Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4081/12.6TJLSB.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: ACTUALIZAÇÃO DE RENDA
TRESPASSE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Não ocorre incumprimento contratual do senhorio que comunica as actualizações de rendas e passa os recibos destas em nome de anterior arrendatário e não do actual, quando se prova que ocorreu trespasse do estabelecimento para o presente arrendatário sem que se mostre que do mesmo foi dado conhecimento ao senhorio.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO:

A Autora M...  intenta a presente acção contra o réu J...  pedindo que seja declarado que o valor da renda mensal a pagar pela Autora desde 2009 até ao presente, é de € 510,64 e que não existiu mora da A. no pagamento das rendas e condene, consequentemente, o Réu:
a) a restituir à A as diferenças indevidamente pagas que perfazem, até ao presente, o valor de € 1852,20, bem como os juros de mora à taxa legal desde a citação,
b) A restituir à A. o valor depositado relativo à indemnização por não existir mora da mesma, sendo esse valor de € 5.270,03, com juros de mora desde o depósito.
Pede ainda que se condene o R. a pagar à A. o valor das obras urgentes e necessárias da sua responsabilidade, no total de € 1.050,00, bem corno os juros de mora à taxa legal desde a citação.
Alega, em suma que é arrendatária de uma fracção autónoma de que o réu é proprietário e que, desde que ali se instalou, por trespasse, nunca foi notificada de qualquer actualização de renda. No entanto quando recebeu uma notificação judicial avulsa a acusá-la de não pagar o valor devido a título de rendas, a Autora por cautela procedeu ao depósito do valor reclamado e do valor da índemnizacão, salvaguardando que não era esse o valor devido. Pede agora que se reconheça que não existiu mora, que procedeu ao pagamento do valor devido e que o réu restitua a diferença.

Citado, o réu contestou referindo que as actualizações foram sempre  comunicadas sendo que o facto de ter entretanto ocorrido o trespasse do estabelecimento não lhe poder ser oponível, porque o mesmo não foi dado de imediato a conhecer ao senhorio. Para além do mais, o senhorio, apesar de a autora não pagar o valor actualizado sempre emitiu recibo pelo valor correcto, o que a A nunca questionou porque sabia que correspondia ao valor actualizado. Alega que a notificação judicial avulsa foi feita quando a Autora deixou, de todo, de pagar as rendas devidas e que nunca lhe foi comunicada necessidade de efectuar quaisquer obras no locado. Impugna os factos referentes a estas, a sua necessidade e montante. Conclui que a A litiga de má fé e como tal deverá ser condenada em multa e indemnização.                                                                                                                                                                             
O processo seguiu os seus termos, realizando-se o julgamento e vindo a ser proferida sentença que julgou a acção não provada e improcedente.

