art.º 79.º nº 2 al. e) do RGICSF, já que não é esta a norma jurídica aplicável ao caso concreto, esta norma apenas tem aplicação em relação às instituições de crédito.
Como decorre da alínea w) do artigo 2ºA que define «Instituição de crédito», a empresa cuja actividade consiste em receber do público depósitos ou outros fundos reembolsáveis e em conceder crédito por conta própria» e do artigo 3º, ambos do RGICSF, o Banco de Portugal não constitui uma instituição de crédito, o que faz com que o regime previsto nos artigos 78º e 79º do RGICSF lhe seja aplicado.
Em face do exposto, dado que o fundamento legal invocado pelo Mº Pº no despacho constante de fls. 3787ss não tem aplicação ao caso concreto e dado que o levantamento do segredo do Banco de Portugal não seguiu os trâmites previstos no artigo 135º do CPP, conclui-se o despacho em causa padece de ilegalidade.
Em termos de tipologia legal, os vícios dos actos processuais podem padecer de um de três vícios: nulidade insanável; nulidade sanável; irregularidade. Dispõe o artigo 118º, n.º1 do CPP, sob epígrafe “princípio da legalidade”, que a “violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.
Tendo em conta a natureza do vício em causa e o disposto no artigo 118º do CPP, verifica-se que a lei comina o mesmo como constituindo uma irregularidade a qual deve ser arguida pelos interessados nos termos do artigo 123º do CPP.

Da falta de fundamentação do despacho do Mº Pº

Cumpre apreciar este segmento.
O princípio basilar do dever de fundamentação das decisões decorre, a nível da Lei Fundamental, da 1.ª Revisão Constitucional, tendo-se concretizado através da introdução de um novo n.º 1 do artigo 205.º, que passou a dispor que «as decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei». Com a revisão constitucional de 1997 veio a precisar-se no texto da Constituição que «as decisões (…) que não sejam de mero expediente são fundamentadas (…).
Diz o artigo 219º da CRP que, ao Ministério Público compete, entre outras funções, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.
Por outro lado, os tribunais enquanto órgãos complexos, englobam não apenas o desempenho dos juízes, como do Ministério Público, advogados ou outros agentes, tais como os funcionários judiciais. Na verdade, basta atentar na própria organização sistemática da Constituição para vermos que o Ministério encontra-se inserido no Titulo V relativo aos tribunais. Assim, podem surgir algumas dúvidas quanto ao que se deve entender por “decisões dos tribunais”, quando não existe uma definição constitucional de tribunal. Assim sendo, este dever constitucional de fundamentação, impõe-se, também, aos actos decisórios do Ministério Público, excluindo-se apenas as decisões de mero expediente.
A necessidade de fundamentação das decisões (de facto e de direito) é, assim, uma exigência constitucional num verdadeiro Estado de Direito, permitindo o controlo da sua legalidade pelos seus destinatários e, sobretudo, a sua sindicância pelos tribunais superiores, evitando-se, desse modo, qualquer livre arbítrio do julgador/decisor.
No que diz respeito às normas constantes do CPP, o disposto no art.º 97º, nº 5, do CPP, vem precisar isso mesmo ao preceituar que «Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão». Assim, o dever de fundamentação apenas se aplica aos actos decisórios propriamente ditos, considerando-se como tal, aqueles que estão elencados no art.º 97º, nº 1. Enumeram-se aí as sentenças, que são aquelas decisões que conhecem a final do objecto do processo, tomando a designação de acórdão, quando consistirem numa deliberação colegial, e os despachos decisórios interlocutórios ou mesmo finais, que não correspondam a uma sentença, podendo assumir a forma escrita ou oral. Tal dever legal de fundamentação estende-se, mas agora por via do preceituado no art. 97º, nº 3 e 4, aos actos decisórios do Ministério Público, os quais são formalmente apelidados de despachos.
Assim sendo e tendo o presente o caso concreto, conclui-se que o despacho em causa é um acto decisório do MºPº e, como tal, está sujeito, por força da exigência geral prevista no nº 5 do artigo 97º do CPP, ao dever de fundamentação.
A necessidade de fundamentação dos actos decisórios, em particular dos actos que restringem direitos fundamentais, como é o caso concreto, entronca-se no próprio direito de defesa da pessoa afectada pelo acto, pois somente explicitando-se e tornando-se cognoscíveis as concretas razões pelas quais se determina uma certa restrição de um direito fundamental poderá facilitar-se ao visado o uso dos meios de reacção previstos na lei. A fundamentação é portanto sinónimo de exteriorização do discurso jurídico no qual a autoridade judiciária baseou a sua decisão, cognoscibilidade dos elementos e fundamentos em que o decisor assentou a sua decisão de autorizar o acto de ingerência e na forma como o concedeu.
É evidente que não é exigível, muito menos numa fase preliminar do processo, que a motivação seja tão completa como se tivesse a certeza de que o bem em causa é produto de um crime, mas, também, não podemos cair no exagero contrário traduzido numa total ausência de motivação, onde o despacho mais não é que uma mera repetição dos pressupostos legais sem qualquer consistência factual.
Assim sendo, repete-se, que o imprescindível é que a motivação permita ao visado, neste caso ao terceiro afectado com a decisão de apreensão de bens, conhecer a razão pela qual se limitou o seu poder-dispor sobre um direito fundamental e, com base em tal compreensão, decidir se impugna ou não a mesma decisão. «Motivar ou fundamentar o acto de ingerência não é apenas cumprir um determinado formalismo ou ritualismo, é muito mais do que isso, é uma imposição finalística da necessidade de evitar a arbitrariedade ou o voluntarismo como fundamentadores de uma determinada resolução judicial que interfira no normal respeito dos direitos fundamentais da pessoa» - Benjamim Silva Rodrigues, in "Das Escutas Telefónicas", Tomo I - A Monitorização dos Fluxos Informacionais e Comunicacionais, Coimbra Editora 2008, páginas 227 e 228.
Ao fundamentar, o julgador, «após séria e serena reflexão, elabora um texto claro enxuto, conciso e completo (…) onde em discurso argumentado – para ser convincente – expondo-se, expõe a decisão e as suas razões». Neste sentido, Poças, Sérgio “Da sentença penal – fundamentação de facto”, in Julgar, n.º 3, Setembro-Dezembro 2007. Para Mouraz Lopes, fundamentar uma decisão é expor as razões justificativas de uma escolha efectuada, através de um processo de argumentação, pelo que se exige ao decisor a capacidade de reflectir, ponderar e transmitir essa reflexão para o exterior através da própria decisão (cfr.“A fundamentação da sentença no sistema penal português”; Almedina, Coimbra, 2011; p. 11)
Também em sede de jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, é assumido o princípio da fundamentação das decisões como forma de legitimar a própria actividade dos órgãos decisores. (neste sentido Acórdão Hiro Balani vs. Espanha, de 09.12.2004) Este Tribunal tem entendido que a fundamentação, além de garantir implicitamente o direito a um processo justo e equitativo, visa garantir a inexistência de decisões arbitrárias. Para Eric Alt, a qualidade da justiça «mede-se pela sua capacidade de defender os valores intrínsecos no coração das leis fundamentais e em especial na Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Sem isso a justiça não será nem legítima, nem ética, nem eficaz» in A qualidade da decisão judicial”, in Julgar, n.º 5, Maio-Agosto 2008, p. 17.

