Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8476/16.8T8LSB.L1-8
Relator: AMÉLIA AMEIXOEIRA
Descritores: HERANÇA
DÍVIDA
RESPONSABILIDADE DOS HERDEIROS
PARTILHA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I ) Os herdeiros são partes legítimas em acção proposta por credor com o desiderato de lograr o reconhecimento de dívida do de cuius” e tendo em vista a respectiva cobrança/pagamento pelas forças da respectiva herança;

II) Porém, permanecendo ainda a referida herança indivisa, os herdeiros demandados apenas serão condenados, não a pagar os créditos reclamados , mas tão-somente a reconhecerem a sua existência e a verem os mesmos  - os créditos reclamados pelos credores do de cuiús - satisfeitos pelos bens da herança.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 8476/16.8T8LSB.L1

Acordam os Juízes da 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO
A [ Sindicato ….] intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Herança Aberta pelo óbito de B, representada pelo cabeça de casal C, invocando que, no exercício da sua actividade de assistência médica, prestou serviços de assistência hospitalar ao agregado da falecida, que a mesma autorizou que fossem liquidados através de descontos na sua conta à ordem, débito esse interrompido em Setembro de 2013, encontrando-se por liquidar a quantia total de €29.612,15.
-Regularmente citado o cabeça de casal C, não apresentou contestação.
-Foi proferido despacho a fls. 69 a convidar o Autor para suscitar o incidente de intervenção provocada de terceiros do herdeiro em falta, D, que o Autor deduziu.
-Citado o Réu D apresentou contestação, invocando desconhecer a existência de dívidas pendentes da responsabilidade da sua mãe.
-Foi proferido despacho saneador com selecção do objecto do litígio e dos temas da prova.
-Realizou-se audiência de discussão e julgamento com obediência do formalismo legal.
A final, foi proferida sentença que decidiu julgar a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu os Réus na totalidade do pedido formulado na petição inicial.
*
Inconformada com o teor da decisão, dela interpôs recurso a Autora, concluindo da forma seguinte:
I – A decisão sobre a matéria de facto não é a correcta, quer em face da posição assumida nos autos pelos Réus, quer em face da prova produzida nos autos, devendo por isso ser alterada nos termos e com os fundamentos previstos no Art. 662º do CPC.
II – Todos os factos que integram a causa de pedir resultaram assentes, por confissão dos Réus, em face da falta de contestação do Réu C e da falta de impugnação do Réu D, atendendo ao disposto no nº 1 do Art. 567º e nos nºs 1 a 3 do Art. 574º, ambos do CPC.
III – A afirmação do Réu C de que “Devido à falta de contacto entre os réus, ficou o réu C convencido que com o produto da venda da casa todas as dívidas teriam sido pagas” e que “Foi com alguma admiração que teve conhecimento do conteúdo da presente acção.” não equivale a alegação de desconhecimento da dívida nos termos e com os efeitos previstos no nº 3 do Art. 54º do CPC, ao contrário do entendido pela douta sentença recorrida
IV – Ao contrário, a afirmação do Réu D de que “não tem qualquer possibilidade de fazer face ao valor em divida do montante de 29.612,15€.” corresponde à aceitação dos factos invocados pelo Autor.
V – Considerando-se confessados os factos invocados pelo Autor, podia e devia o tribunal ter proferido despacho saneador com o conhecimento imediato do mérito da causa, sem necessidade de mais provas, nos termos e com os efeitos previstos na alínea b) do nº 1 do Art. 595º, condenando os Réus no pedido.
VI – Mas, ainda que não tivesse ocorrido a confissão pelos Réus de todos os factos invocados na petição, nos termos acima referidos, os mesmos sempre resultariam integralmente comprovados pela prova produzida.
VII – Os factos julgados não provados não dependem, ao contrário do entendido na douta sentença recorrida, de prova por documento escrito que o A. devesse ter apresentado, mas, ao contrário, resultaram devidamente provados pelo conteúdo dos documentos juntos à petição, conjugados com o depoimento da única testemunha apresentada.
VIII – Quer por via da confissão dos Réus, quer por via da prova produzida, deve ser aditado à matéria de facto provada o facto 4, no seguinte teor:
4. A falecida inscreveu os membros do seu agregado familiar nos SAMS do SBSI.
IX - Quer por via da confissão dos Réus, quer por via da prova produzida, deve ser aditado à matéria de facto provada o facto 5, no seguinte teor:
5. Para pagamento dos serviços prestados pelo Autor ao agregado da falecida a mesma dispunha da facilidade do Crédito a Beneficiário, o denominado “ Cr...”, equivalente a uma conta corrente onde o valor das despesas a seu cargo eram lançadas a débito e o valor dos seus pagamentos lançados a crédito.
