Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
777/16.1IDLSB.L1-5
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
IVA
NÃO ENTREGA AO ESTADO DO IMPOSTO DESCONTADO OU RECEBIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: –A sentença, como qualquer acto processual, pode ser objecto de interpretação, predominando na jurisprudência entendimento no sentido de que a essa interpretação são aplicáveis as regras que presidem à interpretação das declarações negociais (artigos 295.º e 236.º do Código Civil).
–O IVA é devido desde a respectiva venda, facturação, liquidação e declaração aos serviços, e não desde o momento do pagamento da transacção que lhe deu origem. Por isso, o pagamento do IVA liquidado e declarado é exigível logo que decorra o respectivo prazo, tenha ou não sido recebido pelo sujeito passivo.
–Para efeitos criminais, isto é da consumação de um crime de abuso de confiança fiscal, não é indiferente saber se ocorreu, ou não, efectiva cobrança do imposto aos clientes, importando não confundir a responsabilidade tributária pelo imposto devido com a responsabilidade penal tributária. O facto gerador da responsabilidade tributária é autónomo da responsabilidade criminal: a obrigação tributária existe independentemente do crime.
–Para o cometimento do crime de abuso de confiança fiscal, quando se trate de prestações tributárias referentes a IVA, é necessário que fique demonstrado o efectivo recebimento do correspondente montante pelo sujeito passivo obrigado à sua entrega ao Estado até ao momento da entrega da respectiva declaração periódica à Autoridade Tributária.
–O vício decisório de insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, previsto da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P., não impõe o reenvio para novo julgamento, sempre que os autos contenham todos os elementos necessários à explicitação ou concretização que importa proceder a fim de se alcançar a decisão justa da causa – cf. artigos 410.º, n.º 2, alínea a), e 426.º, n.º 1, do C.P.P.
–O valor do imposto a entregar ao Estado resulta da diferença entre o imposto liquidado a terceiros e o suportado e dedutível, não havendo que considerar uma nova dedução, agora nos valores de imposto efectivamente recebidos pela arguida.
–O acordo de pagamento, entre o devedor da prestação tributária e a administração tributária, não obsta à verificação e funcionamento da condição de punibilidade da conduta, consagrado no artigo 105.º, n.º4 al. b) do RGIT, que no caso se mostra preenchida.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–Relatório:

1.– Para julgamento em processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 777/16.11DLSB, foram acusados “O., SA”, L. e M., todos melhor identificados nos autos, pela imputada prática dos seguintes crimes:

- “O., SA,”: 5 (cinco) crimes de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 7.º e 105.º, nºs 1, 2, 4, 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias (R.G.I.T.), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, tudo, conjugado com o teor dos artigos 27.º, 28.º, n.º1, 29.º e 42.º, n.º1, alínea b), do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (C.I.V.A.);
- L.: 5 (cinco) crimes de abuso de confiança fiscal, previstos e punidos pelos artigos 6.º e 105.º, nºs 1, 2, 4, 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias (R.G.I.T.), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, tudo, conjugado com o teor dos artigos 27.º, 28.º, n.º1, 29.º e 42.º, n.º1, alínea b), do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (C.I.V.A.);
- M.: 5 (cinco) crimes de abuso de confiança fiscal, previstos e punidos pelos artigos 6.º e 105.º, nºs 1, 2, 4, 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias (R.G.I.T.), aprovado pela Lei n.º15/2001, de 5 de Junho, tudo, conjugado com o teor dos artigos 27.º, 28.º, n.º1, 29.º e 42.º, n.º1, alínea b), do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (C.I.V.A.).
           
2.– Realizado o julgamento, foi proferido acórdão que decidiu nos seguintes termos:
«Nestes termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem o Tribunal Colectivo em julgar parcialmente procedente a acusação e, em consequência, decidem:

a.- absolver a arguida “O., SA” de 4 (quatro) dos 5 (cinco) crimes de abuso de confiança fiscal, previstos e punidos pelos artigos 7º e 105.º, nºs 1, 2, 4, 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias (R.G.I.T.), aprovado pela Lei nº15/2001, de 5 de Junho, pelos quais se encontra acusada;
b.- condenar a arguida sociedade “O., SA” pela prática de 1 (um) crime de abuso de confiança fiscal, previstos e punidos pelos artigos 7º e 105.º, nºs 1, 2, 4, 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias (R.G.I.T.), aprovado pela Lei nº15/2001, de 5 de Junho, conjugado com os artigos 27º, 28º, nº1, 29º e 42º, n.º1, alínea b), do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (C.I.V.A.), na pena de 240 (duzentos e quarenta) dias, à taxa diária de €6,00 (seis euros), perfazendo o total de €1.440,00 (mil quatrocentos e quarenta euros);
c.- absolver o arguido L. de 4 (quatro) dos 5 (cinco) crimes de abuso de confiança fiscal, previstos e punidos pelos artigos 6º e 105.º, nºs 1, 2, 4, 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias (R. G.I.T.), aprovado pela Lei nº15/2001, de 5 de Junho, pelos quais se encontra acusado;
d.- condenar o arguido L. pela prática de 1 (um) crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 6º e 105.º, nºs 1, 2, 4, 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias (R. G.I.T.), aprovado pela Lei nº15/2001, de 5 de Junho, conjugado com os artigos 27º, 28º, nº1, 29º e 42º, n.º1, alínea b), do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (C.I.V.A.), na pena de 120 (cento e vinte) dias, à taxa diária de €6,00 (seis euros), perfazendo o total de €720,00 (setecentos e vinte euros);
e.- absolver a arguida M. de 4 (quatro) dos 5 (cinco) crimes de abuso de confiança fiscal, previstos e punidos pelos artigos 6º e 105.º, nºs 1, 2, 4, 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias (R. G.I.T.), aprovado pela Lei nº15/2001, de 5 de Junho, pelos quais se encontra acusada;
f.- condenar a arguida M. pela prática de 1 (um) crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 6º e 105.º, nºs 1, 2, 4, 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias (R. G.I.T.), aprovado pela Lei nº15/2001, de 5 de Junho, conjugado com os artigos 27º, 28º, nº1, 29º e 42º, n.º1, alínea b), do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (C.I.V.A.), na pena de 120 (cento e vinte) dias, à taxa diária de €6,00 (seis euros), perfazendo o total de €720,00 (setecentos e vinte euros);
(…)»
          
3.–Deste acórdão recorreram os arguidos, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (que se transcrevem):

A.– O presente recurso versa sobre matéria de direito, e assenta, essencialmente, em duas vertentes, a saber,
Violação do n.° 1 do artigo 105.° do RGIT;
Violação da alínea b) do n.° 4 do artigo 105.° do RGIT.
B.– Quanto à violação do n.° 1 do artigo 105.° do RGIT, diga-se que o preceito estabelece um dos elementos objectivos do crime de abuso de confiança fiscal, isto é, a prestação tributária que deveria ter sido entregue ao Estado tem de ser de valor superior a € 7.500,00, ganhando por isso relevância definir, qual o momento relevante para se considerar que o crime foi praticado.
C.– Quanto ao momento da prática do crime, hoje em dia parece que a questão está definitivamente ultrapassada, muito tendo contribuído o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.° 8/2015, de 2 de junho publicado no Diário da República n.° 106/2015, Série I, de 02/06, Páginas 3502 - 3512, que tornou definitivamente assente que, só comete o crime de abuso de confiança quem efectivamente, no prazo legalmente fixado para entregar o meio de pagamento ao Estado, tenha recebido dos seus clientes, pelo menos, € 7.500,00 de IVA.
D.– Sendo que, no caso do IVA, o prazo legalmente fixado varia, consoante se esteja a falar do regime de periodicidade mensal ou trimestral.
E.– No caso em concreto, e uma vez que a O.,SA estava abrangida pelo regime de periodicidade mensal, a data relevante é o dia 10 do 2.° mês seguinte àquele a que respeitam as operações - cfr. al. a), do n.° 1, do artigo 41.°, do CIVA, tendo ficado provado que:
a.- "(...)No exercício da actividade económica acima mencionada, em Março de 2015, Abril de 2015, Agosto de 2015, Setembro de 2015 e Dezembro de 2015, a primeira arguida procedeu a vendas e emitiu facturas, nas quais liquidou IVA, e relativamente às quais recebeu dos clientes (€13.369,80, em Março; €15.166.82, em Abril; €11.J02,88, em Maio; €10.434,44, em Setembro e €8.086,77, em Dezembro de 2016), nos períodos e, pelo menos, nos montantes que se passa a descriminar (...) ".

F.– Ou seja, se a O.,SA, como ficou provado, nos períodos de Março, Abril, Maio, Setembro e Dezembro de 2015 emitiu facturas, nas quais liquidou IVA, e relativamente às quais, recebeu dos seus clientes, efectivamente, os valores de, respectivamente, €13.369,80, €15.166.82, €11.102,88, €10.434,44, e €8.086,77, apenas poderá ter recebido, a título de IVA, 23% desses valores, isto é:
Março de 2015-€3.075,05
Abril de 2015-€ 3.488,37
Agosto de 2015 - € 2.553,66
Setembro de 2015 - € 2.399,92
Dezembro de 2015 - € 1.859,96

G.– Se assim é, e como facilmente se compreende, todos os valores recebidos, no que respeita a IVA (23% da facturação que o Tribunal a quo deu como provado que tinha sido recebida), são inferiores a € 7.500,00, logo não se encontra preenchido um dos elementos objectivos do crime de abuso de confiança fiscal, não podendo, consequentemente, os Arguidos/ Recorrentes ser condenado pelo mesmo.