Foram dados como provados os seguintes factos:
A) O R. é dono e legítimo possuidor da fracção autónoma designada pela Letra A, correspondente ao r/c com entrada pelo nº 50, pertencente ao prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua da..., Nº... a Nº em Lisboa, inscrito na matriz da freguesia da ... sob o art. 41.
B) Por contrato de arrendamento, celebrado em 07 ele Maio de 1990, nas notas do ...° Cartório Notarial de Lisboa, a cargo da licenciada Maria..., lavrado a folhas quarenta e uma e duas, verso do Livro 73H, foi dado de arrendamento, o referido rés-do-chão, com entrada pelo nº 50, hoje fração autónoma designada pela letra "A", à Sociedade Comercial por quotas, denominada  I...
C) O  arrendamento foi feito pelo período de um ano, com início em 01 de Maio de 1990, renovável por períodos iguais, nos termos da lei então em vigor.
D) A renda mensal estipulada inicialmente foi de 50.000$00, o correspondente a cerca de € 250,00, a pagar adiantadamente em casa do senhorio ou em local que este indicasse, no primeiro dia útil do mês anterior a que dissesse respeito.
E) O estabelecimento de restauração, instalado no local arrendado, foi  trespassado após o arrendamento indicado em B), sendo trespassário E..., negócio que teria tido lugar em 30 de Outubro de 2001.
F) O trespassário E..., por seu lado, em 13 de Outubro de 2005 trespassou o estabelecimento a J..., o qual, por sua vez, o trespassou à sociedade comercial ora A, M..., para a qual transferiu o direito ao arrendamento.
G) A actividade de restauração foi sendo exercida no local pela A. e as rendas foram pagas, mensalmente, no montante atual de € 510,64.
H) O Réu, em 14 de Junho de 2012,  através de notificacão judicial avulsa, interpelou a A. para pagamento das rendas em mora.
I) Exigindo-lhe as rendas no valor mensal de € 554,74.
J) Para obstar à resolução do contrato de arrendamento, a A. efetuou o depósito nos termos exigidos pelo Réu, pelo que, em 31 de Julho de 2012, depositou, na Caixa Geral de Depósitos os seguintes valores:
Rendas: € 10.810,09
Indemnização: € 5270,03
Valor total: € 15.810,09.
K) Salvaguardando no depósito que o valor mensal da renda correcto é de € 510,64.
L) J... é  sócio único da A e, à data de do trespasse a E... , era  gerente único da sociedade I..., titular primitiva do arrendamento.
M) Em 01.03.2004, o R comunicou a E... que a renda durante o ano de 2004 seria de € 487,94, com efeitos a partir de Abril de 2004.
N) Em 1.03.2006, o R comunicou ao referido E... que a renda  durante o ano de 2006 seria de € 510,64, com efeitos a partir de Abril de 2006.
O) Em 01/03/2006 o R comunicou a E... que a renda durante o ano de 2008 seria de € 539,63 com efeitos a partir de Abril de 2008.
 P) Em 1.03.2009, o R comunicou a E... que a renda durante o 2009 seria de € 554,74, com efeitos a partir de Abril de 2009.
Q) As comunicações referidas foram efectuadas por carta, endereçadas para a morada da A.
R) Por carta datada de 20/10/2005 E... deu conhecimento ao R de que procedeu ao trespasse do estabelecimento comercial a J... a 13-10/2005.
S) A 05-06-2006 foi por J... efectuado o trespasse do mesmo estabelecimento a favor da A.
T) A A. recebeu os recibos emitidos pelo Réu  em nome de E... sendo que os recibos eram passados pelo valor de € 554,74 contra o pagamento de € 510,64.
U) Por cheque datado de 08-02-2011 a A pagou ao R a quantia de € 510,64 que este recebeu por conta da renda de Dezembro de 2010.
V) Por cheque datado de 08-03-2011, a A pagou ao R a quantia de € 510,64 que este recebeu por conta da renda de Janeiro de 2011.
W) Por cheque datado de 08-04-2011 a A pagou ao R a quantia de € 510,64 que este recebeu por conta da renda de Fevereiro de 2011.

