Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5023/04.8TBALM.L1-2
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
OBJECTO DO CONTRATO
NULIDADE DO CONTRATO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPRODECENTE
Sumário: SUMÁRIO:

Não estamos perante um negócio jurídico – contrato de compra e venda – cujo objecto é fisicamente impossível quando, na data do negócio, o lote de terreno a que se referia o contrato existia fisicamente; a circunstância de não estar na posse dos vendedores (encontrando-se ocupado pelos AA.) não lhe retirava a existência física, não se reportando o negócio celebrado a uma coisa inexistente ou inalcançável pelas partes.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa:

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I – LJ e MA, OS e RH, MS e GL, DS e MF, AB e AF, MO e AA, intentaram a presente acção declarativa contra MM e ÁA, bem como contra CL e MA.
Pediram que fosse declarado nulo e de nenhum efeito o contrato de compra e venda celebrado por escritura pública em 20 de Janeiro de 1992 entre os primeiros e os segundos RR., ordenando-se o cancelamento do registo efectuado através da transcrição G-1, sobre o prédio descrito sob o nº 08362, com todas as consequências legais.
Para o efeito, alegaram, em resumo, que o lote de terreno para construção a que se reporta aquela escritura de 20-1-1992 não tem existência física desde 1982, pelo que o contrato de compra e venda não tinha objecto, sendo nulo.
Constatado o falecimento de MM e ÁA e habilitados os respectivos herdeiros, os autos prosseguiram contra ME (que juntou procuração) e o Ministério Público (em representação dos herdeiros incertos de MM) ([1]).
Contestaram os RR. CL e MA (fls. 214 e seguintes)
Foi proferido saneador sentença que julgou a acção improcedente.
Apelaram os AA. , concluindo nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso:
1ª – Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, mediante um preço – Cfr artº 874º do C.C.
2ª – De acordo com a escritura de compra e venda de 20 de Janeiro de 1992, a propriedade a transmitir seria um lote de terreno para construção com área de 308 m2 e o preço era de 2.800.000$00 – cfr escritura de compra e venda.
3ª – Se acaso o Meritíssimo Juiz “a quo” tivesse feito uma análise crítica de toda a prova junto aos autos e não impugnada, deveria dar como provado os factos constantes das acções a saber:
a) Em 10/12/1991, o réu MM intentou uma acção de reivindicação contra alguns dos ora autores, a qual correu seus termos com o nº 525/91, conforme certidão junta aos autos, que aqui se dá por reproduzida, tendo tal acção ficado deserta.
b) Na acção que com o nº 574/2002, corre seus termos pelo 2º Juízo Cível deste Tribunal os aí autores, aqui recorridos, alegaram que, em 1982, perpendicular à Rua... e a Sul do Lote 45 assinalado na planta junta sob documento 2, foi aberta uma rua pública a que foi dado o nome de Rua ...
c) Com a implantação da Rua ... os 3ºs Réus aqui recorrentes, que não quiseram ver ocupada pela rua qualquer área do seu terreno, avançaram para norte, ocupando uma área de 220m2 do terreno contíguo, que os autores, aqui recorridos, alegam pertencer-lhes.
d) E aí edificaram um muro na propriedade dos autores, aqui recorridos, ocupada numa área de 220m2.
e) Os 2º Réus, aqui recorrentes, na sequência da compra e venda que fizeram aos 1ºs Réus, também aqui recorrentes, avançaram para sul numa área de 88m2 do prédio dos ora recorridos Carlos ... e mulher.
f) As áreas apropriadas pelos recorrentes LJ e mulher e OS e marido, DS e mulher e MS e mulher, perfazem a totalidade dos 308m2 de área do prédio do recorrido CG e mulher que assim foi completamente absorvido.
4ª – Na acção que correu seus termos pelo extinto 3º Juízo, 1ª Secção, com o nº 525/91 e que conforme reza a certidão, deu entrada em Juízo em 10 de Dezembro de 1991, já o recorrido MM alegava em síntese que com a ocupação de 220 m2 por parte dos ora recorrentes OF e de 88m2 por parte de LG, o lote 47 havia desaparecido.
