Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
373/2008-2
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: DECLARAÇÃO DE EXECUTORIEDADE
ORDEM PÚBLICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/21/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I – No âmbito de aplicação do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, é na fase de recurso da decisão que o requerido poderá invocar os motivos de recusa da declaração de executoriedade, sendo que o tribunal de recurso apenas poderá recusar ou revogar a declaração de executoriedade por um dos motivos especificados nos artigos 34º e 35 º e que as decisões estrangeiras não podem, em caso algum, ser objecto de revisão de mérito.
II – Um desses motivos corresponde à declaração de exequibilidade da decisão em causa ser manifestamente contrária à ordem pública do Estado-Membro requerido – art. 34, nº 1 do Regulamento.
III - O Regulamento contém regras próprias, designadamente a nível processual, regras essas que, existindo, são de observar em detrimento das regras do processo comum nacional as quais resultam, nessa parte afastadas.
IV - Não alegando a recorrente que a sentença estrangeira e a declaração de executoriedade que lhe sucedeu, propriamente ditas, são contrárias à Ordem Pública Portuguesa, mas sim que o formalismo processual posterior à declaração de executoriedade, por força da infracção dos princípios do contraditório e da igualdade não está conforme à ordem pública, tal não se contém na previsão do art. 34, nº 1, do Regulamento.
(M.J.M.)
_____________
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:
                                                                       *
            I - No Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras «M», sociedade de direito alemão com sede em , Alemanha, veio requerer contra «S, Lda.», a declaração de exequibilidade da sentença proferida em 31 de Julho de 2006 pelo Tribunal de Primeira Instância nº 55 de Madrid, Espanha.
            Tendo sido proferida decisão que declarou a executoriedade da referida sentença, recorreu daquela a requerida, concluindo nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso:
a) Vem o presente recurso interposto da douta decisão que declara que “Tendo em conta as regras dos artigos 41°, 53°/2 e 54° do Regulamento (CE) n° 44/2001 do Conselho (de 22.XII.00) declara-se a executoriedade da decisão condenatória do Julgado de Primeira Instancia n° 55 de Madrid”.
b) Porém o presente recurso visa também impugnar a douta decisão do Tribunal "a quo" que admite e fixa a espécie do presente recurso como sendo de Apelação, com subida imediata nos próprios autos e efeito devolutivo.
c) Tal entendimento da recorrente tem como fundamento legal o disposto no art° 36 do Regulamento CE 44/2001 que determina que "As decisões estrangeiras não podem, em caso algum, ser objecto de revisão de mérito".
d) No requerimento de interposição de recurso da ora recorrente, apresentado nos termos do disposto no art° 687° do C.P.C., tendo em consideração não só esta disposição regulamentar, mas também o disposto nos art°s 691° n°s 1 e 2 e 733° do C.P.C.;
e) Entendeu-se que a espécie de recurso a fixar seria forçosamente o Agravo uma vez que a decisão não é susceptível de Apelação porque não conhece do mérito da causa.
f) Ora, considerando-se o recurso interposto como sendo de Agravo, necessariamente o seu regime de subida será o de subida imediata, nos próprios autos, nos termos do disposto nos art°s 734, n° 1 e 736° do C.P.C.;
g) E, necessariamente, o efeito do recurso será suspensivo (art° 740 n° 1 do C.P.C.) e não devolutivo, como doutamente foi fixado pelo Tribunal "a quo" na decisão que o admitiu e fixou o respectivo regime.
h) Assim sendo, entende a ora recorrente que a douta decisão que fixa a espécie e efeito do presente recurso deve ser revogada e substituída por outra que determine que o presente Recurso é de Agravo e com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo, o que ora se invoca nos termos e para os efeitos do disposto no art° 687° n° 4 do C.P.C..