Inconformada recorre a A, concluindo que:
- A A. não se conforma com a douta sentença, designadamente com a aplicação de Direito aos factos provados, na questão da determinação do valor da renda e, por outro lado, considera a A. ter demonstrado que entregou sempre atempadamente as rendas ao senhorio, na casa deste, conforme resulta da reapreciação da prova gravada.
- Não há fundamento na matéria de facto provada para a conclusão da douta sentença de que o valor da renda devido é o invocado pelo Réu, considerando os seguintes factos dados como provados:
A renda mensal estipulada inicialmente foi de 50.000$00 {cinquenta mil escudos) correspondente a cerca de 250,00 Euros ...
Esta renda mensal corresponde ao inicio do contrato de arrendamento em 7 de Maio de 1990 sendo arrendatário o firma I... (v. alíneas b) e d) ).
O primeiro trespasse verificou-se em 30 de Outubro de 2001, sendo trespassário E.... (alínea e)
O segundo trespasse verificar-se-ia em 13 de Outubro de 2005, sendo trespassário J..., o qual por sua vez, o trespassou à ora A. M..., o que sucedeu em 5 de Junho de 2006 (alíneas f) e r) ).
Em 01/03/2006 o Réu comunicou ao referido E... que a renda durante o ano de 2005 seria de 510,54 Euros com efeitos a partir de Abril de 2006 (alínea n),
Em 1/03/08, o R. comunicou ao referido E... que a renda durante o ano de 2008 seria de 539,53€, com efeitos o partir de Abril de 2008. (alínea o)
Em 1/03/2009, o R. comunicou a E... que a renda durante o ano de 2009 seria de € 554,74, com efeiros a partir de Abril de 2009. (alínea p)
As comunicações ao E... foram endereçadas paro o morada da A .. (alínea q)
- Assim, o mencionado E... foi o locatário do estabelecimento no período compreendido entre 30 de Outubro de 2001 a 13 de Outubro de 2005 ou seja, a partir de 13 de Outubro de 2005 o locatário do estabelecimento passou a ser J... e a partir de 5 de Junho de 2006 a ora A.
- Ora o Réu, em 1/03/2004, comunicou a E... que a renda, durante o ano de 2004 seria de 487,94 Euros, com efeitos a partir de Abril de 2004 (alínea m).
- Por conseguinte, sendo a locatária do estabelecimento a ora A., desde 5 de Junho de 2006, por força do trespasse e sendo o locatário anterior J... e desde 13 de Outubro de 2005, não existe qualquer comunicação do Réu a qualquer deles a actualizar as rendas.
- As comunicações foram efectuadas pelo R. para E..., em 1 de Março de 2006 actualizando a renda para € 510,64, em 01/03/2008 actualizando a renda para € 539,63 e em 01/03/2009 actualizando a renda para € 554,74.
- A douta sentença conclui que as comunicações das actualizações foram recebidas na morada da A. e nunca foram questionadas e que ao receber os recibos emitidos em nome de E... nunca a A. questionou a discrepância entre os recibos e o valor da renda.
- A circunstância da A. receber as cartas dirigidas pelo R. ao E... não permite ao tribunal concluir que a A. teve conhecimento do conteúdo das comunicações das mesmas, pois ficou provado que as cartas enviadas pelo R.. ao E... foram endereçadas para a morada da A. (alínea q], mas nem sequer ficou provado que as cartas foram registadas com aviso de recepção.
- O nº 1 do artigo 9º do NRAU, aplicável no caso "sub-judice” dispõe o seguinte:
"Salvo disposição da lei em contrário, as comunicações legalmente exigíveis entre as partes, relativas à cessação do contrato de arrendamento, actualização do renda e obras, são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de recepção.
 
- Por outro lado, o nº 2 da mesma disposição legal prevê que as cartas sejam dirigidas ao arrendatário: ora o E... já não era o arrendatário quando lhe foram efectuadas as comunicações de alteração da renda do valor de € 510,64.
- O aviso de recepção, é uma formalidade "ad substantiam", insubstituível, por outro meio de prova, ou por outro documento que não seja de força probatória superior, ao abrigo do artigo 364º nº 1, do C.C" (Ac. do  STJ de 19/03/2002  5J200203190000117-DGSI)
- Assim, a declaração negocial que careça de forma legalmente prescrita é nula quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei. (v. artigo 220º do CC)
- Por conseguinte, não há fundamento factual para a douta sentença considerar que o valor da renda a pagar pela A. seja outro que não o valor mensal de € 510,64.
- Por outro lado, a A.. considera ter demonstrado que entregou sempre atempadamente as rendas ao senhorio, na casa deste, conforme resulta da reapreciação da prova gravada ( testemunha J...).

- O R., na sua douta contestação, no artigo 31, aceitou, por confissão, o artigo 21º da p.i, no qual a A. alegou o seguinte:
" Efectivamente, nas datos de vencimento das rendas a A. entregava os cheques, com o valor da renda, pessoalmente ou na caixa do correio da morada do R. sita na Calçada Nova do Colégio, 26, em Lisboa, ou enviava-o por correio registado, pois aquele não permitia que as rendas fossem pagas por transferência bancária".