Vejamos o caso concreto.
O despacho Mº Pº acima referido (despacho de fls. 3787) não contém, tal como já referimos nestes autos a propósito do despacho de fls. 1560, fundamentação factual nem qualquer indicação de elementos probatórios existentes no processo que levaram à conclusão da existência de indícios da prática de um crime de corrupção e participação económica em negócio por parte dos arguidos AL... e JN....
Para além disso, do mesmo despacho não constam elementos, ainda que mínimos, que permitissem concluir pela necessidade do recurso ao meio de obtenção de prova em causa e pela respectiva adequação às finalidades do processo. Na verdade, conforme já dissemos acima, a validade do recurso a meios de obtenção de prova intrusivos de direitos fundamentais terá de ser aferida pelo respeito do princípio constitucional da proporcionalidade, constante do artigo 18º da CRP, a verificar-se no momento da prolação do despacho que admite o recurso ao meio de prova em causa.
Com efeito, estando em causa restrições a direitos fundamentais consagrados na constituição, não pode deixar de se observar o disposto nos nº 2 e 3 do artigo 18° da CRP, ou seja, a mencionada restrição de direitos fundamentais deve estar expressamente prevista na Constituição, deve salvaguardar outros direitos ou interesses também aí protegidos, deve limitar-se ao estritamente necessário, ser proporcional e adequada e não pode conduzir à destruição do direito fundamental.
Assim, nessa decisão deve constar a explanação das concretas razões que levam a concluir pela admissibilidade daquele meio de obtenção de prova e essa exigência, como facilmente se compreende, não se satisfaz com a mera repetição – com as mesmas palavras ou com outras com o mesmo significado – do enunciado na lei, como se verificou no despacho de fls. 3787.
Deste modo, a decisão do Mº Pº que solicitou ao Banco de Portugal as informações cobertas pelo sigilo bancário é absolutamente omissa em relação às exigências supra expostas.
Nesta conformidade, atento o princípio da legalidade consagrado no artigo 118.º, n.º 1, CPP, «nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular», a falta de fundamentação verificada no caso concreto, do artigo 205º nº 1 da CRP e 97º, nos 3 e 5, CPP, conduz à irregularidade do despacho em causa sendo, por isso, inválido, nos termos do artigo 123.º, n.º 1, CPP.
A falta de fundamentação verificada viola as garantias de defesa consagradas no artigo 32.º, n.º 1, CRP) e artigo 6.º, n.º 1 e n.º 3, al. c), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e Cidadão, na medida em que impossibilita aos arguidos o processo de sindicância dessa decisão, como compromete o direito a um processo equitativo, previsto no artigo 20.º, n.º 4, in fine, CRP e no artigo 6.º, n.º 1, CEDH, assim como viola o princípio do Estado-de-Direito democrático (artigo 2.º CRP) e o princípio da legalidade (artigo 3.º, n.º 2, CRP), todos impostos ao Ministério Público, por força do artigo 219.º, n.º 1, in fine, CRP.