No entanto, e sem condescender sempre se dirá que,
i) A recorrente não pode conformar-se com o facto de a sentença do MM. Tribunal "a quo" declarar executória uma sentença proveniente de um Tribunal Estrangeiro, declarando que estão cumpridos os trâmites previstos no art° 53° n°2 do Regulamento, designadamente,
j) Que a recorrida terá apresentado cópia da decisão que satisfaz os requisitos de autenticidade, a sua tradução autenticada, bem como a certidão de acordo com o formulário uniforme constante do anexo V do regulamento;
k) Determina o art° 42° n° 1 do Regulamento que "A decisão sobre o pedido de declaração de executoriedade será imediatamente levada ao conhecimento do requerente, na forma determinada pela lei do Estado-Membro requerido.";
1) De acordo com a Lei Portuguesa (art° 228° n° 1 do C.P.C.), a forma idónea de chamamento de alguém a uma acção, quer para dela se dar conhecimento, quer para o exercício do seu direito de defesa, é a citação.
m) No caso sub judice, não foi a citação o meio pelo qual a recorrente foi chamada à acção, tendo-o sido através de uma simples notificação.
Não obstante,
n) Determina a Lei, no art° 228° n° 3 do C.P.C. que, quer a citação, quer a notificação são "... sempre acompanhadas de todos os elementos e de cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessários à plena compreensão do seu objecto".
o) Mas a verdade é que apesar da decisão recorrida afirmar que estão cumpridos todos os requisitos do art° 53° do Regulamento, a aqui recorrente não teve a oportunidade de se pronunciar acerca da conformidade destes documentos e exercer o seu direito de contraditório, porquanto que nunca os mesmos lhe foram entregues e, como tal, não tem conhecimento dos mesmos.
p) A recorrente está assim impedida de se pronunciar ou até verificar se efectivamente foi aquela a sentença pela qual foi condenada pelo Tribunal do Estado Membro Espanhol, se a mesma satisfaz os requisitos de executoriedade, ou até se está ou não correctamente traduzida.
q) Entende por isso a recorrente, que ao ser-lhe negado o acesso a todos os documentos que acompanham a acção com vista à obtenção da declaração de executoriedade, é manifestamente violado o principio do contraditório, previsto no art° 3° n°s 1, 2 e 3 do C.P.C.,
r) E é também violado o princípio da Igualdade das partes consagrado no art° 3-A do C.P.C.
s) Existindo por isso violação da Ordem Pública do Estado Membro requerido, para os efeitos do art° 34° n° 1 do Regulamento.
t) Verificando-se a violação da Ordem Pública do Estado Português, de acordo com o estipulado no art° 34° n° 1 do Regulamento, não poderá a sentença proferida pelos Tribunais Espanhóis obter executoriedade através da sentença ora recorrida, sem que esteja assegurado previamente o cumprimento dos princípios enunciados.
            A recorrida contra alegou nos termos de fls. 63-70.
                                                                       *
            II – Tendo em conta que nos termos dos arts. 684, nº 3, 690, nº 1, e 660, nº 2, todos do CPC, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação a questão que essencialmente se nos coloca é a de se a declaração de exequibilidade da sentença a que se reportam os autos contende com a Ordem Pública do Estado Português ([1]).
                                                                       *
            III - Com interesse para a decisão há que salientar as seguintes ocorrências que resultam do processo:
            1 – Em 31 de Julho de 2006, pelo Tribunal de 1ª Instância nº 55 de Madrid, foi proferida sentença condenando a aqui requerida, «S, Lda.», a pagar à aqui requerente, «M», a quantia de € 407.547,95 a título de pagamento devido pelo total do preço das facturas emitidas e não pagas, acrescido do juro legal sobre aquela quantia desde a data da interposição da acção até à data da decisão, a partir da qual e até integral pagamento venceria o juro previsto no art. 576º da Lec» (fls. 8-17 e 20-26).
            2 - Pelo Tribunal de 1ª Instância nº 55 de Madrid, em 7 de Junho de 2007, foi emitido certificado referido como «Anexo V, Certificado previsto nos artigos 54º e 58º do Acordo respeitante às decisões e transacções judiciais» do qual consta que a decisão tem força executória no Estado-Membro de origem (fls. 19 e 6-7).
3 – No Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras a aqui requerente, «M», requereu contra a aqui requerida, «S, Lda.», a declaração de exequibilidade daquela sentença proferida em 31 de Julho de 2006 pelo Tribunal de Primeira Instância nº 55 de Madrid.