- Do depoimento gravado da testemunha J..., realizado no dia 6 de Maio de 2014, a partir das 10,43 horas, da audiência de julgamento, resulta que deverá ser dado como provado que a A. entregou sempre ao R. as rendas na caixa do correio da morada do mesmo ou por cheque enviado pelo correio, conforme estipulado entre ambos.
- A circunstância do Réu  não ter levantado os cheques que foram entregues na caixa do correio, não pode ser penalizadora para a A. relativamente à mora.
- O R., ao emitir os recibos em nome de E... e ao comunicar a este as actualizações das rendas anuais a partir de 13 de Outubro de 2005, quando este já tinha efectuado o trespasse, pretendia não reconhecer os subsequentes trespassários enquanto tais, apesar de ter conhecimento dos trepasses subsequentes, designadamente, daquele que foi realizado com a A. em 5 de Junho de 2006.
- Foi a indecisão do R., comprovada também pelas comunicações anuais das actualizações das rendas ao E... que o levou a não levantar as rendas que lhe foram entregues tituladas pelos cheques.
- Inexiste assim mora do A. quanto ao pagamento das rendas sem prejuízo das mesmas serem devidas porque o R. não levantou os cheques que lhe correspondem.
- Houve sempre má do R. que não levantava os cheques e que persistia em não reconhecer a A. como locatária, apesar de não ter agido judicialmente nessa matéria.
- Pelo que não existe assim mora e direito do R. à indemnização dela decorrente.
- Deverá assim, com o douto suprimento de Vossas Excelências, ser revogada a douta sentença, sendo a acção julgada procedente, por provada.

A Ré contra-alegou defendendo a bondade da decisão recorrida.

Cumpre apreciar:

São duas as questões suscitadas: primeira, saber se a A estava obrigada a pagar as actualizações das rendas, por as mesmas lhe terem sido comunicadas pelo senhorio. Segunda, saber se a A deixou de pagar as rendas do locado desde Fevereiro de 2001 a Fevereiro de 2012.

Quanto à questão das actualizações, alega a A que o Réu não lhe comunicou tais actualizações.
Na verdade, provou-se que o Réu enviou por carta, para a morada da A mas em nome de E..., as comunicações de actualização das rendas de 2006, 2008 e 2009.
Igualmente se provou que o arrendamento foi feito à sociedade I..., tendo ocorrido trespasse do estabelecimento para o referido E... em 30/10/2001. O E... trespassou o estabelecimento para J... em 13/10/2005 o qual, por seu turno o trespassou em 05/06/2006 à sociedade M...  aqui Autora.
J... era gerente único da sociedade I... aquando do trespasse para E... e é o sócio único da ora Autora.    

A Autora sempre pagou a renda no montante mensal de € 510,64, não tendo pago as actualizações referidas.
Alega a Autora que as comunicações das actualizações de rendas foram efectuadas por carta que não se provou ser registada e com aviso de recepção, como o exige o art. 9º nº 1 do NRAU e, apesar de enviadas para a sua morada eram dirigidas a E....
Quanto ao facto de tais comunicações não serem enviadas em nome da Autora M... há que salientar desde já que não se provou ter sido comunicado ao senhorio o trespasse efectuado a esta sociedade em 05/06/2006 nem a possibilidade de exercer o direito de preferência.
Daí que não se vislumbre a obrigação do Réu de endereçar tais comunicações – ou os próprios recibos de renda, ver a título de exemplo fls. 20 a 28 – em nome da Autora, já que nunca lhe foi comunicado o trespasse efectuado para esta empresa.
Por outro lado, é indiscutível que as comunicações das actualizações da renda pelo senhorio têm de ser efectuadas por carta registada com aviso de recepção, o que aqui não sucedeu.
Na sentença recorrida entendeu-se que a tese da Autora, relativamente ao modo como foram efectuadas as comunicações a actualizar a renda, constitui uma clara situação de abuso de direito nos termos do art. 334º do Código Civil.
                                                                                                                                                
Como refere Luís Carvalho Fernandes, de forma bem clara e singela, “o exercício conforme à boa fé envolve um comportamento próprio de pessoas de bem e honestas, que agem com correcção e lealdade, respeitando as razoáveis expectativas dos outros e a confiança que eles depositam  na actuação alheia. Se o titular do direito, no seu exercício, exceder manifestamente os limites decorrentes destes padrões de conduta, há abuso” - “Teoria Geral do Direito Civil” II, pág. 626.

