Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2998/22.9T8LRS.L1-4
Relator: ALVES DUARTE
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
PROBABILIDADE SÉRIA DA VIOLAÇÃO DO DIREITO
BOMBEIRA VOLUNTÁRIA E PROFISSIONAL
FALTAS
SUSPENSÃO DE FUNÇÕES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I.As relações externas à jus-laboral impeditivas do trabalhador realizar a sua prestação para o empregador podem reflectir-se naquelas.

II.Assim, um bombeiro profissional que também é voluntário numa mesma instituição humanitária de bombeiros que for sancionado nesta qualidade com proibição de entrar nas suas instalações fica impossibilitado de prestar trabalho e incorre em faltas e o contrato de trabalho pode suspender-se pelo tempo correspondente a essa sanção ou até mesmo cessar (art.os 248.º e seguintes, 296.º, 297.º e 351.º e seguintes do CT).

III.Nesse caso, deve ser liminarmente indeferido o requerimento inicial do procedimento cautelar comum em que o trabalhador pediu que a associação humanitária de bombeiros fosse condenada a abster-se de o impedir de exercer a sua função laboral, pois não existe probabilidade séria da violação do seu direito (art.º 362.º do CPC).


  (Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa


I‒Relatório:


AAA requereu o presente procedimento cautelar comum contra BBB, pedindo, com inversão do contencioso, que fosse "condenada a abster-se de impedir que a autora esteja impedida de exercer a sua função laboral, devendo atribuir-lhe os serviços inerentes às funções para que foi contratada como bombeira, processando os salários e demais remunerações de trabalho, bem como condenada em multa por cada dia em que não o faça", alegando, resumidamente, que:
"1.Foi contratada pela requerida para exercer as funções de Bombeira em 04/06/2014, detendo a categoria de Bombeira de 3.ª; a sua prestação de trabalho rege-se pelo contrato de trabalho celebrado.
2.Exerce ainda as funções de Bombeira Voluntária nas instalações da ré, sendo que esta prestação está prevista no artigo 7.º do contrato de trabalho nos seguintes termos: 'O Segundo contraente (a aqui autora) pode realizar trabalho voluntário para além do seu horário de trabalho nos termos e condições habituais e em razão de necessidades urgentes'.
3.No dia 03/03/2022 foi surpreendida quando chegou às instalações da requerida para prestar o seu trabalho, com a ordem de serviço n.º 38/2022 a informar que lhe tinha sido aplicada pena de 90 dias de suspensão dos serviços de bombeira voluntária, que implicava o '(…) afastamento completo e temporário do arguido do corpo de bombeiros, designadamente na proibição de entrada no quartel durante todo o período do cumprimento da pena (…)'.
4.A pena de suspensão de 90 dias foi aplicada na sequência de procedimento disciplinar instaurado pela requerida, por aquela ter, alegadamente, incumprido com as suas obrigações enquanto bombeira voluntária.
5.A decisão mencionada em 3 apenas foi notificada à requerente no dia 16/03/2022.
6.A aplicação da pena de suspensão impede-a de prestar o seu trabalho enquanto Bombeira Profissional pois está impedida de entrar no local de trabalho.
7.A decisão disciplinar não pode interferir na possibilidade de a requerente cumprir o contrato de trabalho principalmente porque aquela decisão disciplinar não é consequência de quebra do contrato profissional. A pena a aplicar quanto às funções de Bombeira Voluntária restringe-se a essas funções e não pode extrapolar esse âmbito, impedindo-a de cumprir o contrato que vincula as partes.
8.Ocorre a violação de uma das garantias do trabalhador estabelecidas no artigo 129.º do Código de trabalho, especificamente da al. b) onde se estatui que: 'É proibido ao empregador: Obstar injustificadamente à prestação efectiva de trabalho'.
9.Nada impede que o bombeiro assuma simultaneamente a qualidade de bombeiro profissional e de bombeiro voluntário, e que, atenta a natureza ou essência jurídica dos respectivos estatutos, derivem consequências diversas no âmbito da relação com a requerida, sendo certo que a natureza do vínculo que liga o bombeiro voluntário à sua corporação não é coincidente com a que caracteriza a sua relação de trabalho subordinado à mesma corporação.
10.Há que ter em conta, também, sendo recusado o pagamento de salário durante a suspensão da requerente, está a mesma a ser gravemente lesada e em risco de não ter meios de subsistência no próximo mês.
11.Para além de que tem à sua guarda um menor com 15 anos que será igualmente afectado por esta decisão da requerida.
12.A afectação do direito ao trabalho e remuneração da requerente, em face a uma função que em nada está ligada àquela, constitui violação dos direitos constitucionalmente consagrados ao trabalho em termos geradores de danos de impossível reconstituição, geradores de um efectivo periculum in mora.