4 - Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras foi proferida a seguinte decisão (decisão recorrida): «Tendo em conta as regras dos artigos 41°, 53°/2 e 54° do Regulamento (CE) n° 44/2001 do Conselho (de 22.XII.00) declara-se a executoriedade da decisão condenatória do “Julgado de Primeira Instancia” n° 55 de Madrid».
            5 – Esta decisão foi notificada à requerente e à requerida através de cartas registadas (fls. 40-41).
                                                                       *
IV1 - O Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial corresponde a um instrumento normativo de direito comunitário que permite unificar, no âmbito da sua aplicação, as normas de conflito de jurisdição em matéria civil e comercial, bem como simplificar as formalidades com vista ao reconhecimento e execução, rápidos e simples, das decisões proferidas sobre essas matérias ([2]).
 Antecedendo o articulado do Regulamento considera-se que a «Comunidade atribuiu-se como objectivo a manutenção e o desenvolvimento de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça em que seja assegurada a livre circulação das pessoas» e que para «criar progressivamente tal espaço, a Comunidade deve adoptar, entre outras, as medidas no domínio da cooperação judiciária em matéria civil que sejam necessárias para o bom funcionamento do mercado interno», precisando-se que «para efeitos da livre circulação das decisões judiciais, as decisões proferidas num Estado-Membro vinculado pelo presente regulamento devem ser reconhecidas e executadas num outro Estado-Membro vinculado pelo presente regulamento, mesmo se o devedor condenado estiver domiciliado num Estado terceiro». Acrescenta-se que a «confiança recíproca na administração da justiça no seio da Comunidade justifica que as decisões judiciais proferidas num Estado-Membro sejam automaticamente reconhecidas, sem necessidade de recorrer a qualquer procedimento, excepto em caso de impugnação» e que a «mesma confiança recíproca implica a eficácia e a rapidez do procedimento para tornar executória num Estado-Membro uma decisão proferida noutro Estado-Membro», pelo que «para este fim, a declaração de executoriedade de uma decisão deve ser dada de forma quase automática, após um simples controlo formal dos documentos fornecidos, sem a possibilidade de o tribunal invocar por sua própria iniciativa qualquer dos fundamentos previstos pelo presente regulamento para uma decisão não ser executada» (negrito nosso).
Distingue-se, pois, o reconhecimento da decisão – aludido nos arts. 33 e seguintes do Regulamento – determinando-se genericamente, no nº 1 do art. 33, que as «decisões proferidas num Estado-Membro são reconhecidas nos outros Estados-Membros, sem necessidade de recurso a qualquer processo» (o reconhecimento é automático, sendo as decisões reconhecidas sem necessidade de recurso a qualquer procedimento) da exequibilidade da decisão.
Quanto à exequibilidade da decisão – e é esse o âmbito em que nos situamos nos presentes autos - regem os arts. 38 e seguintes, sendo de salientar que consoante o nº 1 do art. 38 as «decisões proferidas num Estado-Membro e que nesse Estado tenham força executiva podem ser executadas noutro Estado-Membro depois de nele terem sido declaradas executórias, a requerimento de qualquer parte interessada». A condição fundamental da executoriedade da decisão comunitária é, pois, a de que tenha força executiva no Estado de origem. O juiz do Estado em que se pretenda que a decisão seja executada limita-se a apor uma declaração de executoriedade, como expressão da soberania deste Estado, sem que tenha lugar a aplicação do nº 1 do art. 49 do CPC.
Foi essa a pretensão da requerente nos presentes autos – a da declaração de executoriedade da sentença proferida em 31 de Julho de 2006 pelo Tribunal de Primeira Instância nº 55 de Madrid, sentença essa que aquele tribunal certificou ter força executiva no Estado em que foi proferida.
Consoante o art. 41 do Regulamento, a «decisão será imediatamente declarada executória quando estiverem cumpridos os trâmites previstos no artigo 53.º, sem verificação dos motivos referidos nos artigos 34.º e 35.º A parte contra a qual a execução é promovida não pode apresentar observações nesta fase do processo».