5ª - E, o recorrido CG apesar de saber que o lote de terreno para construção com área de 308m2 tinha sido apropriado na sua totalidade pelos recorrentes, sabia também que em 20 de Janeiro de 1992 não era possível a transmissão da propriedade, mesmo assim, outorgou a escritura de compra e venda.
6ª – Para que a tese defendida na douta sentença objecto do presente recurso, de venda de coisa litigiosa pudesse proceder, importava, em nosso entender, que o recorrido se tivesse habilitado para que o processo que corria seus termos com o nº 525/91 pudesse prosseguir seus termos até final.
7ª – Ao não se habilitar e ao permitir a interrupção da instância e a posterior deserção afasta em definitivo a possibilidade da transmissão da propriedade do lote de terreno para construção do recorrido MM para o recorrido CG por não mais o poder reivindicar.
8ª – E a presunção de titularidade inerente ao registo feito na 2ª Conservatória do Registo Predial de ... – artº 7º do C.R.P., através da Apresentação nº 30 de 13 de Dezembro de 1995, encontra-se ilidida.
9ª – O recorrido MM e esposa não podem renovar a instância onde reivindicavam o lote de que se encontram desapossados desde 1982 e portanto nada podiam transmitir ao recorrido CG.
10ª – A deserção da instância por inércia do vendedor MM e esposa e do comprador CG e esposa por falta de habilitação no processo por forma a impedir a deserção, importa a não transmissão do lote de terreno para construção com área de 308m2 que continua desde 1982, na posse dos recorrentes.
11ª – E, pelas razões já supra aduzidas encontra-se ilidida a presunção de titularidade resultante do registo efectuado pelo recorrido CG através da apresentação nº 30 de 13 de Dezembro de 1995.
12ª – Deveria o Tribunal “a quo” ter julgado procedente, por provados os pedidos formulados pelos ora recorrentes.
13ª – Violou, pois, salvo o devido respeito o Tribunal “a quo” o disposto nos artºs 874º, 280º nº 1 ambos do C.C.
Os apelados CL e MA contra alegaram nos termos de fls. 487 e seguintes.
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II - O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

1- Corre termos no 2° Juízo Cível deste Tribunal a acção ordinária n° 574/2002 intentada pelos ora Réus contra todos os Autores da presente acção.
2 - O pedido formulado naquela acção traduz-se na condenação de todos os Réus (aqui Autores) a:
A) reconhecerem o seu direito de propriedade sobre o prédio urbano composto de lote de terreno para construção, designado por lote 47, com a área de 308 m2 sito nas Quintinhas à ..., actualmente Rua ... à Rua..., Lote..., Quintinhas, freguesia de ..., concelho de ..., a confrontar de norte e sul com José ..., do sul com Dr... e poente com caminho público (actual Rua...), inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art° 11123 e descrito na 2a Conservatória do Registo Predial de... sob o art° 08362/951213 daquela freguesia (anteriormente n° 15979 a fls. 164 do Livro B45);
B) Ser declarada nula a venda celebrada em 17.11.82 entre os ora Autores A B e marido AF e MO e marido AA Cardoso como vendedores e os ora Autores LJ e mulher MA, como compradores, na parte em que são vendidos 88 m2 de terreno que faziam parte do prédio dos Réus CG e MA, que ao tempo pertencia já a terceiros, reduzindo-se, consequentemente o objecto da venda e em consequência, ordenar-se o cancelamento dos registos de descrição e inscrição respectivos e serem LJ e MA condenados a restituir a CG e AS a área de 88 m2 da sua propriedade livre e devoluta de pessoas e bens;
C) Serem os ali Réus e agora Autores OS e marido RH; MS e mulher GG, DS e mulher MF condenados a restituir aos ali Autores CG e AS a área de 220 m2 da sua propriedade, livre e devoluta de pessoas e bens e a demolir o muro construído no prédio destes.