Da violação do efeito devolutivo do recurso de fls. 3002.
Mais alegaram os arguidos que, com o despacho do Mº Pº de fls. 3787 verso o Ministério Público considerou letra morta o despacho de fls. 2618 e ss., de 03.10.2017, que, deferindo a irregularidade arguida pelos Arguidos através de requerimento de fls. 2502 e ss., decretou a invalidade do despacho de fls. 1560 ss em relação aos aqui Requerentes.
Os arguidos alegam o mesmo quanto ao despacho do Mº Pº de fls.3954 verso.
Este despacho tem a seguinte redacção: «Na sequência e nos termos do despacho de 9 de Junho de 2017 (fls. 1560 do 5º volume) solicite à AT o envio de declarações fiscais de todos os arguidos relativas aos anos de 2006 a 2016. Prazo: 5 dias. Remeta cópia do despacho no segmento aplicável».
Com efeito, da leitura do despacho de fls. 3787 verso verifica-se que o Mº Pº invocou como fundamento para o pedido dirigido ao Banco de Portugal, o despacho de fls. 1560ss proferido no dia 9-6-2017.
No que concerne ao despacho de fls. 3954, verifica-se o mesmo.
Quanto ao despacho do Mº Pº de fls. 1560, o mesmo foi, conforme resulta do despacho judicial de fls. 2618ss, proferido no dia 3-10-2017, julgado irregular.
Nessa decisão consta o seguinte: «Em face do exposto, uma vez que a irregularidade em causa foi invocada tempestivamente pelos arguidos e dado que a mesma afecta o valor do acto praticado pelo Mº Pº, julgo verificada a irregularidade do despacho de fls. 1560ss, na parte relativa aos arguidos AL... e JN..., bem como dos actos subsequentes praticados ao abrigo do despacho em causa, ou seja, as solicitações dirigidas à AT e Instituições bancárias e as respostas remetidas ao processo por estas instituições as quais, após trânsito em julgado deste despacho, devem ser desentranhadas dos autos e destruídas».
Sobre esta decisão foi interposto recurso, conforme consta de fls. 2958ss, o qual foi admitido, com efeito meramente devolutivo, por despacho de fls. 3002.
Como é referido no AC do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15.09.2016: «Dizer que um recurso tem efeito devolutivo significa que a sua interposição serve para que a instância superior análise, total ou parcialmente, a matéria controvertida. Ou seja, é a garantia de uma segunda opinião sobre o tema. O efeito do recurso, suspensivo ou meramente devolutivo, tem, naturalmente, que ver com os interesses em jogo e, portanto, com a natureza da decisão impugnada, sendo muito claro que, em direito processual criminal, a lei, ao fixar o efeito, teve em consideração tanto aqueles como esta, o que, aliás, resulta do disposto no artigo 408.º do Código de Processo Penal, vendo-se dele que das decisões penais condenatórias contidas em sentença ou acórdão o recurso tem efeito suspensivo, e isto porque tais decisões não devem ser executadas sem que transitem em julgado (Assento DD79, de 11 de Março, STJ, DR - 1.ª SERIE, Nº 59, de 11.03.1978, Pág. 505)».
No mesmo sentido, Germano Marques da Silva, in Direito Processual Penal Português. Do Procedimento (Marcha do Processo), vol. 3, Universidade Católica Portuguesa, 2015, Lisboa, pp.327, refere que: «O efeito devolutivo ou meramente devolutivo consiste na atribuição ao tribunal ad quem do poder de conhecer da decisão impugnada. Devolve-se o conhecimento da questão, que foi objecto de decisão judicial recorrida, do tribunal que decidiu para outro tribunal que a decidirá de novo.
Todos os recursos ordinários têm efeito devolutivo. Além deste efeito, alguns recursos têm também efeito suspensivo. A este efeito se refere o art.º 408.º, que distingue entre efeito suspensivo do processo e efeito suspensivo da decisão recorrida.
(…)
No que se refere à suspensão dos efeitos da decisão recorrida, isso significa que o processo pode prosseguir, só ficando suspensa a própria decisão recorrida».
Assim sendo, uma vez que ao recurso da decisão de fls. 2618 foi fixado o efeito meramente devolutivo, isso significa que a decisão judicial em causa continua a produzir efeitos dentro do processo, na medida em que ao Tribunal superior apenas foi solicitada a reapreciação da decisão em causa.
Deste modo, a decisão judicial constante de fls. 2618 que julgou irregular o despacho do Mº Pº que determinou a quebra do sigilo bancário e fiscal, não pode ser ignorada, dado que continua a produzir efeitos dentro do processo e o despacho do Mº Pº de fls. 1560 de 6-6-2917 (declarado inválido) não poderá ser utilizada para justificar o mesmo pedido.
Nesta conformidade, o despacho de fls. 3787 verso, ao pretender obter informação junto do Banco de Portugal com fundamento no despacho do Mº Pº de 6-6-2017 (fls. 1560) e o despacho de fls. 3954 verso ao pretender obter informação junto da AT com base no mesmo despacho declarado ilegal é contrário ao disposto no artigo 408º, a contrario, do CPP, por não respeitar o efeito devolutivo fixado ao recurso.
Esta ilegalidade é, por força do disposto no artigo 118º nº 2 do CPP, cominada como irregularidade o que faz com que, também por aqui, o despacho de fls. 3787 também sofra de irregularidade processual nos termos do artigo 123.º, n.º 1, CPP.