No caso dos autos, como dissemos, não foi comunicado ao senhorio, ora Réu, o trespasse efectuado por J... a favor da Autora. O que foi comunicado, em data anterior, foi o trespasse efectuado por E... para J... Poderia assim questionar-se que a comunicação da actualização das rendas não tivesse sido enviada para o aludido J... Porém, embora este seja sócio único da Autora, é uma pessoa jurídica distinta e tanto assim que foi ele quem tomou o estabelecimento de trespasse, por negócio com E..., só posteriormente o trespassando para a Autora.
Mas há mais. Os recibos de renda também eram enviados em nome de E..., nunca tendo a Autora, durante anos, alertado o Réu para o facto de, por via do trespasse, ser ela a arrendatária. Tal inércia da Autora poderá ser explicada por uma razão muito simples: embora a Autora continuasse a pagar a renda de € 510,64, o recibo mencionava o pagamento da renda actualizada, ou seja, € 539,63 desde Abril de 2008 e € 554,74 desde Abril de 2009.
Isto faz-nos concluir que a Autora não podia ignorar que as rendas tinham sido actualizadas. As cartas comunicando tais actualizações foram enviadas para a morada da Autora embora em nome de E... e os recibos continham o montante dessas actualizações, recibos de resto passados igualmente em nome de E....
É impensável que uma sociedade comercial receba recibos de renda de montante superior àquilo que pagou, e isto durante anos, sem se aperceber de tal discrepância.

Quanto à questão de as cartas contendo a comunicação da actualização das rendas não terem sido registadas e com aviso de recepção.
A exigência de uma determinada forma para um acto jurídico pode prender-se com diversos objectivos acautelados pelo legislador: a publicidade do acto, a possibilidade de fomentar a reflexão sobre as cláusulas de determinado negócio, ou o facilitar a prova da existência do acto em causa – ver Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil Português” I, pág. 379/380.
Existem casos em que a própria forma é parte integrante do próprio acto jurídico: uma transacção judicial tem de obedecer ao ritualismo do art. 290º nº 4 do CPC. Independentemente do teor do acordo de vontades, se por absurdo este se expressar de modo meramente verbal, numa conversa tida entre o juiz e as partes na via pública, o acto jurídico nem sequer existe, pelo menos enquanto transacção judicial.

Pode dar-se igualmente o exemplo de uma compra e venda de imóvel celebrada verbalmente: independentemente de outras consequências, a posse eventualmente exercida pelo adquirente nunca poderá ser titulada.

Mas será que a falta de registo da carta com aviso de recepção, na comunicação feita pelo senhorio ao arrendatário, da actualização da renda, tem uma natureza semelhante à dos exemplos mencionados?

Não nos parece. O registo e o aviso de recepção têm uma função: a de garantir com maior certeza que a comunicação chegou ao conhecimento do destinatário e habilitar o declarante a provar tal facto.

Se ficar provado que, apesar da comunicação ser efectuada por carta simples, o destinatário a recebeu ficando pois em condição de conhecer plenamente o seu teor, o objectivo da norma está cumprido, independentemente do vício formal. O destinatário tem a possibilidade não só de tomar conhecimento da comunicação como de a analisar cuidadosamente e ponderar a reacção à mesma – o que, por exemplo, não seria possível numa mera comunicação verbal.

As normas jurídicas têm como único propósito o de solucionar problemas com incidência jurídica ou de os prevenir. Não têm cabimento enquanto construções meramente abstractas e inseridas numa ritualismo que transforme o sistema jurídico num inquietante edifício de sinais codificados e indiferente às relações que as pessoas estabelecem entre si na dinâmica da vida em sociedade.

Como sublinha Menezes Cordeiro, na obra mencionada, “desde o antigo Direito romano, se pode proclamar que o progresso jurídico implicou uma luta contínua contra o formalismo. O ritual exterior deve ceder perante o mérito das causas. Tratando-se de uma concretização da autonomia privada, não se cura de apurar o que, pelas partes tenha sido vertido em moldes exteriores predeterminados, mas antes o que, efectivamente, elas pretenderam e declararam”.