A Mm.ª Juiz proferiu despacho pelo qual, por manifesta improcedência, indeferiu liminarmente o requerimento inicial.

Inconformada, a requerente interpôs recurso, pedindo que o despacho recorrido seja revogado, ordenando-se o prosseguimento dos autos ou, em alternativa, proferido despacho de aperfeiçoamento, culminando a alegação com as seguintes conclusões:
"a)-A recorrente é trabalhadora da Ré desde 04/06/2014, exercendo funções de bombeira de 3.ª com contrato de trabalho a regular essa relação, exercendo também actividade de bombeira voluntária para a Ré.
b)-No âmbito do trabalho de voluntariado foi aplicada à recorrente uma sanção de suspensão com a duração de 3 meses com a proibição de entrar no estabelecimento da Ré (onde presta a actividade profissional).
c)-Na sequência, foi a Recorrente impedida de entrar no seu local de trabalho e de exercer a sua actividade profissional.
d)-Inconformada, interpôs a providência cautelar em crise alegando que a sanção administrativa aplicada no âmbito do trabalho enquanto bombeira voluntária não poderia interferir na prestação do seu trabalho profissional.
e)-Alegou ainda que esse impedimento viola o seu direito à efectiva prestação do trabalho, o seu direito ao vencimento, bem como poria em causa a sua subsistência e do filho menor que tem à sua guarda.
f)-Decidiu o tribunal a quo que não foi alegado pela A. que, efectivamente, não iria receber o seu vencimento, afirmando que não resulta da ordem de serviço que aplica a sanção de suspensão à A. a conclusão de que não haveria o processamento do pagamento.
g)-Conclui também a douta decisão que a A. alegou que se encontra impedida de entrar no local de trabalho, mas que não concretizou essa alegação ('se se apresentou ao serviço e, na afirmativa, quando, se foi efectivamente impedida de iniciar funções e por quem').
h)-Desta forma, encontrava-se em falta a probabilidade séria da existência do direito, ainda que se admita nesse despacho que as alegações realizadas pela A. são passíveis de prova e, caso assim fosse feito, 'se admite estar minimamente alegada a aparência de um direito'.
i)-Afirma-se ainda no despacho liminar que não se mostra alegada qualquer lesão grave e de difícil reparação.
j)-Na sequência, decide que a A. alega uma hipotética hipótese de não lhe ser pago o salário e que o facto de a A. ter alegado que isso poria em causa a sua subsistência e a do seu filho seria uma conclusão e não uma alegação do facto.
k)-Considerou ainda que não houve concretização sobre o facto de a A. não ter meios de subsistência ao não especificar se aquela tem outros rendimentos, se tem ajuda do ex-marido ou se tem algum fundo de reserva monetário.
l)-Finalizando, ainda, ao decidir que quanto à obstaculização à prestação do trabalho, não foi alegado qualquer facto que comprove que essa violação seria geradora de danos de impossível ou difícil reconstituição.
m)-Ora, quanto à hipotética situação de a A. receber o seu vencimento, é certo que a R. não a informou se haverá ou não o processamento do salário, mas as suspensões (tanto em direito administrativo como em direito privado) têm como resultado o não pagamento do salário, bem como a providência cautelar tem como função obter a tutela provisória de um direito relativamente ao qual exista um receio fundado de que alguém cause lesão grave e de reparação difícil, pelo que esse receio existe e é o mais provável.
n)-Quanto à falta de concretização quanto ao impedimento da entrada no local de trabalho, a ser assim considerado, no máximo, daria lugar a um despacho de aperfeiçoamento por insuficiência ou imprecisão na alegação, e não a um despacho de indeferimento.
o)-Quanto à falta de alegação quanto a uma lesão grave e de difícil reparação, essa mesma foi realizada quando a A. afirma que não tem meios para subsistir um mês sem vencimento, quanto mais considerando que tem um filho menor por alimentar e a suspensão que lhe foi aplicada tem a duração de 3 meses.
p)-Poderá haver, novamente, falta de concretização desse facto (o que é também reconhecido pelo douto despacho em crise) e haveria lugar, igualmente, a despacho de aperfeiçoamento e não de indeferimento liminar.
q)-Por último, quanto à obstaculização à prestação do trabalho, ainda que essa violação não ponha em causa esse direito em concreto, o facto é que a violação desse direito e a violação do direito ao vencimento da A., têm como consequência a impossibilidade de subsistência da autora e do seu filho e este direito, bem como esta lesão, são de difícil ou impossível reconstituição.
r)-Considerando que os factos essenciais foram alegados e que apenas poderá faltar a concretização ou exposição dos mesmos, mal esteve o tribunal à quo ao não proferir despacho de aperfeiçoamento, indo de encontro com o poder/dever de suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto, violando o dispositivo no artigo 508.º, n.º 1 a. b), n.os 2 e 3 do C.P.C., bem como o disposto no artigo 266.º n.º do mesmo diploma".