VI-Decisão

Por todo o exposto decide-se:
1-Caso venha a ser copiado ou obtido correio electrónico relativo aos arguidos AL... e JN..., dado que os visados não deram o seu consentimento e não estando o aproveitamento extraprocessual do correio electrónico previsto na lei como um meio de obtenção de prova e considerando o direito à reserva da vida privada, não podemos deixar de concluir que é proibida a valoração dos meios de prova obtidos dessa forma, por abusiva intromissão na vida privada dos visados.
2-Em consequência, dado que a decisão do Mº Pº constante de fls. 3763 a 3778, 3954ss, 3957 verso e 4189 verso, relativa aos arguidos AL... e JN..., foi proferida em violação do disposto no artigo 126º nº 3 do CPP tem-se por inválida qualquer prova que venha a ser obtida na sequência dessa decisão e que esteja relacionada com correio electrónico, nos termos do disposto no artigo 126.º n.º 3 e 122º nº 1 do CPP.
3-Caso se verifique a selecção de correio electrónico no âmbito dos processos 324/14.OTELSB e 122/13.8TELSB, nos termos dos despachos do Mº Pº de fls. 3763 a 3778, 3954ss, 3957 verso e 4189 verso, essa decisão padecerá de nulidade insanável prevista no artigo 119º al. e) do CPP, por violação do princípio do juiz natural consagrado no seu artº 32º, nº 9 da CRP.
4-Dado que o fundamento legal invocado pelo Mº Pº no despacho constante de fls. 3787ss não tem aplicação ao caso concreto e dado que o levantamento do segredo do Banco de Portugal não seguiu os trâmites previstos no artigo 135º do CPP, conclui-se o despacho em causa padece de ilegalidade, pelo que, nos termos do artigo 118º nº 2 e 123º nº 1 do CPP, declaro a sua irregularidade, na parte relativa aos arguidos AL... e JN....
5-Por ser tempestiva e invocada por quem tem interesse, ao abrigo do artigo 123º nº 1 do CPP, julgo verificada, também, a irregularidade, por falta de fundamentação, do despacho do Mº Pº que decretou a quebra do segredo do Banco de Portugal, constante de fls. 3787 verso e, em consequência, dou o mesmo sem efeito, na parte relativa aos arguidos AL... e JN....
6- Mais julgo verificada a ilegalidade do despacho de fls. 3787 verso por violação do efeito devolutivo do recurso de fls. 3002. Esta ilegalidade é, por força do disposto no artigo 118º nº 2 do CPP, cominada como irregularidade o que faz com que, também por aqui, o despacho de fls. 3787 também sofra de irregularidade processual nos termos do artigo 123.º, n.º 1, CPP, na parte relativa aos arguidos AL... e JN... .
7-Mais julgo verificada a ilegalidade do despacho de fls. 3 verso por violação do efeito devolutivo do recurso de fls. 3002. Esta ilegalidade é, por força do disposto no artigo 118º nº 2 do CPP, cominada como irregularidade o que faz com que, também por aqui, o despacho de fls. 3787 também sofra de irregularidade processual nos termos do artigo 123.º, n.º 1, CPP.
Dispõe o artigo 123º nº 1 do CPP «Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado».
Em face do exposto, uma vez que as irregularidades em causa foram invocadas tempestivamente pelos arguidos e dado que as mesmas afectam o valor dos actos praticados pelo Mº Pº, julgo verificada a irregularidade dos despachos de fls. 3787 e 3954 ss, na parte relativa aos arguidos AL... e JN..., bem como dos actos subsequentes praticados ao abrigo dos despachos em causa, ou seja, as solicitações dirigidas à AT e ao Banco de Portugal e as respostas remetidas ao processo por estas instituições. As informações bancárias em causa, assim como as fiscais, constantes dos autos sob os Apensos VII-2, VII-3, VII-2 eVIII-3, devem ser desentranhadas e acondicionadas em envelope fechado até ao trânsito em julgado deste despacho”.
*
3. Apreciando.

3.1. Da competência do Juiz de Instrução na fase de Inquérito.
O recurso coloca a seguinte questão:
Saber se o Juiz de instrução em fase de inquérito tem competência para se pronunciar, a requerimento dos arguidos, sobre os pedidos feitos pelo Ministério Público, a outros processos, de aquisição de meios de prova como certidão de e-mails (correio electrónico), informações bancárias (Banco de Portugal) e fiscais (Autoridade Tributária), e concluir pela existência de invalidades e nulidades processuais dos actos do Ministério Público, em face do disposto no art.º 126º, nº 3, do CPP?

Conhecendo:

Nesta questão da competência do juiz de instrução assentou o dissídio no caso dos presentes autos que se reconduz à questão de saber a que entidade compete conhecer a invocação de ilegalidades ou nulidades no decurso do Inquérito. Ao Ministério Público? Ao Juiz de Instrução no âmbito dos presentes autos?

