Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1807/12.1TVLSB.L1-6
Relator: ANA PAULA A. A. CARVALHO
Descritores: SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Suspensa a instância por óbito de uma das rés, nos termos do artigo 270º nº 1 do C.P.C., e sendo a autora devidamente alertada de que lhe incumbe o ónus processual de requerer a habilitação dos sucessores e qual o prazo, não se impõe ouvir as partes antes de declarar extinta a instância por deserção, ao abrigo do disposto no artigo 281º nº 1 do C.P.C.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Seção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO

Na acção de processo ordinário instaurada por Chebadol – Coop. H. e Const. Económica Bairro D. Leonor, C.R.L. contra o réu Município de Lisboa, e mais réus, foi por despacho de 21.11.2017 declarada extinta a instância por deserção, nos termos do artigo 281º nº 1 do C.P.C.
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Não se conformando, a autora apresentou recurso de apelação, pugnando pela revogação da decisão recorrida com a consequente determinação do prosseguimento dos autos.

A apelante formula as seguintes conclusões das alegações de recurso:

«I - A douta sentença que julgou extinta, por deserção, a instância interpretou erradamente o artigo 281º do Novo Código de Processo Civil pois que incumbia ao julgador a quo apurar se a não habilitação dos sucessores dos Réus, entretanto falecidos, se devia a negligência das partes.
II - Resulta de vários requerimentos apresentados após a declaração de suspensão da instância por decesso de vários Réus, que a A e ora Recorrente se empenhou na árdua tarefa de obter a identidade de tais sucessores.
Assim:
A) Em 14-03-2017 a A entregou no Serviço de Finanças - Lisboa - 4, requerimento no qual pedia informação relativa à identificação dos sucessores dos Réus falecidos, para efeito de procedimento de Imposto de Selo pelos respetivos óbitos, tendo junto aos autos cópia do mesmo mais pedindo, desde logo, prorrogação do prazo para promover as habilitações, face às previsíveis delongas do Serviço de Finanças em facultar as informações solicitadas (requerimento datado de 16-03-2017 com a referência 14351276)
B) Em 24-04-2017 a Recorrente juntou aos autos cópia do despacho do Chefe do Serviço de Finanças, rececionado pela Recorrente a 06-04-2017, recusando as informações solicitadas, escudando-se no sigilo fiscal.
A A requereu a junção de cópia do aludido despacho, requerendo o levantamento do sigilo fiscal, requerimento com a referência 14794679.
C) Em 09-05-2017 foi proferido despacho determinando o levantamento do sigilo fiscal, tendo o mesmo sido notificado à A a 25-05-2017 (despacho com a referência 366529863), despacho de que a Recorrente deu conhecimento ao Serviço de Finanças, tendo junto aos autos cópia do mesmo por requerimento datado de 13-07-2017, com a referência 15712729.
D) Como é vulgar, ficou a A a aguardar a passagem da almejada certidão, tendo-lhe sido asseverado que logo que estivesse pronta seria contactada por telefone, o que sucedeu em Outubro, tendo a A procedido ao levantamento da mesma, encontrando-se a diligenciar junto da Conservatória do Registo Civil competente pela obtenção das certidões de nascimento dos sucessores identificados nos processos de Imposto de Selo por óbito.
E) E estava nisto a A envolvida na árdua e hercúlea tarefa de apurar a identidade dos sucessores das partes falecidas quando é proferida a sentença de que se recorre, declarando deserta a instância.
III - Não houve pois qualquer tipo de negligência da parte da A e Recorrente que se não poupou a esforços para identificar quem deveria suceder na lide aos falecidos.
Existiria negligência se nada houvesse feito, o que não é manifestamente o caso.
IV - A douta sentença sob recurso viola ainda o nº 3 do artigo 3º do código de Processo Civil pois que ao proferi-la a Meritíssima julgadora a quo não facultou às partes o direito a pronunciarem-se sobre a questão decidida, por isso, decisão surpresa, não permitida pela citada disposição legal.
V - Mais viola de igual sorte os Princípios da Cooperação e Gestão Processual acolhidos nos artigos 6º e 7º do Código de Processo Civil.
VI - Com efeito, deveria a A e Recorrente ter sido alertada expressamente para a necessidade de acautelar os riscos da deserção da instância e de que se encontrava a correr o respetivo prazo.
O que não sucedeu.
VII - Em obediência ao Princípio da Gestão Processual, não faz sentido a douta decisão recorrida, por implicar a entrada de uma nova ação entre as mesmas partes e com idêntico fundamento, causando profundo transtorno à A e sobrecarregando desnecessariamente o Tribunal com a repetição de um conjunto de atos.
VIII - Assim, revogando a douta sentença a quo, determinando o prosseguimento dos autos,
Farão V. Ex.cias, como sempre, JUSTIÇA!»
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Foram apresentadas contra-alegações, pugnando pela manutenção da decisão e improcedência do recurso.
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Obtidos os vistos legais, cumpre apreciar.
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Questões a decidir:

O objeto e o âmbito do recurso são delimitados pelas conclusões das alegações, nos termos do disposto no artigo 635º nº 4 do Código de Processo Civil. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Similarmente, não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Abrantes Geraldes, Recursos no N.C.P.C., 2017, Almedina, pág. 109).

Importa apreciar unicamente se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento, por não interpretar correctamente o artigo 281º nº 1 do N.C.P.C e violar o princípio do contraditório, bem como da cooperação e gestão processual, consignados nos artigos 3º nº 3, 6º e 7º do N.C.P.C.?
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade processualmente adquirida com relevo para a decisão é a seguinte:

1 - Comprovado o óbito da ré AF, foi declarada suspensa a instância por despacho de 24.01.2017 (despacho refª 362733046), notificado à autora em 01.02.2017.

2 - Em 23.03.2017, foi apreciado o requerimento de fls. 1410 a 1413 da autora, nos seguintes termos (despacho refª 364541385 notificado à autora em 24.03.2017): «O prazo limite para a apresentação dos requerimentos de habilitação de herdeiros, é o prazo de deserção a que alude o art. 281º do CPC, o qual se iniciou com a notificação do despacho judicial que declarou a suspensão da instância (cfr. fls. 1400)…Pelo exposto, a Autora dispõe mais do que os sessenta dias que requer, pelo que nada há a deferir.»   

3 – Em 09.05.2017, foi apreciado o requerimento de fls. 1415 e seg. da autora, nos seguintes termos (despacho refª 365875180 notificado à autora em 25.05.2017): «Ao abrigo do disposto no art. 418º do CPC, dispenso a confidencialidade dos dados mencionados no nº 2, do referido preceito legal, no que respeita aos eventuais herdeiros dos Réus falecidos, com vista a viabilizar a habilitação daqueles permitindo o prosseguimento da acção»

4 – Em 21.11.2017, foi proferido o despacho recorrido:

 «Compulsados os autos, verifica-se que os mesmos se encontram suspensos desde 24.01.2017, em virtude do falecimento da Ré AF (cfr. fls. 1400).
Presentemente, com a entrada em vigor do NCPC, mantendo-se o mesmo regime de suspensão da instância com base no falecimento de qualquer das partes (arts. 269.º, n.º 1., al. a), e 270.º, n.º 1) a lei deixou de prever a figura da interrupção da instância, prevendo apenas que “(…) considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar o impulso processual há mais de seis meses” – art. 281.º, n.º 1.
A deserção assim prevista é, como anteriormente, causa da extinção da instância (art. 277.º, al. c), do NCPC).
Pelo exposto, decorrido o aludido prazo, sem que o Autor tenha promovido o prosseguimento dos autos, julgo deserta a instância e, consequentemente, extinta.
Valor: € 30.001,00
Custas pela Autora, uma vez que os Réus não deram causa à acção (artigo 535.º, n.ºs 1 e 23, do Código de Processo Civil).
Notifique e registe.»
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

a). Se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento, por não interpretar correctamente o artigo 281º nº 1 do N.C.P.C e violar o princípio do contraditório, bem como da cooperação e gestão processual, consignados nos artigos 3º nº 3, 6º e 7º do N.C.P.C.?

Tal como é sintetizado nas contra-alegações, a autora, ora recorrente, entende que as habilitações de herdeiros que teria que intentar, face ao falecimento de alguns dos RR, não o foram no prazo de 6 meses, a contar da data da notificação da decisão da suspensão da instância, por questões alheias à sua vontade, mas sim e tão só devido ao facto de ter sido complexa e demorada a obtenção de todos os dados necessários para o efeito, não tendo havido qualquer omissão ou negligência da parte. A Recorrente pretende, assim, a substituição da sentença recorrida que declarou deserta a instância por outra que notifique as partes para se pronunciarem sobre a falta de impulso processual.

Demonstrado o óbito de uma das rés, na pendência da acção, foi declarada suspensa a instância, nos termos do artigo 269º nº 1 alínea a) conjugado com o artigo 271º do C.P.C.

Com a entrada em vigor do novo C.P.C., aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/06, foi abolido o prazo de interrupção da instância, que acarretava a paralisação do processado durante um período que não podia exceder os dois anos de duração, sob pena de convolação na deserção com efeito extintivo da instância (artigos 285º e 291º nº 1 do anterior C.P.C.). Paralelamente, foi reduzido para seis meses o prazo de deserção da instância (artigo 281º nº 1 do NCPC). Este novo regime visou penalizar as partes pela inércia processual, atribuindo maior relevo ao princípio do dispositivo, no tocante ao ónus de promoção da tramitação processual e de forma a aumentar a auto-responsabilidade das partes. No entanto, a instância não se considera deserta independentemente de qualquer decisão judicial, impondo-se no nº 4 do artigo 281º que seja declarada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator. A exceção ocorre unicamente no processo de execução, conforme resulta do disposto no nº 5 deste preceito.

Nas situações em que o óbito da parte não determina a impossibilidade ou a inutilidade superveniente da lide, o prosseguimento da instância fica dependente da habilitação dos sucessores, que é susceptível de ser despoletada por qualquer uma das partes, através do incidente de habilitação, regulado no artigo 351º e seguintes do C.P.C.

No caso vertente, a autora e recorrente insurge-se em primeiro lugar contra a circunstância de não ter sido previamente ouvida pelo tribunal, que decretou a extinção da instância por deserção, violando assim o princípio do contraditório, exarado no artigo 3º nº 3 do C.P.C.

Note-se que a presente acção ordinária teve início antes da entrada em vigor do Novo C.P.C., mas o despacho recorrido foi proferido muito depois do decurso do primeiro ano subsequente, durante o qual se impôs ao juiz a intervenção oficiosa, por força do artigo 3º da Lei nº 41/2013, de corrigir ou convidar a parte a corrigir o erro sobre o regime legal aplicável em virtude da aplicação das normas transitórias ou quando da leitura dos requerimentos ou demais peças processuais resultasse que a parte agia em erro sobre o conteúdo do regime processual aplicável, e de forma a promover a superação do equívoco.

De qualquer modo, não se tratou claramente de uma «decisão-surpresa». Da análise do processado, verifica-se que o tribunal alertou a autora, por despacho que lhe foi notificado (proferido em 23.03.2017), de que o prazo de deserção da instância aplicável e já iniciado era de seis meses, por força do disposto no artigo 281º nº 1 do C.P.C., e de que lhe incumbia o ónus processual de requerer a habilitação de herdeiros.

Nesta sequência, estando a parte devidamente alertada de qual o encargo que se lhe impunha para promover a iniciativa processual e em que prazo, bem como das consequências para a acção se nada fizesse, não tinha o tribunal de apurar se houve ou não negligência para declarar a instância deserta nos termos do artigo 281º nº 1 do C.P.C.

Tem sido, aliás, este o entendimento perfilhado na jurisprudência recente do S.T.J., conforme Acórdão de 20.09.2016 (Processo nº 1742/09), de que deixando «a A. de impulsionar o processo, por mais de seis meses, através da dedução do processo incidental de habilitação de sucessores e não tendo apresentado durante esse período qualquer razão impeditiva da não promoção, estamos perante uma omissão de impulso a qualificar necessária e automaticamente como negligente e que implica a deserção da instância»; Acórdão de 14.12.2016 (105/14) de que suspensa «a instância por óbito do autor e decorrido o prazo de 6 meses em que o processo se encontra a aguardar o impulso processual, o tribunal deve proferir despacho a julgar deserta a instância (art. 281º do CPC), não impondo a lei que, antes de proferir a decisão, ouça as partes ou qualquer dos sucessores tendo em vista determinar as razões da sua inércia»; e Acórdão de 25.01.2018 de que, em «face da clareza quer do art. 270º, nº 1 (duração da suspensão da instância), quer do despacho que declarou a suspensão da instância, nada mais havia a fazer do que dar início ao referido incidente de habilitação de sucessores do falecido A. e promover com diligência o seu andamento com vista à prolação da sentença de habilitação que reconhecesse aos sucessores do A. a qualidade necessária para com eles prosseguirem os termos da demanda (art. 351º, nº 1).»

Nas alegações de recurso, é feita uma referência à grande complexidade das diligências necessárias, «dada a dificuldade em obter as adequadas informações que implicaram inúmeras deslocações aos vários serviços de Finanças, onde supostamente estariam abertos os respetivos processos fiscais sucessórios».

No entanto, a apelante conformou-se com o despacho proferido em 23.03.2017, em que o tribunal dá conta do prazo que se encontrava em curso, sem atender à prorrogação então requerida pela parte. Além disso, no próprio incidente de habilitação de herdeiros é possível o recurso à citação edital no caso de incerteza de pessoas, regulada no artigo 355º do C.P.C., tal como se faculta ao requerente a possibilidade de requerer com a citação dos sucessores conhecidos a identificação dos demais herdeiros, ou de promover as diligências necessárias na fase de citação, por aplicação do disposto nos artigos 225º e seguintes do C.P.C. Mas, não pode nem deve o tribunal substituir-se à parte a quem incumbe o ónus processual, por força do princípio do dispositivo, consignado nos artigos 3º nº 1, 5º e 6º nº 2 do C.P.C.

Conforme realçam diversos autores, o poder de direção do processo encontra-se devidamente distanciado do princípio do inquisitório no Novo Código do Processo Civil, encontrando-se este previsto como norma geral no início do novo título dedicado à instrução da causa (artigo 411º), enquanto aquele outro poder foi autonomizado como princípio de gestão processual, no artigo 6º nº 1 e nº 2 (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, C.P.C. Anotado, Vol. 2º, pág. 206; Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao N.C.P.C., Vol. I, pág. 334). Existe, no entanto, divergência quanto à natureza do dever de gestão processual, considerando alguns autores (J.L. Freitas e Isabel Alexandre, obra citada, Vol. I, pág. 23) que as atuações jurisdicionais abrangidas pelo princípio do inquisitório estão fora do princípio da gestão processual, que manterá um alcance meramente formal.

O poder-dever de gestão processual, tal como é delimitado no artigo 6º, compreende no nº 1 dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação e recusando o que for impertinente ou meramente dilatório, sempre dentro dos limites da lei, designadamente, sem pôr em causa o ónus de impulso processual subsequente, ligado ao princípio do dispositivo.

No caso dos autos, decorre dos diversos despachos proferidos que o ónus de averiguar os dados relativamente às partes falecidas não incumbe ao tribunal, mas sim à parte de quem depende o impulso processual, o que resulta claramente do disposto no artigo 270º do C.P.C. Destarte, não podia o tribunal lançar mão do poder-dever de gestão processual para se substituir à parte, a quem incumbia o ónus de impulso processual subsequente, tal como decorre do nº 2 do citado artigo 6º.

Também não se vislumbra em que medida foi violado o princípio da cooperação, que impõe não apenas deveres entre as partes e o tribunal, como deveres das partes entre si e do tribunal para com as partes, «com variadas manifestações ao longo do processo e plena concretização na audiência preliminar: dever de agir de boa-fé, dever de urbanidade e respeito, dever de pontualidade» (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, C.P.C. Anotado, Vol. 1º, pág. 26), etc., consoante é consagrado no artigo 7º (norma idêntica ao artigo 266º do C.P.C. na versão anterior).
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Por conseguinte, é forçoso concluir que as pretensões da apelante não merecem qualquer acolhimento.
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DECISÃO

Em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.


Custas a cargo da apelante.

Lisboa, 07.06.2018,

Ana Paula Albarran Carvalho

Maria Manuela Gomes

Gilberto Jorge