3- Os ora Réus invocaram no art° 2° da p.i. daquela acção que tinham adquirido o prédio supra descrito por compra que fizeram a MM e mulher ÁA, tendo-o inscrito a seu favor pela inscrição G-1 de 13.11.1995.
4 - A compra referida foi feita por escritura pública lavrada de fls. 59 a fls. 60 do Livro 273D do 2° Cartório Notarial de... em 20 de Janeiro de 1992.
5 -Também invocaram no art° 3° daquela p.i. que tal prédio havia sido adquirido por MM e mulher por compra que fizeram a JS e mulher VA (pais das Autores A e O) por escritura pública lavrada em 5 de Abril de 1968 no 1° Cartório Notarial de..., conforme resulta da inscrição 28.739, tal prédio urbano correspondia ao lote designado pelo número 47.
6 - O prédio em causa foi desanexado do prédio descrito sob o n° 1449 a fls. 129v° do Livro B4 da 2a Conservatória do Registo Predial de...
7-Por escritura lavrada em 17 de Novembro de 1982 no 2° Cartório Notarial de... MO e marido e A e marido venderam aos LM e MM um lote de terreno com a área de 453,75 m2 a desanexar do mesmo prédio n° 1449 a fls. 129v° do B-4.
8 - Por escritura celebrada em 3 de Janeiro de 1968 no 2° Cartório Notarial de ... a fls. 49 do Livro C-6 JS e VA, já falecidos – pais das Autoras MA e O - venderam a JF o prédio urbano com a área de 616 m2 a desanexar do mesmo prédio n°1449 a fls. 129v° do B-4 e que veio a constituir o prédio descrito sob o n° 15.845 a fls. 86 do B45 da 2a Conservatória do Registo Predial de..., inscrito a favor do JF pela inscrição 28476.
9- Tal prédio urbano correspondia aos lotes designados pelos números 45 e 46.
10 -Em 4 de Janeiro de 1977 JF faleceu no estado de solteiro e sucederam-lhe como herdeiros testamentários OF, MS e DS.
11- Em 10/12/1991, o réu MM intentou uma ação de reivindicação contra alguns dos ora autores, a qual correu termos como n° 525/91, tendo tal ação ficado deserta.
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III - São as conclusões da alegação de recurso que delimitam o objecto do mesmo recurso. Assim, considerando as conclusões aduzidas pelos apelantes, as questões que nos são colocadas são as seguintes: se devem ser aditados aos factos provados os factos propostos pelos apelantes; se a compra e venda celebrada por escritura de 20 de Janeiro de 1992 é nula porque física e (ou) legalmente impossível.
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IV – 1 - Os apelantes começam por reclamar o aditamento de alguns factos à matéria julgada provada.
Efectivamente, afigura-se útil à construção da decisão ([2]) o aditamento de determinados factos provados nestes autos por documento, aditamento a que o Tribunal sempre poderia proceder, tendo em conta o disposto nos arts. 663, nº 2 e 607, nº 3 do CPC.
Assim, aditam-se aos factos julgados provados pelo Tribunal de 1ª instância os seguintes factos:
12 – Na acção mencionada em 11) foi declarada a interrupção da instância em 20-3-1995 (certidão de fls. 338 e seguintes).
13 – Nessa acção o primitivo R. MM alegara ser proprietário do prédio descrito na Conservatória de Registo Predial de ... sob o nº 15.979, composto de terreno para construção, com a área de 308 m2 e designado por lote 47, que o proprietário dos lotes 45 e 46 se apropriou ilicitamente de 220 m2 de que o primitivo R. era proprietário e que outros RR. se apropriaram ilicitamente de 88 m2. Pediu, então, o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio e que os ali RR. fossem condenados a restituí-lo.
14 - Por escritura pública lavrada de fls. 59 a fls. 60 do Livro 273 D do 2° Cartório Notarial de... em 20 de Janeiro de 1992, o ora R. CL comprou a MM e a ÁA, pelo preço de 2.800.000$00, um lote de terreno para construção com a área de 308 m2, descrito na 1ª Conservatória de Registo Predial de ... sob o nº 15979 do livro B-45 e ali inscrito a favor dos vendedores (certidão de fls. 42-45).