Para melhor compreensão, importa relembrar as solicitações de recolha de prova tomadas pelo Ministério Público no âmbito do Inquérito e que aqui estão em causa:
 -as solicitações (fls. 3763 e ss) nas quais o MP requereu ao P. nº 324/14.0TELSB (o chamado “processo BES”) e ao P. nº122/13.8TELSB (o chamado “Processo Marquês”) autorização ao Juiz de Instrução afecto a esses inquéritos para ter acesso e apreensão de correspondência electrónica neles guardada, pertencentes a contas de correio electrónico do grupo BES (fls.3763 a 3778, 3954 e ss, 3957 verso e fls. 4189 verso, e ainda fls. 3787.
-as solicitações nas quais o MºPº requereu ao Banco de Portugal informações bancárias relativas aos arguidos AL... e JN..., e informações à Autoridade Tributária sobre esses mesmos arguidos cobertas por sigilo fiscal.
Como vimos, os arguidos vieram insurgir-se contra estas decisões do Ministério Público, pedindo a declaração de ilegalidade dos despachos do Ministério Público, vindo Tribunal a quo a dar provimento às pretensões dos arguidos, por despacho proferida em 16 de Maio de 2018, ora sob recurso (fls. 4744 a 4808), concluindo ser proibida a valoração dos meios de prova face aos termos em que os mesmos foram obtidos, por abusiva intromissão na vida privada dos arguidos, em violação do disposto no art.º 126º, nº 3 do CPP e, em consequência, o tribunal considerou inválida qualquer prova que venha a ser obtida na sequência das decisões do Ministério Público, vindo a padecer a eventual selecção de correio electrónico de nulidade insanável prevista no art.º 119º, al. e) do CPP.
No fundo, a questão resume-se em saber se o conhecimento da pretensão dos arguidos é da competência do Juiz de instrução ou exclusiva do Ministério Público, estando a resposta dependente de saber qual a natureza dos direitos que foram objecto de restrições.
O Sr. Juiz de instrução entendeu que estando em causa direitos fundamentais, a obtenção dos meios de prova tem de ser autorizada pelo juiz de instrução competente, entendendo ser competente o juiz de instrução no âmbito dos presentes autos.
E assim o Sr. Juiz de instrução considerou abusiva a obtenção de tais meios de prova nos termos em que foi operada, por falta de autorização pelo juiz competente, sendo consequentemente nula a prova, em violação do nº 3 do art.º 126º, do CPP, assim como padece de nulidade insanável por violação das regras de competência do tribunal, nos termos do art.º 119º, al. e) do CPP, por violação do principio do juiz natural, consagrado no art.º 32º, nº 9 da CRP.

Por sua vez, o Ministério Público, tal como resulta da motivação de recurso, tem uma posição divergente.
Entende fundamentalmente que o Juiz de Instrução durante o Inquérito não tem competência para conhecer e decidir os pedidos formulados pelos arguidos, considerando que durante o Inquérito só o Ministério Público tem legitimidade para apreciar tais pedidos.
Vem dizer que a interpretação adoptada pelo Sr.º Juiz de instrução não tem cabimento na nossa arquitetura jurídico-constitucional pois tal significaria a manifesta violação do princípio do acusatório e a impossibilidade de se prosseguir uma investigação célere e eficaz, comprometendo o princípio da autonomia do Ministério Público, traduzindo-se num ataque às funções e ao estatuto do Ministério Público, sendo esta posição atentatória contra a autonomia da magistratura do Ministério Público.
E entende o Ministério Público que o despacho do juiz de instrução “consubstancia a prática de um acto para o qual se não mostra legalmente habilitado o juiz de instrução, já que as solicitações, por um lado, de informação bancária e fiscal ao BdP e à AT e, por outro, a Colegas do MP titulares de outros inquéritos para obterem autorização judicial de pesquisa de e-mails no respetivo acervo probatório se assumem, materialmente, como actos de inquérito da competência exclusiva do Ministério Púbico (cfr. art.º 262º, nº 1 do Código de Processo penal)” (pág.37 do recurso).
O Ministério Público assume esta posição, mas “sem prejuízo de, em última instância, o Tribunal (juiz) poder sindicar a atividade do Ministério Público em sede de inquérito, no momento próprio, legalmente definido, a jusante do inquérito[1]  (pág.35 e 37 do recurso).
E conclui o Digno recorrente que a decisão proferida pelo do Sr. Juiz de instrução encerra a intrusão nas competências que em sede de inquérito pertencem funcionalmente ao núcleo privativo do Ministério Público, defendendo que o despacho recorrido deve ser revogado, com a declaração de incompetência do juiz de instrução criminal para fiscalizar o teor dos despachos do Ministério Público em causa.

Vejamos.