Admitido o recurso na 1.ª Instância, a requerida foi citada para os seus termos e os da causa, mas não contra-alegou, pelo que foram os autos remetidos a esta Relação de Lisboa e, nesta, foi com vista ao Ministério Público, tendo nessa sequência o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.

Nenhuma das partes respondeu ao parecer do Ministério Público.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar o mérito do recurso, cujo objecto, como pacificamente se considera, é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, sem prejuízo de se atender às questões que o tribunal conhece ex officio.[1] Assim, a questão que se coloca consiste em apurar se:
foram alegados no requerimento inicial os factos essenciais para, provados, levar à procedência do procedimento requerido, podendo haver apenas falta de concretização que deveria ter determinado o seu aperfeiçoamento.
***

II‒Fundamentos.

1.O despacho recorrido.
"Cumpre apreciar liminarmente, nos termos do art.º 226.º, n.º 4, al. b), do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigos 1.º, n.º 2, al. a), e 32.º do Código de Processo do Trabalho.

Os procedimentos cautelares constituem meios processuais de que o titular de um determinado direito pode lançar mão com o fim de acautelar o efeito útil da acção e a efectividade do direito ameaçado. Com efeito, tais providências destinam-se a obter a tutela provisória de um direito relativamente ao qual exista um receio fundado de que alguém cause lesão grave e de reparação difícil (cfr. art.os 2.º, in  fine e 362.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).

O requerente deve recorrer aos procedimentos cautelares comuns, salvo quando se pretenda acautelar o risco de lesão que se encontre especialmente previsto por alguma das providências tipificadas nos art.os 377.º a 409.º do Código de Processo Civil e nos art.os 34.º e seguintes do Código de Processo do Trabalho.

Requisitos essenciais ao decretamento de qualquer procedimento cautelar são a probabilidade séria da existência do direito (fumus boni juris) e o fundado receio da sua lesão (periculum in mora).

Relativamente ao primeiro dos apontados requisitos, a lei apenas exige a aparência da existência do direito invocado, ou seja, a probabilidade da sua existência. Basta, portanto, a formulação de um juízo de verosimilhança sobre os factos em que se funda (ABRANTES GERALDES, in «Temas da Reforma do Processo Civil», IV Volume, Almedina, 2.ª Edição, pág. 199). E isto porque o conhecimento exaustivo do direito invocado tornaria o processo tão moroso como a acção principal, assim se frustrando o objectivo pretendido pelo requerente. Assim, apenas é exigido o que a doutrina designa por summaria cognitio e que se traduz na forma abreviada de produção e julgamento da prova relativa à existência do direito (ANTUNES VARELA e outros, «Manual de Processo Civil», Almedina, 2.ª Edição, pág. 22 e seguintes e ABRANTES GERALDES, ob. cit., III Volume, pág. 218 e seguintes).