15 – Na 1ª Conservatória de Registo Predial encontra-se descrito sob o nº 15.979 um prédio composto de terreno para construção com a área de 308 m2, sito nas Quintinhas, à ..., freguesia da ..., bem como inscrita a sua aquisição a favor de CL, casado com MA por compra a MM e mulher ÁA (certidão de fls. 17-21).
16 – Na acção mencionada em 1) os ali AA. alegaram que em 1982 foi aberta uma rua pública e que com a implantação dessa rua os ali RR. O, R, M, D e MF invadiram para norte o terreno contíguo, pertencente aos AA. e apossaram-se de 220 m2 da sua área, edificando um muro na propriedade dos AA.; bem como alegaram que os ali RR. LJ e MM avançaram para sul numa área de 88 m2 pertencente ao prédio dos AA., apossando-se dela; referiram, também, que aquelas áreas perfazem a totalidade da área do prédio dos AA., 308 m2, «que, assim, foi completamente “absorvido”» (documento de fls. 9-54).
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IV – 2 - Como vimos, pediram os AA. que fosse declarado nulo e de nenhum efeito o contrato de compra e venda celebrado por escritura pública em 20 de Janeiro de 1992 entre os primeiros e os segundos RR., ordenando-se o cancelamento do registo efectuado através da transcrição G-1, sobre o prédio descrito sob o nº 08362, com todas as consequências legais.
Alegaram para o efeito que o lote de terreno para construção com a área de 308 metros quadrados a que se reporta aquela escritura de 20-1-1992 não tem existência física desde 1982. Isto porque, segundo os próprios RR. afirmam em acção por eles proposta, os AA. O, MG e D ocuparam 220 m2 do lote de terreno, então pertencente aos RR. MM e Á e muraram-no e os restantes 88 m2 estão ocupados pelos AA. LG e MM. Depreendem que o mencionado contrato de compra e venda de 20 de Janeiro de 1992 não tem objecto (inexistindo coisa a transmitir) sendo nulo.
O tribunal de 1ª instância considerou que a falta de existência material do imóvel levaria a que o contrato estivesse ferido de nulidade, nos termos do art. 280 do CC, mas que não estamos perante um prédio inexistente: ele existe materialmente e está ocupado, se lícita ou ilicitamente é outra questão (que se discute no processo n° 574/2002).
Os apelantes continuam a sustentar a nulidade daquela compra e venda, nos termos dos arts. 874 e 280, nº 1 do CC.
Sob a epígrafe de «Requisitos do objecto negocial», dispõe o nº 1 do art. 280 do CC que é «nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável».
Referem a propósito Pires de Lima e Antunes Varela ([3]) que é «fisicamente impossível o objecto do negócio que envolve uma prestação impossível no domínio dos factos: entregar a lua, transportar uma pessoa de um lugar para outro a uma velocidade que os meios de transporte estejam longe de ter atingido na altura da execução do contrato» e que é «legalmente impossível, por ex., o objecto da promessa de celebração de um contrato que o direito não consente, da promessa de venda de uma coisa do domínio público».
Mota Pinto ([4]) distinguia entre o objecto imediato ou conteúdo (efeitos jurídicos a que o negócio tende) e o objecto mediato ou “sricto sensu” (consistente no “quid” sobre que incidem os efeitos do negócio), advertindo que o art. 280 do CC utilizava a expressão objecto negocial num sentido complexivo, abrangendo quer o conteúdo ou efeitos jurídicos do negócio, quer o objecto propriamente dito, ou em sentido estrito.
Menezes Cordeiro ([5]), depois de especificar que o art. 280 do CC estatui sobre o conteúdo e o objecto, propriamente dito, do negócio, regista que «o conteúdo do negócio jurídico deve articular soluções possíveis, quer num prisma físico, quer num prisma jurídico». Em termos físicos, haverá impossibilidade quando o negócio se reporte a uma coisa inexistente ou inalcançável pelas partes: haverá, ainda, impossibilidade quando o negócio se reporte a uma actuação humana que não possa, objectiva e absolutamente ser levada a cabo. Em termos jurídicos, a impossibilidade ocorre quando o objecto se analise num efeito jurídico não permitido. A possibilidade será «física ou jurídica consoante o objecto contunda, ontologicamente, com a natureza das coisas ou com o Direito».