Com vista a centrar a questão essencial que vem colocada entendemos começar por dizer, com todo o devido respeito por opinião contrária, que não está aqui em causa a autonomia do Ministério Público, nem a independência do inquérito, nem é o caso de o juiz de instrução se comportar em sede de inquérito como uma “instância de recurso” das decisões do Ministério Público.
E passamos a explicitar o porquê deste entendimento, conforme, aliás, já o dissemos noutro recurso precisamente no âmbito dos presentes autos.
Importa que se diga que em termos gerais podemos considerar que está correcta a afirmação de que o juiz de instrução não pode declarar durante o inquérito a invalidade de actos processuais presididos pelo Ministério Público tendo em atenção o princípio da autonomia do Ministério Público. Mas já não será assim, se na obtenção de meios de prova estiver em causa questão que se prenda com direitos, liberdades e garantias fundamentais, como os direitos à reserva da intimidade da vida privada, à inviolabilidade das telecomunicações e da correspondência, à autodeterminação informacional, à imagem ou à palavra. Se assim for, e cientes de que o juiz de instrução é hierarquicamente incompetente para anular actos decisórios do Ministério Público, pois não pode funcionar como uma espécie de instância de recurso das decisões do Ministério Público, o certo é que o juiz de instrução é materialmente competente para se pronunciar sobre todas as questões que contendam com direitos, liberdades e garantias, devendo o juiz de instrução decidir logo que para tanto for solicitado, e independentemente da posição assumida pelo Ministério Público no processo.

Efectivamente, tratando-se de uma intervenção significativa nos direitos fundamentais do arguido, foi o legislador que assim optou, reforçando as garantias de protecção dos direitos fundamentais, tanto assim que no art.º 126º, nº 3 do CPP o legislador declara nula a prova adquirida com violação dos direitos fundamentais. A generalidade das proibições de prova visa precisamente a salvaguarda de direitos, liberdades e garantias e que são distintas das invalidades de actos processuais (cfr. art.º 118º, nº 3 do CPP), envolvendo as proibições de prova uma ofensa ilegítima de direitos fundamentais.
E este controlo prévio pelo juiz de instrução, enquanto juiz das garantias, colhe-se desde logo do art.º 202º, nº 2 da CRP, quando afirma que, na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
E esta posição assenta igualmente em outros normativos legais e constitucionais, estabelecendo o art.º 17º do CPP que “Compete ao juiz de instrução (...) exercer todas as funções jurisdicionais até á remessa do processo para julgamento, nos termos prescritos neste Código”, sendo este preceito o reflexo do art.º 32º, nº 4 da CRP que prossegue a tutela de defesa dos direitos do cidadão no processo criminal, determinando, nessa medida, o monopólio pelo juiz de instrução, juiz-garante dos direitos fundamentais dos cidadãos (“reserva do juiz”). Neste sentido, entre outros, veja-se o acórdão do TC nº 213/2008.
O Código de Processo Penal enuncia os actos de competência exclusiva do juiz de instrução a praticar durante o inquérito, os actos descritos no art.º 268º, nº 1, e actos a ordenar ou a autorizar, os actos descritos nos artigos 269º, nº 1 e 270º, nº 2, a que acresce ainda a competência exclusiva para os actos processuais expressamente previstos na lei, conforme previsto na alínea f) nº 1 do mesmo art.º 268º, designadamente, entre outros, a admissão de assistente, a detenção perante falta injustificada e detenção do arguido, as declarações para memória futura, ou em outros diplomas legais, como o artigo 16º nº 3 e 17º da Lei 109/2009 de 15/09 (Lei do Cibercrime), apreensão de correio electrónico e dados informáticos relativos à vida privada, e artigo 6º da Lei 5/2002 de 11/01 recolha de imagem e som.
Neste sentido se pronunciou João Conde Correia, para quem a declaração de nulidade tem carácter materialmente judicial, e porque na fase de inquérito compete ao juiz de instrução criminal praticar ou sindicar todos os actos que contendem com direitos, liberdades e garantias individuais, onde se inclui o conhecimento das nulidades (In Contributo para a Análise da Inexistência e das Nulidades processuais Penas, pág.189 e ss, nota 439).

Se bem vemos, o Ministério Público nesta matéria assenta na ideia de que o regime estatuído pelo art.º 268º e 269º do CPP concretiza, de forma esgotante, o princípio da reserva de juiz na fase de inquérito, e para além deste quadro de competência definido nestes artigos não seria admitida qualquer interferência judicial durante o inquérito.
Mas este entendimento não colhe, com o devido respeito, no confronto com o regime legal vigente que aqui brevemente abordámos. E se é certo que o Código não define expressamente qual a entidade que detém competência para, na pendência do inquérito, excluir uma prova com fundamento na violação de uma proibição de prova, não podemos deixar de considerar a natureza materialmente jurisdicional desta matéria, assim competindo ao juiz de instrução criminal praticar ou sindicar todos os actos que contendem com direitos, liberdades e garantias individuais, cabendo desde logo esta competência do juiz de instrução no âmbito do citado art.º 17º do CPP, sem que esta sua intervenção interfira minimamente com a linha de investigação definida pelo Ministério Público, ou que belisque a sua autonomia.

Dito isto, somos a concluir em face dos preceitos legais e constitucionais citados de que o juiz de instrução tem competência para, durante o inquérito, se pronunciar e decidir pedidos que lhe sejam dirigidos pelo arguido para sindicar actos do Ministério Público que possam violar normas que consagram proibições de prova, invocando a violação de direitos fundamentais, estando no caso em apreço a invocação de violação dos direitos de reserva da intimidade da vida privada e familiar, o direito à inviolabilidade da correspondência e segredo de comunicações, bem como a quebra do sigilo bancário e fiscal.
Ora, in casu, pretenderam os arguidos que o juiz de instrução viesse a conhecer e decidir dos referidos pedidos formulados pelo Ministério Público, vindo o juiz de instrução a considerar que o Ministério Público ao solicitar o acesso a correio electrónico, sem autorização judicial, pelo juiz competente, violou direitos fundamentais, como a reserva do direito ao sigilo das comunicações e privação da correspondência e da privacidade pessoal.
O juiz de instrução no âmbito dos presentes autos entendeu ser ele o juiz competente para autorizar o acesso aos meios de prova requeridos.
 
Ainda que brevemente não deixamos de referir o regime jurídico relativo ao correio electrónico, regulado pelo art.º 17º da Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro (Lei do Cibercrime), em que expressamente a apreensão de correio electrónico exige a autorização do juiz de instrução.
Este preceito legal estabelece o seguinte: “Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal”.
Assim determina este preceito legal a aplicação do regime de apreensão de correspondência previsto no art.º 179º do CPP, o qual estabelece no nº 1 que tais apreensões sejam determinadas por despacho judicial, “sob pena de nulidade”, e que “o juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida. Se a considerar relevante para a prova, fá-la juntar ao processo”, o que se aplica ao correio electrónico já convertido em ficheiro legível, o que constitui acto da competência exclusiva do Juiz de Instrução Criminal, nos termos do art.º 268º nº 1 alínea d) do CPP.

3.2. Da competência do juiz natural.

Se bem vemos, quer o Ministério Público quer o Juiz de instrução defendem que a obtenção dos meios de prova em causa a transportar para outro processo exige autorização judicial, mas já divergem relativamente ao juiz de instrução que neste caso é competente para autorizar o aproveitamento extraprocessual da prova.
E neste particular, o Ministério Público no requerimento de fls. 3763 e ss. defende que é competente para autorizar a transferência dos meios de prova o juiz de instrução do processo no qual se visa obter tais meios de prova. Por sua vez, o juiz de instrução no âmbito dos presentes autos entendeu que o juiz competente para autorizar o aproveitamento extraprocessual da prova sempre teria de ser o juiz de instrução dos presentes autos (com a particularidade de o juiz de instrução no âmbito dos presentes autos entender que o aproveitamento extraprocessual da prova não pode ser autorizado, por não estar legalmente previsto quanto a e-mails ou correio electrónico).

Mas se Juiz a quo, conforme foi nosso entendimento, é competente para se pronunciar sobre os requerimentos apresentados pelos arguidos, desde logo para aferir se a aquisição daquela prova nos moldes delineados pelo MP poderia, conforme vem alegado pelos arguidos, contender com proibições de prova já a solução adoptada, com o devido respeito, padece de fundamento legal.

E vejamos a razão deste entendimento.
Efectivamente, o juiz de instrução no âmbito dos presentes autos entendeu ser ele o juiz competente para decidir acerca da obtenção dos meios de prova solicitados pelo Ministério Público aos processos BES e Marquês, e concluiu que a obtenção de tais meios de prova foi abusiva nos termos em que foi operada, por falta de autorização pelo juiz competente, e julgou consequentemente nula a prova, em violação do nº 3 do art.º 126º do CPP, considerando que a prova assim obtida padece de nulidade insanável por violação das regras de competência do tribunal, nos termos do art.º 119º, al. e) do CPP, por violação do princípio do juiz natural.
Mas com o devido respeito, andou mal o Juiz a quo ao afastar a aplicação do regime jurídico do aproveitamento extraprocessual ou conhecimentos fortuitos em evidência no âmbito dos presentes autos, e que é aceite pela generalidade da doutrina e da jurisprudência.
Considerou então o Sr.º Juiz a quo que o legislador não consagrou qualquer norma legal a prever e a regular o aproveitamento processual da prova obtida mediante a apreensão do correio electrónico, não se podendo lançar mão do regime previsto no citado art.º 187º, nº 7  e 8 do CPP a propósito das intercepções telefónicas.
Entendeu tratar-se antes de um meio de obtenção de prova atípico,  não estando o aproveitamento extraprocessual do correio electrónico previsto na lei como meio de obtenção de prova. Salientou ainda as divergências de interpretação na conjugação do art.º 17º da Lei do Cibercrime com o art.º 179º do CPP, assim como os aspectos procedimentais de tratamento do correio electrónico, para concluir que não se trata de uma apreensão de correio electrónico propriamente dita, por tal correio electrónico se mostrar já apreendido à ordem de outro processo.
Ma não vemos que esta argumentação seja sustentável.
Podemos dizer que os conhecimentos fortuitos como meio de prova são apurados de forma residual, em contraponto com os conhecimentos de investigação e Costa Andrade “Sobre as Proibições de Prova.....”, 1992, págs.304 a 312,  define os conhecimentos da investigação, “como sendo aqueles factos casualmente descobertos no decurso de uma escuta telefónica e que terão de imputar-se à própria investigação, ao passo que os restantes factos, onde não se verifique essa mesma necessidade de imputação à investigação em curso, serão conhecimentos fortuitos que têm uma diferente disciplina normativa sem necessidade que se estabeleça qualquer conexão com os factos de um e outro processo, apenas sendo valorados se respeitarem os requisitos do art.º 187º, nº 7 do CPP.[2]

Conforme afirma Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código de Processo Penal.... em anotação ao artigo 187º, nota 13) “Há que distinguir claramente os poderes do juiz do processo onde foram realizadas as escutas telefónicas e os poderes do juiz do “outro processo” onde elas serão aproveitadas. O juiz do processo onde foram realizadas as escutas é competente para decidir sobre a legalidade das mesmas e sobre a verificação dos requisitos legais estabelecidos no art.º 187º, nº 7”.

Neste sentido podemos dizer que a jurisprudência é uniforme, citando-se, entre outros, o Cons. Santos Cabral: (in Código de Processo Penal- Comentário, nota 16, 2014 p.798):
“Quando se suscita a questão do aproveitamento dos conhecimentos fortuitos noutro processo nos termos do nº 7 do presente normativo falamos de elemento probatórios adquiridos no processo com base numa autorização concedida legalmente.
(...).
Porém, a utilização das escutas, que contêm os conhecimentos fortuito, no processo sequente onde as mesmas foram juntas não está dependente de qualquer validação, ou autorização judicial, uma vez que as mesmas produziram-se no processo originário ao abrigo de uma autorização judicial que apreciou da existência dos respectivos pressupostos. Tal decisão, tomada validamente, não poderá ser colocada em causa num outro processo e, se tal acontecer, existirá uma manifesta intromissão processual, proferida por quem não detém a necessária competência, ferindo uma decisão tomada legalmente.
Dito por outras palavras, a escuta pelo juiz de instrução num processo não pode ser colocada em causa por outro juiz de instrução num processo para onde as mesmas escutas foram exportadas. Aliás, no rigor dos princípios, não há, neste último processo, lugar a qualquer intervenção judicial para validar escutas pois elas já foram validadas” (sublinhado nosso).

Manifestamente, o juiz de instrução a quo não tinha competência para se pronunciar sobre os elementos probatórios resultantes da intercepção de comunicações ou de correio electrónico, por estes serem procedentes de outros autos onde o juiz competente no âmbito dos mesmos apreciou a sua legalidade.

Não tinha o juiz de instrução do processo destinatário a competência para intermediar o pedido de pesquisa de e-mails efectuado pelo M°P° ao juiz de instrução criminal do respectivo processo de origem, nem igualmente, como pretende o juiz de instrução criminal dos presentes autos, decidir nos outros processos.
E deste modo, o juiz a quo, arvorando-se em juiz competente, sem o ser, declarou nulo o despacho proferido pelo Juiz do processo que legitimamente autorizou a obtenção dos conhecimentos fortuitos. E deste modo obstou à aquisição da prova indiciária, ao arrepio do entendimento que tem sido seguido pela generalidade da doutrina e da jurisprudência, violando o princípio do juiz natural, bem como a esfera da competência exclusiva do seu colega, juiz de instrução titular daqueles autos, aos quais foram solicitados os e-mails.

3.3. E decorrente desta argumentação, também claudica o pedido relativo à documentação bancária e fiscal. Desde logo verificando-se que os segredos, bancário e fiscal, cedem por imposição legal - independentemente de autorização do titular da conta- ao interesse público de investigação criminal, sendo válida a prova assim apreendida pelo que, em face da fundamentação aduzida, somos igualmente a julgar procedente o recurso também nesta parte.

3.4. O despacho proferido pelo Juiz de instrução, sob promoção do Ministério Público, que autorizou a transferência dos elementos de prova (no âmbito dos processos 324/14.0TELSB e 122/13.8TELSB), mostra-se suficientemente fundamentado, não suscitando qualquer dúvida, dando a conhecer o sentido da decisão, pelo que não enferma de irregularidade, não nos merecendo qualquer reparo.
 
Cumpre finalmente julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando totalmente o despacho recorrido, embora com fundamentação parcialmente diversa, padecendo a decisão recorrida das apontadas nulidades insanáveis de incompetência do tribunal, nos termos do art.º 119º, alínea e) do CPP.
                                                          
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III-Dispositivo.
Face ao exposto, acordam as Juízas da 3ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso, revogando na íntegra o despacho recorrido, embora com fundamentação parcialmente diversa, padecendo a decisão recorrida das apontadas nulidades insanáveis de incompetência do tribunal, nos termos do art.º 119º, alínea e) do CPP.

Sem custas.

Notifique.

Lisboa, 11/07/2019

Elaborado, revisto e assinado pela relatora Conceição Gonçalves e assinado pela Desembargadora Adjunta Maria Elisa Marques.

[1] De nada adiantaria a vantagem da maior celeridade da investigação se depois nas fases jurisdicionais posteriores (instrução ou julgamento) tais meios de prova viessem a cair por terra com a declaração de nulidade da prova, e nesta fase com muito maior prejuízo para a salvaguarda de direitos fundamentais.
[2] Sobre conhecimentos fortuitos e respectivos pressupostos e a sua valoração, entre outros, Ac. TRP de 11/01/1995 (Pereira Madeira), Ac. STJ de 23/10/2002 (Leal Henrique), Ac. do STJ de 16/10/2003, Acs. TRP de 16/01/2008, de 12/12/2007 e Ac.TRL de 11/10/2007