H.– Não se compreende aliás como o Tribunal a quo compatibiliza o facto provado 8 com o quadro que incluiu no acórdão a este propósito, e isto porque, no quadro constante do ponto 8 dos factos provados, o Tribunal a quo descrimina como valores de IVA não entregues, pelo menos:
2015/03 7742,05€
2015/04 9.933,26€
2015/08 9.214,94€
2015/09 11.034,22€
2015/12 8.228,37€

I.– Isto é, os valores constantes neste quadro são exactamente os mesmos que constam das declarações periódicas de IVA entregues pela O.,SA (logo nem faz sentido a expressão "pelo menos"), que não são compatíveis com os valores de facturação que o Tribunal a quo deu como provado que a O.,SA tenha recebido pois, para que a O.,SA tivesse recebido, pelo menos, e a título de IVA, os valores constantes deste quadro, a facturação dada como provada que a O.,SA recebeu tinha de ser muito superior, uma vez que a taxa de IVA que incide é de 23%..,
J.– Caso se considere que esta é a facturação total dos períodos que a O.,SA efectivamente recebeu, como parece resultar do ponto 8 da matéria provada, então, como já referido, o IVA recebido (23%) é muito inferior aos € 7.500,00, logo não há crime, caso se considere que esses valores dizem respeito ao valor do IVA recebido pela O.,SA, temos de ter em conta, ainda assim, o IVA dedutível.

K.– Ficou igualmente provado, até porque a AT nunca colocou em causa as declarações periódicas entregas pela O.,SA, logo aceitou-as como boas, que, quanto ao IVA dedutível, a sociedade tinha o direito à dedução automática de:
Março de 2015- € 5.467,10;
Abril de 2015- €7.590,45;
Agosto de 2015 - € 9.170,20;
Setembro de 2015 - € 8.782,26;
Dezembro de 2015- € 6.393,02.

L.– Isto é, na data em que, alegadamente, se praticou o crime, o dia 10 do 2.º mês seguinte ao período a que diz respeito o imposto, no caso concreto os dias 11.05.2015, 11.06.2015, 12.10.2015, 10.11.2015, e 10.02.2016, a O.,SA, pelo menos nos meses de Agosto, Setembro e Dezembro, não tinha recebido IVA de valor igual ou superior a € 7.500,00, pelo que não se encontra preenchido o elemento objectivo constante do n.° 1, do artigo 105.°, do RGIT.
M.– Quanto à violação da alínea b) do n.° 4 do artigo 105.° do RGIT importa dizer que, como sabemos, está consagrada, uma condição objectiva de punibilidade, onde é conferido ao arguido uma última possibilidade de, querendo, pagar o imposto em falta, acrescido dos juros e coima, no prazo de 30 dias, evitando assim o processo-crime.,

N.– Ora, resulta provados nos autos - cfr. fls. juntas pela testemunha E.M., instrutor da AT - que a O.,SA estava abrangida pelos seguintes planos de pagamento a prestações:
a.- Março de 2015 - plano deferido e com início em 07.01.2016 - novo plano deferido e com inicio em 07.11.2016.
b.- Abril de 2015 - plano deferido e com início em 07.01.2016 - novo plano deferido e com inicio em 07.11.2016.
c.- Agosto de 2015 - plano deferido e com início em 16.06.2016.
d.- Setembro de 2015 - plano deferido e com início em 16.06.2016.
e.- Dezembro de 2015 - plano deferido e com início em 16.06.2016.

O.– Resulta igualmente provado nos autos que todos os arguidos foram notificados, nos termos e para os efeitos da al. b), do n.° 4, do artigo 105.°, do RGIT, em 02.08.2016 e 15.09.2016.
P.– Ou seja, nas datas em que os arguidos foram notificados para, querendo, no prazo de 30 dias, pagarem o imposto, acrescido de coimas e juros, para beneficiarem da extinção do procedimento criminal, todos os períodos de imposto em causa, constantes dessas notificações, encontravam-se abrangidos por planos de pagamento a prestações deferidos pela Autoridade Tributária.
Q.– Por um lado a AT autoriza que a O.,SA pague os valores aqui em causa através de planos prestacionais, defere esses planos, alterando assim as datas de pagamento do imposto e, por outro lado, notifica a O.,SA para proceder ao pagamento dos impostos em dívida, acrescidos de juros e coimas, no prazo máximo de 30 dias, sob pena de ficar preenchida a condição objectiva de punibilidade, isto é, por um lado permite que o pagamento seja efectuado ao longo do tempo, em prestações, por outro exige o pagamento da totalidade de imediato.
R.– Esta dicotomia de posições não se compreende, nem é aceitável, demonstrando uma clara má-fé da AT. A AT cria a convicção/expectativa na O.,SA de que pode efectuar o pagamento do imposto em causa de determinada forma, a O.,SA, com legitimidade, acredita na posição da AT, fica convencida da mesma, e posteriormente a AT altera radicalmente a sua posição e exige a totalidade do imposto, ao que se chama, abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.
S.– Os impostos em causa, quando foram exigidos, de uma vez, aos arguidos, não se encontravam vencidos e isto porque, ao autorizar o pagamento dos mesmos em prestações, a AT permitiu que as datas de pagamento fossem alteradas, deixando de ser as datas de pagamento previstas na lei, e passando a ser as datas de cada uma das prestações,
T.– Deixando a AT de ter legitimidade para, até ao vencimento de cada prestação, exigi-la, por maioria de razão não tem legitimidade para exigir, sem mais, a totalidade do imposto, acrescido de juros e coimas, sob pena dos arguidos virem a ser punidos criminalmente.
U.– Pelo que, face a todas estas razões, nunca se poderá considerar que as condições objectivas de punibilidade se encontram preenchidas, pelo que os arguidos nunca podem ser punido pela prática dos crimes que acabaram por ser condenados.
V.– Pelo que o Tribunal a quo, ao condenar os Arguidos/ Recorrentes nos termos que condenou, violou, entre outros, o artigo 105.°, n.° 1, e n.° 4, al. b), do RGIT, os artigos 19.°, n.° 1, 22.°, n.° 1, e 7.°, n.° 1, todos do CIVA, pelo que deverá o Douto Acórdão ser revogado e substituído por outro era que os Recorrentes sejam absolvidos.     
           
4.– O Ministério Público junto da 1.ª instância apresentou resposta ao recurso, sustentando que não deve ser provido, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
- Da prova produzida em julgamento, resulta de forma inequívoca que os arguidos praticaram o crime p. e p. no art. 205º do RGIT e 27º, 28º, 29º e 42º do CIVA.
- Verificando-se todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de abuso de confiança fiscal;
- Verifica-se, assim, que a douta decisão recorrida captou com rigor a prova produzida na audiência de discussão e julgamento, tendo operado uma correcta subsunção jurídica e aplicação do direito;
- Não foi violado o disposto no art. 205º do RGIT nem qualquer outro preceito legal;
- Pelo que, nenhum reparo nos merece a condenação dos arguidos.

5.– Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), apôs o seu visto.

6.– Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do C.P.P., procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, realizou-se audiência para debate dos pontos para o efeito especificados pelos recorrentes no recurso.

II–Fundamentação.

1.- Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência com a decisão impugnada, as questões a debater e decidir são:
- Da alegada violação do disposto no artigo 105.º, n.º1, do R.G.I.T., relativamente à exigência de que esteja em causa prestação tributária de valor superior a 7500€;
- Da alegada violação do disposto no artigo 105.º, n.º4, al. b), do R.G.I.T., pela circunstância de, nas datas que que foram notificados para o efeito dessa disposição legal, os períodos de imposto em causa encontrarem-se abrangidos por planos de pagamento a prestações deferidos pela Autoridade Tributária.
           
2.– Da decisão recorrida.

2.1.– No acórdão proferido pela 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
1.- A primeira arguida “O., SA” é uma sociedade anónima registada na Conservatória do Registo Comercial de Torres Vedras, pessoa colectiva n.º …, com o capital social de €375.000,00, com sede na Rua…, Torres Vedras.
2.- A actividade desenvolvida pela primeira arguida consiste em transportes de mercadorias nacionais e internacionais, a produção, bem como a produção integrada e comercialização de produtos agrícolas, sua importação e exportação, bem como de outras mercadorias e aluguer de infraestruturas e equipamentos, e a comercialização de combustíveis.
3.- A gerência da primeira arguida tem sido exercida pelo segundo arguido e terceira arguida, L. e de M., administradores do conselho de administração, agindo em seu nome e no seu interesse, obrigando-se a sociedade apenas com a assinatura de um dos administradores.
4.- O segundo arguido e terceiro arguidos, L. e M., seus administradores, dirigem os negócios da sociedade arguida, nomeadamente celebrando contratos, fazendo os contactos com os fornecedores, ordenando e efectuando o pagamento de todas as obrigações da sociedade arguida.
5.- A primeira arguida, à data dos factos, encontrava-se colectada na área fiscal dos Serviços de Finanças de Torres Vedras, com o CAE Principal … e CAE Secundários ….
6.- É sujeito passivo de Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA) enquadrado por opção no regime com contabilidade organizada, no regime normal, de periodicidade mensal.
7.- A primeira arguida enviou aos Serviços de Cobrança do IVA as competentes declarações periódicas referentes ao período de Março de 2015, Abril de 2015, Agosto de 2015, Setembro de 2015 e Dezembro de 2015, sem os respectivos meios de pagamento, conforme se encontrava obrigada.
8.- No exercício da actividade económica acima mencionada, em Março de 2015, Abril de 2015, Agosto de 2015, Setembro de 2015 e Dezembro de 2015, a primeira arguida procedeu a vendas e emitiu facturas, nas quais liquidou IVA, e relativamente às quais recebeu dos clientes (€13.369,80, em Março; €15.166.82, em Abril; €11.102,88, em Maio; €10.434,44, em Setembro e €8.086,77, em Dezembro de 2016), nos períodos e, pelo menos, nos montantes que se passa a descriminar:


Período de
 Imposto
IVA não entregue
Termo do prazo
de pagamento
Declaração Periódica    
Data de envio                                                 

2015/03

7742,05€

11.05.2015

6.05.2015

2015/04

9.933,26€

11.06.2015

2.06.2015

2015/08

9.214,94€

12.10.2015

7.10.2015

2015/09

11.034,22€

10.11.2015

9.11.2015

2015/12

8.228,37€

10.02.2016

8.02.2016

 
9.- Os arguidos não entregaram nos Cofres do Estado as quantias acima indicadas, até aos dias 11 de Maio, 11 de Junho, 12 de Outubro e 10 de Novembro, do ano de 2015, e 10 de Fevereiro de 2016.
10.- Decorreram mais de 90 (noventa) dias, sobre o termo do prazo legal para a entrega das prestações supra mencionadas.
11.- No exercício da actividade, os arguidos não remeteram à Administração Fiscal como era devido pela respectiva sociedade arguida, a quantia total de €46.152,845, em violação do disposto nos artigos 27º, nº1, e 41º, nº1, alínea b), do Código de IVA.
12.- Em consequência da conduta supra descrita e levada a cabo pelos arguidos, o Estado Português - Fazenda Nacional, viu-se privado de receber a referida quantia, a qual os arguidos arrecadaram e utilizaram nos termos referidos no ponto 14.
13.- Notificados os arguidos em 15/9/2016 para, no prazo de 30 dias, procederem ao pagamento das quantias em dívida, acrescidas de juros e do valor da coima aplicável, beneficiando, assim, “do consagrado na alínea b) do nº4 do artigo 105º do RGIT (a extinção do procedimento criminal)”, os mesmos não o fizeram.
14.- Em vez de entregarem aquela quantia, a sociedade arguida e o segundo e terceiro arguidos, seus administradores, fizeram na sua, gastando-a no pagamento dos seus salários e dos salários dos trabalhadores da sociedade arguida, no pagamento das despesas desta última e no pagamento das despesas com fornecedores das matérias-primas.
15.- Os arguidos sabiam que as referidas quantias pecuniárias haviam sido por si retidas para que as guardassem e viessem a entregar ao Estado Português – Fazenda Nacional e, no entanto, não as entregaram e gastaram-nas nos termos supra referidos, por terem estipulado entre si que, perante as dificuldades financeiras que a sociedade arguida estava a vivenciar e sempre que, por tais razões, esta não dispusesse de quantia necessária aos pagamentos aos seus trabalhadores e fornecedores, seria dada prevalência ao pagamentos de tais despesas em detrimento do cumprimento da obrigação de entregar o IVA, sendo esse o quadro verificado em 11 de Maio, 11 de Junho, 12 de Outubro e 10 de Novembro, do ano de 2015, e 10 de Fevereiro de 2016, pelo que, os arguidos, nessas situações e em observância ao que haviam decidido, agiram como se fossem donos das quantias mencionadas no ponto 8, dispondo de tais quantias como se fossem suas, bem sabendo que as mesmas lhes não pertenciam e que agiam contra a vontade e sem autorização da Fazenda Nacional, legítima proprietária das mesmas.
16.- O segundo e terceira arguidos actuaram sempre de forma deliberada, livre e consciente, agindo em nome e no interesse da primeira arguida, bem sabendo que todas as suas descritas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei.
17.- Nada consta do certificado de registo criminal de o arguido Lino L...H...S....
18.- Nada consta do certificado de registo criminal da arguida M..
Das condições sócio-económicas referentes à arguida M.
19.- O processo de crescimento da arguida, filha única, decorreu junto dos progenitores, sendo o pai agricultor e a mãe doméstica. Cresceu junto destes familiares e num ambiente afectivo, protector e dissociado de privações materiais.
20.- A frequência escolar decorreu de forma linear até à conclusão do 12º ano de escolaridade.
21.- Iniciou o seu percurso laboral aos vinte e quatro anos de idade e não regista descontinuidades significativas. Tem estado ligada à actividade gestionária numa empresa familiar de produção e comercialização de produtos hortícolas.
22.- À data dos factos, exercia funções como administradora no Grupo O.,SA, partilhadas com o cônjuge, co-arguido no presente processo. A empresa confrontava-se com dificuldades financeiras, decorrentes de redução de crédito bancário e consequentes problemas de tesouraria. A situação da empresa estabilizou na sequência da aprovação de um Plano Especial de Revitalização, em vigor desde Fevereiro de 2017. A arguida mantém o exercício de funções de administradora da empresa, tendo a seu cargo a gestão financeira da empresa.
23.- Autonomizou-se do agregado de origem aos vinte e quatro anos de idade, data em que contraiu casamento. Dessa relação nasceram dois filhos. O agregado familiar próprio tem revelado estabilidade.
24.- O agregado familiar da arguida M. é sustentado pelos rendimentos da sua actividade profissional cuja remuneração líquida é de €1235,00 mensais, e pelos rendimentos do cônjuge cuja remuneração líquida é de €2375,00 mensais. A estrutura de despesas mensais inclui a renda de casa, no valor de €500,00; a amortização de um crédito pessoal do cônjuge, no montante de €1.700,00; e outros encargos de montante variável, tais como consumos domésticos de energia, água e telecomunicações, e as despesas com os demais elementos do agregado.
25.- O tempo disponível da arguida é reservado para o convívio familiar e práticas informais de lazer.
26.- Os relacionamentos sociais são diversificados. No meio sócio residencial apresenta uma imagem social positiva.
Das condições sócio-económicas do arguido L.
27.- O início do processo de crescimento do arguido L. decorreu junto dos progenitores, sendo o pai operário na área da construção civil e a mãe assalariada agrícola, já falecidos, e três irmãos. A infância e parte da adolescência foram passadas junto de uns tios, devido a emigração dos pais. Após o retorno destes familiares, reintegrou o agregado familiar de origem.
28.- Manteve a frequência escolar até ter completado o terceiro ciclo do ensino básico.
29.- O seu percurso laboral foi iniciado na adolescência como operário da construção civil. Aos vinte e um anos de idade começou a trabalhar por conta própria como agricultor e, três anos mais tarde, criou uma empresa de comercialização de produtos hortícolas que se desenvolveu até culminar num grupo integrado de empresas ligadas ao transporte, produção e comercialização de produtos agrícolas e construção de estruturas agrícolas.
30.- À data dos factos, o arguido exercia funções como administrador no Grupo O.,SA, conjuntamente com o cônjuge, co-arguida no presente processo. Confrontava-se com dificuldades financeiras, decorrentes de redução de crédito bancário e consequentes problemas de tesouraria/liquidez, onde se contextualizam os factos que lhe são imputados. A situação da empresa estabilizou, entretanto, na sequência da aprovação de um Plano Especial de Revitalização, em vigor desde Fevereiro de 2017, como já foi referido a propósito da situação laboral da arguida, mantendo-se o exercício de funções como administrador, pelo arguido.
31.- Aos vinte e cinco anos de idade autonomizou-se familiarmente, data em que contraiu matrimónio. Dessa relação nasceram os dois filhos. Este enquadramento familiar tem-se mantido estável até à actualidade. Continua integrado no agregado familiar próprio, constituído pelo cônjuge e os filhos.
32.- O arguido L. valoriza a realização pessoal pelo trabalho e, atento o seu percurso profissional, denota características de empreendedorismo e assunção de risco.
33.- Identifica-se com uma ocupação informal do tempo livre, ligada ao convívio familiar e prática equestre, e refere relacionamentos com pessoas de diversos estatutos sociais.
34.- No meio sócio residencial apresenta uma imagem social positiva.
35.- Os arguidos encontram-se a pagar as quantias que deviam ter entregue ao Estado, cumprindo os planos acordados em sede de execuções fiscais.

2.2.– Quanto a factos não provados ficou consignado no acórdão recorrido (transcrição):
Com interesse para a decisão, não se provaram quaisquer outros factos constantes da acusação e da contestação, para além dos acima descritos, nomeadamente os que se mostram em contradição com aqueles e ainda que:
I.– a declaração periódica refente a Abril de 2015 tenha sido enviada, pelos arguidos, apenas em 2 de Junho de 2016;
II.– nas datas em que cumpria proceder à entrega, ao Estado, do IVA liquidado nas facturas emitidas (11 de Maio de 2015; 11 de Junho de 2015; 12 de Outubro de 2015; 10 de Novembro de 2015; 10 de Fevereiro de 2016) ou nos 90 dias subsequentes a essa data (ou seja, 11/08/2015, 11/09/2015, 12/1/2016, 10/2/2016 e 10/5/2016), a grande maioria da facturação da sociedade arguida, relativa aos meses em causa, não tinha dado entrada na tesouraria;
III.– a sociedade arguida não tenha recebido as quantias mencionadas no quadro que consta do ponto 8 da acusação;
IV.– a sociedade arguida não tenha recebido, na data em que terminava o prazo de entrega da declaração de IVA e do respectivo meio de pagamento, a título de IVA (data da consumação do pretenso crime), as quantias de € 7.742,05 (referente a Março de 2015); € 9.933,26 (referente a Abril de 2015);€ 9.214,94 (referente a Agosto de 2015); € 11.034,22 (referente a Setembro de 2015); e € 8.228,37 (referente a Dezembro de 2015);
V.– a sociedade arguida tenha recebido, apenas, os montantes de € 7.937.45 (Março2015), €9.264,36 (Abril2015), € 18.430.81 (Agosto 2015), € 9.780,64 (Setembro 2015) e €6.926,32 (Dezembro de 2015), a título de IVA até, respectivamente, aos dias 11.05.2015.11.06.2015.12.10.2015.10.11.2015, e 10.02.2016, datas limites de entrega das declarações referente, respectivamente, aos meses de Março, Abril, Agosto, Setembro e Dezembro de 2015.
O tribunal não se pronunciou quanto ao demais conteúdo da contestação por não se tratar de matéria de facto mas de direito e conclusões.