Segundo Mota Pinto ([6]) será «impossível legalmente o objecto de um negócio quando a lei ergue a esse objecto um obstáculo tão insuperável como o que as leis da natureza põem aos fenómenos fisicamente impossíveis». Acrescentando que um impedimento legal desse tipo só poder existir em relação a realidades de carácter jurídico, podendo, portanto «ter um objecto legalmente impossível negócios jurídicos cujo objecto seja constituído por outro negócio jurídico».
Assente que a expressão “objecto do negócio jurídico” pode ter os dois sentidos aludidos sentidos, correspondentes, respectivamente, ao objecto imediato, ou conteúdo, e ao objecto mediato, ou objecto “stricto sensu”, estaremos perante um negócio cujo objecto é fisicamente impossível?
 O negócio em causa é contrato de compra e venda formalizado por escritura pública lavrada de fls. 59 a fls. 60 do Livro 273 D do 2° Cartório Notarial de ... em 20 de Janeiro de 1992, por via do qual CL comprou a MM e a ÁA, pelo preço de 2.800.000$00, um lote de terreno para construção com a área de 308 m2, descrito na 1ª Conservatória de Registo Predial de ... sob o nº 15979 do livro B-45 e ali inscrito a favor dos vendedores.
Temos, pois, que por via daquele contrato, os primitivos RR. MM e ÁA transmitiram ao R. CL a propriedade daquele lote de terreno com a área de 308 m2, mediante o aludido preço – arts. 874 do CC.
Ora, naquela data de 20 de Janeiro de 1992, face aos factos alegados pelos AA. na presente acção, o lote de terreno adquirido pelo CL – prédio descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº 15.979 como terreno para construção com a área de 308 m2 -  existia fisicamente. Poderia estar ocupado pelos ora AA., poderia não estar na posse dos vendedores desde 1982, mas isso não lhe retirava a existência física. Assim, o negócio celebrado não se reportava a uma coisa inexistente ou inalcançável pelas partes.
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IV – 3 - Dizem os AA. que os RR., «como confessam» não têm qualquer posse do lote de terreno para construção que identificam como sendo o lote 47, desde 1982.
É certo que em 10 de Dezembro de 1991 o primitivo R. MM intentara uma acção de reivindicação contra alguns dos ora AA. alegando ser proprietário do referido prédio, composto de terreno para construção, com a área de 308 m2 e designado por lote 47, que o proprietário dos lotes 45 e 46 se apropriara ilicitamente de 220 m2 de que o primitivo R. era proprietário e que outros RR. se apropriaram ilicitamente de 88 m2. Pediu, então, o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio e que os ali RR. fossem condenados a restituí-lo.
Nessa acção foi declarada a interrupção da instância em 20-3-1995 (certidão de fls. 338 e seguintes).
Consoante resultava da alínea c) do art. 287 do anterior CPC, uma das causas de extinção da instância é a deserção. Ora, como dispunha o nº 1 do art. 291 do mesmo Código, «considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando esteja interrompida durante dois anos». A deserção teria lugar, sem necessidade de despacho que a declarasse – operando “ope lege”, de forma automática - a partir do momento em que sobre a data da interrupção da instância houvesse decorrido o prazo que o art. 291 do CPC estabelecia, sendo mero efeito do decurso desse prazo.
Sem dúvida que a acção n° 525/91 ficou deserta. Todavia, os efeitos da deserção apenas se reflectem na relação jurídica processual e não no correspondente direito material.
Daí, na presente acção não podermos tirar quaisquer consequências daquela deserção.
A compra e venda que os ora AA. dizem ser nula ocorreu em 20 de Janeiro de 1992, logo após a acção haver sido intentada em Dezembro de 1991 e muito antes de ser declarada a interrupção da instância, em 20-3-1995.