X - Quer por via da confissão dos Réus, quer por via da prova produzida, deve ser aditado à matéria de facto provada o facto 6, no seguinte teor:
6. Os pagamentos eram realizados mensalmente, através de descontos sobre o vencimento e/ou pensão e/ou conta de deposito à ordem da falecida beneficiava, com a autorização desta.
XI - Quer por via da confissão dos Réus, quer por via da prova produzida, deve ser aditado à matéria de facto provada o facto 7, no seguinte teor:
7. A falecida, ou os membros do seu agregado familiar, utilizaram serviços de assistência médica, através do Autor, no montante de €29.612,15, correspondendo €14.153,65 a despesas de Assistência Hospitalar e Próteses e €15.458,50 a Assistência Ambulatória.
XII - Perante o completo e correcto elenco dos factos que efectivamente resultaram provados da instrução dos autos, a acção não poderia necessariamente deixar de proceder, por provada
Conclui no sentido de que o presente recurso deverá ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença e substituída por decisão que condene os Réus, pelas forças da herança, a pagar ao A. a quantia peticionada.
*
Não houve contra-alegações.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
                                                      *
-QUESTÕES A DECIDIR:
-Da Impugnação da decisão de Facto.
-Decidir se os Réus, na qualidade de herdeiros de B, devem ser condenados a reconhecer a existência da divida, a ser paga pelas forças da herança, com o pagamento ao Autor da quantia peticionada.
*
IV. FUNDAMENTAÇÃO
1. Os factos
Discutida a causa, mostram-se provados os seguintes factos:
1. O Autor tem na sua estrutura um serviço de prestação de assistência médica, tanto hospitalar como ambulatória, os denominados “SAMS – Serviços e Assistência Médico-Social”.
2. B faleceu em 22 de Setembro de 2013, tendo deixado como herdeiros C, cônjuge sobrevivo, e D, filho.
3. A falecida B era beneficiária dos SAMS do SBSI.
*
Ficou por demonstrar que:
A) A falecida inscreveu os membros do seu agregado familiar nos SAMS do SBSI.
B) Para pagamento dos serviços prestados pelo Autor ao agregado da falecida a mesma dispunha da facilidade do Crédito a Beneficiário, o denominado “ Cr...”, equivalente a uma conta corrente, onde o valor das despesas a seu cargo eram lançadas a débito e o valor dos seus pagamentos lançados a crédito.
C) Os pagamentos eram realizados mensalmente, através de descontos sobre o vencimento e/ou pensão e/ou conta de deposito à ordem da falecida beneficiava, com a autorização desta.
D) A falecida, ou os membros do seu agregado familiar, utilizaram serviços de assistência médica, através do Autor, no montante de €29.612,15, correspondendo €14.153,65 a despesas de Assistência Hospitalar e Próteses e €15.458,50 a Assistência Ambulatória.
*
DE DIREITO:
No direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida, dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento.
Como o pedido e a causa de pedir só podem ser alterados ou ampliados na 2ª instância se houver acordo das partes – eventualidade mais que rara – bem pode assentar-se nisto: que os recursos interpostos para a Relação visam normalmente apreciar o pedido formulado na 1ª instância com a matéria de facto nela alegada.
Isto significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que não hajam sido formulados.
Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas.
A afirmação de que os recursos visam modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova constitui jurisprudência firme. Cfr., v.g., Acs. STJ de 14.05.93, CJ STJ, 93, II, pág. 62 e RL de 02.11.95, CJ, 95,V,pág.98, Ac. STJ de 23.03.96, CJ, 96, II, pág. 86.
Excluída está, portanto, a possibilidade de alegação de factos novos - ius novarum nova – na instância de recurso. Em qualquer das situações, salvaguarda-se, naturalmente, a possibilidade de apreciação, em qualquer grau de recurso, da matéria de conhecimento oficioso. Ac. STJ de 23.03.96, CJ, 96, II, pág. 86.
