Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
204/20.0YRLSB-9
Relator: MARIA DO CARMO FERREIRA
Descritores: RECONHECIMENTO DE SENTENÇA PENAL
TRANSFERÊNCIA DE CONDENADO
REINO UNIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: REVISÃO SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: DEFERIDA
Sumário: I- Não obstante a saída do Reino Unido da União Europeia, o Acordo de Saída prevê um período de transição que se estende até 31.12.2020 e durante o qual o direito da União se continuará a aplicar ao Reino Unido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os Juízes da 9ª.Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO.
O Ex.m.º Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação, veio requerer o reconhecimento de uma sentença penal proferida pelo Tribunal da Coroa de Norwich, no Reino Unido, de 4/10/2018 a qual se tornou definitiva em 4/10/2018 que condenou AA, nascido a ………., filho de BB, natural da Guiné-Bissau, de nacionalidade portuguesa, titular do passaporte N101875, com última residência conhecida em Estrada Militar nº 136-B Traseira, 2700 Amadora, Portugal, e área da jurisdição deste Tribunal da Relação, com vista à execução em Portugal da pena em que se mostra condenado, com os seguintes fundamentos:
1º O Tribunal da Relação de Lisboa é o competente uma vez que a residência conhecida do requerido se situa na Amadora, área da sua competência territorial.
2º Por sentença do Tribunal da Coroa de Norwich, no Reino Unido, de 4/10/2018 a qual se tornou definitiva em 4/10/2018 e com a referência T20177244, foi o requerido condenado na pena de 6575 dias de prisão.
3º Esta pena foi-lhe imposta em resultado da prática de três crimes qua as autoridades do Reino Unido integram como crimes de ofensas corporais graves qualificadas, contrários à secção 18 da Lei relativa a ofensas à dignidade do ser humano (offences against the person Act) de 1861.
4º Tudo nos termos que constam da certidão, registo do julgamento, resumo do processo e notas sobre a sentença transmitida a este Tribunal para reconhecimento de sentença e execução em conformidade com as decisões – quadro 2008/909/JAI do Conselho, 2008/947/JAI do Conselho, ambas de 27/11, alteradas pela decisão – quadro 2009/299/JAI do Conselho, transposta para o direito interno português pela Lei 158/2015 de 17/9, na sua actual redacção.
5º A certidão, devidamente transmitida com tradução em língua portuguesa, nos termos do art.º 4º nº 1 a) e 5 nº 1 e 2 da decisão quadro 2008/909/JAI e art.º 16 nº 1 da citada Lei 158/2015 foi emitida em conformidade com o formulário cujo modelo constitui o Anexo R deste diploma, encontrando-se devidamente preenchida. 
6º Igualmente se mostra devidamente traduzida para português a restante documentação enviada e já mencionada.
7º O crime de ofensa corporal grave qualificado pelo qual o requerido foi condenado (3 crimes) vem incluído pela autoridade de emissão na lista de infracções constante da parte 2 do campo h) do formulário da certidão e corresponde à infracção a que se refere a al. n) do nº 1 do art.º 3º da Lei 158/2015, na sua actual redacção, aplicável ao reconhecimento e execução de sentença em Portugal, não se mostrando, por isso, necessário a verificação da dupla recriminação.
8º O requerido esteve presente no julgamento que levou à decisão de condenação.
9º Encontra-se nesta altura no estado de emissão a cumprir pena na qual foi condenado, cujo termo se prevê venha a ocorrer em 28/10/2035, pelo que o tempo que lhe resta cumprir é superior a 6 meses de prisão (art.º 17 nº 1 h) da Lei 158/2015).
10º No que respeita à liberdade condicional ou antecipada as autoridades do reino Unido referem que ao abrigo da sua legislação a pessoa sentenciada tem o direito de ser considerada para liberdade condicional após ter cumprido metade da pena.   
11º Por decisão do secretário de Estado do Home Office (Ministério da Administração Interna) do Reino Unido, datada de 3 de Dezembro de 2019, foi decretada a expulsão do requerido através de ordem para sair do Reino Unido e proibindo-o de aí entrar enquanto a ordem estiver em vigor.
12º O requerido tem a nacionalidade portuguesa e na declaração sobre a sua transferência para Portugal declarou deseja-la para beneficiar da proximidade da sua família.
13º  O estado de emissão fez constar da certidão que o estado de execução (Portugal) é o estado da nacionalidade do condenado e para onde será conduzido uma vez cumprida a pena na sequência de uma medida de expulsão ou condução à fronteira tal como a existente (letra g).
14º Circunstância que dispensaria o consentimento da pessoa condenada mesmo que não tivesse existido (ver artigo 6 nº 2 da decisão quadro 2008/909/JAI) e transferir o art.º 10 nº 5 al. b) da Lei 158/2015 na sua actual redacção).
15º Não se afigura existir qualquer motivo de recusa de reconhecimento da sentença e da execução da condenação prevista no art.º 17 da já citada Lei 158/2015, nem de adiamento do reconhecimento nos termos do art.º 19 do mesmo diploma, devendo a sentença ser reconhecida.
Nestes termos requer-se que D. e A. e após ser designado defensor ao arguido/requerido seja proferida decisão de reconhecimento da sentença para efeitos de cumprimento da parte restante da pena em Portugal (artigos 16, 16-A e 20 da Lei 158/2015).
Mais se requer também seja informada a autoridade do estado de emissão (art.º 20 c)) e ainda que, oportunamente, seja ordenada a transmissão ao juízo local criminal de Lisboa para execução e onde deverá providenciar-se pela transferência do condenado para Portugal (artigos 13 nº 2 e 23 da já citada Lei).
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Nomeado Defensor ao condenado e feita a notificação a que se refere o artigo 16-A, nº. 1 e 2 da Lei 158/2015 de 17.9 , não foi deduzida oposição.
II. MOTIVAÇÃO
Em causa está o reconhecimento de sentença emitida no Reino Unido, País recentemente saído da U.E.
Com efeito, no anexo 3 da Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, de 14/4/2019 pode ler-se:
Embora a saída do Reino Unido implique mudanças significativas na forma como os Estados-Membros da UE-27 cooperam com este país, isso não implica necessariamente que seja impossível prosseguir a cooperação policial e judiciária. A cooperação em matéria policial e judiciária com o Reino Unido passará a assentar em enquadramentos jurídicos e mecanismos de cooperação alternativos, baseados no direito internacional e na legislação nacional.
Com o objetivo de proporcionar um elevado nível de segurança a todos os cidadãos, o plano de contingência da UE centrou-se, assim, na identificação de soluções de recurso fiáveis, na preparação do regresso a enquadramentos jurídicos e a mecanismos de cooperação alternativos, assim como nos preparativos operacionais necessários a nível nacional. Embora a cooperação entre os Estados-Membros da UE-27 e o Reino Unido passe a ser diferente, o objetivo do plano de contingência é garantir que a cooperação policial judiciária pode prosseguir com o Reino Unido enquanto país terceiro, respeitando plenamente o direito da União e prevenindo as perturbações mais graves. Além disso, a saída do Reino Unido não implicará qualquer alteração na cooperação policial e judiciária entre os restantes 27 Estados-Membros6. A União continuará a construir uma União da Segurança, genuína e eficaz, em que todos os membros cooperam estreitamente. A União dispõe de instrumentos já bem consolidados que permitem às autoridades nacionais trocar informações ou partilhar informações confidenciais, detetar suspeitos (perseguindo-os e punindo-os no âmbito do sistema de justiça penal), proteger os cidadãos europeus na Internet e gerir eficazmente as fronteiras da UE. Do mesmo modo, os Estados-Membros da UE-27 continuarão a cooperar estreitamente e a trocar informações através da Europol para combater o terrorismo, o cibercrime e outras formas graves e organizadas de criminalidade. Além disso, a futura implantação de tecnologias de gestão das fronteiras, como o Sistema de Entrada/Saída e o Sistema Europeu de Informação e Autorização de Viagem contribuirá para garantir um elevado nível de segurança em todo o espaço Schengen. A maior interoperabilidade dos sistemas proporcionará às autoridades policiais informações mais fiáveis e completas. Os Estados-Membros da UE-27 poderão beneficiar igualmente do conjunto de acordos internacionais já celebrados pela União. Este enquadramento da cooperação policial e judiciária em matéria penal continuará a proporcionar um elevado nível de segurança às pessoas que vivem, trabalham ou viajam para a EU.
Ainda, a este propósito, in Portal Diplomático on line, obtemos a informação de que, não obstante a saída do Reino Unido da União Europeia, o Acordo de Saída prevê um período de transição que se estende até 31.12.2020 e durante o qual o direito da União se continuará a aplicar ao Reino Unido.
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Assim, cumpre analisar e decidir.
A força executiva, no nosso País, de uma sentença penal proferida num outro país da União europeia depende da prévia revisão e confirmação dos seus efeitos penais, tarefa que incumbe à Relação do distrito judicial onde o arguido teve a última morada (artº. 13-1 da Lei 158/2015 e artigo 235 do C.P.P.).
De acordo com o disposto no art.º 237º do C.P.P., para confirmação de sentença penal estrangeira é necessário que se verifiquem as seguintes condições:
Artigo 237.º
Requisitos da confirmação
1 - Para confirmação de sentença penal estrangeira é necessário que se verifiquem as condições seguintes:
a) Que, por lei, tratado ou convenção, a sentença possa ter força executiva em território português;
b) Que o facto que motivou a condenação seja também punível pela lei portuguesa;
c) Que a sentença não tenha aplicado pena ou medida de segurança proibida pela lei portuguesa;
d) Que o arguido tenha sido assistido por defensor e, quando ignorasse a língua usada no processo, por intérprete;
e) Que, salvo tratado ou convenção em contrário, a sentença não respeite a crime qualificável, segundo a lei portuguesa ou a do país em que foi proferida a sentença, de crime contra a segurança do Estado.
2 - Valem correspondentemente para confirmação de sentença penal estrangeira, na parte aplicável, os requisitos de que a lei do processo civil faz depender a confirmação da sentença civil estrangeira.
3 - Se a sentença penal estrangeira tiver aplicado pena que a lei portuguesa não prevê ou pena que a lei portuguesa prevê, mas em medida superior ao máximo legal admissível, a sentença é confirmada, mas a pena aplicada converte-se naquela que ao caso coubesse segundo a lei portuguesa ou reduz-se até ao limite adequado. Não obsta, porém, à confirmação a aplicação pela sentença estrangeira de pena em limite inferior ao mínimo admissível pela lei portuguesa.
Por sua vez, o Código de Processo Civil estabelece o seguinte, no seu art.º 980.º e sob a epígrafe «requisitos necessários para a confirmação»:
Para que a sentença seja confirmada é necessário:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Ora, no caso:
Para além da verificação das condições acima descritas, não existem causas de recusa de reconhecimento da sentença e da execução da condenação previstos no artigo 17 e 36 da Lei nº. 158/2015. [mormente atenta a redacção do disposto no artigo 36 nº. 1 j)].
Assim, compulsados os autos, mostram-se preenchidos todos os requisitos consignados nos preceitos supra referidos, pois a sentença revidenda não contraria os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, transitou em julgado segundo a lei do país em que foi proferida, tornando-se portanto definitiva, não se suscitam dúvidas sobre a autenticidade dos documentos relativos ao procedimento, sobre a competência daquele tribunal, nem sobre a garantia de que, cumprida em Portugal a condenação, aquele Estado considera extinta a responsabilidade criminal, sendo certo que, de harmonia com o requerimento inicial, o cumprimento da pena no país da residência favorece a reinserção social do arguido. Está pois em causa, apenas, o cumprimento em Portugal da pena em que Ápio Gomes foi condenado no Reino Unido.
Os factos que motivaram a condenação são igualmente puníveis pela lei portuguesa- três crimes de ofensa à integridade física grave.
III. DECISÃO
Nestes termos e, julgando o pedido do Ministério Público de revisão e confirmação da decisão do Tribunal da Coroa de Norwich, no Reino Unido, de 4/10/2018 a qual se tornou definitiva em 4/10/2018 e com a referência T20177244, em que foi AA condenado na pena de 6575 dias de prisão, esta Relação revê-a e confirma-a, dando-lhe o exequatur necessário à sua execução em Portugal, remetendo para o tribunal da 1ª instância competente as diligências necessárias ao cumprimento da execução da pena.
Não há lugar a custas (artº. 5º da Lei 158/2015 de 17.9)
Informe a autoridade de emissão- artº. 21 a) e c)  da Lei 158/2015.
Oportunamente ( e após vista do M.P.) remeta os autos à 1ª Instância do Tribunal da área da residência do condenado (artº. 13 nº. 2 e 23º da Lei 158/2015).
Notifique.
D.N..
Elaborado em computador e integralmente revisto pela relatora (art.º 94º/2 do CPP).

Lisboa13.02.2020
Maria do Carmo Ferreira
Cristina Branco