Tratar-se-á, como entendeu o tribunal de 1ª instância da venda de coisa litigiosa – uma coisa considera-se litigiosa quando a sua titularidade seja objecto de disputa judicial, o que acontecia, efectivamente, na ocasião da venda.
Também da circunstância de o comprador não se haver habilitado naquela acção que havia sido proposta pelo vendedor não se poderão retirar quaisquer consequências nestes autos. Saliente-se que a habilitação, a ter lugar, seria depois da compra e venda, não podendo a sua falta influir na validade do negócio já realizado. Acresce que, atento o art. 271 do CPC então em vigor, no caso de transmissão por acto entre vivos de coisa ou direito litigioso (na pendência da causa) o transmitente continuava a ter legitimidade para a causa, em substituição processual do adquirente – o que é consequência do carácter facultativo da habilitação por transmissão entre vivos. Habilitação que consoante decorria do preceituado no nº 2 do art. 376 do mesmo Código podia ser promovida pelo transmitente, pelo adquirente ou pela parte contrária ([7]).
Posteriormente, em Maio de 2002 os ora RR. CL e MA propuseram contra os ora AA. uma outra acção, a que coube o nº 574/2002, dizendo ser proprietários do dito lote 47, com a área de 308 m2, adquirido aos ditos MM e a ÁA, inscrito no registo predial a seu favor, que os RR. O, R, MG, DG e MF se apossaram de 220 m2 da área do seu imóvel e que os RR. LG e MM avançaram numa área de 88 m2 no prédio dos AA. que, assim, foi completamente “absorvido”. Pediram, designadamente, que os RR. sejam condenados a reconhecer o direito de propriedade dos AA. a restituírem-lhes  as mencionadas áreas de 88 m2 e de 220 m2.
Dizem os apelantes, na motivação do respectivo recurso, que «o pedido efectuado pelo recorrido MM não pode ser renovado pelo recorrido CG». Tal questão passa ao lado do presente processo, não cabendo aqui apreciá-la; a ser colocada, seria na acção intentada em Maio de 2002 pelos RR. CL e MA.
Também os aspectos referentes às presunções de titularidade do registo e respectiva ilisão, bem como estarem desde 1982 na “posse” dos apelantes as áreas do imóvel excedem o âmbito da presente acção, atento o seu objecto (o pedido e a causa de pedir) uma vez que cuidamos de verificar se o contrato de compra e venda celebrado – naquela data e com aquele teor – era nulo e não das hipóteses de os RR. CL e MA reivindicarem o imóvel e das presunções de titularidade resultantes do registo.
Afigurando-se-nos, indiferente para o desfecho da acção a classificação da venda como sendo – ou não – de coisa litigiosa (embora na nossa perspectiva, como acima mencionado, disso se trate) certo é que a dita venda não padece da nulidade invocada, ou seja não se trata da venda de objecto fisicamente impossível; ou mesmo legalmente impossível, como agora acrescentam os apelantes, não se vislumbrando qual o efeito jurídico não permitido ([8]).
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V – Face ao exposto, acordam os Juízes desta relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
                                                      *

Lisboa, 5 de Março de 2015


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Maria José Mouro
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Teresa Albuquerque                                                                     
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Sousa Pinto


[1] Ver fls. 195.
[2]   Consoante decorrerá do que adiante referiremos.
[3]   No «Código Civil Anotado», Coimbra Editora, I vol., 3ª edição, pag. 257.
[4]  Em «Teoria Geral do Direito Civil», Coimbra Editora, 1976, pag. 430.
[5]  «Tratado de Direito Civil Português», I, Parte Geral, tomo I, Almedina, 2ª edição, pags. 479 e seguintes.
[6]    Obra citada, pags. 432-433.
[7]   Embora, nesta parte , em resultado das alterações derivadas da reforma processual de 1995/1996.
[8]   Nem se perspectiva outra que, aliás, os apelantes não indicam.