Foi àquela declaração de executoriedade que o Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras procedeu.
Os «trâmites previstos no artigo 53.º» reconduzem-se à apresentação de uma cópia da decisão que satisfaça os necessários requisitos de autenticidade e à apresentação de certidão emitida pelo tribunal (ou  autoridade) que haja proferido a decisão «segundo o formulário uniforme constante do anexo V ao presente regulamento». No caso dos autos tais documentos encontram-se juntos, como decorre do acima aludido em III - 1) e 2).
Todavia como o Conselho explica, antecedendo o articulado do Regulamento, o «respeito pelos direitos de defesa impõe … que o requerido possa interpor recurso, examinado de forma contraditória, contra a declaração de executoriedade, se entender que é aplicável qualquer fundamento para a não execução».
            Não há qualquer motivo de recusa invocável perante o tribunal de comarca, tendo lugar o contraditório na instância de recurso – na falta de interposição de recurso a decisão é exequível.
É na fase de recurso da decisão que o requerido poderá invocar os motivos de recusa da declaração de executoriedade ([3]), dispondo o art. 45 do Regulamento que o tribunal onde foi interposto o recurso apenas recusará ou revogará a declaração de executoriedade por um dos motivos especificados nos artigos 34º e 35 º e que as «decisões estrangeiras não podem, em caso algum, ser objecto de revisão de mérito». Esta última é uma regra fundamental do sistema, estruturado no reconhecimento da mútua confiança entre as jurisdições dos Estados-Membros, não podendo a vontade do juiz nacional quanto ao fundo da matéria ser substituída pela do juiz estrangeiro.
            Ora, os motivos especificados nos arts. 34º e 35º são, respectivamente:
            - a declaração de exequibilidade da decisão em causa ser manifestamente contrária à ordem pública do Estado-Membro requerido;
- o acto que iniciou a instância, ou acto equivalente, não ter sido comunicado ou notificado ao requerido revel, em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa (a menos que o requerido não tenha interposto recurso contra a decisão embora tendo a possibilidade de o fazer);
- ser a decisão a que se reporta a declaração de exequibilidade inconciliável com outra decisão proferida quanto às mesmas partes no Estado-Membro requerido, ou ser inconciliável com outra anteriormente proferida noutro Estado-Membro ou num Estado terceiro entre as mesmas partes, em acção com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, desde que a decisão proferida anteriormente reúna as condições necessárias para ser reconhecida no Estado-Membro requerido,
            - terem sido desrespeitadas as regras referentes a competência (designadamente quanto a seguros, contratos celebrados por consumidores e competências exclusivas).
            A recorrente reconduz-se à verificação do primeiro dos motivos enunciados, sendo o seu raciocínio o seguinte:
            - não foi através de citação que a requerente foi chamada à presente acção mas sim através de notificação, não lhe tendo então sido entregues cópias dos documentos que foram juntos aos autos e sendo deste modo violado o princípio do contraditório e o princípio da igualdade das partes;
            - por isso existe violação da Ordem Pública do Estado-Membro requerido, para os efeitos do art. 34, nº 1, do Regulamento.
                                                                       *
            IV – 2 - Afigura-se que o raciocínio desenvolvido pela recorrente assenta sobre pressupostos não inteiramente correctos, enfermando por isso de vícios que inquinam as respectivas conclusões.
            Vejamos.
            Logo de início a recorrente revela alguma confusão quando afirma que:
«Determina o art° 42° n° 1 do Regulamento que "A decisão sobre o pedido de declaração de executoriedade será imediatamente levada ao conhecimento do requerente, na forma determinada pela lei do Estado-Membro requerido";
De acordo com a Lei Portuguesa (art° 228° n° 1 do C.P.C.), a forma idónea de chamamento de alguém a uma acção, quer para dela se dar conhecimento, quer para o exercício do seu direito de defesa, é a citação.
No caso sub judice, não foi a citação o meio pelo qual a recorrente foi chamada à acção, tendo-o sido através de uma simples notificação».