Ao tribunal ad quem é sempre lícita a apreciação de qualquer questão de conhecimento oficioso ainda que esta não tenha sido decidida ou sequer colocada na instância recorrida. Estas questões – como, v.g., o abuso do direito, os pressupostos processuais, gerais ou especiais, ou a litigância de má fé, oficiosamente cognoscíveis – constituem um objecto implícito do recurso, que torna lícita a sua apreciação na instância correspondente, embora, quando isso suceda, de modo a assegurar a previsibilidade da decisão e evitar as chamadas decisões-surpresa, o tribunal ad quem deva dar uma efectiva possibilidade às partes de se pronunciarem sobre elas (artº 3 nº 3 do CPC).
Face ao modelo do recurso de reponderação que o direito português consagra, o âmbito do recurso encontra-se objectivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido pelo que, em regra, não é possível solicitar ao tribunal ad quem que se pronuncie sobre uma questão que não se integra no objecto da causa tal como foi apresentada e decidida na 1ª instância.
A função do recurso ordinário é, no nosso direito, a reapreciação da decisão recorrida e não um novo julgamento da causa. O modelo do nosso sistema de recursos é, portanto, o da reponderação e não o de reexame.
(cfr.Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pág. 81).
Na espécie sujeita, o recurso tem nuclearmente por objecto a impugnação da decisão da matéria de facto.
I-A Autora impugnou a decisão proferida sobre a matéria de facto, defendendo que os factos considerados não provados deveriam ser considerados provados.
Procedendo à leitura atenta dos articulados, à ausência de contestação por parte da Ré, e ao teor da contestação do interveniente, conjugados com o teor dos documentos juntos com a petição inicial, e ponderando o depoimento da testemunha António Estevens, entendemos que assiste inteira razão à Autora.
Estão em causa os seguintes factos que a recorrente entende deverem transitar para os factos provados:
A) A falecida inscreveu os membros do seu agregado familiar nos SAMS do SBSI.
B) Para pagamento dos serviços prestados pelo Autor ao agregado da falecida a mesma dispunha da facilidade do Crédito a Beneficiário, o denominado “ Cr...”, equivalente a uma conta corrente, onde o valor das despesas a seu cargo eram lançadas a débito e o valor dos seus pagamentos lançados a crédito.
C) Os pagamentos eram realizados mensalmente, através de descontos sobre o vencimento e/ou pensão e/ou conta de deposito à ordem da falecida beneficiava, com a autorização desta.
D) A falecida, ou os membros do seu agregado familiar, utilizaram serviços de assistência médica, através do Autor, no montante de €29.612,15, correspondendo €14.153,65 a despesas de Assistência Hospitalar e Próteses e €15.458,50 a Assistência Ambulatória.
Torna-se desde logo incompreensível a razão porque o tribunal a quo, valorou o “extrato de conta corrente de B no período compreendido entre 29.01.2013 e 30.11.2013, a fls. 4v e 5, Regulamento do Fundo Sindical de Assistência, a fls. 5v a 9, Normas Complementares do Regulamento, a fls. 10 a 16, escritura de habilitação de herdeiros, a fls. 67, conjugado com o depoimento da testemunha António ….., administrativo do Autor” para comprovar os factos 1 e 3, mas já entendeu que esse documento não servia para comprovar os factos A) a D), os quais para além de não terem sido impugnados e que decorrem do conteúdo dos referidos documentos, são ainda confirmados pelo depoimento da única testemunha que depôs nos autos, António João Estevens, administrativo no Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas.
Referiu esta testemunha que a B aquando do falecimento deixou uma dívida de 26.612,15 euros por liquidar; Sendo bancária e descontando para o Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas tinha direito aos SAMS, como tal tinha direito, a B, e todos os inscritos, como o esposo, estava inscrito no seu agregado O esposo, os filhos e pelo que vejo aqui a mãe também, A mãe da própria. Explicou ao tribunal que a Senhora era bancária e descontava para os SAMS, para ter direitoaos SAMS. Ao ter direito aos SAMS também tinha uma conta correte, como a gente vê aqui pelo extracto. Podia liquidar, neste caso, liquidava, pelas mensalidades regulamentares. Eram calculadas mensalidades pelo saldo que tinha todos os meses, uma mensalidade regulamentar na altura e era depois enviada para o Banco para serdebotado no vencimento barra reforma. Confirmou que cada mês é feito um apuro do que está em divida. Era permitido pagar as despesas, conforme o regulamento, por prestações. Referiu ainda que neste caso a B, como inscreveu o esposo, o filho e a mãe era responsável pela liquidação das despesas também pelo seu agregado.
Questionado sobre se podia pagá-las da mesma forma, também por descontos mensais, referiu que sim, era calculada sobre o total do saldo composto pelas despesas da Senhora e do seu agregado.