2.3.– O tribunal recorrido fundamentou a decisão de facto nos seguintes termos (transcrição):
Para formar a convicção do tribunal, foram relevantes os seguintes meios de prova os quais foram apreciados de forma crítica e concatenada, de acordo com os critérios estabelecidos pelo art.º. 127º do Código de Processo Penal :
_ as declarações prestadas pelos arguidos, em audiência;
_ os depoimentos prestados pelas testemunhas, em audiência;
_ certidão da Conservatória do Registo Comercial de fls. 4 e seguintes – cfr. fls. 16 a 21 - referente à sociedade arguida (pela apresentação nº2 de 13/272009, foi registada a composição do Conselho de Administração: os dois arguidos, L.(Presidente da Administração) e M., e A.S.; processo de revitalização, registado pela apresentação nº 2 de 20/8/2015, nomeado administrador provisório C.I.);

– Processo tributário junto a fls. 10 a 35, contendo:
– o auto de notícia, de fls. 11- NUIPC 777/16.1DLSB-, elaborado por F.F.,  datado de 10/2/2016: imposto exigível no montante de €8.228,37, referente ao período de Dezembro de 2015; termo do prazo para pagamento: 10 de Fevereiro de 2016;
notificação do arguido L., junta a fls. 14, datada de 14 de Junho de2016 : “que se encontra em curso o processo de inquérito acima identificado instaurado contra a referida sociedade e relativo à eventual à prática do crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido nos termos do artigo 105º do RGIT”, sendo o valor de €8.228,37, e que poderá “beneficiar da faculdade prevista na alínea b) do nº4 do artigo 105º do RJIT, a extinção do procedimento criminal se, no prazo de trinta dias, efectuar o pagamento das prestações em falta, acrescido dos juros respectivos e coima”; recebida em 20/6/2016- cfr. fls.  14 verso;
igual notificação, expedida em nome da arguida M., junta a fls. 15, datada de 14 de Junho de2016: recebida em 17/6/2016- cfr. fls. 15 verso;
igual notificação, expedida em nome da administradora A.S., junta a fls. 16, datada de 14 de Junho de2016: recebida em 21/6/2016- cfr. fls. 16 verso;
– actividade empresarial da sociedade arguida, junta a fls. 22:enquadramento de IVA: início em 22 de Julho de 1997; contabilidade organizada; periodicidade “normal mensal”, desde 1/1/2000;
– actividade empresarial da sociedade arguida, junta a fls. 23:enquadramento de IRC;
– actividade empresarial da sociedade arguida, junta a fls. 24:enquadramento códigos CAE/CIRS – objecto;
– identificação da sociedade arguida, junta a fls. 25: contabilista: identificado a fls. 27; membro do Conselho Fiscal; os três administradores: identificados a fls. 28, 29 e 30; o administrado judicial com funções de 20/8/2015 a 12/1/2016;
– comprovativo da entrega da declaração, junta a fls. 31, referente ao período 12/2015, entregue em 8/2/2016: imposto a entregar ao Estado : €8.228,37 – termo do prazo de pagamento: 10 de Fevereiro de 2016;
– processo de contra-ordenação suspenso: fls. 32;
– informação quanto ao cálculo de juros de fls. 34 – processo de execução fiscal ;
Processo tributário, autuado em 20 de Junho de 2016, junto a fls. 39 a 47, contendo:
– o auto de notícia, de fls. 40 – NUIPC 808/16.5IDLSB(fls. 80), elaborado por F.F.,  datado de 24/6/2015: imposto exigível no montante de €7.742,05, referente ao período de Março de 2015; termo do prazo para pagamento: 11 de Maio de 2016;
– comprovativo da entrega da declaração, junta a fls. 44, referente ao período Março/2015, entregue em 6/5/2015: imposto a entregar ao Estado : €7.742,05 – termo do prazo de pagamento: 23 de Junho de 2015;

– Processo tributário, autuado em 20 de Junho de 2016, junto a fls. 48 a , contendo:
– o auto de notícia, de fls. 49 – NUIPC 809/16.3IDLSB, elaborado por F.F.,  datado de 27/6/2015: imposto exigível no montante de 9.933,26, referente ao período de Abril de 2015; termo do prazo para pagamento: 11 de Junho de 2016;
– comprovativo da entrega da declaração, junta a fls. 53 e 54, referente ao período Abril/2015 (1 a 30 de Abril), entregue em 2 de Junho de 2016: imposto a entregar ao Estado : €9.933,26 – termo do prazo de pagamento: 26 de Junho de 2015;
– informação quanto ao cálculo de juros,  junta  a fls. 56;
– informação quanto à coima fixada, junta a fls. 57 e processo de contra-ordenação suspenso;

– Processo tributário, autuado em 20 de Junho de 2016, junto a fls. 58 a 67, contendo:
– o auto de notícia, de fls. 59 – NUIPC 810/16.7IDLSB (cfr. fls. 95 e 96)-, elaborado por F.F.,  datado de 2/12/2015: imposto exigível no montante de €11.034,22, referente ao período de Setembro de 2015; termo do prazo para pagamento: 10 de Novembro de 2016;
– comprovativo da entrega da declaração, junta a fls. 63 e 64, referente ao período Setembro/2015 (1 a 30), entregue em 9/11/2015: imposto a entregar ao Estado : €11.034,22 – termo do prazo de pagamento: 1 de Dezembro de 2015;
– informação quanto ao cálculo de juros,  junta  a fls. 66;
– informação quanto à coima fixada, junta a fls. 67 e processo de contra-ordenação suspenso;

– Processo tributário, autuado em 20 de Junho de 2016, junto a fls. 68 a , contendo:
– o auto de notícia, de fls. 69 – NUIPC 811/16.5IDLSB (cfr. fls. 91 e 92)-, elaborado por F.F.,  datado de 28/10/2015: imposto exigível no montante de €79.214,94, referente ao período de Agosto de 2015; termo do prazo para pagamento: 12 de Outubro de 2015;
– comprovativo da entrega da declaração, junta a fls. 73 e 74, referente ao período Agosto/2015 (1 a 31), entregue em 7/10/2015: imposto a entregar ao Estado : €9.214,94 – termo do prazo de pagamento: 27 de Outubro de 2015;
– informação quanto ao cálculo de juros,  junta  a fls. 76;
– informação quanto à coima fixada, junta a fls. 77 e processo de contra-ordenação suspenso;

– cópia da notificação da sociedade arguida, junta a fls. 103, datada de 1 de Agosto  de 2016: “que se encontra em curso o processo de inquérito nº 777/2016.1IDLSB instaurado contra a referida sociedade e relativo à eventual à prática do crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido nos termos do artigo 105º do RGIT”, quanto aos valores em causa naquele processo de inquérito – IVA apurado e/ou IRS retido, declarado À Administração Tributária e não entregue, que se descrimina: €8.228,37; €7.742,05; €9.933,26; €9.214,94; e €11.034,22”, e que poderá “beneficiar do consagrado na alínea b) do nº4 do artigo 105º do RJIT, a extinção do procedimento criminal se, no prazo de trinta dias, a contar desta data, efectuar o pagamento das prestações em falta, acrescido dos juros respectivos e coima aplicável que se mostre devida”; recebida em 2/8/2016- cfr. fls. 103 verso;
igual notificação, em nome do arguido, junta a fls. 104, datada de 1 de Agosto de2016: recebida em 2/8/2016- cfr. fls. 104 verso;
igual notificação, em nome da arguida M., junta a fls. 105, datada de 1 de Agosto de2016: recebida em 2/8/2016- cfr. fls. 105 verso;
igual notificação, em nome da administradora A.S., junta a fls. 106, datada de 1 de Agosto de2016: recebida em 2/8/2016- cfr. fls. 106 verso;
– avisos de recepção de fls. 107 e 108 [NUIPC 808/2016 (referente aos três administradores); NUIPC 809/2016(referente aos três administradores); NUIPC 810/2016(referente aos três administradores); NUIPC 811/2016(referente aos três administradores)];
– documentos de fl.s 118 a 123, referentes ao IVA cobrado;
– identificação da sociedade arguida, junta a fls. 123: contabilista: identificado a fls. 123; membro do Conselho Fiscal; os dois administradores, arguidos, identificados a fls. 124  e 125; o administrado judicial com funções de 20/8/2015 a 12/1/2016;
– situação global, constante de fls. 126 – IVA de Março de 2016;
– situação global, constante de fls. 127 – IVA de Abril de 2016;
– situação global, constante de fls. 128 – IVA de Agosto de 2016;
– situação global, constante de fls. 129 – IVA de Setembro de 2016;
– situação global, constante de fls. 130 – IVA de Dezembro de 2016;
– cópia da notificação do arguido, junta a fls. 155, recebida em 15 de Setembro de 2016: “que se encontra em curso o processo de inquérito nº 777/2016.1IDLSB instaurado contra a referida sociedade e relativo à eventual à prática do crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido nos termos do artigo 105º do RGIT”, quanto aos valores em causa naquele processo de inquérito – IVA apurado e/ou IRS retido, declarado À Administração Tributária e não entregue, que se descrimina: €8.228,37; €7.742,05; €9.933,26; €9.214,94; e €11.034,22”, e que poderá “beneficiar do consagrado na alínea b) do nº4 do artigo 105º do RJIT, a extinção do procedimento criminal se, no prazo de trinta dias, a contar desta data, efectuar o pagamento das prestações em falta, acrescido dos juros respectivos e coima aplicável que se mostre devida”;
igual notificação, em nome da sociedade arguida, junta a fls. 156, recebida a 15 de Setembro de2016;
igual notificação, em nome da arguida M., junta a fls. 172, recebida em 15 de Setembro de2016;
– Plano de pagamento no processo de execução fiscal (cfr. fls. 200):
– situação global, constante de fls. 179 – IVA de Março de 2015: €7.742,05; valor parcial pago: 734,78; valor em dívida = €7.007,27, acrescida de juros e custas; plano deferido e com início em 7/1/2016: 150 prestações; 9 prestações pagas; interrompido em 17/11/2016
plano deferido e com início em 7/11/2016: 150 prestações; 12 prestações pagas;