            Sucede que a aqui recorrente não é requerente no processo, mas sim requerida, não lhe sendo, pois, aplicável o nº 1 do art. 42 do Regulamento, em que se baseia, mas sim o nº 2 do mesmo artigo, o qual dispõe: «A declaração de executoriedade será notificada à parte contra quem é pedida a execução, e será acompanhada da decisão, se esta não tiver sido já notificada a essa parte». A requerida é a «parte contra quem é pedida a execução», devendo, nos termos do Regulamento, ter sido notificada (e não citada, como por si pretendido) da declaração de executoriedade proferida pelo Tribunal de 1ª instância e devendo essa notificação ter sido acompanhada da decisão se entretanto ainda não possuísse conhecimento dela.
                                                                       *
IV – 3 - Não nega a recorrente que foi notificada da declaração de executoriedade – de que, aliás, transcreve o teor no corpo da alegação de recurso – não resultando dos autos (nem ela alegando) que desconhecia a decisão.
            O Regulamento contém regras próprias, designadamente a nível processual, regras essas que, existindo, são de observar em detrimento das regras do processo comum nacional as quais resultam, nessa parte afastadas. O que o Regulamento não regular regulará, então, o direito interno. Especificando claramente o regulamento os termos em que a notificação é feita – «acompanhada da decisão, se esta não tiver sido já notificada» - e não havendo elementos que nos permitam afirmar que a notificação não respeitou o por ele determinado, não vinga a pretensão da recorrente.
            Mesmo que assim se não entendesse, aplicando-se a lei geral, sendo certo que consoante decorre do nº 3 do art. 228 do CPC «a citação e as notificações são sempre acompanhadas de todos os elementos e de cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessários à plena compreensão do seu objecto», a notificação desacompanhada desses elementos apenas resultaria numa nulidade processual. Efectivamente, por nulidades do processo entendem-se quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, a que esta faça corresponder, embora não de forma expressa, uma invalidação mais ou menos extensa de actos processuais ([4]).
Não se tratando das nulidades previstas nos arts. 193, 194, 199 e 200 do CPC – nem mesmo da prevista no art. 198 do mesmo Código – mas de uma nulidade abrangida pela regra geral do art. 201, os termos da arguição seriam os constantes do art. 205 do CPC. Ora, assim sendo, daquela nulidade processual não caberia directamente recurso para este Tribunal, devendo a mesma ser arguida primeiramente perante o Tribunal em que tivera lugar. Só posteriormente, no caso de discordância com o despacho que versasse sobre a arguição de nulidade, desse despacho caberia recurso para este tribunal.
                                                           *
IV – 4 - A recorrente argumenta, também, «que ao ser-lhe negado o acesso a todos os documentos que acompanham a acção com vista à obtenção da declaração de executoriedade, é manifestamente violado o principio do contraditório, previsto no art° 3° n°s 1, 2 e 3 do C.P.C.» e «é também violado o principio da Igualdade das partes consagrado no art° 3-A do C.P.C.».
Os nºs 3 e 4 do art. 3 do CPC consagram o princípio do contraditório, aquele primeiro em geral e na vertente proibitiva da decisão surpresa e o último no aspecto da alegação dos factos da causa. O direito à fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é actualmente, numa concepção mais ampla, entendido como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio.
O princípio do contraditório implica o tratamento das partes em termos de igualdade e por isso se faz derivar do princípio geral da igualdade das partes que implica a paridade simétrica das suas posições perante o tribunal ([5]). Este, «consiste em as partes serem postas no processo em perfeita paridade de condições, desfrutando, portanto, idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes seja devida» ([6]).
Vimos, supra, que não resulta dos autos que o Tribunal de 1ª instância tenha procedido em desconformidade com aquilo que a lei aplicável impõe – ou seja, que tenha desrespeitado o disposto no nº 2 do art. 42 do Regulamento.
Este contém regras específicas, decorrentes das pretensões manifestadas nos considerandos que antecedem o articulado do Regulamento (acima referidas).