Já quanto ao segundo requisito a lei determina que o receio seja fundado, isto é, apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo (ABRANTES GERALDES, ob. cit., III Volume, Almedina, 2.ª Edição, pág. 87).

O critério de avaliação deste requisito não pode assentar em simples conjecturas ou em juízos puramente subjectivos do juiz ou do credor, mas antes basear-se em factos concretos que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata, como factor potenciador da eficácia da acção declarativa ou executiva (cfr. autor e obra citada, pág. 187).

Por outro lado, a lesão que se receia tem de ser não só grave, mas também de difícil reparação.

Daí que não constitua razão bastante para o decretamento de uma providência cautelar a prova de factos que consubstanciem uma mera perturbação da existência ou do exercício do direito em apreço. A temida violação do direito deverá ser de modo a pôr em causa a existência do direito ou o seu exercício, exigindo-se ainda que a lesão seja de difícil reparação.

Decorre, assim, de tais requisitos que as providências cautelares não se propõem dar realização imediata ao direito substancial, mas antes assegurar a eficácia da providência futura destinada a essa realização (Acórdão da Relação do Porto de 19/10/82, in CJ, 4.º, 246).

Ainda que se verifiquem todos os requisitos para o decretamento da providência, a mesma pode ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar (art.º 368.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
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Feitas estas considerações, cumpre então apreciar os fundamentos invocados pela requerente, supra sumariados.

Comecemos por analisar o requisito fumus bonus juris, ou seja, a probabilidade séria da existência do direito.

Alega a requerente que com a decisão proferida no âmbito de procedimento disciplinar, que determinou a aplicação da pena de 90 dias de suspensão dos serviços de bombeira voluntária com afastamento completo e temporário do corpo de bombeiros e implica a proibição de entrada no quartel durante todo o período do cumprimento da pena, foram lesados os direitos emergentes do contrato de trabalho que a vincula à aqui requerida para o desempenho das funções de bombeira não voluntária, em concreto, o direito ao trabalho e à sua remuneração.

Em primeiro lugar diga-se desde já que a requerente não alega que tenha sido omitido o pagamento do salário, limitando-se a aventar a hipótese de vir a ser recusado esse pagamento (cfr. art.º 17.º do requerimento inicial). Ora, não resultando dos factos alegados (e não das conclusões ou situações hipotéticas aventadas) que a decisão de suspensão do serviço de bombeira voluntária por 90 dias implique a perda de remuneração devida no âmbito do contrato de trabalho que vincula as partes, não se pode inferir que tal venha a suceder.

Aliás, lida a mencionada decisão, junta aos autos a fls. 7 verso, verifica-se que a decisão em causa foi adoptada pelo Comandante da requerida no âmbito de processo disciplinar instaurado à requerente ao abrigo da Portaria n.º 703/2008 de 30 de Julho (que estabelece o regime disciplinar aplicável aos bombeiros voluntários), e a mesma nada menciona a respeito do pagamento de remuneração, seja a emergente de contrato de trabalho seja a emergente de serviço de bombeira voluntária.

Portanto, estamos perante uma alegação meramente especulativa e conclusiva e que, por isso, não é suficiente para caracterizar a aparência do direito, primeiro pressuposto de que depende o decretamento de uma providência cautelar.

A requerente alega ainda que se encontra impedida de desempenhar as suas funções emergentes do contrato de trabalho em face da proibição de aceder ao local de trabalho que emerge da mencionada decisão disciplinar, embora sem concretizar o sucedido (se se apresentou ao serviço e, na afirmativa, quando, se foi efectivamente impedida de iniciar funções e por quem).

No entanto, caso se provasse que a requerida está impedida de desempenhar as funções emergentes do contrato de trabalho celebrado com a requerida (e não apenas as funções de bombeira voluntária), pode decorrer desse facto a eventual violação do disposto no art.º 129.º, al. b), do Código do Trabalho, pelo que se admite estar minimamente alegada a aparência de um direito.

Porém, ainda que assim seja, não se mostra alegada qualquer lesão grave e de difícil reparação (periculum in mora).

Com efeito, para justificar o fundado receio de lesão dificilmente reparável a requerente apenas alega o seguinte: «(…) sendo recusado o pagamento de salário durante a suspensão da A., está a A. a ser gravemente lesada e em risco de não ter meios de subsistência no próximo mês.» e «(…) a A. tem à sua guarda um menor com 15 anos que será igualmente afectado por esta decisão da R.». Face a esta alegação, conclui estar perante danos de impossível reconstituição, geradores de um efectivo periculum in mora.

Portanto, a requerente centra a alegação do periculum in mora justificativo da necessidade do presente procedimento cautelar na questão da falta de pagamento do salário que, como se disse supra, se mostra alegada de forma meramente especulativa. Apenas é levantada uma situação hipotética, de não lhe vir a ser pago o salário emergente do contrato de trabalho durante o período de cumprimento da suspensão (pena essa que, aliás, a requerente também não esclarece se já se encontra em execução e desde quando). Ainda que assim não fosse, a requerente não alega quaisquer factos que permitam alcançar a conclusão a que chega, a saber, que está em risco de não ter meios de subsistência no próximo mês e que o menor que tem à sua guarda será afectado por esta decisão. A requerente não alega quaisquer factos que concretizem essas conclusões: se tem despesas e quais, se não tem outros meios de subsistência ou poupanças, se o pai do menor contribuiu ou não para o sustento do menor, qual a composição do seu agregado familiar, etc.). Também não alega factos que permitam concluir estar perante uma lesão de impossível ou difícil reconstituição.

No que concerne à obstaculização à prestação do trabalho, a requerente não invoca qualquer facto que permita considerar que a violação desse direito é geradora de danos de impossível ou difícil reconstituição, nem se vislumbra que assim seja atenta a natureza do direito violado. Os potenciais danos que a violação do dever de ocupação efectiva pode gerar são susceptíveis de ressarcimento em sede própria, desde que reunidos os pressupostos legais para o efeito.

Deste modo, ainda que se considerasse suficientemente alegado circunstancialismo fáctico que permitisse considerar verificada a probabilidade séria de existência do direito, impunha-se concluir, mesmo com a prova integral dos factos alegados (excluídas as conclusões ou especulações), ser o alegado insuficiente para que considerar verificado o requisito do periculum in mora.
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Nesta medida, sendo manifesta a improcedência do presente procedimento cautelar, por falta dos requisitos de que depende, e considerando que nestas formas processuais tem lugar a prolação de despacho liminar, cumpre indeferir liminarmente o requerimento inicial (art.os 32.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho e 226.º, n.º 4, al. b) do Código de Processo Civil).
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III.DECISÃO
Por todo o exposto, por manifesta improcedência do presente procedimento cautelar, ao abrigo das disposições conjugadas dos art.os 226.º, n.º 4, al. b), do Código de Processo Civil e 32.º do Código de Processo do Trabalho, decide-se indeferir liminarmente o requerimento inicial".

2.O direito.

A apelante configurou a sua pretensão alegando que mantendo um contrato de trabalho com a apelada para exercer as funções de bombeira e, simultaneamente, exerce para esta mesma e nas mesmas instalações, as funções de bombeira voluntária e que no exercício de funções nesta qualidade lhe aplicou a sanção de 90 dias de suspensão dos serviços de bombeira voluntária, o que a impede de entrar nas instalações para exercer as funções profissionais.

Como vimos atrás, a Mm.ª Juiz indeferiu liminarmente o requerimento inicial convocando, essencialmente, a seguinte ordem de razões:
a decisão em causa foi adoptada pelo Comandante da requerida no âmbito de processo disciplinar instaurado à requerente ao abrigo da Portaria n.º 703/2008 de 30 de Julho (regime disciplinar aplicável aos bombeiros voluntários) e nada menciona a respeito do pagamento de remuneração, seja a emergente de contrato de trabalho, seja a emergente de serviço de bombeira voluntária;
a requerente não alegou que tivesse sido omitido o pagamento do salário, limitando-se a aventar a hipótese de vir a ser recusado esse pagamento (cfr. art.º 17.º do requerimento inicial);
e também não alegou que a decisão de suspensão do serviço de bombeira voluntária por 90 dias implicasse a perda de remuneração devida no âmbito do contrato de trabalho, pelo que se não pode inferir que tal venha a suceder (é meramente especulativo e conclusivo, insuficiente para caracterizar a aparência do direito);
mesmo que se provasse que está impedida de desempenhar as funções emergentes do contrato de trabalho, sendo uma eventual violação do disposto no art.º 129.º, al. b), do Código do Trabalho e a alegação da aparência de um direito, ainda assim não alegou qualquer lesão grave e de difícil reparação (periculum in mora); isto porque não alegou quaisquer factos que permitissem concluir que estivesse em risco de não ter meios de subsistência no próximo mês e que o menor que tem à sua guarda seria afectado por esta decisão (se tem despesas e quais, se não tem outros meios de subsistência ou poupanças, se o pai do menor contribuiu ou não para o sustento do menor, qual a composição do seu agregado familiar, etc.).

A questão sub iudicio prende-se com o reflexo de relações externas à jus-laboral impeditivas do trabalhador realizar a sua prestação, a qual, diga-se, não é nova e já se tem evidenciado noutros contextos, como por exemplo da inibição de conduzir veículos automóveis aplicada ao trabalhador motorista ou na prisão preventiva do trabalhador em geral.

Assim, não podendo a apelante entrar nas instalações da apelada (por virtude da punição na relação paralela) admite-se que também não possa realizar cabalmente a prestação a que se obrigou para com ela na relação laboral; todavia, essa questão não pode ser imputada na relação laboral, pois que nessa a apelante não sofreu qualquer sanção que a impedisse de prestar a actividade que contratou com a apelada (note-se que o objecto das duas relações jurídicas nem sequer coincidem, seguramente no tempo mas também em pelo menos alguns dos seus efeitos. Por exemplo: durante o horário laboral não podia a apelante prestar trabalho voluntário, naquele caso tem direito a retribuição neste não, o tipo de sanções disciplinares aplicáveis eram naturalmente diferentes e por aí fora); da mesma forma que nos exemplos acima referidos o trabalhador motorista inibido de conduzir veículos automóveis ou um qualquer trabalhador preso preventivamente não poderão prestar o seu trabalho independentemente da vontade da entidade empregadora.

Quer isto dizer que a questão sub iudicio (que é laboral) deverá ser equacionada à luz do regime das faltas, com eventual efeitos na suspensão ou até mesmo na cessação do contrato de trabalho,[2] mas o que não pode é determinar-se, ainda que cautelarmente, que um facto alheio às partes do contrato de trabalho imponha uma conduta a um terceiro que é parte numa outra relação relativamente à qual carece de qualquer legitimidade para intervir (é certo que essas qualidades coincidem na apelada, naquele caso enquanto instituição de solidariedade a se e neste como entidade empregadora da apelante, mas isso é meramente circunstancial e poderia não ser o caso e serem entidades totalmente diferentes. Dir-se-á que em tese essa coincidência eventualmente até poderia relevar caso a apelante tivesse configurado o exercício da acção disciplinar por parte da instituição de solidariedade a se para abusivamente produzir efeitos na relação de trabalho, mas não é disso que aqui se trata).

Em suma, a apelada (enquanto empregadora) não praticou qualquer acto que se tenha traduzido numa violação, sequer hipotética ou até potencial, dos direitos da apelante (enquanto sua trabalhadora); tanto assim é que a apelante sequer alegou que a apelada deixou de lhe prestar a retribuição ou tampouco que haja o risco de que tal possa vir a ocorrer. Mesmo quanto à ocupação efectiva, diga-se, sendo certo que se fosse esse o caso então valeria a proposição do despacho apelado: "a requerente não invoca qualquer facto que permita considerar que a violação desse direito é geradora de danos de impossível ou difícil reconstituição, nem se vislumbra que assim seja atenta a natureza do direito violado. Os potenciais danos que a violação do dever de ocupação efectiva pode gerar são susceptíveis de ressarcimento em sede própria, desde que reunidos os pressupostos legais para o efeito. Deste modo, ainda que se considerasse suficientemente alegado circunstancialismo fáctico que permitisse considerar verificada a probabilidade séria de existência do direito, impunha-se concluir, mesmo com a prova integral dos factos alegados (excluídas as conclusões ou especulações), ser o alegado insuficiente para que considerar verificado o requisito do periculum in mora".

Deste modo, como evidenciou o despacho apelado, não tendo a apelante invocado qualquer lesão ou perigo de lesão dos seus direitos,[3] não era caso de "apenas falta de concretização que deveria ter determinado o seu aperfeiçoamento", como pretende a apelante, mas, outrossim, de uma ab initio inevitável falência da sua pretensão e por isso também do consequente indeferimento do requerimento inicial em que a veiculou (art.os 32.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho e 226.º, n.º 4, alínea b) do Código de Processo Civil); é que, como já se viu decidido por esta Relação de Lisboa, em acórdão prolatado a 07-11-2019, no processo n.º 14013/17.0T8LSB.L1-6, publicado em http://www.dgsi.pt: "I- O princípio da cooperação deve ser conjugado com os princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes, que não comporta o suprimento, por iniciativa do juiz, da omissão de indicação do pedido ou de alegação de factos estruturantes da causa de pedir. II-O convite ao aperfeiçoamento de articulados previsto no artigo 590.º, n.os 2, alínea b), 3 e 4, do CPC, não compreende o suprimento da falta de indicação do pedido ou de omissões de alegação de um núcleo de factos essenciais e estruturantes da causa de pedir. III-Tal convite, destina-se somente a suprir irregularidades dos articulados, designadamente quando careça de requisitos legais, imperfeições ou imprecisões na exposição da matéria de facto alegada. IV-As deficiências passíveis de suprimento através do convite têm de ser estritamente formais ou de natureza secundária, sob pena de se reabrir a possibilidade de reformulação substancial da própria pretensão ou da impugnação e dos termos em que assentam (artigos 590.º, n.º 6 e 265.º, do CPC)"; tudo razões para negar a apelação e confirmar o despacho apelado.
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III–Decisão.
Termos em que se acorda negar provimento à apelação e confirmar o despacho recorrido.
Custas pela apelante (art.º 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela I-B a ele anexa).
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Lisboa, 14-09-2022.



(António José Alves Duarte)
(Maria José Costa Pinto)
(Manuela Bento Fialho)



[1]Art.º 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. A este propósito, Abrantes Geraldes, Recursos no Processo do Trabalho, Novo Regime, 2010, Almedina, páginas 64 e seguinte. 
[2]Art.os 248.º e seguintes, 296.º e 297.º e 351.º e seguintes do Código do Trabalho; vd., inter alia, o acórdão desta Relação de Lisboa, de 12-09-2018, no processo n.º 11462/17.7T8LSB.L1-4, publicado em http://www.dgsi.pt: "I - Não constituem faltas injustificadas as ausências ao serviço do trabalhador, desde o dia 10/5/2016 até 31/12/2016, durante 161 dias úteis de trabalho, que foram dadas por força da medida de suspensão preventiva de funções que lhe foi aplicada pelo juiz de instrução no final do 1.º interrogatório de arguido, que teve lugar no âmbito do inquérito crime que foi deduzido contra ele e contra um seu colega de trabalho e que, já tendo acusação formulada pelo MP, ainda não foi julgado por sentença crime transitada em julgado. II - Essas faltas encontram-se legalmente cobertas e justificadas pelo disposto na parte final da alínea d) do número 2 do artigo 249.º do CT/2009"; ou o da Relação de Évora, de 16-01-2014, no processo n.º 89/13.2TTEVR.E1, também ali publicado: " I - Um trabalhador que exerce as funções de Estafeta e necessita diariamente de conduzir veículos motorizados, sendo-lhe aplicada a pena acessória de inibição de conduzir por quatro meses, fica impossibilitado de cumprir o seu principal dever no âmbito da relação laboral: a obrigação de prestar trabalho. (…) II - (…) estando impossibilitado de executar a sua actividade profissional, tal situação não deve ser considerada falta injustificada, de harmonia com o disposto no n.º 1 do art.º 248.º do CT. III - A impossibilidade de prestação do trabalho decorrente da aplicação da pena acessória de inibição de conduzir pela prática de um crime de condução sob influência de álcool, constitui uma infracção disciplinar, por ter sido assumido um comportamento exclusivamente imputável ao trabalhador que viola o seu principal dever enquanto trabalhador".
[3]Art.os 32.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho e 362.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.