Referiu que o último pagamento por conta desse saldo em dívida foi, conforme consta do extracto, em 2013.
O extracto que está a referir no depoimento é o doc. documento 1 é composto por dois itens, que é o chamado  Cr... 1, Despesas Hospitalares e Próteses e o  Cr... 2, que é Despesas de Ambulatório.
O extracto que referiu no depoimento é o que consta do processo.
Confirma que o valor em divida e que consta do extracto é de 29.612,15.
O extracto tem dois tipos de verbas, neste caso Despesas Hospitalares e Próteses,  Cr... quer dizer Crédito a Beneficiários que é concedido aos beneficiários, não é como um Banco, é no sentido de poderem liquidar as suas despesas por prestações como tinha dito.
Pelo saldo em dívida é calculada regulamentarmente a mensalidade, podemos verificar aqui, no  Cr... 1 o último pagamento que houve foi em Setembro de 2013, do  Cr... 1, 375 euros, que acresce mais o  Cr... 2, 465.
Essas duas mensalidades foram enviadas, com boa cobrança, em Setembro de2013.
não houve mais cobranças porque com o falecimento da beneficiária titular, não há vencimento portanto não podemos fazer o débito, não havendo vencimento, neste caso.
Embora não tendo presente a data óbito da Senhora, referiu que para ter ocorrido o último pagamento em Setembro de 2013, foi em Setembro ou em Outubro.
Confirmou que a interrupção dos pagamentos foi na sequência do óbito, porque na consequência do óbito não houve também vencimento.
Reafirmou ser correcto que o montante em divida que se mantém ainda em aberto ascende a 29.612,15.
Conjugando as declarações da testemunha com o conteúdo do extracto de conta e dos Regulamentos do A. – documentos que, uma vez mais se insiste, não foram impugnados por nenhum dos Réus – constatamos que tais meios de prova não só comprovam os factos provados 1 e 3 tal como entendeu o tribunal a quo, como por outro lado comprovam os factos considerados não provados A) a D).
Efectivamente, decorre dos documentos e do depoimento da testemunha que a falecida B era beneficiária dos SAMS, tal como o seu marido, filho e mãe; que a mesma beneficiava do sistema de crédito a beneficiário nos termos regulamentares, o que levou a que durante o ano de 2013, período a que o extracto se reporta, todos os meses foram lançadas quantias a seu débito nas rubricas de  Cr... 1 e  Cr... 2, respeitantes a despesas de saúde no âmbito dos SAMS das pessoas que inscreveu no seu agregado e foram creditadas mensalidades entre Janeiro e Setembro, até à data do seu falecimento – o que certamente não ocorreu durante tantos meses sem o consentimento da falecida, o que aliás não foi invocado por nenhum dos Réus.
Também do extracto junto a fls 4v e 5 assim como do depoimento da testemunha acima transcrito decorre como inquestionável que com a interrupção dos pagamentos subsequentes ao falecimento da beneficiária, resultou um saldo em divida de 29.612,15€ na sua conta corrente, correspondendo €14.153,65 a despesas de Assistência Hospitalar e Próteses ( Cr... 1) e €15.458,50 a Assistência Ambulatória ( Cr... 2) .
O documento devidamente assinado pela falecida beneficiária a aderir ao pagamento diferido dos encargos por via do “ Cr...,” assim como as facturas lançadas no extracto de conta, que a douta sentença recorrida refere não terem sido apresentadas pela A. não constituem os únicos e indispensáveis meios de prova cuja falta possa fundamentar a decisão de não provado relativamente aos factos em causa, os quais não se inserem seguramente na categoria de factos que apenas podem ser provados por documento escrito.
Aliás, uma vez que os Réus não impugnaram a factualidade subjacente a esses documentos tidos por essenciais, a exigência dos mesmos pelo Tribunal para prova dos factos não encontra suporte no regime legal da prova por documentos, sendo que nem sequer vem alegada qualquer norma que suporte tal entendimento.
Não foi sequer questionada no limite do rigor a inadmissibilidade de prova testemunhal à matéria dos autos, nos termos do art.393º, do Código Civil, a qual também não teria cabimento, atenta a existência de um princípio de prova por escrito, que é o extracto de conta, conferindo ao depoimento da testemunha plena admissibilidade de valoração, conforme é jurisprudência uniforme.
E não deixa de se salientar que os herdeiros da falecida não contestaram a matéria alegada na petição inicial.
A Ré herança não contestou e o Interveniente alegou conhecer que existiam dívidas, mas, “Devido à falta de contacto entre os réus, ficou o réu Marco convencido que com o produto da venda da casa todas as dívidas teriam sido pagas. E no art.13º da contestação refere que em face da sua situação económica, não tem qualquer possibilidade de fazer face ao valor em divida do montante de 29.612,15€. Está a aceitar a existência da divida, apenas impugnando a capacidade de pagar.
A consequência do exposto, atendendo ao disposto no Art. 574º, nº2 do CPC, seria até a de se considerarem admitidos por acordo entre A e RR todos os factos invocados na petição inicial. Não tendo o tribunal enveredado por essa via, a prova produzida em audiência não deixou margem para dúvidas nos termos que acima ficaram expostos.
Em face do exposto, devem ser aditados à matéria de facto provada os seguintes factos:
4. A falecida inscreveu os membros do seu agregado familiar nos SAMS do SBSI.
5. Para pagamento dos serviços prestados pelo Autor ao agregado da falecida a mesma dispunha da facilidade do Crédito a Beneficiário, o denominado “ Cr...”, equivalente a uma conta corrente onde o valor das despesas a seu cargo eram lançadas a débito e o valor dos seus pagamentos lançados a crédito.
6. Os pagamentos eram realizados mensalmente, através de descontos sobre o vencimento e/ou pensão e/ou conta de deposito à ordem da falecida beneficiava, com a autorização desta.
7. A falecida, ou os membros do seu agregado familiar, utilizaram serviços de assistência médica, através do Autor, no montante de €29.612,15, correspondendo €14.153,65 a despesas de Assistência Hospitalar e Próteses e €15.458,50 a Assistência Ambulatória.
Correspondentemente, eliminam-se as alíneas A) a D) dos factos não provados.
Procede o recurso na parte correspondente à decisão da matéria de facto.
*
II-Da Responsabilidade no pagamento da dívida
Na presente acção, a Autora demanda a Herança Aberta pelo óbito de B, representada pelo cabeça de casal C , invocando que, no exercício da sua actividade de assistência médica, prestou serviços de assistência hospitalar ao agregado da falecida, que a mesma autorizou que fossem liquidados através de descontos na sua conta à ordem, débito esse interrompido em Setembro de 2013, encontrando-se por liquidar a quantia total de €29.612,15.
Não restam dúvidas, em face da factualidade provada, que foi celebrado o contrato de prestação de serviços com a falecida B, nos termos provados e regido pelo regime Especial contido no Regulamento do Fundo Sindical de Assistência, dos Serviços de Assistência Médico-Social, do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, que dos autos consta de fls.5v e sgs,.
Também ficou provado a falecida, ou os membros do seu agregado familiar, utilizaram serviços de assistência médica, através do Autor, no montante de €29.612,15, correspondendo €14.153,65 a despesas de Assistência Hospitalar e Próteses e €15.458,50 a Assistência Ambulatória.
Este é o valor do saldo da conta corrente contabilística, que não foi impugnada. E não lograram os Réus provar o pagamento deste valor, sendo certo que a lei lhes impunha este ónus, nos termos do art.342º, nº2, do Código Civil.
A questão que ora se coloca, prende-se em saber quem deve ser condenado a pagar o valor em causa e os respectivos juros.
Foi proferido despacho a fls. 69 a convidar o Autor para suscitar o incidente de intervenção provocada de terceiros do herdeiro em falta, D, que o Autor deduziu.
A demanda da herança aberta por óbito de B suscita algumas considerações prévias, quanto a saber se quem deve ser demandado é a herança ilíquida e indivisa ou os herdeiros devidamente identificados intervindo na qualidade de herdeiros.
Vejamos o que na Jurisprudência e na doutrina tem sido ponderado e decidido.
“A personalidade judiciária traduz-se, essencialmente, na possibilidade de requerer ou de contra si ser requerida alguma providência de tutela jurisdicional e, em consonância com o princípio da coincidência entre a personalidade judiciária e a personalidade jurídica, a lei estabelece que quem tiver a última também dispõe da primeira (art. 5º, nºs 1 e 2, do CPC).
Assim, a regra é no sentido de que todos os indivíduos, independentemente da sua nacionalidade, maioridade, menoridade, capacidade ou incapacidade, têm personalidade judiciária por virtude de, em princípio, poderem ser sujeitos de relações jurídicas (artºs. 14º, nº 1, e 67º do Código Civil).
A referida regra é extensível às associações e fundações e às sociedades a quem a lei reconheça personalidade jurídica, embora só possam estar em juízo através dos seus representantes estatutários (artºs. 157º, 158º do Código Civil e 5º do Código das Sociedades Comerciais).
A lei atribui, excepcionalmente, personalidade judiciária a entidades que não têm personalidade jurídica.
É o que sucede, nomeadamente, com a herança jacente e os patrimónios autónomos cujo titular não estiver determinado (art. 6º, al. a), do CPC).
Como referem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora “a herança jacente (artigos 2046º e sgs. do Cód. Civil), embora carecida de personalidade jurídica, pode propor acções em juízo (de reivindicação, confessórias de servidão, de cobrança de dívidas, etc.), sendo a herança a verdadeira parte na acção e não o sucessível chamado, o herdeiro, o curador ad hoc ou Ministério Público que aja em nome dela (artºs. 2047º e sgs. do Cód. Civil)”.
O conceito de herança jacente, oriundo da lei civil, significa a herança aberta ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado, ou seja, o património da pessoa falecida entre o chamamento dos sucessíveis e a sua aceitação (art. 2046º do Código Civil).
A aceitação pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir (nºs 1 e 2 do art. 2056º); é tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam (nº 1 do art. 217º) -, não implicando os actos de administração praticados pelo sucessível aceitação tácita (nº 3 do art. 2056º, todos do CC).
Assim, enquanto os sucessores não aceitarem tácita ou expressamente a herança, ou esta não houver sido declarada vaga para o Estado, ocorre a referida situação de jacência.

Isso significa, a contrario sensu, que a herança ainda não partilhada, mas cujos titulares quinhoantes estejam determinados, não tem personalidade judiciária.
Assim, em regra, se a herança tiver sido aceite, não obstante ainda não ter ocorrido a respectiva liquidação e partilha, o contraditório deve ser estabelecido com os herdeiros aceitantes.
Acresce que a herança indivisa não se subsume, para efeito de lhe ser atribuída personalidade judiciária, ao conceito legal de património autónomo semelhante cujo titular não esteja determinado.
Com efeito, embora a herança indivisa funcione para variados efeitos como património autónomo, este só tem personalidade judiciária se os respectivos titulares não estiverem determinados.
Ademais, embora indivisa, porque os seus titulares estão determinados, não pode aspirar a ser detentora de personalidade judiciária como sendo um património autónomo de titular indeterminado.
(Neste sentido, cfr. Ac. da RG de 07-12-2016, Proc. nº74/15.0T8CHV.A-G1)
O thema decidendum gira, portanto, em torno da problemática da responsabilidade dos herdeiros pelas dívidas do autor da sucessão.
É sabido, que a morte de uma pessoa física produz diversas consequências jurídicas que carecem de resolução, mormente se, como sucede in casu, no momento do decesso o património do de cuius for composto por dívidas, tornando-se mister nessa situação acautelar os direitos dos respectivos credores – o que tem lugar através do fenómeno sucessório.
Com efeito, em consonância com o que se dispõe no art. 2024º do Código Civil (diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem), através da sucessão, as situações jurídicas patrimoniais (ativas e passivas) que compunham a esfera jurídica do falecido no momento do seu óbito serão transmitidas
aos seus sucessores, caso estes aceitem a herança.
O fenómeno sucessório assume, pois, uma função simultaneamente individual e colectiva – ao proteger a propriedade privada, ampara também os direitos dos credores do falecido oferecendo-lhes, tanto quanto possível, a mesma garantia patrimonial que tinham anteriormente. Este objectivo, tal como enfatiza OLIVEIRA ASCENSÃO In Direito Civil. Sucessões, 5ª edição, págs. 402 e seguinte. , é alcançado pelo “ingresso do herdeiro na posição jurídica do de cuius”, sendo a herança constituída pelas situações jurídicas de natureza patrimonial que se encontravam na titularidade do falecido no momento da morte e não devam extinguir-se por efeito desta (cfr. arts. 2024º e 2025º).
A herança identifica-se, por conseguinte, com a noção de património global (rectius, de património colectivo), já que entre nós se admite a sucessibilidade não apenas dos bens, mas das situações jurídicas patrimoniais ativas e passivas que compunham a esfera patrimonial do falecido aquando da sua morte.
No concernente às dívidas que compunham o património do de cuius aquando do seu decesso, enquanto situações jurídicas passivas, subsistem para além do seu falecimento, sendo normalmente integradas no objecto da herança.
Na verdade, tal como emerge do art. 2068º, são encargos da herança aqueles pelos quais a herança responde, sendo que entre os encargos aí previstos conta-se, no que ao caso importa, o pagamento das dívidas do autor da sucessão.
Todavia, o facto de nesse normativo se afirmar que “a herança responde” não significa que se atribua à herança a responsabilidade pelos seus encargos antes se devendo entender por herança os bens que fazem parte da mesma (cfr. arts. 2071º e 2097º).
A herança não pode ser responsável pelos seus próprios encargos na medida em que não é uma pessoa jurídica mas uma massa de situações jurídicas ativas e passivas. É certo que a herança (enquanto estiver jacente) goza de personalidade judiciária (cfr. art. 12º, al. a) do Cód. Processo Civil) mas desse facto não decorre a personalidade jurídica; Pelo contrário, daí se infere antes a sua natureza de património autónomo, destituído de personalidade jurídica.
Destarte, afigura-se-nos, pois, não se revelar correto falar-se de responsabilidade da herança já que o facto de se empregar a expressão “a herança responde” deve ser entendido como a intenção de fazer limitar a responsabilidade pelos encargos da herança aos bens herdados, ou seja, a de fazer da herança, conforme tem sido generalizadamente defendido, um património autónomo de afectação especial – ou seja, um “núcleo patrimonial que só responde e responde só ele por certas dívidas” Cfr., por todos, CAPELO DE SOUSA, Direito das Sucessões, Vol. II, 3ª edição renovada, págs. 73 e seguintes e GOMES DA SILVA, Herança e sucessão por morte. A sujeição do património do de cuius a um regime unitário no livro V do Código Civil, 2002, pág. 144 e seguintes, embora este último autor ressalte que na aceitação pura e simples se estabelece uma separação patrimonial imperfeita entre a herança e o património pessoal do herdeiro, uma vez que, por ausência de inventário, se afigura difícil demonstrar o activo que compõe a herança e afastar as agressões dos credores hereditários ao patrimonial pessoal do herdeiro. .
Há, por conseguinte, que articular o art. 2068º com outras disposições legais (v.g. art. 2071º) para determinar quem são os verdadeiros responsáveis pelos encargos da herança já que a herança em si será apenas o limite dessa responsabilidade.
Ora, o nosso regime jurídico (cfr. art. 2071º) estabelece, como regra, o princípio da responsabilidade limitada do herdeiro pelos encargos da herança, quer tenha havido aceitação a benefício de inventário, quer a herança tenha sido aceite pura e simplesmente (cfr. art. 2052º), cingindo-se a sua responsabilidade às forças da herança, isto é, é sempre uma responsabilidade intra vires hereditatis, corroborando assim a afirmação acima feita de que estamos perante um património autónomo na medida em que, em princípio, só os bens da herança é que respondem pelos encargos hereditários.
No que tange propriamente à responsabilidade dos herdeiros, há que distinguir consoante a herança se encontre indivisa, ou seja, já aceite mas não estando ainda determinada a titularidade das concretas situações jurídicas que a compõem ou, pelo contrário, já esteja partilhada, através do preenchimento da quota de cada herdeiro.
No primeiro caso, diz-nos o art. 2097º que os bens da herança respondem colectivamente pela satisfação dos respectivos encargos e, na medida em que estamos perante um património colectivo, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros (art. 2091º, nº 1).
Após a partilha da herança, como salientam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA In Código Civil Anotado, Vol. VI, pág. 158. Ainda no mesmo sentido pode ver-se CAPELO DE SOUSA, ob. citada, vol. II, págs. 109 e seguintes.
, «o panorama jurídico da responsabilidade pelos encargos dela (nomeadamente quanto aos antigos débitos do de cuius) sofre uma alteração substancial, embora sem nunca esquecer a raiz da proveniência dessas dívidas. Enquanto a herança se manteve no estado de indivisão, porque nenhum dos herdeiros tinha ainda direitos sobre bens certos e determinados, todos os bens hereditários respondiam colectivamente; a partir da divisão da herança, passa a responder cada herdeiro, individualmente, pela satisfação de cada dívida da herança (ou de cada encargo dela), mas apenas em proporção da quota que lhe coube na partilha (dentro, por conseguinte das forças dos bens que especificamente recebeu da herança, nos termos resultantes do disposto no artº 2071º)».
Daí que, após a partilha, carece de sentido aludir a bens da herança, pois cada um desses bens entrou na esfera jurídica patrimonial do herdeiro a quem coube, perdendo qualquer ligação à herança que, enquanto património autónomo, deixou de ter existência jurídica.
É assim lícito concluir que, consumada a partilha e integrados os bens herdados nos patrimónios de cada um dos herdeiros a quem foram adjudicados, deixa de se poder falar em bens da herança, deixando outrossim de haver solidariedade entre os herdeiros para com os credores daquela, o que significa, pois, que os credores da herança apenas passam a ter a faculdade de exigir dos herdeiros a quota-parte que a cada um deles tenha cabido (cfr. art. 2098º, nº 1).
A questão está exactamente em saber se os herdeiros daquela apenas poderão ser condenados a reconhecer tal dívida e a verem satisfeitos pelos bens da herança o crédito do credor do de cujus”.
No seguimento das considerações supra expendidas, o raciocínio argumentativo utilizado é aplicável, já que parece estarmos em presença de uma herança indivisa e não partilhada. Pelo menos dos autos não resulta que tenha havido partilha de bens. Neste caso, como parece ser o dos autos, os herdeiros da herança aberta por óbito de B, e que são o seu cônjuge C e D, como ficou provado e resulta da habilitação de herdeiros junta a fls.67, apenas devem ser condenados a reconhecer a existência da dívida ao Autor, no montante de 29.612,15 Euros, acrescida dos juros de mora que se venceram desde a citação, à taxa legal, até integral pagamento, e a ver satisfeito pelos bens da herança da de cujus B, o crédito do aqui autor e ora Apelante.
“Isto resulta, na esteira, aliás, do entendimento preconizado por MARTINS DA FONSECA A herança indivisa – sua natureza jurídica. Responsabilidade dos herdeiros pelas dívidas da herança, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 46º, pág. 582, o qual, mais adiante (pág. 586), que numa demanda com essas caraterísticas os herdeiros “são partes legítimas na acção em que se pretenda que, pelas forças da herança, se paguem as dívidas do respectivo autor, apenas porque a herança não tem personalidade judiciária. Mas responsabilidade não têm, nem podem ser condenados e, muito menos, solidariamente”), enquanto a herança estiver indivisa “os herdeiros serão demandados e condenados, mas não a pagar os créditos, tão-somente a reconhecerem a sua existência ou a verem satisfeitos pelos bens da herança os créditos dos credores do de cuius”.
(Neste sentido, cfr. Ac. da RG de 8.10.2015, Proc. nº. 743/13.0TBPRG.G1734/13.0TBPRG.G1).
É com este conteúdo que procede a Apelação, revogando-se, em consequência, a sentença recorrida.
*
DECISÃO:
Nos termos vistos, Acordam os Juízes da 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente a Apelação e, revogando a sentença objecto de recurso, decidem:
A)- Alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, considerando provados os seguintes factos:
4. A falecida inscreveu os membros do seu agregado familiar nos SAMS do SBSI.
5. Para pagamento dos serviços prestados pelo Autor ao agregado da falecida a mesma dispunha da facilidade do Crédito a Beneficiário, o denominado “ Cr...”, equivalente a uma conta corrente onde, o valor das despesas a seu cargo eram lançadas a débito e o valor dos seus pagamentos lançados a crédito.
6. Os pagamentos eram realizados mensalmente, através de descontos sobre o vencimento e/ou pensão e/ou conta de deposito à ordem da falecida beneficiava, com a autorização desta.
7. A falecida, ou os membros do seu agregado familiar, utilizaram serviços de assistência médica, através do Autor, no montante de €29.612,15, correspondendo €14.153,65 a despesas de Assistência Hospitalar e Próteses e €15.458,50 a Assistência Ambulatória.
B) -Eliminam-se, em consequência, as alíneas A) a D), dos factos não provados.
C) - Julga-se procedente a acção, condenando os herdeiros da herança aberta por óbito de B, e que são o seu cônjuge C e D a :
I - Reconhecer a existência da dívida da herança aberta por óbito de B ao Autor e Apelante A , no montante de 29.612,15 Euros, acrescida dos juros de mora que se venceram desde a citação, à taxa legal, até integral pagamento.
II- A ver satisfeito o pagamento do valor referido em I) pelos bens da herança de B, com o pagamento ao Autor/Apelante da quantia peticionada.
- Custas a cargo dos Apelados, sem prejuízo do beneficio do apoio judiciário.
(Esta decisão foi elaborado pela Relatora e por ela integralmente revista)
Lisboa, 4/4/2019
Maria Amélia Ameixoeira
Rui Moura
Mário Silva