– situação global, constante de fls. 180– IVA de Abril de 2015: €9.933,26;
valor parcial pago: €2.596,83; valor em dívida = €7.336,43, acrescida de juros e custas;
plano deferido e com início em 7/1/2016: 150 prestações; 9 prestações pagas; interrompido em 17/11/2016
plano deferido e com início em 7/11/2016: 150 prestações; 12 prestações pagas;
– situação global, constante de fls. 181 – IVA de Agosto de 2015: €9.214,94;
valor parcial pago: €2.995,56; valor em dívida = €6.219,28, acrescida de juros e custas;
plano deferido: 24 prestações;
– situação global, constante de fls. 182 – IVA de Setembro de 2015: €9.214,94; valor parcial pago: €4.783,12; valor em dívida = €6.251,10, acrescida de juros e custas;
plano deferido: 24 prestações;
– situação global, constante de fls. 182 – IVA de Dezembro de 2015: €11.034,22;
valor parcial pago: €1.995,85; valor em dívida = €6.232,52, acrescida de juros e custas;
garantia constituída em 22/7/2016 – penhor. Valor da garantia – 158.561,65, com início em 22/7/2016 e termo em 30/9/2018; situação da garantia: activa;

– plano de pagamento em prestações de fls. 184: valor em dívida 91,428,35;
– plano de pagamento em prestações de fls. 185: valor em dívida €65.477,84; _notificações, nos termos do artigo 105º, nº4, do RJIT:
– cópia da notificação do arguido, junta a fls. 155, recebida em 15 de Setembro de 2016: “que se encontra em curso o processo de inquérito nº 777/2016.1IDLSB instaurado contra a referida sociedade e relativo à eventual à prática do crime de abuso de confiança fiscal,  previsto e punido nos termos do artigo 105º do RGIT”, quanto aos valores em causa naquele processo de inquérito – IVA apurado e/ou IRS retido, declarado À Administração Tributária e não entregue, que se descrimina: €8.228,37; €7.742,05; €9.933,26; €9.214,94; e €11.034,22”, e que poderá “beneficiar do consagrado na alínea b) do nº4 do artigo 105º do RJIT, a extinção do procedimento criminal se, no prazo de trinta dias, a contar desta data, efectuar o pagamento das prestações em falta, acrescido dos juros respectivos e coima aplicável que se mostre devida”;
igual notificação, expedida em nome da sociedade arguida, junta a fls. 156, recebida a 15 de Setembro de2016;
igual notificação, expedida em nome da arguida M., junta a fls. 172, recebida em 15 de Setembro de2016;
igual notificação, expedida em nome da administradora A.S., junta a fls. 106, recebida em 2 de Agosto  de2016;
– CD junto a fls. 194: de fls. 118 a 122 constam identificadas as facturas pagas, datas e meios de pagamento – listagem de fls. 202  a205;
– Situação dos processos de execução fiscal (cfr. fls. 200) : fls. 347 e seguintes.

Os arguidos prestaram declarações em audiência. Começaram por admitir toda a  factualidade que consta da acusação, inclusive que relativamente aos cinco períodos objecto destes autos, não entregaram as quantias mencionadas no quadro do ponto 8 da acusação. Admitiram, ainda, que não remeteram à Administração Fiscal como era devido pela respectiva sociedade arguida, a quantia total de €46.152,845, em violação do disposto nos artigos 27º, nº1, e 41º, nº1, alínea b), do Código de IVA.
Acrescentaram que a sociedade arguida vivia, então, um período com dificuldades económicas, pelo que optaram por utilizar tais quantias de IVA, recebida, no pagamento dos seus salários e dos salários dos trabalhadores da sociedade arguida, no pagamento das despesas desta última e no pagamento das despesas com fornecedores das matérias-primas.
Na fase final das declarações, negaram que a sociedade arguida tenha recebido tais quantias, mantendo, contudo, curiosamente, as declarações que haviam prestado quanto à factualidade vertida no ponto 14 da acusação, ou seja, que as quantias mencionadas no quadro constante do ponto 8 da acusação foram utilizadas para efectuarem pagamentos, no seio da sociedade arguida.
Na parte final das declarações, rejeitaram ter existido qualquer esclarecimento, aquando da notificação nos termos do ponto 13 da acusação, das consequências, em termos de procedimento criminal, do pagamento no aludido prazo.
Desde já se dirá que esta posição dos arguidos não merece acolhimento, pois mostra-se contrária à demais prova produzida.
Importa, então, analisar crítica e concatenadamente, a demais prova produzida, analisada à luz das regras da experiência comum.
A testemunha J.M., técnico oficial de contas da sociedade arguida, confirmou ter sido quem elaborou os documentos que se encontram juntos a fls. 118 a 122. Explicou que se trata de um resumo, feito em excel, da contabilidade da sociedade. Declarou, ainda, que as declarações periódicas juntas aos autos foram por si elaboradas.
Foi inquirida a testemunha E.M., instrutor do processo tributário. Declarou a testemunha que fez a análise da documentação da sociedade arguida e elaborou o relatório. Esclareceu que consultou a documentação contabilística que foi junta aos autos, bem como a documentação diversa à qual teve acesso por força do exercício das suas funções. Analisou a facturação, meios de pagamentos e datas de pagamento. E solicitou quadros-resumos de onde constassem as facturas emitidas, pagamentos efectuados e datas dos pagamentos. Teve em conta as datas de vencimento das facturas e se foram efectivamente pagas as quantias mencionadas nas facturas.

Exibido os documentos de fls118 a 122, a testemunha E.M. esclareceu ter solicitado ao contabilista da sociedade arguida, para verificar o que foi efectivamente recebido, quando e meio de pagamento, quadros resumos que contivessem as facturas, os meios de pagamento de cada factura e quando ocorreu o pagamento. Os documentos de fls. 118 a 122 foram os quadros resumos elaborados e disponibilizados pelo Contabilista da sociedade arguida. Toda a informação constante de fls. 118 a 122 foi fornecida/disponibilizada pelo contabilista da sociedade arguida.

Explicou a testemunha E.M. que os mapas de fls. 202 a 211, foram por si elaborados e resultam da análise e confronto da documentação contabilística fornecida pelo contabilista da sociedade com a informação colhida das bases de dados do sistema E-Factura para comprovar o que foi efectivamente recebido e quando, por referência à data de entrega de cada declaração periódica, bem como no prazo dos novos dias. Os valores que constam dos mapas é o resultado da análise cruzada da informação.

Explicou que os valores que constam de os mapas nunca foram postos em causa pelos arguidos e dos mesmos constam o que foi efectivamente recebido e quando, bem como o meio de pagamento utilizado,  conclusões extraídas com base na análise dos documentos e informação contabilística por si já mencionada e do cruzamento da informação constante de tais documentos.

Do depoimento da testemunha resulta ter apurado que a sociedade arguida recebera de IVA em valor superior ao valor de IVA que deveria ter entregue, tal como consta de fls. 212. E essa conclusão obteve com base no cruzamento de informação que já mencionara. Consequentemente, o quantitativo da obrigação de entrega de IVA incide sobre valores de IVA efectivamente recebidos.

Do depoimento da testemunha resulta ainda que foram instauradas acções executivas para obtenção do pagamento coercivo dos valores em dívida. Em Novembro de 2016, a sociedade solicitou a adesão ao plano especial de pagamento de dívidas ao Estado. Foi estabelecido um plano com 150 prestações para as quantias de IVA que deviam ter sido entregues por referência aos períodos de Março e Abril. Esse plano encontra-se a ser cumprido. Referente ao IVA reportado aos meses de Agosto, Setembro e Dezembro de 2015, estão em vigor outros planos prestacionais, de 24 prestações, que a sociedade arguida também tem vindo a cumprir.

Inquirida sobre a realização de uma primeira dedução, no IVA a pagar, do montante de IVA a favor do sujeito passivo -, operação para apurar o valor devido - e, uma segunda dedução desse mesmo valor de IVA a favor do sujeito passivo, agora no valor de IVA efectivamente recebido, explicou a testemunha que esta segunda dedução não tem lugar, sob pena de se traduzir num duplo benefício uma vez que a quantia de IVA a favor do sujeito passivo já foi considerada para efeitos de cálculo do montante a pagar.

Do depoimento da testemunha resulta com toda a clareza que o sujeito passivo já recebeu valor superior ao quantitativo que está obrigado a entregar, ao Estado, a título de IVA.

Inquirida sobre a notificação, nos termos do artigo 105º, nº4, do RGIT, existindo planos especiais de pagamento, aprovados pela autoridade tributária, e em execução um plano de prestações para pagamento da quantia em dívida, a testemunha esclareceu que se trata de dois planos distintos e que a notificação nos termos do artigo 105º, nº4, do RIGT, constitui uma formalidade que tem de ser cumprida.

O depoimento da testemunha mostrou-se claro e lógico, pelo que merece credibilidade.

No que concerne à notificação e esclarecimentos prestados ou omissão dos mesmos, consta de fls. 155, 156 e 172, a notificação assinada pelos arguidos L.e M.. Nessa notificação foram especificados os valores de IVA que deviam ter sido entregues ao Estado e os valores que os arguidos pagaram até essa data.

Da notificação consta, ainda, o seguinte texto: “Poderá vª Ex.ª beneficiar do consagrado na alínea b) do nº4 do artigo 105º do RGIT (a extinção do procedimento criminal), se no prazo de 30 dias, a contar desta data, efectuar o pagamento dos impostos/prestações ainda em falta no referido inquérito, acrescida dos juros respectivos e da coima aplicável que se mostra devida”.

Nessa notificação consta, ainda, a identificação de cada acção executiva fiscal cujos termos corriam, então, para pagamento coercivo dos valores em dívida.

Sendo este o teor da notificação, dúvidas não subsistem que os arguidos tomaram conhecimento que existiam duas realidades distintas: o processo de execução fiscal para pagamento coercivo das quantias em dívida; o processo criminal para ser apurada a responsabilidade criminal decorrente da conduta.

Mais. A notificação foi precedida da tomada de declarações pela autoridade tributária. Da articulação entre tal circunstância e o teor da notificação extrai-se, com toda a clareza que a existência de processos de execução fiscal com planos de pagamento em cumprimento não tornou  desnecessária a intervenção da autoridade tributária.

Tenha-se presente que os arguidos L.e M. já exercem actividade como administradores da sociedade arguida, desde há dez anos, ou seja, à luz das regras da experiência comum, é pressuposto que tenham conhecimento da distinção entre os dois planos, penal e civil.

Em suma, qualquer cidadão, colocado nas circunstâncias em que se encontravam os arguidos e com o número de anos de actividade e de experiência, ao serem convocados para prestarem declarações perante a autoridade tributária, estando a ser cumprido o plano de pagamentos no âmbito dos processos de execução fiscal, teria conhecimento que estavam em causa dois planos completamente distintos.

Por último, os arguidos quando prestaram declarações perante a autoridade judiciária, estavam acompanhados de Advogado constituído – cfr. auto de fls. 152 e seguintes e  procurações de fls. 159 e 160; auto de interrogatório de fl. 172 e seguintes e procuração de fls. 174.

O acompanhamento, por Advogado, numa diligência, mormente em interrogatório, visa, precisamente, o aconselhamento em termos técnicos e a prestação de esclarecimentos tidos por convenientes e/ou pertinentes.

Estando os arguidos representados por Advogado (precisamente, o Ilustre Mandatário que os representou em julgamento, o que significa que os arguidos consideram adequada a representação e apoio técnico), caso não estivessem esclarecidos sobre o conteúdo, alcance e finalidade das notificação, teriam tido todas as oportunidades para suscitar a questão. Não é plausível que, caso tivessem dúvidas sobre o teor, finalidade ou conteúdo da notificação, não procurassem apoio, no plano jurídico, junto do Ilustre Mandatário.

Não colhe, assim, a versão apresentada, pelos arguidos, por ser contrária à prova constante dos autos e às regras mais elementares da experiência comum.

No que concerne às condições pessoais, económicas e sociais dos arguidos, a convicção do tribunal resulta da ponderação dos elementos objectivos que constam do relatório social referente aos mesmos, completados pelas declarações prestadas por ambos os arguidos, em audiência de julgamento.
Relativamente aos antecedentes criminais, foram determinantes os certificados de registo criminal juntos aos autos.

***
           
3.–Apreciando.
3.1.– Dispõe o artigo 428.º, n.º 1, do C.P.P., que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.
Os recorrentes limitaram o recurso à matéria de direito, o que não significa que este Tribunal esteja impedido de sindicar a decisão de facto à luz dos vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., se for caso disso, pois são de conhecimento oficioso.

3.1.1.– Em primeiro lugar, invoca-se no recurso a alegada violação do disposto no artigo 105.º, n.º1, do R.G.I.T., relativamente à exigência de que esteja em causa prestação tributária de valor superior a 7500€.
A este propósito, os recorrentes incidem a sua atenção sobre o ponto de facto provado n.º8, alegando que “se a O.,SA, como ficou provado, nos períodos de Março, Abril, Maio, Setembro e Dezembro de 2015 emitiu facturas, nas quais liquidou IVA, e relativamente às quais recebeu dos seus clientes, efectivamente, €13.369,80, €15.166,82, €11.102,88, € 10.434,44 e €8.086,77, apenas poderá ter recebido, a título de IVA, 23% desses valores, (…)”, pelo que concluem que “todos os valores recebidos, no que respeita a IVA (23%  da facturação que o Tribunal a quo deu como provado que tinha sido recebida), são inferiores a €7.500,00, logo não se encontra preenchido um dos elementos objectivos do crime de abuso de confiança fiscal (…)”.

Vejamos.

A sentença, como qualquer acto processual, pode ser objecto de interpretação, predominando na jurisprudência entendimento no sentido de que a essa interpretação são aplicáveis as regras que presidem à interpretação das declarações negociais (artigos 295.º e 236.º do Código Civil).

As normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial são, pois, igualmente válidas para a interpretação de uma sentença. O que significa que a sentença tem de ser interpretada com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto, exigindo-se, assim, que se tome em consideração a fundamentação e a parte dispositiva, factores básicos da sua estrutura.

A análise da decisão sobre a matéria de facto denota que o tribunal seguiu a descrição deficiente que já constava da acusação e que poderia ter sido corrigida na sentença.

É certo que o texto “desajeitado” que consta do ponto de facto provado n.º8, não consente a leitura que dele pretendem fazer os recorrentes, pois a interpretação dos valores de €13.369,80, €15.166,82, €11.102,88, € 10.434,44 e €8.086,77, como correspondendo ao total da facturação da O.,SA nos meses referidos no ponto 8 dos factos provados, contrasta, manifestamente, com os valores que os recorrentes apresentaram na contestação sobre o IVA total a favor do Estado.

Por exemplo, alegando os recorrentes que o valor do IVA a favor do Estado, relativo a Março de 2015, era de €7.742,05, como podem interpretar o valor de €13.369,80 como correspondendo ao total da facturação desse mês, sobre o qual incidiria IVA de 23%? É manifesto que não pode ser.

Afigura-se-nos que os valores supra referidos, de €13.369,80, €15.166,82, €11.102,88, € 10.434,44 e €8.086,77, correspondem a IVA liquidado e recebido dos clientes, relativamente aos períodos de imposto de Março/2015, Abril/2015, Agosto/2015, Setembro/2015 e Dezembro/2015.

Porém, é manifesto que o texto da decisão de facto, nesta parte, é extremamente confuso, sobretudo quando se conjuga o corpo do ponto de facto provado n.º8, cujos valores indicados parecem reportar-se, como se disse, a IVA liquidado e recebido dos clientes, com o quadro/mapa que se segue no dito ponto de facto. Por exemplo, se relativamente ao período de imposto de Setembro/2015, na leitura que se propõe, a O.,SA liquidou e recebeu dos clientes € 10.434,44, o que significa dizer-se no mapa seguinte que a arguida/sociedade recebeu, nesse período, pelo menos €11.034,22, que é, afinal, o valor do IVA devido e não entregue à administração tributária?

Não se entende…

Foi durante muito tempo controversa a questão de saber se, para o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, se exige, ou não, que as prestações tributárias correspondentes a IVA, a liquidar nos termos dos artigos 27.º e 41.º do CIVA, tenham sido recebidas.

Grande parte da jurisprudência dos últimos anos, antes do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º8/2015, respondeu no sentido afirmativo: de que, no caso específico do IVA, o tipo legal de crime exige que o sujeito passivo tenha recebido a prestação tributária que tem a obrigação legal de liquidar.

Essa jurisprudência não deixou de ter em conta os diversos acórdãos em que o S.T.A., pronunciando-se sobre o ilícito contra-ordenacional do artigo 114.º do RGIT, sustentou, repetidamente e de modo uniforme, a interpretação de que não era susceptível de preencher esse ilícito a falta de entrega de IVA facturado, mas não recebido do cliente, entre os quais se contam:
Ac. do S.T.A., de 28/05/2008, Proc. 0279/08;
Ac. do S.T.A., 29.10.2008, Proc. 0479/08;
Ac. do S.T.A., de 21/01/2009, Proc. 0480/09;
Ac. do S.T.A., de 11/02/2009, Proc. 0578/08;
Ac. do S.T.A., 22/04/2009, Proc. 0984/08;
Ac. do S.T.A., 2/12/2009, Proc. 0887/09;
Ac. do S.T.A., 10/02/2010, Proc. 01204/09;
Ac. do S.T.A., 26/09/2012, Proc. 0729/12;
Ac. do S.T.A., 16/01/2013, Proc. 01064/12 (todos disponíveis em www.dgsi.pt, como os demais arestos que sejam citados sem outra indicação).

Assinalando a interpretação de que o ilícito contra-ordenacional apenas passou a abranger os casos de não entrega de IVA facturado, mas não recebido do cliente, a partir da entrada em vigor da alteração do n.º5 al. a) do art. 114.º do RGIT, operada pelo Lei do O.G.E. para 2009 (sem que o artigo 105.º do RGIT tenha sido alterado no mesmo sentido), temos os acórdãos do STA de 16/05/2012, Proc. 0160/12 e o já mencionado de 16/01/2013, Proc. 01064/12.

E, no que concerne à doutrina, militam também a favor do mesmo entendimento:
Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, Coimbra, 2006, págs. 124/126;
Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, Coimbra, 2ª edição, 2007, pág. 168 e Nullum Crimen, Nulla Poene, Sine Lege Praevia: Inexistência de infracção tributária nos casos de não entrega de IVA não recebido, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo de Pitta e Cunha, volume II, 2010, págs. 257/266;
Paulo Marques, Crime de Abuso de Confiança Fiscal, Coimbra, 2011, págs. 51/64 e 101/106.
É sabido que o IVA é devido desde a respectiva venda, facturação, liquidação e declaração aos serviços, e não desde o momento do pagamento da transacção que lhe deu origem. Por isso, o pagamento do IVA liquidado e declarado é exigível logo que decorra o respectivo prazo, tenha ou não sido recebido pelo sujeito passivo.
De há muito entendemos, porém, que se as coisas se passam assim a nível fiscal, não é, porém, lícito concluir que, para efeitos criminais, isto é da consumação de um crime de abuso de confiança fiscal, é indiferente saber se ocorreu ou não efectiva cobrança do imposto aos clientes, importando não confundir a responsabilidade tributária pelo imposto devido com a responsabilidade penal tributária. O facto gerador da responsabilidade tributária é autónomo da responsabilidade criminal: a obrigação tributária existe independentemente do crime.

Pode ler-se no Acórdão da R. de Guimarães, de 18/03/2013, processo 412/11.4IDGRG.G1:
«A base tributável do IVA circunscreve-se ao valor acrescentado em cada ciclo económico, torna-se exigível nas transmissões de bens, no momento em que os bens são postos à disposição do adquirente e nas prestações de serviços, no momento da sua realização. Para tanto, o agente económico tem sempre de adicionar na factura a importância do imposto liquidado, para efeito da sua exigência aos adquirentes dos bens ou destinatários dos serviços.
Os agentes económicos são ainda obrigados a entregar periodicamente o IVA que pelo processo de autoliquidação calcularam e incluíram na factura. Na declaração periódica, o agente económico deduz o montante que lhe foi exigido nas aquisições de bens e prestações de serviços efectuados em cada período. (…)
Uma vez que a liquidação do IVA se efectiva no momento em que a operação económica é concretizada, independentemente do agente económico receber ou não o preço facturado ao seu cliente, facilmente se compreende que o sujeito passivo desta relação jurídico-tributária, liquida IVA, e que, no contexto comercial, frequentemente essa mesmas facturas acabam por ser pagas ao agente económico bastante tempo depois. (…)
Na sua configuração actual, o crime de abuso de confiança fiscal é um crime de omissão pura ou própria, de mera (in)actividade, uma vez que a apropriação deixou de integrar o tipo legal, pelo que o crime se consuma na data em que terminar o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários, conforme disposição expressa do art. 5.º nºs 1 e 2 do RGIT.
Nos termos já vistos, o sujeito passivo tributário que liquida na factura e recebe o IVA é um fiel depositário da prestação tributária. Em cada declaração periódica pode apurar-se um saldo nulo de imposto a entregar, ou até um saldo favorável ao sujeito passivo, por o IVA a seu favor no período da declaração exceder o IVA liquidado. O que o agente económico tem de entregar em sede de IVA é o eventual saldo que exista a favor do Estado (montante de imposto exigível na terminologia do CIVA).
Significa isto que não se encontra, no quadro deste imposto, uma prestação tributária deduzida, cuja retenção – omissão de entrega – tal como se encontra prevista no n.º1 do artigo 105.º do RGIT seja merecedora, sem mais, de tutela criminal, ou mesmo contra-ordenacional.
Como se sublinha no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 26-09-2012, reflectindo jurisprudência uniforme daquele Tribunal a propósito da conduta contra-ordenacional prevista no artigo 114.º do RGIT, “no âmbito do IVA fala-se de dedução de imposto relativamente ao imposto que o sujeito passivo tem a receber, nos termos dos arts. 19.º a 25.º do CIVA, não se referindo qualquer situação em que o sujeito passivo tenha de entregar imposto que tenha deduzido. De facto, no âmbito do referido direito à dedução, os sujeitos passivos não têm de entregar à administração tributária a prestação tributária que deduziram [o imposto que deduziram, à face da definição dada na alínea a) do art. 11.º do RGIT], mas, antes pelo contrário, apenas têm de fazer entrega do imposto na medida em que excede o IVA a cuja dedução têm direito, isto é, do imposto que não deduziram” (Proc. 0729/12 Fernanda Maçãs, www.dgsi.pt).»

E, mais adiante:

«O que bem se compreende: se o tipo legal do abuso de confiança fiscal pressupõe necessariamente a existência de uma relação fiduciária que se estabelece entre o Estado e os agentes económicos, então só existe desvalor da acção (rectius, desvalor de omissão) quando um agente económico que liquida, recebe e detém precária temporariamente o imposto, omite a entrega ao Estado-Fisco do IVA efectivamente recebido.

Se essa prestação tributária não chegou a ficar retida na empresa, não há possibilidade real de se cumprir a obrigação de entrega ao credor. Não há sequer a existência de depositário legal, e, por isso, não pode haver qualquer quebra de fidúcia ou confiança, nem conduta censurável. A atribuição de dignidade penal a uma omissão de entrega de quantia não recebida e de que o agente não tem disponibilidade, significaria uma insustentável violação do princípio da proibição de punição de uma conduta sem culpa.

Em conclusão, em situação referente ao IVA, só comete o crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º n.º 1 e n.º 2 do RGIT, quem não proceda à entrega ao Estado, no prazo legalmente fixado para tal, do montante de imposto que efectivamente recebeu no concreto período em causa; as consequências para a violação da obrigação de entrega da prestação tributária de IVA não recebido cingem-se à possibilidade de cobrança coerciva e ao dever de pagamento de juros.»

Como se assinalou no Acórdão desta Relação de Lisboa, proferido no Processo n.º 169/09.9IDFUN.L1 (não publicado, que teve como relator o Desemb. Artur Vargues e que o relator deste subscreveu como adjunto), o artigo 105.º, n.º2, do RGIT, não sofreu alteração alguma pela Lei n.º 64-A/2008 e, no que concerne ao seu n.º 1, a nova redacção limitou-se a fixar o valor da prestação tributária deduzida e não entregue (superior a 7.500 euros) a partir do qual a conduta reveste dignidade criminal, «pelo que a posição assumida uniformemente pelo Supremo Tribunal Administrativo quanto à não integração na contra-ordenação prevista no artigo 114.º - até à alteração do mesmo pela aludida Lei, entenda-se - da omissão de entrega de IVA liquidado, mas não recebido, tem plena aplicação, até por maioria de razão, quanto à atipicidade enquanto infracção criminal».
Finalmente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2015, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 106, de 2 de Junho de 2015, uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:
“A omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a € 7.500 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105 n.º 1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efectivamente, recebido.”
Assim, para o cometimento do crime de abuso de confiança fiscal, quando se trate de prestações tributárias referentes a IVA, é necessário que fique demonstrado o efectivo recebimento do correspondente montante pelo sujeito passivo obrigado à sua entrega ao Estado até ao momento da entrega da respectiva declaração periódica à Autoridade Tributária.
Revertendo ao caso concreto, mesmo que se leiam os valores indicados no corpo do ponto de facto provado n.º8 como referentes a IVA liquidado e recebido dos clientes, com a já assinalada dificuldade de conjugação com o mapa que segue, temos que não constam da factualidade provada as datas do recebimento parcial ou total do IVA com referência ao momento estabelecido para a entrega de cada uma das sobreditas declarações e do imposto devido.
Ou seja, na decisão da matéria de facto, o tribunal recorrido não indica qual o montante de IVA referente às facturas emitidas em cada período de imposto em questão, que efectivamente tinha sido recebido pela arguida/sociedade em data que lhe permitisse cumprir a obrigação legal de entrega à administração fiscal, apesar de esse apuramento ser perfeitamente possível com base na prova reunida nos autos, nomeadamente a prova documental expressamente invocada na fundamentação da decisão de facto.
Ficaram assim por esclarecer, na factualidade provada, factos essenciais integradores dos ilícitos pelos quais os arguidos estavam acusados, o que constitui o vício decisório de insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, previsto da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P., que é de conhecimento oficioso.
Contudo, essa insuficiência não impõe o reenvio para novo julgamento, uma vez que os autos contêm todos os elementos necessários à explicitação ou concretização que importa proceder a fim de se alcançar a decisão justa da causa – cf. artigos 410.º, n.º 2, alínea a), e 426.º, n.º 1, do C.P.P.
É o que passaremos a analisar.

3.1.2.– Refere-se a motivação de facto aos mapas de fls. 202 a 211, elaborados pela testemunha E.M., instrutor do processo tributário, como respeitantes ao que foi efectivamente recebido e quando, por referência à data de entrega de cada declaração periódica.
Trata-se de mapas muito bem elaborados e de fácil leitura, que apuram o IVA comprovadamente recebido, por cada período de imposto.

Nesses mapas constam:
- o valor base de cada factura, o respectivo IVA e o valor total de factura;
- o valor de IVA recebido e, quanto a este, a discriminação do valor recebido até à data limite de entrega da declaração periódica e o recebido até 90 dias após o termo do prazo de entrega da declaração periódica.

Temos, assim:
- O valor de €13.369,80 é o do IVA efectivamente recebido, relativamente ao período de imposto de Março/2015.
Porém, desse valor, apenas €7.980,39 foi recebido até à data limite de entrega da declaração periódica.
- O valor de €15.166,82 é o IVA efectivamente recebido, relativamente ao período de imposto de Abril/2015.
Porém, desse valor, apenas €9.105,96 foi recebido até à data limite de entrega da declaração periódica.
- O valor de €11.102,88 é o do IVA efectivamente recebido, relativamente ao período de imposto de Agosto/2015.
Porém, desse valor, apenas €8.629,34 foi recebido até à data limite de entrega da declaração periódica.
- O valor de €10.434,44 é o IVA efectivamente recebido, relativamente ao período de imposto de Setembro/2015.
Porém, desse valor, apenas €9.903,15 foi recebido até à data limite de entrega da declaração periódica.
- Finalmente, o valor de €8.086,77 é o do IVA efectivamente recebido, relativamente ao período de imposto de Dezembro/2015.
Porém, apenas € 7.276,32 foi recebido até à data limite de entrega da declaração periódica (cfr. fls. 202 a 211 – mapas de apuramento do IVA comprovadamente recebido).

Por sua vez, relativamente às operações realizadas pela arguida/sociedade nos períodos de Março, Abril, Agosto, Setembro e Dezembro de 2015, conforme as declarações periódicas entregues à administração tributária, os valores de IVA apurado como devido ao Estado, resultante do diferencial entre o imposto liquidado a terceiros e o suportado e dedutível, são:
- €7.742,05, relativamente ao período do imposto de Março/2015;
- € 9.933,26, relativamente ao período do imposto de Abril/2015;
- €9.214,94, relativamente ao período do imposto de Agosto/2015;
- €11.034,22, relativamente ao período do imposto de Setembro/2015;
- €8.228, 37, relativamente ao período do imposto de Dezembro/2015.

Ora, como facilmente se vê, até a data limite de entrega da declaração periódica relativa a cada período, a O.,SA recebeu sempre dos clientes, com excepção do mês de Dezembro de 2015, mais do que €7.500,00.

Apenas no que toca ao período de Dezembro/2015, a arguida recebeu, até à data limite de entrega da declaração periódica, valor inferior: no caso, o montante de €7.276,32, pelo que, sendo o total de imposto recebido e não entregue, relativo a esse período de imposto, inferior a €7 500,00, a conduta dos arguidos, nessa parte, não é típica.

Não procede a pretensão dos recorrentes no sentido de que aos valores de IVA efectivamente recebido dos clientes havia que deduzir, ainda, o IVA dedutível.

No âmbito do IVA, fala-se de dedução de imposto relativamente ao imposto que o sujeito passivo tem a receber, nos termos do CIVA, ou seja, no âmbito do referido direito à dedução, os sujeitos passivos não têm de entregar à administração tributária uma prestação tributária que deduziram, mas, antes pelo contrário, apenas têm de fazer entrega do imposto na medida em que excede o IVA a cuja dedução têm direito.

Relativamente a cada período de imposto, o valor de imposto a entregar ao Estado é o resultado da operação de dedução do total do imposto a favor do sujeito passivo ao total do imposto a favor do Estado.

Para cada um dos períodos de imposto aqui em causa, o valor do imposto a entregar ao Estado resulta da diferença entre o imposto liquidado a terceiros e o suportado e dedutível, não havendo que considerar uma nova dedução, agora nos valores de imposto efectivamente recebidos pela arguida. Esta pretendida “segunda dedução” não tem lugar, sob pena de se traduzir num duplo benefício, uma vez que a quantia de IVA a favor do sujeito passivo já foi considerada para efeitos de cálculo do montante a pagar ao Estado. O IVA dedutível a favor do sujeito passivo não pode ser objecto de dedução com o IVA que recebeu dos clientes, mas sim com o imposto a favor do Estado.

Estamos, assim, em condições de suprir o apontado vício decisório da insuficiência da matéria de facto, com recurso aos elementos de prova, designadamente documental, nos quais a própria sentença recorrida expressamente se sustenta, precisando-se o ponto de facto n.º8 nos seguintes termos (que passam a ser os do seu teor):

8.– No exercício da actividade económica acima mencionada, em Março de 2015, Abril de 2015, Agosto de 2015, Setembro de 2015 e Dezembro de 2015, a primeira arguida procedeu a vendas e emitiu facturas, nas quais liquidou IVA, e relativamente às quais recebeu dos clientes, as seguintes quantias:
- O valor de €13.369,80 de IVA efectivamente recebido, relativamente ao período de imposto de Março/2015, de que a arguida recebeu €7.980,39 até à data limite de entrega da declaração periódica;
- O valor de €15.166,82 de IVA efectivamente recebido, relativamente ao período de imposto de Abril/2015, de que a arguida recebeu €9.105,96 até à data limite de entrega da declaração periódica;
- O valor de €11.102,88 de IVA efectivamente recebido, relativamente ao período de imposto de Agosto/2015, de que a arguida recebeu €8.629,34 até à data limite de entrega da declaração periódica;
- O valor de €10.434,44 de IVA efectivamente recebido, relativamente ao período de imposto de Setembro/2015, de que a arguida recebeu €9.903,15 até à data limite de entrega da declaração periódica.
- O valor de €8.086,77 de IVA efectivamente recebido, relativamente ao período de imposto de Dezembro/2015, de que a arguida recebeu apenas € 7.276,32 até à data limite de entrega da declaração periódica (cfr. fls. 202 a 211 – mapas de apuramento do IVA comprovadamente recebido).
Relativamente às operações realizadas pela arguida/sociedade nos períodos de Março, Abril, Agosto, Setembro e Dezembro de 2015, conforme as declarações periódicas entregues à administração tributária, os valores de IVA devido ao Estado, resultante do diferencial entre o imposto liquidado a terceiros e o suportado e dedutível, são:


Período de
 Imposto
IVA devido ao Estado e e não entregue
Termo do prazo
de pagamento
Declaração Periódica    
Data de envio                                                 

2015/03

7742,05€

11.05.2015

6.05.2015

2015/04

9.933,26€

11.06.2015

2.06.2015

2015/08

9.214,94€

12.10.2015

7.10.2015

2015/09

11.034,22€

10.11.2015

9.11.2015

2015/12

8.228,37€

10.02.2016

8.02.2016


Neste quadro, não podem subsistir dúvidas quanto ao preenchimento pelos arguidos do crime por que cada um foi condenado, de que apenas haverá que desconsiderar, pelas razões já apontadas, a conduta atinente ao período de imposto de Dezembro de 2015.

3.1.3.– Alegam os recorrentes que nas datas em que foram notificados, nos termos e para os efeitos da al. b), do n.º4, do artigo 105.º, do R.G.I.T., a O.,SA estava abrangida por planos de pagamentos a prestações deferidos pela Autoridade Tributária, do que extraem que nunca se poderá considerar que a condição objectiva de punibilidade se encontra preenchida.

Da factualidade provada apenas consta, no ponto de facto n.º 35, no que concerne ao alegado, que os arguidos encontram-se a pagar as quantias que deviam ter entregado ao Estado, cumprindo os planos acordados em sede de execuções fiscais.
Os recorrentes carecem de razão.

Como é sabido, a responsabilidade tributária pelo imposto devido e a responsabilidade penal tributária não podem ser confundidas.
A autonomia de ambas essas responsabilidades é salientada por Germano Marques da Silva (“Direito Penal Tributário”, Lisboa, 2009, p. 113) nestes termos:
«O facto gerador da dívida de imposto existe independentemente da prática de qualquer crime: a obrigação tributária é autónoma relativamente à responsabilidade penal pela prática de crime tributário e é geralmente proveniente da prática de facto ilícito, ainda que entre a dívida tributária e a responsabilidade pelo crime exista conexão»

A lei contempla a possibilidade de pedido de pagamento em prestações relativamente a dívida tributária de IVA, se estivermos já em sede de processo de execução fiscal e apenas desde que estejam preenchidos determinados requisitos.

O acordo válido no âmbito de execução fiscal em nada contende com a verificação do crime e a sua punibilidade.

Os recorrentes confundem realidades diferentes, como são a execução fiscal (que visa o pagamento da divida do imposto) e o crime fiscal que visa sancionar os comportamentos criminais, no caso traduzidos na falta de pagamento do mesmo imposto, com o atinente desvalor face ao bem jurídico que a incriminação visa tutelar, pondo em causa o sistema financeiro público do Estado, através do qual este obtém as receitas necessárias ao funcionamento do próprio Estado, propiciador de bem-estar a todos os seus cidadãos.

Mesmo que o crime estivesse extinto (por qualquer razão que não o pagamento), nem por isso a divida tributária estava extinta.

O pagamento em prestações não equivale a pagamento da dívida nem à extinção desta, mas a um pagamento que se vai realizando, no âmbito das execuções fiscais, pelo que, não estando a divida paga, teriam os arguidos (como responsáveis criminalmente) de ser notificados, como foram, nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, n.º 4, al. b), RGIT.

Conclui-se, assim, que o acordo de pagamento, entre o devedor da prestação tributária e a administração tributária, não obsta à verificação e funcionamento da condição de punibilidade da conduta, consagrado no artigo 105.º, n.º4 al. b) do RGIT, que no caso se mostra preenchida.

3.1.4.– Haverá que ponderar se por via da sanação nesta Relação do detectado vício decisório de insuficiência da matéria de facto provada se impõe alguma alteração no âmbito da determinação das penas.

A nosso ver, as penas de multa fixadas na decisão recorrida mostram-se ajustadas e proporcionadas, no seu quantum de dias e razões diárias, não se justificando, em função da alteração efectuada, ainda que com desconsideração da conduta atinente ao período de imposto de Dezembro/2015, fazer qualquer diminuição, já que as penas foram determinadas pelo tribunal recorrido com alguma benevolência.
***

III–Dispositivo.

Pelo exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Lisboa:
           
A)– Declaram verificado o vício decisório previsto no artigo 410.º, n.º2, al. b), do C.P.P. – insuficiência da matéria de facto provada -, mas decidem que tal insuficiência não impõe o reenvio para novo julgamento e, sanando tal vício, alteram o ponto de facto provado n.º8 nos termos sobreditos;
B)– Julgam improcedente o recurso.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça de cada um em 4 Ucs.



Lisboa, 17 de Abril de 2018

                   

(Jorge Gonçalves) – (o presente acórdão, integrado por trinta e duas páginas com os versos em branco, foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)
                            
(Maria José Machado)             
(Filomena Gil – Presidente da Secção)