Mesmo que assim não fosse, a infracção àqueles princípios sempre se traduziria, em concreto, numa notificação afectada da nulidade processual a que já nos referimos, a invocar pelo interessado nos termos que há pouco mencionámos – e não por via de recurso.
                                                           *
IV – 5 - Interliga, todavia, a recorrente a violação do princípio do contraditório e da igualdade das partes com a violação da Ordem Pública do Estado-Membro requerido.
Como vimos, este Tribunal poderá recusar ou revogar a declaração de executoriedade, apenas por um dos motivos especificados nos artigos 34º e 35 º do Regulamento, sendo que um desses consiste em a declaração de exequibilidade ser manifestamente contrária à ordem pública do Estado-Membro requerido – sendo esse o motivo em que a recorrente se alicerça.
Mota Pinto ([7]) define a ordem pública como «o conjunto dos princípios fundamentais, subjacentes ao sistema jurídico, que o Estado e a sociedade estão substancialmente interessados em que prevaleçam e que têm uma acuidade tão forte que devem prevalecer sobre as convenções privadas», princípios esses que não são susceptíveis de uma catalogação exaustiva, até porque a ordem pública é variável com os tempos.
            E Manuel de Andrade ([8]) reconduz a ordem pública «aos interesses fundamentais que o nosso sistema jurídico procura tutelar e aos princípios correspondentes que constituem como que um substrato desse sistema».
            Neves Ribeiro ([9]) afirma que a ordem pública poderá ser de natureza processual (lesão grave do contraditório, da imparcialidade do juiz, falta de fundamentação da decisão), ou de natureza material (lesão grave de regras de concorrência).
Mas será que a declaração de executoriedade da sentença estrangeira, por si mesma – decisão aqui recorrida – é «manifestamente» contrária à ordem pública do Estado-Membro Português?
Não se vislumbra porquê, nem, na realidade, a recorrente aduz razões válidas nesse sentido. Os argumentos deduzidos pela recorrente estão a jusante quer da sentença estrangeira quer da declaração de executoriedade daquela; ora, os arts. 45 e 34 permitem a revogação da declaração de executoriedade quando a exequibilidade reconhecida por esta à sentença estrangeira for contrária à Ordem Pública do Estado-Membro o que não se verificará no caso dos autos, não alegando a recorrente que aquela sentença e a declaração de executoriedade que lhe sucedeu (propriamente ditas) são contrárias à Ordem Pública Portuguesa. O que a recorrente defende é que o formalismo processual posterior à declaração de executoriedade, por força da infracção dos princípios do contraditório e da igualdade não está conforme à Ordem Pública – o que não se contém na previsão do art. 34, nº 1, do Regulamento.
A motivação da recorrente seria susceptível de se reconduzir, tão só, à apreciação da verificação de uma nulidade processual, nos termos já acima tratados ([10]).
Nestas circunstâncias o recurso não pode proceder.
                                                           *
V – Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
                                                           *

Lisboa, 21 de Fevereiro de 2008
Maria José Mouro
Neto Neves
Isabel Canadas

_____________________________________________________

[1]           Na sua alegação de recurso – corpo e conclusões da mesma – aborda a recorrente aspectos respeitantes à fixação da espécie do recurso e respectivo efeito; sobre tais aspectos já foi tomada posição no despacho liminar proferido nos autos de recurso.
[2]         Neves Ribeiro, «Processo Civil da União Europeia», pag. 55.
[3]           Como vimos, consoante o nº 2 do art. 41, a parte contra quem a execução é promovida não pode apresentar observações na fase do processo que antecede a decisão de declaração de executoriedade.
[4]           Anselmo de Castro, «Direito Processual Civil Declaratório», vol. III, pag. 103.
[5]           Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, «Código de Processo Civil Anotado», vol. I, pags. 7-10.
[6]           Manuel de Andrade, «Noções Elementares de Processo Civil», 1979, pag. 380.
[7]           «Teoria Geral do Direito Civil», pag. 434.
[8]           «Teoria Geral da Relação Jurídica», vol. II, pags. 334-335.
[9]           Obra citada, pags. 107-108.
[10]E afastados.