Ora, no caso dos autos, as cartas contendo a comunicação da actualização das rendas foram entregues na morada da Autora e não foram devolvidas. O objectivo, ou seja, permitir à Autora a análise ponderada da declaração do locador, foi obtido, com ou sem registo, com ou sem aviso de recepção.
 Daí que, em nosso entender, o acto em si deva ser considerado válido e apto a produzir os seus efeitos.

Coloca-se em seguida a questão de saber se as rendas vencidas de Fevereiro de 2011 a Fevereiro de 2012 foram ou não pagas.
A Autora alega que entregou os cheques relativos à renda mensal  durante todo o mencionado período (embora sem as actualizações entretanto comunicadas). Invoca como prova o depoimento da testemunha J...

Com efeito, esta testemunha, no período em que trabalhou para o gerente da Autora (de 2009 até Dezembro de 2012), confirmou que no dia 8 de cada mês ia colocar na caixa do correio do Réu senhorio um sobrescrito com o cheque da renda mensal. Disse ainda que por uma ou duas vezes o pagamento foi feito em numerário e que só não foi entregar o sobrescrito com a renda em Dezembro de 2012.

O depoimento da testemunha pareceu convincente, sendo que já não trabalha para o gerente da Autora nem tem com esta qualquer ligação.

Por outro lado, este testemunho é reforçado pelos “canhotos” dos cheques juntos a fls. 142 e seguintes.

Não vemos razão para não aceitar que a Autora efectuou o pagamento das rendas mensalmente no montante de € 510,64 (como os próprios cheques confirmam).

O Réu deixou de levantar os cheques a partir pelo menos de Abril de 2011, como alega a própria Autora (art. 22º da petição inicial).
Perante isto, a questão é a de saber se existe mora do devedor (a Autora) ou do credor (o Réu senhorio).
E não restam dúvidas que é a Autora que incorre em mora, já que ofereceu o pagamento das rendas mas sempre no mesmo valor, indiferente às sucessivas actualizações que, como dissemos, não podia ignorar, não só por ter recebido na sua morada as cartas do senhorio comunicando essas actualizações como porque nos recibos constava a verba actualizada da renda apesar de a Autora continuar a pagar a renda de € 510,64.
Nos termos do art. 763º nº 1 do Código Civil a prestação deve ser realizada integralmente. E o art. 406º nº 1 do mesmo diploma estipula que o contrato deve ser pontualmente cumprido, ou seja, a obrigação satisfeita ponto por ponto.
Como sublinha Almeida Costa - “Direito das Obrigações” pág. 717 - “”a prestação deve ser efectuada por inteiro e não parcialmente (...). Portanto, o devedor, tal como não pode forçar o credor a receber uma prestação diversa da estipulada (...) também não pode em regra constrangê-lo a um cumprimento parcial”.

Assiste ao senhorio o direito de recusar os pagamentos quando estes se mostrem inferiores ao montante da renda, mais a mais depois de, por largo tempo, vir passando recibos contendo um valor superior ao que lhe era efectivamente pago.
Sendo lícita a recusa do credor em receber uma prestação inferior à devida, a Autora entrou em mora. E a mora respeita à totalidade da prestação e não apenas à parte que o devedor não entregou, já que, insiste-se, tem o credor o direito de recusar toda a prestação se esta for, nomeadamente, inferior à devida.
Existindo pois fundamento para a indemnização prevista nos artigos 1041º nº 1 do Código Civil.

Assim carece de fundamento o invocado enriquecimento sem causa do Réu,  invocado pela Autora e ora recorrente.                                                                                                                                            
Termos em que se conclui que:
-   Não ocorre incumprimento contratual do senhorio que comunica as actualizações de rendas e passa os recibos destas em nome de anterior arrendatário e não do actual, quando se prova que ocorreu trespasse do estabelecimento para o presente arrendatário sem que se mostre que do mesmo foi dado conhecimento ao senhorio.

Acorda-se assim em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.


LISBOA, 16/04/2015


António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais