Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5408/11.3TBVFX.L1-1
Relator: PEDRO BRIGHTON
Descritores: ARRENDAMENTO
DENÚNCIA
NECESSIDADE DO LOCADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I-Relativamente aos arrendamentos para habitação anteriores à vigência do R.A.U., a denúncia do contrato pelo senhorio, após a publicação do N.R.A.U., deve ser analisada no quadro das normas transitórias previstas no N.R.A.U., concretamente do disposto no artº 26º nº 4 desse diploma legal.
II-É de afastar a conformidade constitucional da alteração ao N.R.A.U., introduzida pela Lei nº 31/2012 de 14/8, à luz do princípio da confiança, ínsito no artº 2º da Constituição da República Portuguesa, quando aplicável a situações já consolidadas à data de entrada em vigor desta Lei, isto é, a casos em que já haviam decorrido mais de trinta anos de permanência do arrendatário no locado
III-Não existe obstáculo constitucional, quer à luz do regime previsto no artº 18º nºs. 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa, quer à luz do artº 2º do mesmo diploma, a que o legislador estabeleça limites ao exercício da liberdade de o senhorio pôr termo ao contrato de arrendamento, por denúncia com invocação de necessidade do locado para habitação própria, em função da permanência do arrendatário no local arrendado, nessa qualidade, há mais de 30 anos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa.


IRelatório:


1-F.António P.T., Maria T.P.T. e Isabel Maria P.T.C. instauraram a presente acção declarativa de condenação, com a forma de processo ordinário, contra I.F.G. dos S. e Maria F.O.P.G. dos S., pedindo que se declare válida a denúncia do contrato de arrendamento celebrado entre A.A. e R.R., o despejo do locado, bem como a condenação dos R.R., no pagamento da quantia de 10.000 €, a título de indemnização por danos morais pela ocupação ilegítima do locado, acrescidos de 600 € por mês, desde 1/10/2011 e até à efectiva entrega do locado, pela sua ocupação ilegítima, quantias essas acrescidas dos juros de mora vencidos e vincendos.

Para fundamentarem tal pretensão alegam, em síntese, que os A.A. têm registada a seu favor a aquisição, por sucessão, da fracção autónoma designada pela letra “I”, destinada a habitação, correspondente ao 3º andar direito, do prédio urbano sito na Rua 1º de M..., nº ..., em Alverca do ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo Nº....

Por escrito datado de Fevereiro de 1978, os pais dos A.A. cederam aos R.R., o gozo e fruição da referida fracção, para habitação, por um prazo de seis anos, renováveis.

Actualmente, é devida pela cedência do gozo da referida fracção, a contrapartida monetária mensal de 92 €.

Em 30/3/2010, faleceu a mãe dos A.A., Maria Senhorinha P..

Os A.A. comunicaram aos R.R.., a transmissão da posição contratual do senhorio, por via do decesso dos seus pais.

Os R.R. passaram a pagar as contrapartidas monetárias mensais directamente aos A.A., com a consequente emissão de recibo por estes.

Mediante carta registada com aviso de recepção, datada de 30/3/2011, os A.A. comunicaram aos R.R., a denúncia do contrato de arrendamento, com efeitos a partir de 30/9/2011, por necessidade da A. Isabel Maria P.T.C. de habitar o mesmo, não dispondo de outra habitação.

Mediante carta registada com aviso de recepção, datada de 8/4/2011, os R.R. comunicaram aos A.A., a não aceitação da referida denúncia, por falta dos requisitos legais.

O imóvel em causa nos autos, possui boas características, nomeadamente áreas e divisões, atendendo ao seu valor de mercado, com um valor de, pelo menos, 70.000 €.  Pelo que, o seu valor de mercado para o arrendamento, rondará, pelo menos, os 600 € mensais.

Em face da postura assumida pelos R.R.., sem a entrega da fração aos A.A., a A. Isabel Maria P.T.C., tem sofrido problemas de saúde, nomeadamente, psíquica, pois que tem de viver de “favor” em casa de uma filha, e sente que tal já causou problemas no seio familiar, e no casamento desta, pois vive, mas com grandes constrangimentos de ordem pessoal, exactamente por viver de “favor”, não podendo receber quem deseja, como e a que horas deseja, etc..

2-Regularmente citados, vieram os R.R. contestar, defendendo-se por excepção e por impugnação.
Impugnam parte dos factos alegados pelos A.A. e excepcionam a falta de requisitos legais da carta de denúncia do contrato, bem como a falsa aparência do fundamento invocado e, ainda, caso tal argumentação não proceda, a invocação das limitações legais ao direito de denúncia para habitação, pelo senhorio.

3-Realizou-se uma audiência prévia, na qual foi determinada a alteração da forma do processo, para a forma sumária, em função da alteração do valor da acção, sendo ainda elaborado o despacho saneador e indicados os temas da prova.

4-Seguiu o processo para julgamento, ao qual se procedeu com observância do legal formalismo.

5-Posteriormente, proferida Sentença a julgar a acção improcedente, constando da respectiva parte decisória :

“Nestes termos e em face do exposto, julgo a presente acção improcedente, por não provada e, procedente por provada a exceção peremptória aduzida pelos Réus, e em consequência, absolvo-os dos pedidos.
As custas em dívida a juízo, ficam a cargo dos A.A. (cfr. artº 527º, nºs. 1 e 2 do actual CPC).
Registe e notifique”.

6-Inconformados, os A.A. interpuseram recurso de apelação, para tanto apresentando a sua alegação com as seguintes conclusões :

“A. Os ora A.A. e Recorrentes, intentaram acção declarativa de condenação em Processo Ordinário, contra os ora R.R. e Recorridos, com fundamento na pretensão validação da denúncia do Contrato de Arrendamento por necessidade de habitação própria enquanto senhorios, bem como o despejo/desocupação do locado, bem como a condenação dos R.R. e ora Recorridos, no pagamento de €10.000,00 (dez mil euros), a título de indemnização por danos morais pela ocupação ilegítima destes do locado, após a data fixada na missiva de denuncia para desocupar o locado, acrescidos de 600,00 (seiscentos euros), desde 01.10.2011, e até à efectiva entrega do locado, pela sua ocupação ilegítima, quantias essas acrescidas dos juros de mora vencidos e vincendos.
B.Os ora R.R. e Recorridos, contestaram, fundamentando a sua defesa, num não cumprimento dos requisitos legais da denúncia realizada, e cumulativamente, por ocuparem o locado há um período igual ou superior a 30 anos.

C.Tendo como objecto do litígio e questões a resolver as seguintes:
a) Da Denúncia do contrato de arrendamento.
b) Da limitação ao direito de denúncia pelo senhorio.

D.Foram dados como provados os seguintes factos:
E.Ponto 1, ponto 2, ponto 3, ponto 4, ponto 5, ponto 6, ponto 7, ponto 8, ponto 14, ponto 15,.

F.Com especial enfoque e relevância na instrução do presente recurso, nas seguintes matérias dadas como provadas:

9.No dia 30 de Março de 2010, faleceu a mãe dos ora A.A. Maria Te P. T. no estado de viúva de Francisco T.;

10.Mediante carta, datada de 26 de Maio de 2010, Maria Te P. T. comunicou aos R.R. nova alteração do NIB para efeitos de transferência bancária com o pagamento da renda;

11.E mediante nova carta, Maria Te P. T., comunicou aos R.R. nova alteração do NIB para efeitos de transferência bancária com o pagamento da renda;

12.Os RR passaram a pagar as contrapartidas monetárias mensais directamente aos AA. mediante transferência bancária para os N.I.B.’s fornecidos;

13.No início de 2011, a A. Isabel Maria P. T., comentou com os restantes AA. a necessidade de passar a habitar no locado, por então e até agora, estar a viver com a filha) em casa desta;

16.Mediante carta registada com A.R. datada de 30 de Maio de 2011, os AA. através de seu mandatário, comunicaram aos RR a denúncia do escrito em 2) com efeitos a partir de 30 de Setembro de 2011, juntando procuração forense, conforme docs. 3 a 6 juntos com a P.I.;

17.Mediante carta registada com A.R. datada de 8 de Abril de 2011, os RR comunicaram aos AA. na pessoa do mandatário judicial daqueles) a não aceitação da referida denúncia por inobservância dos requisitos legais) conforme doc's 7 e 8 juntos com a P.I.;

18.A não entrega do locado pelos RR na data indicada em 16) causou incómodos à A. Isabel Maria P. T., pois que vivia de “favor” em casa de sua filha) sentia que causava problemas no seio familiar desta) e no casamento desta) pois vivia com grandes constrangimentos de ordem pessoal, exactamente por viver de “favor” não podendo receber quem desejava, como e a que horas desejava, etc.

19.Os RR habitam no locado desde 1978, e até à presente data interruptamente;

G.Da fundamentação da douta sentença ora sindicada foram dados como não provados os seguintes factos:
H.Ponto d, ponto e, ponto f, ponto 4, ponto 5, ponto 6, ponto 7, ponto 8, ponto 14, ponto 15.

I.Com especial enfoque e relevância na instrução do presente recurso, nas seguintes nas matérias dadas como não provadas:
J.Os A.A. comunicaram aos R.R. a transmissão da posição contratual do senhorio Maria Senhorinha P., por via do decesso daquela.
K.E passaram a emitir os recibos de renda a favor dos R.R..
L.No escrito referido em 16), os A.A. comunicaram aos R.R. a necessidade da A. Isabel Maria P. T. de C. de habitar o mesmo, não dispondo de outra habitação, senão daquela, para o que tinha do acordo dos demais A.A.; do regime anterior, o Código Civil de 1966 (artigo 1095º), protegendo o inquilino nos contratos de arrendamento de prédios.

M.A douta sentença ora sindicada, na sua fundamentação, foi formada através dos documentos juntos aos autos pelas partes, bem como do depoimento das testemunhas arroladas, pelos mesmos:
N.Depoimento da Testemunha Sandra Maria T.C., filha da A. Isabel Maria, a que depôs sobre as circunstâncias que a levaram a acolher sua mãe em sua casa e sobre os constrangimentos que uma convivência “forçada” criou, pois que era casada com filhos, aliás a testemunha referiu ao Tribunal que em grande parte tais “constrangimentos” contribuíram para o seu divórcio, pois que a convivência sem sempre foi fácil, no mais e de relevante depôs sobre os problemas nervosos da sua mãe, do seu diagnóstico de depressão e do seu internamento hospitalar que se mantém com um aneurisma cerebral, depôs ainda sobre as tentativas de venda do imóvel aos arrendatários, com proposta de venda, recusada por aqueles, sendo que tal negócio permitiria à A. em acordo com os irmãos arranjar uma solução para si, para habitar;

O.Depoimento da Testemunha Amílcar M.F., que vive em união de facto com a A. Maria T. há cerca de 23 anos, pelo que conheceu a mãe da sua companheira e conhece a sua cunhada depondo sobre as circunstâncias que conduziram a A. Isabel a deixar a casa arrendada onde vivia com a falecida mãe: de relevante corroborou o depoimento da anterior testemunha quanto às diligências que os A.A. encetaram junto dos R.R. com vista à tentativa de venda do imóvel as quais se frustraram, depôs também sobre o conhecimento que teve dos demais bens deixados por óbito da mãe dos A.A. sendo que nenhum desses bens constituiu um imóvel destinado a habitação, apenas o locado;
P.Depoimento da Testemunha Telmo F.R.C.S., ex­-cônjuge da 1ª testemunha e ex-genro da A. Isabel Maria, que no essencial corroborou o depoimento da anterior testemunha concretizando em que medida a convivência se tornou constrangedora, mais depôs que a A. quando foi viver para a sua casa e da sua ex-cônjuge levou consigo outra filha que tem, na altura com 22 ou 23 anos e estudante, tornou-se uma situação desconfortável, que passou a ser insuportável com o tempo, para si e para todos, a A. passou a viver angustiada e constrangida por pesar à A. filha e causar atritos ao casamento.
Q.Concluindo, que de resto e quanto aos danos morais alegados, que nenhuma prova foi produzida, nem sequer o nexo de causalidade com qualquer conduta ilícita dos R.R., pelo que apenas poderiam ser considerados não provados.
R.Efectivamente o caso em apreço não reveste a manifesta simplicidade alegada na douta sentença ora sindicada, nomeadamente, não basta somente, a verificação da prova dos factos a que corresponde o direito alegado pela parte onerada com o respectivo ónus, no caso em apreço, os factos dados como provados revelam a existência de um contrato de arrendamento, destinado a habitação, de acordo com o disposto no artigo 7º do R.A.U. (e 1067º do C.C. na redacção do N.R.A.U), celebrado entre os A.A. e os ora R.R. por via do decesso dos primitivos senhorios.
S.Efectivamente, tratando-se de uma das causas de cessação do contrato de arrendamento e atenta a excepção peremptória invocada pelos R.R. quanto à limitação ao direito de denúncia pelo senhorio, defende a sentença ora sindicada, desde logo que a denúncia do contrato de arrendamento sofreu alterações, de acordo com o disposto no DL-321-B/90 de 15/10 e no NRAU Lei nº 6/2006 de 27/02.
T.Nomeadamente o artigo 107º do RAU estabelecia que o direito de denúncia do contrato de arrendamento facultado ao senhorio contemplava dois requisitos, sendo um deles temporal, nomeadamente a permanência do inquilino no locado por um período igual ou superior a 30 anos.
U.Contudo, o artigo 1101º do C.C., na redacção introduzida pelo NRAU, estabelece, quanto à denúncia pelo senhorio, algumas restrições, contudo, não efectua o mesmo quanto à limitação temporal de residência do inquilino no locado.
V.A questão essencial pese embora não a fixada como objecto da lide, é a verificação dos requisitos que permitem ao senhorio, ora A.A., a denúncia do contrato de arrendamento habitacional, para sua própria habitação, previstos no artigo 1101º al. a) do CC ex vi NRAU que como a sentença ora sindicada avoca, tem aplicação ao caso dos presentes autos.
W.Da factualidade provada parece que sim, pois que incumbia aos R.R. comprovar como matéria de excepção, que a senhoria possuía há menos de um ano, e na área do concelho de Lisboa e limítrofes, uma casa própria ou arrendada que satisfizesse as necessidades da sua habitação própria. Não o fizeram.
X.Todavia, opuseram-se ainda os R.R.. como arrendatários, e comprovam-no como matéria de excepção que é, que residem no locado desde 1978, até à data aposta na carta para início de efeitos (30.09.2011), e até à presente, ininterruptamente, portanto há mais de 33 anos.
Y.E aqui é o verdadeiro epicentro da Sentença ora sindicada, de resto embora discutível, não foi declarada a inconstitucionalidade orgânica com força obrigatória geral, do citado artigo 107º al. b) do RAU, enquanto limitação inconstitucional ao direito de propriedade legalmente consagrado, e protegido em face dos interesses em presença, vide neste sentido Acs. TC nºs. 273/99, relatado pela Exma. Sra. Conselheira Maria dos Prazeres Beleza e nº 543/01, relatado pelo Exmo. Sr. Conselheiro Artur Maurício, disponíveis na base de dados do Tribunal Constitucional.
Z.Avocando e assim decidindo a douta sentença ora sindicada, pela aplicação do disposto no artigo 107° do RAU, nomeadamente o direito de denúncia do contrato de arrendamento, facultado ao senhorio pela alínea a) do nº 1 do artigo 69º. Não pode ser exercido quando no momento em que deva produzir efeitos (Setembro de 2011), ocorra uma das circunstâncias que elenca, no caso, tratar-se de arrendatário que se mantém no local arrendado há mais de 33 anos, no caso, a prevista na alínea b).

AA.Terminando, a douta sentença na sua decisão e fundamentação pela procedência da excepção peremptória aduzida, improcedente o pedido de cessação do contrato de arrendamento em causa, por denúncia do senhorio, julgando assim a acção improcedente por não provada e procedente por provada a excepção peremptória aduzida pelos réus, e em consequência absolvendo os RR dos pedidos.

BB.Nos prédios urbanos, tal realidade, retirava ao senhorio o direito de os denunciar para o termo do prazo, afastando, assim, a regra geral do arrendamento constante do nº 1 do seu artigo 1054º. Fazia-se desta forma prevalecer o interesse da estabilidade da habitação do inquilino sobre as conveniências do senhorio, pondo decisivamente de lado o princípio da liberdade contratual.

CC. O artigo 1096º do Código Civil, porém, previa duas excepções à exclusão deste direito de denúncia; entre elas, figurava a de o senhorio precisar do prédio arrendado para sua habitação (nº 1, a), desse artigo 1096º). No confronto entre a necessidade de habitação de um e de outro, prevalecia o do senhorio, já que era o proprietário do local.

DD.O exercício do direito de denúncia estava sujeito a uma série de regras, umas constantes, então, do Código de Processo Civil (cfr., por exemplo, o nº 1 do artigo 964º então em vigor, que exigia que a citação do réu fosse feita com a antecedência legalmente exigida relativamente ao termo pretendido para o contrato), outras do Código Civil (cfr. o artigo 1097º que impunha que a denúncia fosse exercida por via de acção judicial).

EE.Julgada procedente a acção, o inquilino só era obrigado a entregar a casa três meses volvidos sobre o trânsito em julgado da sentença (art. 1097º citado) e tinha o direito a ser indemnizado de acordo com o disposto no artigo 1099º também do Código Civil.

FF.O exercício do direito de denúncia estava sujeito a uma série de regras, umas constantes, então, do Código de Processo Civil (cfr., por exemplo, o nº 1 do artigo 964º então em vigor, que exigia que a citação do réu fosse feita com a antecedência legalmente exigida relativamente ao termo pretendido para o contrato), outras do Código Civil (cfr. o artigo 1097º, que impunha que a denúncia fosse exercida por via de acção judicial).

GG.Julgada procedente a acção, o inquilino só era obrigado a entregar a casa três meses volvidos sobre o trânsito em julgado da sentença (art. 1097º citado) e tinha o direito a ser .

HH.Indemnizado de acordo com o disposto no artigo 1099º, também do Código Civil.

II.Com a entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, mantiveram-se, por um lado, o direito de o senhorio denunciar o contrato de arrendamento urbano com fundamento na necessidade da casa para sua habitação e, por outro, a referida excepção a favor do inquilino; passou, todavia a ser exigido, para o efeito, o prazo de trinta anos de permanência, nessa qualidade, no local arrendado.

“a)declaração da inconstitucionalidade material das normas contidas nos arts. 69.1 e 107.1 do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90 de 15 de Outubro, na interpretação de que o momento da produção de efeitos da denúncia do contrato de arrendamento urbano para habitação é outro que não seja o da cessação do contrato ou da prorrogação que ocorrer após o trânsito em julgado da sentença constitutiva que autoriza a denúncia pelo senhorio, por violação dos artºs. 2º (República Portuguesa como Estado de direito democrático baseado no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais) 13º (princípio da igualdade) 20.1 (garantia da tutela jurisdicional efectiva, conjugado com o art. 8º da Declaração Universal dos Direitos do Homem) 65º (direito a habitação) e 72º (protecção da terceira idade) todos da Constituição da República Portuguesa;
b)declaração da inconstitucionalidade material da norma contida no art. 506.3 do Código de Processo Civil na versão do Decreto-Lei nº 44 129, de 28 de Dezembro de 1961, quando aplicada à sobrevivência de factos pessoais de natureza permanente, quando estejam em causa situações jurídicas constitucionalmente protegidas como o direito à habitação ou a protecção da terceira idade, como seja o completamento da idade de sessenta e cinco anos no decurso de uma acção de denúncia de arrendamento para habitação, no sentido de que o direito de invocar o facto superveniente preclude passados dez dias a contar do início ou do conhecimento do facto, por violação do art. 2º (República Portuguesa como Estado de direito democrático baseado no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais) 13º (princípio da igualdade) 20.1 (garantia da tutela jurisdicional efectiva) com protecção por via judicial dos direitos constitucionalmente protegidos e de todas as situações jurídicas legitimamente protegidas e direito a um processo justo e equitativo, com proibição de prazos de caducidade exíguos, proibição da indefensa, nomeadamente sob a forma de restrição desproporcionada à invocação em juízo de meios de defesa legais) 65.1 (direito a habitação) e 72 (protecção da terceira idade) todos da Constituição da República Portuguesa”.

JJ.No entanto. a denúncia é possível nos casos de o senhorio necessitar “do prédio para sua habitação (… ) ou para nela construir a sua residência” (cfr. 69º nº 1, alínea a) do RAU).

KK.A denúncia, com fundamento na necessidade da casa para habitação do senhorio, na falta de acordo, tem de ser feita em acção judicial (acção especial de despejo prevista no artigo 964º do Código de Processo Civil que foi revogado pelo artigo 3º, nº l, alínea b) do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, acção que hoje se prevê no artigo 70º do RAU), com a antecedência mínima de seis meses em relação ao fim do prazo do contrato ou da sua renovação, e não obriga ao despejo enquanto não decorrerem três meses sobre a decisão definitiva (artigo 70º do RAU).

LL.Provados pelo senhorio os requisitos exigíveis para a denúncia pode ainda o locatário impedir o exercício do direito de denúncia, obstando ao despejo, se provar que:
a)ele, arrendatário, tem 65 ou mais anos de idade ou, independentemente da idade, se encontra na situação de reforma por invalidez absoluta ou, não beneficiando de pensão de invalidez, sofre de incapacidade total para o trabalho;
b)se mantém como arrendatário no local arrendado há mais de 30 anos;
c)a necessidade de habitação invocada pelo senhorio ou os requisitos previstos no artigo 71º do RAU foram intencionalmente criados por ele.

MM.Não é a constitucionalidade da norma que permite a denúncia do contrato de arrendamento para habitação do senhorio que vem questionada pelos recorrentes, nem igualmente a limitação desse direito prevista no artigo 107º nº 1 alínea a) do RAU.

NN.O que vem questionado é a referida interpretação – fixação do momento de produção dos efeitos da denúncia do arrendamento na data da renovação do contrato, imediatamente a seguir à propositura da acção e após a citação dos réus – defendendo os recorrentes que todas as interpretações que não fixem esse momento na data da renovação ocorrida após o trânsito em julgado da sentença constitutiva da denúncia do contrato são inconstitucionais, o Tribunal Constitucional foi já, por diversas vezes, chamado a pronunciar-se sobre a denúncia do contrato de arrendamento para habitação do senhorio.

OO.Na sua jurisprudência, tem vindo a ser realçada a “função social” do direito de propriedade, de particular relevância em sede de arrendamento, nomeadamente nas situações em que se verifica um “conflito” entre o interesse do inquilino na manutenção do arrendamento e o do senhorio em denunciar esse arrendamento para sua habitação no imóvel arrendado.

PP.Como se disse no acórdão deste Tribunal nº 309/2001, transcrevendo o acórdão nº 311/93 :
QQ.“…O direito à habitação – ou seja, o direito a ter uma morada condigna – é, assim, um direito a prestações.

RR.Pois bem: quer esse direito deva conceber-se como um verdadeiro direito subjectivo, quer antes como um direito a uma “prestação não vinculada” que, ao cabo e ao resto, se deva reconduzir a uma mera pretensão jurídica – (neste último sentido, cf. José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1985, ps. 205 a 209; diferentemente, cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, Coimbra, 1988, p. 106, e J. J. G. Canotilho, Tomemos a sério os direitos económicos, sociais e culturais, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor A. Ferrer Correia, III Coimbra, 1991, p. 461 e sg) – uma coisa é certa. E é esta: o seu grau de realização depende das opções que o Estado fizer em matéria de política de habitação. E estas são, desde logo, condicionadas pelos recursos materiais (financeiros e outros) de que o Estado, em cada momento, possa dispor.

SS.O direito em causa é, assim, um direito “sob reserva do possível” – um direito que corresponde a um fim político de realização gradual (cf. J. C. Vieira de Andrade, loc. Cit. p. 201).
TT.A concretização do direito à habitação – o facultar a cada pessoa uma morada condigna – é, pois, uma tarefa cuja realização – gradual, como se disse – a Constituição comete ao Estado.

UU.Mas, fundando-se o direito à habitação na dignidade da pessoa humana (ou seja, naquilo que a pessoa realmente é: um ser livre com direito a viver dignamente) existe, aí, um mínimo que o Estado sempre deve satisfazer. E para isso pode, até, se tal for necessário, impor restrições aos direitos do proprietário privado. Nesta medida, também o direito à habitação vincula os particulares, chamados a serem solidários com o seu semelhante (princípio de solidariedade social); vincula, designadamente, a propriedade privada, que tem uma função social a cumprir…

VV.Se com esta jurisprudência se fundamenta a não inconstitucionalidade das normas que condicionam o direito de denúncia do contrato de arrendamento por parte do proprietário, igualmente tem o Tribunal Constitucional julgado não desconformes à Constituição as normas que conferem aquele direito quando se verificam os requisitos legalmente exigíveis, com particular relevância para a prova da necessidade do imóvel arrendado para habitação própria – foi o que se decidiu no citado Acórdão nº 151/92, onde se escreveu:

WW.“Se, porém, o senhorio tivesse necessidade de reaver o imóvel arrendado para nele estabelecer a sua habitação ou construir a sua residência, designadamente porque ia casar e pretendia, por isso mesmo, abandonar a casa dos pais onde habitara até então, alei permitia-lhe, como se viu, que denunciasse o contrato de arrendamento.

XX.A sua carência de habitação em determinada localidade, a sua necessidade (real, efectiva) em matéria habitacional, sobrepunha-se, então, à necessidade paralela ou concorrente do inquilino (fala-se em necessidade concorrente, porque o direito de denúncia pode, em tal hipótese ser feito valer, não apenas contra o arrendamento para habitação, mas também contra o arrendamento para comércio ou indústria ou para o exercício de profissões liberais). (cf., neste sentido, Antunes Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 118º. 90).

YY.Repete-se, então, a pergunta já antes formulada: as normas que, neste caso, permitiam a denúncia do contrato de arrendamento seriam constitucionalmente legítimas?

ZZ.Esta excepção à proibição de requerer a cessação do contrato de arrendamento para o termo do respectivo do prazo (ou da sua renovação) foi reintroduzida no nosso direito pela Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948 (cf. artigo 69) assim se ressuscitando um velho preceito das Ordenações (cf. Antunes Varela) Revista cit., p. 91). Daí transitou para o Código Civil (cf. artigos 1083º e sg.).

AAA.Em 1975, porém, pelo Decreto-Lei nº 155/75, de 25 de Março, suspenderam-se todas as acções e execuções de despejo tendo por base as denúncias contratuais requeridas ao abrigo do artigo 1096º a 1098º do Código Civil.

BBB. No entanto, em 1977, o Decreto-Lei nº 293/77, de 20 de Julho, revogou aquele Decreto-Lei nº 155/75, depois de o Decreto-Lei nº 583/76, de 22 de Junho, ter, entretanto vindo permitir a denúncia do contrato a favor de retornados, emigrantes e aposentados.

CCC.Significa isto que – salvo no pequeno interregno, que vai do Decreto-Lei nº 155/75, de 25 de Março, até ao Decreto-Lei n° 293/77, de 20 de Julho, em que a necessidade de habitação do proprietário ou usufrutuário do imóvel foi sacrificada à necessidade de habitação do locatário – sempre a lei deu primazia ao direito de habitação do senhorio sobre o direito de habitação (ou similar) do inquilino.

DDD.É isto coisa que bem se compreende, pois é inteiramente razoável que o legislador – colocado perante um conflito de direitos: de um lado, o direito à habitação do senhorio, fundado num direito real próprio (um direito de propriedade, de compropriedade ou de usufruto); e, por outro lado, o direito à habitação do inquilino (ou um seu direito similar), fundado num contrato de arrendamento, cujo objecto é, justamente, o imóvel que pertence ao senhorio; e não podendo dar satisfação a ambos os direitos, inteiramente razoável é – dizia-se – que sacrifique o direito do inquilino ao direito à habitação do senhorio.

EEE.É inteiramente razoável, porque o senhorio até pretende exercer o seu direito à habitação num imóvel de que ele próprio é proprietário, comproprietário ou usufrutuário. Tem, assim, “melhor direito” do que o inquilino, que pretende continuar a satisfazer as suas necessidades de habitação nesse mesmo imóvel do senhorio.

FFF.O sacrifício que o legislador impõe ao direito do locatário deixa, é certo, inteiramente por satisfazer as necessidades deste em matéria de habitação. Tal sacrifício é, no entanto, em absoluto, necessário para que o direito do senhorio a ter uma habitação própria encontre satisfação.

GGG.Com efeito, o direito à habitação do senhorio e o do inquilino, pretendendo concretizar-se no mesmo imóvel, acabam por excluir-se um ao outro: cada um deles só pode satisfazer-se em detrimento do outro.

HHH.A solução legal tem, assim, suficiente credencial constitucional, pelo que as normas aqui sub iudicio não violam o artigo 65º da Constituição, apesar de o direito de denúncia poder ser exercido sem que o Estado ou as autarquias ponham à disposição do inquilino despejado uma casa equivalente.

III.Não obstante a legitimidade constitucional desta relativa prevalência do direito do senhorio, de acordo com a citada jurisprudência, que aqui se reitera, certo é que, na concorrência dos direitos de habitação de senhorio e arrendatário, ponderou, ainda, o legislador a verificação de circunstâncias susceptíveis de impedir a denúncia mesmo quando preenchidos os requisitos para o efeito. Fê-lo, tendo em conta, na situação do inquilino, a idade, a reforma por invalidez absoluta e a incapacidade total para o trabalho sem benefício da pensão de invalidez.

JJJ.No que se refere à denúncia para habitação, esta consta da alínea a) do número 4 do artigo 26 e é regulada pelo artigo 1102 CC. Contrariamente à primeira modalidade, esta carece de fundamento. Importa mencionar que antes da reforma de 2012, era necessária a propositura de acção em tribunal para exercer a denúncia.

KKK.Este artigo consagra um conjunto de requisitos substantivos que têm de ser estar verificados para poder haver denúncia para habitação.
a)O primeiro trata da qualidade da pessoa que faz a denúncia para habitação, na medida em que impõe que o senhorio seja proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio há mais de 2 anos (este prazo assume grande relevância) ou tenha adquirido por sucessão, independentemente de prazo.
b)É também requisito que não tenha casa própria que satisfaça as suas necessidades habitacionais ou dos seus descendentes em 1º grau. há mais de um ano (na área dos concelhos de Lisboa ou Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do país).
Relativamente ao requisito de satisfação a necessidades habitacionais dos descendentes em 1º grau, este tem de ser aferido em relação ao descendente.

LLL.Esta questão foi alvo de muita controvérsia jurisprudencial de modo que existe uma vasta gama de acórdãos referentes, nomeadamente, ao conceito de necessidade de habitação, em que se discutiu quais os casos que consubstanciam uma necessidade real de ter a casa (acórdãos da Relação de Lisboa de 12/11/2009, 17/02/2009 e 25/01/1996 e acórdãos STJ 25/01/2007 e 22/06/2005).

MMM.Esta extrema importância era acompanhada da necessidade de uma produção de prova muito exigente. Pelo contrário, a necessidade de habitação para constituir uma união de facto não é habitualmente considerada como fundamento de denúncia. Esta minúcia decorre do facto de haver duas partes, o senhorio e o arrendatário, que precisam da mesma habitação.

NNN.Esta extrema importância era acompanhada da necessidade de uma produção de prova muito exigente. Pelo contrário, a necessidade de habitação para constituir uma união de facto não é habitualmente considerada como fundamento de denúncia. Esta minúcia decorre do facto de haver duas partes, o senhorio e o arrendatário, que precisam da mesma habitação.

OOO.Exemplificando, o senhorio que queira ir viver para a habitação arrendada ao arrendatário porque não tem outra habitação é substancialmente diferente daquele que tinha mas que por ter assistido a um crescimento do agregado familiar, a dimensão da sua habitação deixou de ser a ideal. Estas situações têm pesos diferentes no momento da ponderação com o direito do arrendatário.

PPP.A alínea a) do número 4 do artigo 26 remete para a alínea a) do artigo 107 do RAU cujo conteúdo constitui como excepção ao direito de denúncia três situações em que o arrendatário se possa encontrar:
a)a idade igualou superior a 65 anos do arrendatário,
b)a situação de reforma por invalidez absoluta,
c)ou a incapacidade total para o trabalho (não beneficiando de pensão de invalidez).

QQQ.Relativamente aos limites consagrados no artigo 107 RAU, discutiu-se se eram aplicáveis ao cônjuge.

RRR.Esta querela é versada no acórdão Relação de Lisboa 21/02/2007.
Exemplificando, se quando a acção era proposta em tribunal e o arrendatário não tinha 65 anos (pelo que por esta via não integrava a excepção ao direito à denúncia), mas o cônjuge tinha, pretendia-se saber se integrava a excepção ou não. Os tribunais pronunciaram-se no sentido do requisito ser respeitante apenas ao arrendatário e não ao cônjuge.

SSS.A alínea a) do número 4 do artigo 26 remete para a alínea a) do artigo 107 do RAU cujo conteúdo constitui como excepção ao direito de denúncia três situações em que o arrendatário se possa encontrar:

TTT. a idade igualou superior a 65 anos do arrendatário,

UUU.a situação de reforma por invalidez absoluta,

VVV.ou a incapacidade total para o trabalho (não beneficiando de pensão de invalidez).

WWW.Relativamente aos limites consagrados no artigo 107 RAU, discutiu-se se eram aplicáveis ao cônjuge.

XXX.Esta querela é versada no acórdão Relação de Lisboa 21/02/2007.
Exemplificando, se quando a ação era proposta em tribunal e o arrendatário não tinha 65 anos (pelo que por esta via não integrava a exceção ao direito à denúncia), mas o cônjuge tinha, pretendia-se saber se integrava a exceção ou não. Os tribunais pronunciaram-se no sentido do requisito ser respeitante apenas ao arrendatário e não ao cônjuge.

YYY.A dimensão constitucional do problema que em função destes dados se coloca (aquela relativamente à qual este Tribunal se pode pronunciar), reporta-se a dois aspectos específicos: o primeiro deles tem que ver com uma alegada formulação “vaga”, “imprecisa” e cuja “concretização assenta em valorações subjectivas” da norma, determinante da inconstitucionalidade material desta “por ofensa do princípio da tipicidade e legalidade”, consagrado no artigo 106º da Constituição.

ZZZ.E também em obediência a esse requisito, suscitou uma questão de inconstitucionalidade, no plano da interpretação da norma em colisão com a Lei Fundamental (norma inconstitucional, numa certa interpretação da mesma).

AAAA. Em jogo, na tese dos recorrentes, esteve sempre a matéria decisória das instâncias e a matéria normativa.

BBBB.Por outras palavras: o que sempre foi questionado pela recorrente foi a violação do mencionado princípio da tipicidade exclusiva, corolário do princípio da legalidade enquanto dirigido ao julgador, donde que tal violação, a ter lugar, houvesse de radicar na decisão daquele, e não em norma por ele aplicada.

CCCC.Independentemente do presente Recurso e da matéria que foi supra promovida, a verdade é que, mesmo no quadro da matéria de facto dada como provada nunca poderia o Tribunal a quo chegar às consequências jurídicas que impôs à Recorrente, ou seja.

DDDD.A não consideração ou validação da Denúncia do Contrato de Arrendamento por necessidade da habitação própria por parte dos AA. ora Recorrentes.

EEEE.Com efeito, considerou o Tribunal – e repetimo-nos – que estes factos nomeadamente, o facto de os ora RR. e Recorridos, residirem no locado num período superior a 30 anos, impede a validação da Denúncia do Contrato de Arrendamento por necessidade da habitação própria por parte dos AA. ora Recorrentes.
FFFF.Avocando e assim decidindo a douta sentença ora sindicada, pela aplicação do disposto no artigo 107º do RAU, nomeadamente o direito de denúncia do contrato de arrendamento, facultado ao senhorio pela alínea a) do nº 1 do artigo 69º. Não pode ser exercido quando no momento em que deva produzir efeitos (Setembro de 2011), ocorra uma das circunstâncias que elenca, no caso, tratar-se de arrendatário que se mantém no local arrendado há mais de 33 anos, no caso, a prevista na alínea b).

GGGG.Violando assim a douta sentença ora sindicada, não um Princípio e Direito Fundamental, mas sim dois Princípios e Direitos fundamentais por parte dos ora AA., nomeadamente o Direito de Propriedade destes e o Direito a Habitação, ao verem-se expropriados enquanto titulares de um direito real de propriedade, pelos ora RR. e Recorridos, titulares de um direito obrigacional e não real!!!

HHHH.O direito de propriedade define-se conceptualmente pelos poderes que confere ao seu titular, abrangendo, como componentes:
(i)a liberdade de adquirir bens;
(ii) a liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietário;
(iii)a liberdade de os transmitir;
(iv)o direito de não ser privado deles e, ainda,
(v)o direito de reaver os bens sobre os quais o mesmo direito de mantém.

IIII.O princípio da autonomia da vontade na criação e definição do conteúdo dos direitos obrigacionais (artigo 405º do Código Civil) e o princípio da tipicidade dos direitos reais (artigo 1306º do Código Civil);

JJJJ.Os direitos de obrigação nascem de formas variadas e atípicas, decorrentes da vontade das partes; os direitos reais adquirem-se de acordo com os modos de aquisição fixados na lei (exemplo artigo 1316º do Código Civil);

KKKK.O objecto dos direitos reais são sempre coisa corpóreas (artigo 1302º do Código Civil), enquanto os direitos de obrigação podem ser relativos a coisas ou prestações;

LLLL.Os institutos de protecção são totalmente distintos, sendo a própria eficácia dos direitos distinta: os direitos obrigacionais têm eficácia inter partes enquanto os direitos reais são oponíveis erga omnes.

MMMM.Os problemas de Direito Civil podem encontrar a sua solução numa norma que não é de Direito Civil, mas de Direito Constitucional.

NNNN.A Constituição contém, na verdade, uma “força geradora” de Direito Privado.

OOOO.As suas normas não são meras directivas programáticas de carácter indicativo, mas normas vinculativas que devem ser acatadas pelo legislador, pelo juiz e demais órgãos estaduais.

PPPP.O legislador deve emitir normas de Direito Civil não contrárias à Constituição; o juiz e os órgãos administrativos não devem aplicar normas inconstitucionais.

QQQQ.As normas constitucionais, designadamente as que reconhecem Direitos Fundamentais, têm também, eficácia no domínio das relações entre particulares, impondo-se, por exemplo, à vontade dos sujeitos jurídico-privados nas suas convenções.

RRRR.O reconhecimento e tutela destes direitos fundamentais e princípios valorativos constitucionais no domínio das relações de Direito Privado processa-se mediante os meios de produção próprios deste ramo de direito, nulidade, por ser contra a ordem pública (art. 280º CC).

SSSS.Os preceitos constitucionais na sua aplicação às relações de Direito Privado não podem aspirar a uma consideração rígida, devendo, pelo contrário, conciliar o seu alcance com o de certos princípios fundamentais do Direito Privado – eles próprios conforme à Constituição.

TTTT.O Princípio da propriedade privada com previsão constitucional detêm tutela constitucional da propriedade privada está expressamente consagrada no art. 62º/1 CRP, segundo o qual “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou em morte) nos termos da constituição”, bem como nos arts. 61º e 88º CRP, relativos à tutela da iniciativa e da propriedade privadas.

UUUU.O Código Civil, não define o direito de propriedade, mas o art. 1305º caracteriza-o, dizendo que “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”:

VVVV.Sector Público: bens e unidades de produção pertencentes ao Estado ou a outras entidades públicas, art. 82º/2 CRP;

WWWW.Sector Privado: pertencem os meios de produção da propriedade e gestão privada que não se enquadre no sector público nem no cooperativo, art. 82º/3 CRP.

XXXX.Sector Cooperativo: o sector cooperativo refere-se aos meios de produção possuídos e geridos pelas cooperativas, em obediência aos princípios cooperativos; aos meios de produção comunitários, possuídos e geridos por comunidades locais; aos meios de produção objecto de exploração colectiva por trabalhadores, art. 82º/4 CRP.

Nos termos anteriormente expostos, requer a Vªs. Exªs, que recebam e deem provimento ao presente recurso e que a decisão recorrida seja revogada e substituída, por ser ilegal, por outra que:

A)Considere Denunciado o Contrato de Arrendamento para Fim Habitacional por necessidade de Habitação Própria por parte dos AA., conforme ficou assente na matéria dada como provada, com as inerentes consequências e decrete a imediata desocupação do locado;
B)Considere provada a nulidade da sentença na sua fundamentação e a errónea subsunção ao Direito;
C)Declare a Nulidade da Sentença por preterição absoluta da Lei Fundamental e dos direitos aí consagrados, face à violação do direito real de propriedade e do direito a habitação dos AA. em preterição dos direitos obrigacionais dos RR, com base na violação dos artigos 107º do R.A.U. e por violação da norma constitucional prevista no artigo 65º da C.R.P.
D)Declare a Nulidade da Sentença por violação do Principio da Tipicidade previsto no artigo 9º do C.C. face ao recurso a uma interpretação extensiva efectuada na fundamentação da sentença e da sua subsequente inconstitucionalidade;
E)Declare a inconstitucionalidade da norma prevista no artigo 107º do R.A.U.”.

7-Os R.R. contra-alegaram, defendendo a improcedência do recurso, com as seguintes conclusões :

“A)Aos Autores/Apelantes não assiste razão no presente Recurso, pois a Meritíssima Juiz “a quo”, que proferiu a douta Sentença, fez uma correcta interpretação dos factos e uma correcta aplicação do Direito;
B)Esteve bem o Julgador “a quo” em julgar procedente a excepção peremptória suscitada pelos Réus/Apelantes, e em consequência absolver estes dos pedidos;
C)Resultou como provado, entre o mais, que “Os RR. habitam no locado desde 1978 e até à presente data, ininterruptamente” (19.);
D)À situação dos presentes autos continua a aplicar-se a excepção prevista na alínea b) do artigo 107º do R.A. U;
E)Tal excepção (“manter-se o arrendatário no local arrendado há 30 ou mais anos...”) é aplicável na vigência do N.R.A.U. aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, por via dos seus artigos 26º e 28º;
F)Essa excepção permitia a limitação do direito de denúncia pelo senhorio, a ponto de essa denúncia não produzir efeitos quando o inquilino se mantivesse no local arrendado por 30 ou mais anos;
G)Quanto à factualidade assente, de facto os Réus/Apelados mantém-se no arrendado desde Fevereiro de 1978, pelo que considerando a data de envio da carta para início de efeitos (30 de Setembro de 2011), há mais de 33 anos, pelo que os senhorios nunca poderiam com sucesso alegar e provar a factualidade de que dependeria a denúncia do Contrato;
H)Com a entrada em vigor da Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto, que alterou as regras transitórias, desde essa Lei que apenas é aplicável a alínea a) do referido artigo 107º da R.A.U. e já não todo o artigo;
I)Porém, apesar de existir uma norma transitória nova que limita a posição dos inquilinos e abre a novas situações a possibilidade de com sucesso denunciar o contrato de arrendamento, não pode nem deve ser afastada para o caso dos presentes autos a excepção prevista na alínea b) do R.A.U., que continua assim a ser aplicável;
J)No caso dos presentes autos não está em causa um contrato de arrendamento que foi outorgado depois da entrada em vigor da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro;
K)O que verdadeiramente está em causa é um contrato de arrendamento de 1978, sendo que à data do envio da carta ou da propositura da presente acção (na vigência da Lei nº 6/2006) já tinham decorrido os 30 anos – 33 para ser mais exacto;
L)Tal facto conferia aos inquilinos a protecção de não poder ver o contrato de arrendamento denunciado;
M)Com a norma transitória do artigo 26º da Lei de 2006, os inquilinos confiaram que mantinham o direito de manter vivo o contrato de arrendamento, ainda que presente um pedido de denúncia por parte do senhorio;
N)Só depois de decorrido esse prazo de 30 anos é que a norma transitória é alterada, e por essa via formal o direito do inquilino desaparece;
O)Porque as normas dispõem para o futuro (artigo 12º do Código Civil), e o direito já estava constituído na esfera dos Réus/Apelados, essa norma transitória que deita por terra esse direito não deve ser aplicada;
P)Aplicar tal norma violaria os princípios da segurança jurídica e da confiança impostos pelo Estado de Direito, pois a norma adquiriria uma dimensão de imprevisibilidade e arbitrariedade contrária às directivas do artigo 2º da Constituição da República Portuguesa;
Q)Além de que a aplicação daquela norma transitória (na redacção de 2012) violaria o princípio de não retroactividade das leis restritivas de direitos, consagrado no número 3 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa;
R)Esteve bem a Meritíssima Juiz “a quo” ao não facultar ao senhorio a possibilidade de denunciar o contrato de arrendamento para habitação porque no momento em que tal denúncia devia produzir efeitos (Setembro de 2011) já os arrendatários, ora Réus/Apelados se encontravam no local arrendado há mais de 33 anos;
S)A douta Sentença recorrida não violou qualquer disposição legal, nomeadamente o artigo 107º do R.A.U., o artigo 65º da Constituição da República Portuguesa, e o artigo 9º do Código Civil, como alegam os Recorrentes, devendo ser considerada improcedente a Apelação e confirmado o Julgado.
Termos em que deve ser negado provimento ao Recurso de Apelação interposto pelos Autores/Apelantes, mantendo-se integralmente a douta Sentença apelada, como é de Justiça”.
*  *  *

IIFundamentação.
a)A matéria de facto dada como provada na Sentença recorrida, é a seguinte :

1-A A. Maria T.P.T. outorgou em escritura de habilitação de herdeiros, celebrada no dia 5/5/2010, no Cartório Notarial de Sofia H., sito em Lisboa, na qual declarou o falecimento de Maria Senhorinha T., que também usava e era conhecida por Maria Senhorinha P. e Maria Senhorinha, no estado de viúva, a qual não deixou testamento ou qualquer outra disposição de ultima vontade, tendo-lhe sucedido como únicos e universais herdeiros, a declarante (Maria Te P. T.), Isabel Maria P. T. de C., casada e F. António P.T., divorciado, conforme documento de fls. 22 a 24, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
2-Maria Senhorinha P., casada com Francisco T., no regime da comunhão geral de bens, tem registada a seu favor a aquisição, da fracção autónoma designada pela letra “I”, correspondente ao 3º andar direito, destinado a habitação, do prédio urbano sito na Rua 1º de M..., nº..., em Alverca do R..., descrito na ...ª Conservatória do Registo Predial de Vila..., sob o nº 2.../1..., mediante Ap. 3 de 1978/05/24, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2....
3-Por escrito datado de Fevereiro de 1978, Maria Senhorinha P. e Francisco T. cederam aos R.R., o gozo e fruição da referida fracção, para habitação, por um prazo de seis anos, renováveis, mediante a contrapartida monetária mensal de 4.500$00 (moeda corrente na altura), a pagar pelos R.R. àqueles no 1º dia útil do mês anterior àquele a que respeitasse.
4-Mediante carta registada com aviso de recepção, datada de 29/11/2005, Maria Senhorinha P. comunicou aos R.R., nova actualização de renda.
5-Mediante carta registada com aviso de recepção, datada de 30/11/2006, Maria Senhorinha P. comunicou aos R.R., nova actualização de renda.
6-Mediante carta registada com aviso de recepção, datada de 30/11/2007, Maria Senhorinha P. comunicou aos R.R., nova actualização de renda.
7-Mediante carta registada com aviso de recepção, datada de 27/11/2008, Maria Senhorinha P. comunicou aos R.R., nova actualização de renda.
8-Actualmente, e desde 1/1/2009, é devida pela cedência do gozo da referida fracção, a contrapartida monetária mensal de 92 €.
9-No dia 30/3/2010, faleceu a mãe dos A.A., Maria Senhorinha P., no estado de viúva de Francisco T..
10-Mediante carta, datada de 26/5/2010, Maria T.P.T. comunicou aos R.R., a alteração do NIB para efeitos de transferência bancária com o pagamento de renda.
11-E mediante nova carta, datada de 27/12/2010, Maria T.P.T. comunicou aos R.R., nova alteração do NIB para efeitos de transferência bancária com o pagamento de renda.
12-Os R.R. passaram a pagar as contrapartidas monetárias mensais directamente aos A.A., mediante transferência bancária para os NIB’s fornecidos.
13-No início de 2011, a A. Isabel Maria P.T. comentou com os restantes A.A., a necessidade de passar a habitar no locado, por então e até agora, estar a viver com a filha, em casa desta.
14-Mediante carta datada de 1/2/2011, os A.A. através de seu mandatário, comunicaram aos R.R., a intenção de vender a fração referida em 1., supra, pelo preço de 70.000 €, dando-lhes o direito de preferência na sua aquisição.
15-Mediante carta datada de 20/2/2011, os R.R. comunicaram aos A.A., através do mandatário daqueles, a intenção de poder exercer o seu direito de preferência na venda do locado, mas por preço inferior ao estipulado, que está muito acima do seu valor de mercado.
16-Mediante carta registada com aviso de recepção, datada de 30/3/2011, os A.A. através de seu mandatário, comunicaram aos R.R. a denúncia do escrito referido em 2., supra,, com efeitos a partir de 30/9/2011.
17-Mediante carta registada, com aviso de recepção, datada de 8/4/2011, os R.R. comunicaram aos A.A., na pessoa do mandatário judicial daqueles, a não aceitação da referida denúncia por inobservância dos requisitos legais.
18-A não entrega do locado pelos R.R. na data indicada em 16., supra, causou incómodos à A. Isabel Maria P.T., pois que vivia de “favor” em casa de uma filha, e sentia que causava problemas no seio familiar desta, e no casamento desta, pois vivia, com grandes constrangimentos de ordem pessoal, exactamente por viver de “favor”, não podendo receber quem desejava, como e a que horas desejava, etc.
19-Os R.R. habitam no locado desde 1978 e até à presente data, ininterruptamente.
b)Como resulta do disposto nos artºs. 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.

Perante as conclusões das alegações dos recorrentes as questões em recurso são as seguintes :

-Saber se a Sentença recorrida é nula.
-Saber se é aplicável aos autos o artº 107º do R.A.U. (Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321º-B/90, de 15/10).
-Saber se é constitucional a interpretação feita pelo Tribunal “a quo” das normas que aplicou (nomeadamente o artº 107º do R.A.U. – Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321º-B/90, de 15/10), enquanto limitadoras dos Direitos de propriedade e de habitação dos apelantes.

c)Vejamos, em primeiro lugar, se a Sentença sob recurso é nula.

As causas de nulidade da Sentença (e dos restantes despachos) vêm taxativamente enunciadas no artº 615º nº 1 do Código de Processo Civil, onde se estabelece que é nula a sentença:

-Quando não contenha a assinatura do juiz (al. a).
-Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al. b)).
-Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (al. c)).
-Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. d)).
-Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (al. e)).
O Prof. Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, Vol. III, pg. 297), na análise dos vícios da Sentença enumera cinco tipos :
-vícios de essência ;
-vícios de formação ;
-vícios de conteúdo ;
-vícios de forma ;
-vícios de limites.

Refere o mesmo Professor (in “Direito Processual Civil”, Vol. III, pg. 308), que uma Sentença nula “não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia”.

Por seu turno, o Prof. Antunes Varela (in “Manual de Processo Civil”, pg. 686), no sentido de delimitar o conceito, face à previsão
do artº 668º do Código de Processo Civil (actual artº 615º), salienta que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário (…) e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”.


Lebre de Freitas (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, pgs. 668 e 669) considera que apenas a “falta de assinatura do juiz” constitui fundamento de nulidade, pois trata-se de “um requisito de forma essencial. O acto nem sequer tem a aparência de sentença, tal como não tem a respectiva aparência o documento autêntico e o documento particular não assinados”.  A respeito das demais situações previstas na norma, considera o mesmo autor tratar-se de “anulabilidade” da sentença e respeitam “à estrutura ou aos limites da sentença”.

d) Os recorrentes afirmam que a Sentença é nula “por preterição absoluta da Lei Fundamental e dos Direitos aí consagrados – Direito real de propriedade versus Direito a habitação natureza obrigacional”.

Se bem que os apelantes não identifiquem nem qualifiquem legalmente esta nulidade, pode entender-se que invocam a omissão de pronúncia, estando a mesma referida no artº 615º nº 1, al. d) do Código de Processo Civil, segundo o qual ocorre nulidade da sentença quando o Juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

O vício em causa está relacionado com a norma que disciplina a “ordem de julgamento” (cf. artº 608º nº 2 do Código de Processo Civil).

Com efeito, resulta do regime previsto neste preceito que o Juiz na Sentença “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras ;  não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.

Ora, como salienta o Prof. Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pg. 143) :

“Resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito (artº 511º nº 1), as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido :  por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida ; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (artº 664º) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas”.

Resulta desta interpretação que a Sentença não padece de nulidade quando não analisa um certo segmento jurídico que a parte apresentou, desde que fundadamente tenha analisado as questões colocadas e aplicado o direito.

No caso em apreço afirmam os apelantes que o Tribunal não se pronunciou sobre dois princípios constitucionais que, segundo afirmam, conduziriam a uma decisão contrária à proferida.

Ora, trata-se de algo que não foi invocado em sede de articulados, pelo que teremos de concluir que o Tribunal “a quo” se limitou a apreciar e decidir as questões que lhe foram colocadas, tendo tomado em consideração, os meios de prova e os factos que entendeu por necessários e pertinentes. 

Assim, afigura-se-nos, que a questão invocada pelos apelantes não se enquadra na apontada causa de nulidade de sentença (omissão de pronúncia), antes se prendendo com uma divergência com a decisão proferida pelo Tribunal, com a qual não se conformam.

Há, assim, que indeferir a invocada nulidade da Sentença com fundamento no facto de esta não ter conhecido de questões sobre as quais se devia ter pronunciado.

e)Vejamos, agora, se era possível aplicar aos autos o disposto no artº 107º nº 1, al. b) do R.A.U..

No caso em apreço, não se questiona que o contrato em causa se prorrogou sucessiva e imperativamente (desde 1978, data da sua celebração).

O regime vinculístico, estabelecido pelo artº 1095º do Código Civil  de 1966, cujo princípio geral da renovação obrigatória do contrato se manteve com o estatuído pelos artºs. 5º nºs. 1 e 2 e 68º do R.A.U., impõe, por via de regra, o regime da sua prorrogação forçada, no final de cada prazo de vigência, com excepção da situação da sua denúncia pelo arrendatário e, também pelo senhorio, esta excepcional (ver artº 1096º do Código Civil  de 1966, versão originária, e artºs. 68º nº 2, 69º e 107º do R.A.U.).

O que se pode discutir no caso, é se assiste, ou não, ao senhorio recorrente, com a entrada em vigor do Novo Regime do Arrendamento Urbano (N.R.A.U.), aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27/2, o direito de denunciar livremente o contrato.

Lê-se, além do mais, na “Exposição de Motivos da Proposta de Lei do Arrendamento Urbano”, aprovada no Conselho de Ministros, no dia 23/6/2005, que :

-“(…)Para tanto, o Governo apresenta à Assembleia da República uma Proposta de Lei, aprova o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), e bem assim um regime transitório relativo aos contratos celebrados durante a vigência do RAU, aos quais se aplicará o novo regime, salvo no que diz respeito à duração, renovação e denúncia daqueles contratos, matérias que se continuarão a reger pelo RAU, tendo em vista assegurar a protecção da expectativa das partes e a estabilidade do regime jurídico aplicável.

O regime transitório incidirá ainda sobre os contratos de arrendamento anteriores a 1990, e relativamente aos arrendamentos comerciais, anteriores a 1995, tendo em vista manter, de igual modo, a aplicação das regras do RAU em sede de duração, renovação e denúncia daqueles contratos (…)”.

-“O NRAU será aplicável a todos os contratos de arrendamento futuros, e ainda aos contratos antigos (ou seja, aos que tenham sido celebrados antes da sua entrada em vigor), salvo nas matérias relativas à sua duração, renovação e denúncia, as quais continuam a reger-se pelo RAU, tendo em vista assegurar a protecção da expectativa das partes aquando da sua celebração. Prevê-se um regime substantivo transitório relativo à transmissão contratos antigos (…)”.

Sob a epígrafe “Aplicação no Tempo”, preceitua o artº 59º nº 1 do NRAU que “o novo regime do arrendamento urbano aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”.

O nº 3 do mesmo preceito, por sua vez, estabelece que “as normas supletivas contidas no novo regime do arrendamento urbano só se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor da presente lei quando não sejam em sentido oposto ao de norma supletiva vigente aquando da celebração, caso em que é essa a norma aplicável”.

O artº 60º do NRAU dispõe que “é revogado o Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo DL 321-B/90 de 15/10, com todas as alterações subsequentes, salvo nas matérias a que se referem os artigos 26º e 28º da presente lei”.

Os artºs. 26º e 28º do NRAU integram as referidas normas transitórias, aplicáveis designadamente aos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU.

Para a exacta delimitação do regime aplicável aos arrendamentos vigentes à data da entrada em vigor do novo regime deverá atender-se à distinção feita pelo artº 12º nº 2 do Código Civil. Assim, “(…) as normas da nova lei que dispõem sobre condições de validade substancial ou formal do arrendamento não devem ter aplicação retroactiva, continuando, portanto, essa matéria a ser disciplinada pela lei vigente à data da celebração do contrato.  Pelo contrário, as normas que dispõem directamente sobre o conteúdo da relação de arrendamento abrangem as relações já constituídas, tendo, portanto, aplicação imediata” (cf. Maria Olinda Garcia, “A Nova Disciplina do Arrendamento Urbano”, pg. 51).

Considerou-se no Acórdão do S.T.J. de 27/5/2010 (consultado na “internet” em www.dgsi.pt) que “o critério geral de delimitação do âmbito temporal da aplicação desta lei, está fixado no artigo 59º nº 1, do NRAU, que estipula que “o NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”, acrescentando o respectivo nº 3, que “as normas supletivas contidas no NRAU só se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor da presente lei quando não sejam em sentido oposto ao de norma supletiva vigente aquando da celebração, caso em que é essa a norma aplicável”.

“Em relação ao contrato, como acto constitutivo, não obstante o silêncio do diploma, as condições da sua validade formal e substancial devem continuar a ser regidas pela lei, então, em vigor, como já de disse, em face da antecedente transição do Código Civil de 1966 para o RAU”.

“Porém, quanto aos efeitos do contrato, isto é, quanto ao contrato como relação, as normas transitórias, expressamente, ressalvadas pelo artigo 59º, nº 1, podem ser de carácter formal, determinantes da continuação da vigência da lei antiga para as relações já constituídas, como é o caso do artigo 26º, nº 4, a), que dispõe no sentido de que “os contratos sem duração limitada regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades :  continua a aplicar-se o artigo 107º do RAU”, ou da não aplicabilidade da lei nova, como acontece com o artigo 26º, nº 4, c), que estipula que “não se aplica a alínea c) do artigo 1101º do Código Civil”, ou de carácter material, instituindo uma regulação própria para essas relações, não coincidente com a lei antiga nem com a lei nova, como é o caso dos artigos 57º (transmissão por morte no arrendamento para a habitação) e 58º (transmissão por morte no arrendamento para fins não habitacionais), todos do NRAU”.

“Porém, mesmo quando os critérios de delimitação intertemporal apontam para a primazia do NRAU, só quanto aos preceitos imperativos essa aplicação está, de imediato, garantida, mas não já quanto às normas supletivas, que apenas se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor da presente lei quando não sejam em sentido oposto ao de norma supletiva vigente aquando da celebração, caso em que é esta a norma aplicável, em conformidade com o preceituado pelo artigo 59º, nº 3, do mesmo diploma legal”.

De acordo com o estatuído no NRAU, qualquer que seja a modalidade de arrendamento (habitacional ou para fins não habitacionais) e o respectivo tipo de duração (com prazo certo ou com prazo indeterminado) o locador passa, também, a gozar do direito de se opor à renovação ou de denunciar, livremente, o contrato.

Eliminou-se do monopólio da oposição à renovação, por parte do inquilino, que se traduzia para o senhorio no regime da prorrogação forçada do vínculo contratual (regra da renovação ou prorrogação obrigatória do contrato de arrendamento).

Feitas estas considerações, revertamos ao caso em apreço.

f)Entendeu o Tribunal “a quo” que não poderia operar a denúncia para habitação do senhorio (cf. artº 1101º do Código Civil), por estar verificada a situação impeditiva de tal denúncia, prevista no artº 107º nº 1, al. b) do R.A.U. (“Manter-se o arrendatário no local arrendado há  30 ou mais anos, nessa qualidade (…)”), sendo este último normativo aplicado ao caso dos autos “ex vi” artº 26º nº 4 do N.R.A.U.).

Ora, na sua versão original, constava do artº 26º nº 4 do N.R.A.U. :
“4-Os contratos sem duração limitada regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades :
a)Continua a aplicar-se o artigo 107º do RAU ;
(…)”.

No entanto, em 2012, em razão da crise existente no país e a pretexto do documento elaborado pela “Troika”, que mencionava alguns pontos da matéria locatícia (constava do mesmo que o “Governo apresentará medidas para alterar a nova Lei do Arrendamento Urbano, a Lei nº 6/2006, a fim de garantir obrigações e direitos equilibrados de senhorios e inquilinos, tendo em conta os grupos mais vulneráveis.  Este plano conduzirá a uma proposta de legislação a ser apresentada à Assembleia da República”), o Governo encetou nova reformulação das regras do arrendamento urbano, projectando-se uma clivagem ainda maior com a disciplina do passado.  Assim, depois de alguma discussão acerca do anteprojeto, surge a Lei 31/2012, de 14/8.

Esse diploma deu nova redacção ao artº 26º nº 4 do N.R.A.U., passando a constar da sua redacção :
“4-Os contratos sem duração limitada regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades :
a)Continua a aplicar-se o disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 107º do RAU ;
(…)”.

Ou seja, deixou de se aplicar aos casos de denúncia para habitação do senhorio a regra da alínea b) do artº 107º nº 1 do R.A.U..

Assim, no tocante à denúncia motivada do senhorio para sua habitação ou dos seus descendentes em 1º grau (artº 1101º al. a) do Código Civil), optou-se por alterar a referida alínea a) do nº 4 do artº 26º do N.R.A.U..

E, de acordo com a sua nova redacção, a denúncia (motivada) pelo senhorio não produz efeitos se se verificar uma das quatro circunstâncias previstas na disposição, a saber :
-Ter o arrendatário mais de 65 anos ;
-Encontrar-se o arrendatário na situação de reforma por invalidez absoluta ;
-Não beneficiando de pensão de invalidez, sofra o arrendatário de incapacidade total para o trabalho ;
-Sofra o arrendatário de deficiência a que corresponda incapacidade superior a dois terços.

g)Há, porém, que analisar a conformidade constitucional desta alteração, à luz do princípio da confiança, ínsito no artº 2º da Constituição da República Portuguesa, quando aplicável a situações já consolidadas à data de entrada em vigor da Lei 31/2012, de 14/8, isto é, a casos em que já haviam decorrido mais de trinta anos de permanência do arrendatário no locado.

O Acórdão do Tribunal Constitucional nº 297/2015 (consultado na “internet” em www.tribunalconstitucional.pt) veio “julgar inconstitucional a alteração introduzida pela Lei nº 31/2012, de 14 de agosto, no artigo 26º, nº 4, alínea a), da Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, ao ofender o direito do arrendatário à permanência no local arrendado quando aí se tenha mantido por um período superior a trinta anos integralmente transcorrido à data da entrada em vigor daquela lei, por violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, integrantes do princípio do Estado de direito democrático contido no artigo 2º da CRP”.

Entendemos dever aderir a esta orientação, que, aliás, vem sendo seguida com unanimidade por aquele Tribunal em inúmeros arestos (cf. artº 8º nº 3 do Código Civil.
   
O contrato de arrendamento em causa foi celebrado, como já referimos, em 1978, ainda antes da vigência do R.A.U. (que apenas entrou em vigor em 18/11/1990), sendo-lhe aplicáveis, como já se viu, as regras do N.R.A.U..

E vigora, desde 2012 a já citada versão do artº 26º do N.R.A.U., segundo o qual aos contratos como o dos autos “continua a aplicar-se o disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 107º do R.A.U.”.

De acordo com esta redacção, passou a ser desconsiderada a circunstância de o arrendatário permanecer no local arrendado continuamente por período superior a trinta anos.

No entanto, há que entender, na esteira do citado Acórdão do Tribunal Constitucional, que à data da publicação daquelas alterações ao N.R.A.U. (2012) já se havia consolidado na esfera jurídica dos recorridos o direito de oposição à denúncia do arrendamento por parte do senhorio previsto no artº 107º nº 1, al. b) do R.A.U., uma vez que tinham já decorrido mais de trinta anos desde a celebração do contrato (mais precisamente trinta e quatro anos).

Como ali se refere :
“O que está em causa é, verdadeiramente, a retroatividade da alteração legislativa, sendo sobre ela que há de recair o juízo de desconformidade ou não desconformidade constitucional.  Na verdade, desacautelando os interesses dos arrendatários de longa duração, tornou imediatamente irrelevante, no plano da manutenção do arrendamento, aquela circunstância, debilitando insuportavelmente a situação jurídica dos arrendatários, mesmo que o prazo de trinta anos já tivesse transcorrido por completo à data da entrada em vigor da Lei nº 31/2012 e os arrendatários tivessem, por tal motivo, adquirido o direito à permanência no local arrendado com base na lei então em vigor”.

Daqui resulta que, em bom rigor, podiam os recorridos opôr-se à denúncia do contrato de arrendamento levada a efeito pelos apelantes através desta excepção peremptória.

Essa foi a conclusão a que, correctamente, a primeira instância chegou, sem no entanto aludir à concreta questão de constitucionalidade, na vertente exposta, o que obviamente se impunha, com a consequente delimitação na parte dispositiva da sentença.

Efectivamente, a questão prende-se com a aplicação de uma norma de direito transitório (o citado artº 26º da Lei 6/2006 de 27/2), agora à luz da Lei 31/2012 de 14/8, lei que o Tribunal “a quo”, na decisão recorrida, omitiu em absoluto.

Mantém-se, pois, o juízo valorativo feito pelo Tribunal de primeira instância, ainda que com expressa menção da posição supra assinalada, a verter, consequentemente, na parte dispositiva deste aresto.

h)E será a aplicação do artº 107º do R.A.U. inconstitucional, enquanto limitadora dos Direitos de propriedade e de habitação dos apelantes ?

Defendem terem sido violados os artºs. 2º (República Portuguesa como Estado de direito democrático baseado no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais) 13º (princípio da igualdade) 20º nº 1 (garantia da tutela jurisdicional efectiva) 65º (direito a habitação) e 72º (protecção da terceira idade) da Constituição da República Portuguesa.

Além desses preceitos, está aqui subjacente um conflito entre o Direito de propriedade privada (artº 62º da Constituição da República Portuguesa) e a restrição de Direitos consagrada no artº 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa (“A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”).

São, justamente, “estes outros direitos ou interesses” apontados em último lugar que devem ser ponderados na situação “sub judice”.

Ou seja, poderá o Direito do proprietário denunciar o contrato para habitação própria ceder perante o Direito do inquilino (que no caso habita no imóvel há mais de 30 anos) ?

Movemo-nos, aqui, num espaço de enorme importância colectiva que convoca a noção da função social da propriedade, ou seja, da afectação desta a interesses comuns – sem denegação da sua central vertente pessoal quando investida em titulares individuais –particularmente nos núcleos geográficos assinalados pela concentração populacional, ou seja, em zonas urbanas, relativamente a bens em condições de satisfazer necessidades habitacionais.

A propriedade, particularmente a urbana, tem o seu uso referenciado ao bem comum, desempenhando funções sociais e, até, ambientais.

Que assim é, vemo-lo na própria Constituição da República Portuguesa, já que o Texto Fundamental nos apresenta com clareza alguns dos interesses estruturantes a ela associados e que também se quer proteger.

Temos, assim, algumas normas cujo regime importa ter presente, como sejam os artºs. 65º (Habitação e urbanismo), 70º (Juventude), 72º (Terceira idade), 88º (Meios de produção em abandono) e 96º (Formas de exploração de terra alheia).
Não se olvida o que, com relevo neste ponto, emergia do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 93-346-1, de 12/5/1993 (consultado na “internet” em www.dgsi.pt) ou seja, os seguintes excertos do respectivo sumário :
“(…)

VI-Seja qual for a natureza de direito a habitação, ele não confere ao cidadão um direito imediato a uma prestação efectiva, tendo como único sujeito passivo o Estado – e as regiões autónomas e os municípios – e nunca, ao menos em princípio, os proprietários ou senhorios, para alem de que o cidadão só pode exigir o seu cumprimento nas condições e termos definidos pela lei.

VII-A norma impugnada, conjugada com outras, estabelece uma solução que protege suficientemente a dimensão social mais premente do direito a habitação, devendo ponderar-se que o grau de realização deste direito fica dependente das opções que o Estado seguiu em matéria da política de habitação, as quais são sempre condicionadas pelos recursos financeiros de que o próprio Estado fosse dispor em cada momento e pelo grau de sacrifício que o legislador considerar razoável impor aos proprietários privados, senhorios de casas de habitação”.

Temos, pois, como certo e razoável que as políticas do Estado se devem desenhar, em primeira e principal linha, à custa dos seus recursos próprios e disponíveis e não através da compressão dos direitos individuais.

Se dúvidas houvesse, quanto a este aspecto, elas dissipar-se-iam mediante análise do verdadeiro “programa de encargos” que, quanto à concretização do direito à habitação, brota das várias alíneas do artº 65º nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

Assim :
“2- Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado :

a)Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social ;
b)Promover, em colaboração com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais ;
c)Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada ;
d)  Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução”.

Porém, como se sabe, a título complementar, a consecução das finalidades públicas faz-se também mediante tal compressão (vide, por exemplo, o que ocorre com a requisição e a expropriação por utilidade pública apontadas no artº 62º nº 2 da Constituição da República Portuguesa).

De forma idêntica se vêm tecendo, há décadas, políticas próprias da ideologia do Estado Social, na área da afirmação do direito à habitação, parcialmente sustentadas não no investimento público ou na dinamização do funcionamento das livres regras de mercado mas na redução de algumas faculdades de actuação dos proprietários dos imóveis.

Só por si, esta “redução volumétrica” (expressão utilizada o Acórdão da Relação de Lisboa de 20/12/2012, consultado na “internet” em www.dgsi.pt) dos direitos dos proprietários não produz, porém, inconstitucionalidade nem sequer pela ausência da respectiva expressa e clara compensação pecuniária, face à apontada função social da propriedade.

Nesta linha se dizia, com adequação a este concreto quadro constitucional, político e ideológico (e contexto subjacente de finanças públicas), no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 55/99 (in Diário da República, I Série-A, de 19/2/1999), que :
“Um dos vectores fundamentais em que se traduz a tutela da posição do arrendatário na legislação portuguesa em vigor há mais de 70 anos reside precisamente no estabelecimento de limites ao exercício da liberdade de o senhorio pôr termo ao contrato de arrendamento.  As regras de que resulta a limitação da autonomia privada do senhorio no domínio da cessação do contrato são seguramente as mais importantes regras de tutela da posição do arrendatário”.

Nesta mesma linha e com base na referida concepção, que espelha o quadro constitucional instituído, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 147/2005 (consultado na “internet” em www.tribunalconstitucional.pt) refere que :
“Igualmente se sabe que a celebração de contratos de arrendamento, permitindo o gozo do prédio por pessoa (singular ou colectiva) diferente do respectivo proprietário (artigos 1022º e 1023º do Código Civil), corresponde a uma forma socialmente útil de fruição do direito de propriedade.
(...)

Isso mesmo reconhece a lei ordinária, por exemplo, quando restringe os casos de denúncia pelo senhorio (artigo 68º, nº 2, do Regime do Arrendamento Urbano), quando prevê a possibilidade de transmissão da posição de arrendatário, em caso de trespasse, independentemente de consentimento do senhorio (artigo 115º, nº 1, do Regime do Arrendamento Urbano), ou quando impõe a continuação do contrato aos sucessores do senhorio (artigo 112º, nº 1, do Regime do Arrendamento Urbano)”.

A verdade, todavia, é que a manutenção do contrato de arrendamento com as sucessivas renovações, representa uma oneração séria do direito do proprietário.

Seja como for, e, quer se entenda que a admissibilidade constitucional da limitação ao direito de propriedade implicada pela norma aplicada pelo Tribunal “a quo” (artº 107º do R.A.U.) deva ser analisada à luz do regime previsto no artº 18º nºs. 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa, por estar em causa a dimensão em que aquele direito fundamental é um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias, quer se considere que estamos apenas perante uma limitação a um direito económico, cuja admissibilidade há-de também ser avaliada segundo critérios de proporcionalidade, exigidos pelo princípio do Estado de Direito (artº 2º da Constituição da República Portuguesa), sempre se tem de concluir pela não existência de qualquer obstáculo constitucional.

Com efeito, a manutenção do arrendamento com mais de 30 anos, como obstáculo à denúncia pelo senhorio, revela-se manifestamente adequada e não excessiva, em si mesma, não lesando “o conteúdo essencial” ( artº 18º nº 3 da Constituição da República Portuguesa) ou o “conteúdo mínimo” do direito de propriedade.

Como o Tribunal Constitucional já o afirmou, no seu Acórdão nº 263/2000 (consultado na “internet” em www.tribunalconstitucional.pt), também aqui se pode dizer que, apesar de tudo, os “senhorios (…) continuam a poder transmiti-lo e fruí-lo (convindo-se, contudo, que se não pode escamotear que, na prática, a transmissão de um prédio urbano dado de arrendamento se antevê mais dificultosa reportadamente a um outro que se não encontre “onerado” com um tal tipo de contrato e que, dados os condicionamentos da actualização das rendas, a sua fruição se pode apresentar como menos proveitosa)”.

“Ao vincular-se nos termos em que o fez, o senhorio atendeu, seguramente, por se dever presumir que geriu os seus interesses económicos com zelo, informação e sagacidade, ao regime normativo relativo ao arrendamento, que continha já as limitações contra as quais agora se rebela” (cf. Acórdão da Relação de Lisboa de 20/12/2012, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
Ou seja, exerceu com liberdade a gestão da sua propriedade individual, quis vincular-se e vinculou-se, não lhe tendo sido directamente imposta, por acção do Estado, no momento de tal vinculação ou em qualquer outro da vida do contrato, medida que o privasse da propriedade do seu bem, isto sem prejuízo de se aceitar a existência desde o início da relação jurídica, de uma forte compressão do seu direito em nome da função social de tal propriedade e de outros interesses e direitos conexos tidos como constitucionalmente relevantes e que se quis tutelar através da específica e cogente regulação do contrato de direito privado em referência neste processo.

“Não se divisa, na situação sob avaliação, arbitrariedade do Estado, apenas consequência e coerência com o travejamento ideológico que sustentou o desenho do sistema e com a carência de meios para a realização de mais alargadas políticas públicas” (cf. Acórdão da Relação de Lisboa de 20/12/2012, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).

Atenta a consagrada função social da propriedade, não se pode falar em desproporção, já que tal função actuaria como elemento equilibrante do sistema.  Nem se atentou contra a super-estrutura de princípios de sustentação do Estado de Direito.

Assim sendo, não assiste razão aos apelantes na alegação da inconstitucionalidade da aplicação do artº 107º do R.A.U. ao caso dos autos.

Deste modo, a acção terá de improceder.

i)Sumário :

I-Relativamente aos arrendamentos para habitação anteriores à vigência do R.A.U., a denúncia do contrato pelo senhorio, após a publicação do N.R.A.U., deve ser analisada no quadro das normas transitórias previstas no N.R.A.U., concretamente do disposto no artº 26º nº 4 desse diploma legal.

II-É de afastar a conformidade constitucional da alteração ao N.R.A.U., introduzida pela Lei nº 31/2012 de 14/8, à luz do princípio da confiança, ínsito no artº 2º da Constituição da República Portuguesa, quando aplicável a situações já consolidadas à data de entrada em vigor desta Lei, isto é, a casos em que já haviam decorrido mais de trinta anos de permanência do arrendatário no locado
III-Não existe obstáculo constitucional, quer à luz do regime previsto no artº 18º nºs. 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa, quer à luz do artº 2º do mesmo diploma, a que o legislador estabeleça limites ao exercício da liberdade de o senhorio pôr termo ao contrato de arrendamento, por denúncia com invocação de necessidade do locado para habitação própria, em função da permanência do arrendatário no local arrendado, nessa qualidade, há mais de 30 anos. 
*  *  *

IIIDecisão.

Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação improcedente e, recusando este Tribunal a aplicação, por inconstitucional, da norma constante dos artºs. 26º nº 4, al. a) e 28º nº 1 da Lei 6/2006, de 27/2, na redaçção conferida pela Lei 31/2012 de 14/8, no sentido de não impedir a denúncia do contrato de arrendamento pelo senhorio, para sua habitação ou dos seus descendentes em 1º grau, quando o arrendatário, à data de entrada em vigor da Lei 31/2012 de 14/8, se mantivesse no local arrendado há trinta ou mais anos, por violação do princípio da confiança ínsito no artº 2º da Constituição da República Portuguesa, confirma-se a decisão recorrida.
Notifique, sendo o M.P. para os efeitos a que alude o artº 72º nº 3 da Lei nº 28/82 de 15/11 (Lei do Tribunal Constitucional). 
Custas:Pelos recorrentes (artº 527º do Código do Processo Civil).

Processado em computador e revisto pelo relator


Lisboa, 12 de Abril de 2016


(Pedro Brighton)
(Teresa Sousa Henriques)
(Isabel Fonseca)