Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
836/14.5PASNT-B.L1-9
Relator: MARIA DA LUZ BATISTA
Descritores: PERDÃO DA PENA DE PRISÃO
LEI ESPECIAL COVID 19
MANDADOS DE DETENÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/28/2021
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I O perdão previsto no art.º 2.º, n.ºs 1, 2, 4 e 7 da Lei n.º 9/2020 é aplicável apenas a reclusos, ou seja, a condenados por decisão transitada em julgado em data anterior à entrada em vigor dessa lei, o seja, até 10/04/2020 - artºs 7º nº 2 e 11º, que se encontrem em cumprimento da pena de prisão à data da sua entrada em vigor (11/04/2020), dele não beneficiando condenados por decisão transitada em julgado que ainda não se encontrem em cumprimento de pena à data da entrada em vigor desta lei e não a condenados por decisão transitada até àquela data mas que ainda não se encontrem a cumprir a pena à data da entrada em vigor da lei;

II Nestes termos a lei supra referida exclui os condenados, por decisão transitada, em pena de prisão, que ainda não tenham iniciado o seu cumprimento, ou seja, não tenham ainda ingressado em estabelecimento prisional, uma vez que aquela visa evitar a disseminação do virus SARS –COV 2 na população prisional, ou seja em meio prisional;

III É entendimento uniforme que “as leis de amnistia (num sentido amplo, aqui incluindo as leis que consagram perdões de penas), como providências de excepção, devem ser aplicadas nos seus precisos termos, sem extensões nem restrições que nelas não venham expressas, não sendo admitidas na determinação do seu sentido a interpretação extensiva, restritiva ou analógica, mas apenas uma interpretação declarativa.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Decisão sumária proferida ao abrigo do disposto nos artºs 417º nº 6 b) e 420º nº 1 a) do Código de Processo Penal.

No processo nº 836/14.5PASNT-B.L1 o arguido AA interpôs recurso da decisão que indeferiu o seu requerimento para que, em vista da publicação da Lei n.º 9/2020, de 10.04, lhe fosse aplicado o perdão da pena de prisão em que foi condenado no âmbito dos presentes autos.

Respondeu o Mº Pº junto do Tribunal recorrido pugnando pela improcedência do recurso e confirmação do decidido nos termos constantes de fs. 59 verso e ss que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

Efectuado exame preliminar verificamos que é caso de rejeição do recurso por manifesta improcedência nos termos do disposto nos artºs 417º nº 6 b) e 420º nº 1 c) do Código de Processo Penal, pelo que se profere decisão sumária.

***


A lei adjectiva instituiu a possibilidade de rejeição dos recursos em duas vertentes diversas (admitida que está, no nosso processo penal a cindibilidade do recurso, princípio acolhido nos artºs 403º nº 1, 410º nº 1 e 412º nº 2): rejeição formal que se prende com a insatisfação dos requisitos prescritos no artº 412º nº 2 e a rejeição substantiva que tem lugar quando é manifesta a improcedência do recurso (o que ocorre quando atendendo à factualidade em causa, à letra da lei e à jurisprudência dos tribunais superiores é patente a sem razão do recorrente).
Tal é o caso dos autos, em que a improcedência do recurso é manifesta por, considerando os elementos constantes dos autos, o teor da decisão recorrida e a disciplina legal a atender, carecer em absoluto de fundamento a impugnação do recorrente.

O arguido foi condenado, por acórdão proferido em 10.07.2019 (cfr. fls. 650 a 674), confirmado pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 18.12.2019 (cfr. fls. 713 a 747), já transitado em julgado, na pena única de um (1) ano de prisão, pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física, ps. e ps. pelo art.º 143.º, n.º 1 do CP. - pena cujo cumprimento ainda não iniciara, não tendo sido detido nem se apresentando no EP para o efeito.
Por requerimento trazido aos autos veio o mesmo solicitar que, considerando a publicação da Lei n.º 9/2020, de 10.04, lhe fosse aplicado o perdão da pena de prisão em que foi condenado no âmbito dos presentes autos,
Indeferido tal requerimento, é do despacho que assim decidiu que vem interposto o presente recurso, sendo que a questão base seu objecto é a de saber o perdão previsto nessa lei se aplica a penas cujo cumprimento não tenha sido iniciado, como pretende o recorrente.
A inatendabilidade de tal entendimento é, com o devido respeito, manifesta - e bem assim a improcedência do recurso.

Dispõe o art.º 2.º, ns.º 1 e 7 da referida Lei n.º 9/2020:


1- São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.
...
7- O perdão a que se referem os n.os 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada.

Considerou o Mmº Juiz “a quo” que tal preceito não se aplicava a arguidos ainda apenas condenados em pena de duração igual ou inferior a dois anos, mas apenas a reclusos que estivessem já em cumprimento o de penas dentro de tal limite.

E com inteira razão.

Assim, logo a letra da lei - e ainda que não tenha do que a ela se cingir1, a interpretação da lei não pode deixar de ter na letra da lei um mínimo de correspondência (art' 9' do CC) - não só não admite a leitura que o recorrente dela pretende fazer como, quando nela se refere a reclusos, manifestamente a afasta.

De igual forma é que, como bem se considerou, é entendimento uniforme e pacífico que “as leis de amnistia (num sentido amplo, aqui incluindo as leis que consagram perdões de penas), como providências de excepção, devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem extensões nem restrições que nelas não venham expressas(cf. Ac. STJ de 07-12-2000, proc. n.º 2748/2000 – 5.ª; SATJ, n.º 46, 45 e, ainda, Maia Gonçalves, Código Penal Português, Anotado, 16.ª ed., pág. 439), não sendo admitidas na determinação do seu sentido a interpretação extensiva, restritiva ou analógica, mas apenas uma interpretação declarativa.


É assim incontornável que o perdão previsto no art.º 2.º, n.ºs 1, 2, 4 e 7 da Lei n.º 9/2020 é aplicável apenas a “reclusos”, ou seja, a condenados por decisão transitada em julgado em data anterior à entrada em vigor dessa lei, o seja, até 10/04/2020 - artºs 7º nº 2 e 11º), que se encontrem em cumprimento da pena de prisão à data da sua entrada em vigor (11/04/2020), dele não beneficiando condenados por decisão transitada em julgado que ainda não se encontrem em cumprimento de pena à data da entrada em vigor desta lei e não a condenados por decisão transitada até àquela data mas que ainda não se encontrem a cumprir a pena à data da entrada em vigor da lei.

Se logo da letra da lei resulta tal limitação do seu âmbito de aplicação, essa limitação é, como bem se considerou, patenteada pelo diferimento da competência para aplicação aos Juízos de Execução das Penas (nº 8 do artº 2º da Lei 9/2000) que são os tribunais competentes para decidir da extinção das penas de prisão que se encontrem em execução (artº 114º nº 1 da Lei 66/2013).


Como de igual forma é incontornável que, como bem se refere na decisão recorrida, as medidas estabelecidas na lei 9/2020 têm por especial - e único - escopo evitar a disseminação do vírus SARS-CoV2, (que causa a doença covid-19) em meio prisional, dada a particular exposição dos reclusos a risco de contágio, (tal resultando inequívoco, conforme bem se considerou, da exposição de motivos da Proposta nº 23/XIV), sendo a situação de emergência de saúde pública que enquadra a aplicação dessas medidas (corpo do nº 1 do artº 1º da mesma lei).

Bem se concluiu assim, que o elemento literal, o elemento teleológico, o elemento sistemático, e o contexto em que a lei 9/2020 é aplicada, confluem - e de forma incontornável - para a interpretação acolhida, no sentido de excluir os condenados, por decisão transitada, em pena de prisão, que não tenham ainda iniciado o seu cumprimento, ou seja, não tenham ainda ingressado em estabelecimento prisional

Pugna ainda o recorrente por que fossem dados sem efeito os Mandados de Detenção entretanto emitidos.

Quanto a esta questão é também manifesta a sem razão do recorrente.

E assim nos precisos termos expostos na douta resposta que, por sintetizarem tudo quanto se oferece dizer a respeito, aqui transcrevemos:

“...foi aprovado um regime geral de suspensão de prazos, cujos efeitos foram pelo legislador reportados a 9 de Março de 2020, com exceção das normas aplicáveis aos processos urgentes e dos prazos relativos à prática de atos realizados exclusivamente por via eletrónica no âmbito das atribuições do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, I. P, que só produzem efeitos a partir da data da entrada em vigor da nova lei (art. 6.º da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril).

A emissão e o cumprimento de mandados de captura não é, normalmente, um acto urgente. Apenas nos casos em que estejam em causa processos relativos a arguidos presos (art.º 103.º, n.º 2, al. a), do CPP) ou em que isso seja necessário (art.º 103.º, n.º 2, al. g), do mesmo diploma legal), os respetivos autos poderão ser tramitados fora dos dias e horas de expediente ou nas férias judiciais. Será, por exemplo, o caso da emissão de mandados de detenção contra um condenado que se prepara para fugir para o estrangeiro para escapar à ação da justiça, devendo o processo ser tramitado, os mandados emitidos e cumpridos, ainda que durante o período de férias judiciais.

Nestes termos, estando a tramitação suspensa, a menos que o processo tenha sido considerado urgente ou o ato seja considerado necessário (art.º 103.º, n.º 1, als a) e g)), ainda que o juiz já tenha emitido um Mandado de Detenção em processo não considerado urgente, esse mandado deverá ter a sua «eficácia “congelada” em face da suspensão de prazos» (Para um comentário geral a esta nova lei, cfr. JOSÉ JOAQUIM FERNANDES OLIVEIRA MARTINS, (Ainda a) Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março – uma segunda leitura», Julgar online, abril de 2020, pág. 4).

Efectivamente, o legislador tomou medidas a jusante (v.g. perdão) e a montante (suspensão da eficácia dos atos processuais, maxime suspensão dos mandados já existentes ou a emitir). A pena de prisão será executada depois, uma vez terminada a situação de pandemia que motivou a adoção destas medidas extraordinárias.

Razão pela qual os referidos Mandados de Detenção do arguido com vista ao cumprimento da pena não foram cumpridos, aguardando o termo situação de pandemia que motivou a adoção destas medidas extraordinárias. Encontrando-se os prazos suspensos, não há razão para que sejam os mesmos dados sem efeito, como pretende o recorrente”.

É assim manifesta a improcedência do recurso também quanto a esta questão.

Em tal conformidade e ao abrigo do disposto nos artºs 417º nº 6 b) e 420º nº 1 a) CPP, decide-se rejeitar o recurso interposto pelo arguido AA, por manifesta improcedência.

Vai o recorrente condenado no pagamento de quantia correspondente a três UC (artº 420º nº 3 do CPP).

Notifique.


Lisboa 28 de Junho de 2021


Maria da Luz Batista




(1) devendo reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo em conta designadamente a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.