Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4245/2005-8
Relator: CAETANO DUARTE
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
UTILIDADE PÚBLICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/13/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: - Para que um contrato de prestação de serviços possa ser qualificado como de imediata utilidade pública é preciso que haja uma associação do particular às atribuições da autoridade administrativa ou que, pelo menos, se estabeleça uma relação directa e precisa entre o contrato e a satisfação de necessidades públicas;
- A prestação de serviços de vigilância é, segundo a Lei da Segurança Privada, objecto exclusivo das pessoas colectivas privadas;
- Não estando perante contratos de prestação de serviços para fins de imediata utilidade pública nem perante qualquer contrato administrativo atípico, não se pode falar em vontade das partes de se submeter a um regime substantivo de direito público;
- Não revestindo os contrato celebrados entre Autora e Ré a natureza de contratos administrativos, são os tribunais comuns os competentes para conhecer do pedido.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

Prosegur – Companhia de Segurança, L.da propôs acção com processo ordinário contra Câmara Municipal de Cascais pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 849.093,78. Alega que prestou serviços de vigilância a pedido da Ré os quais importaram em € 681.196,19 a que acrescem € 118.471,55 de IVA. Os juros vencidos até 23 de Junho de 2003 são no valor de € 49.426,04.
Contestou a Ré defendendo a incompetência do tribunal porque se trata de contrato administrativo pelo que a acção devia ser proposta nos tribunais administrativos. Alega ainda que, tratando-se de contrato administrativo, o mesmo não foi celebrado pela forma legal pelo que é nulo.
A Autora replicou, respondendo às excepções e formulando um pedido subsidiário pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia pedida por enriquecimento sem causa.
Foi proferido saneador sentença em que se julgou procedente a excepção de incompetência do tribunal e se absolveu a Ré da instância. Desta decisão vem o presente recurso interposto pela Autora.
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Nas suas alegações, defende o agravante, em resumo:
- A presente provida data da instauração desta acção ainda estava em vigor o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais de 1984 que atribuía aos tribunais administrativos, excluindo as acções que tivessem por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público;
- Para que um contrato de prestação de serviços possa ser qualificado como de imediata utilidade pública é preciso que haja uma associação do particular às atribuições da autoridade administrativa ou que, pelo menos, se estabeleça uma relação directa e precisa entre o contrato e a satisfação de necessidades públicas;
- A prestação de serviços de vigilância é, segundo a Lei da Segurança Privada, objecto exclusivo das pessoas colectivas privadas;
- Não estando perante contratos de prestação de serviços para fins de imediata utilidade pública nem perante qualquer contrato administrativo atípico, não se podem falar em vontade das partes de se submeter a um regime substantivo de direito público;
- Estas considerações valem para afastar a nulidade do contrato por falta de forma uma vez que não estamos perante contrato administrativo;
- Deve por isso ser condenada a Ré porque nada opôs ao pedido formulado pela Autora.
A Ré contralegou dizendo:
- Os contratos em causa nos autos visam a prossecução de fins de imediata utilidade pública decorrentes da necessidade de assegurar a vigilância e segurança das instalações públicas;
- Compete aos tribunais administrativos conhecer das acções sobre contratos administrativos e sobre a responsabilidade das partes pelo seu incumprimento.
O juiz a quo manteve a sua decisão.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
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O objecto do recurso é delimitado pelas alegações dos recorrentes – artigo 684º do Código de Processo Civil. No caso dos autos, há que decidir se os contrato celebrados entre Autora e Ré revestem a natureza de contratos administrativos e, consequentemente, se os tribunais administrativos são os competentes para conhecer do pedido.
A competência dos tribunais administrativos estava previsto no artigo 9º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto Lei 129/84 de 27 de Abril:
“Artigo 9.º
(Contratos administrativos)
1 - Para efeitos de competência contenciosa, considera-se como contrato administrativo o acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica de direito administrativo.
2 - São designadamente contratos administrativos os contratos de empreitada de obras públicas, de concessão de obras públicas, de concessão de serviços públicos, de concessão de uso privativo do domínio público e de exploração de jogos de fortuna ou de azar e os de fornecimento contínuo e de prestação de serviços celebrados pela Administração para fins de imediata utilidade pública.”
A partir de 19 de Fevereiro de 2003, data da entrada em vigor do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pela Lei 13/2002 de 19 de Fevereiro, a competência daqueles tribunais, no que respeita a contratos, passou a estar regulada no artigo 4º, n.º 1:
“Artigo 4.º
Âmbito da jurisdição
1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público”.
A presente acção foi proposta em 30 de Junho de 2003 pelo que a lei aplicável é o Estatuto de 2002, que entrou em vigor em 19 de Fevereiro de 2003, e não o ETAF de 1984 como pretende a Autora. Portanto, a validade e execução dos contratos em causa nos autos será da competência dos tribunais administrativos se:
- forem objecto passível de contrato administrativo;
- existam normas de direito público a regular aspectos do seu regime substantivo;
- as partes os tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.
As duas últimas hipóteses são de afastar liminarmente. O contrato de prestação de serviços de vigilância está regulamentado na Lei de Segurança Privada, aprovada pelo Decreto Lei 231/98 de 22 de Julho e resulta da leitura deste regime que não estamos perante normas de direito público. Basta citar o disposto no n.º 3 do seu artigo 1º: “Para efeitos do presente diploma considera-se actividade de segurança privada:
a) A prestação de serviços por entidades privadas, legalmente constituídas para o efeito, com vista à protecção de pessoas e bens, bem como à prevenção da prática de crimes; b) A organização por quaisquer entidades de serviços de auto protecção com vista à protecção de pessoas e bens, bem como à prevenção da prática de crimes”. Estamos perante uma actividade privada exercida por entidades privadas. Não existindo contrato escrito, não se pode considerar que a vontade das partes tenha sido a de submeter os contratos a regime substantivo de direito público.
O que se deve entender por contrato administrativo?
A primeira definição legal de contrato administrativo surge no ETAF de 1984 cujo n.º 1 do artigo 9º o define como “o acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica de direito administrativo”. O artigo 178º n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo retoma esta definição em termos muito idênticos: “diz-se contrato administrativo o acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica administrativa”. Partindo destas definições legais, Freitas do Amaral In Curso de Direito Administrativo, 2001, vol. II, fls. 519 defende que “um contrato é administrativo se o respectivo objecto respeitar ao conteúdo da função administrativa e se traduzir, em regra, em prestações referentes ao funcionamento de serviços públicos, ao exercício de actividades públicas, à gestão de coisas públicas, ao provimento de agentes públicos ou à utilização de fundos públicos. Em alternativa, se o objecto não for nenhum destes, o contrato só será administrativo se visar um fim de utilidade pública”.
Aplicando esta doutrina ao caso dos autos, temos de reconhecer que a única possibilidade de os contratos em causa poderem ser considerados contratos administrativos é a prevista na parte final da definição de Freitas do Amaral – visarem um fim de utilidade pública. Estes fins de imediata utilidade pública tem sido entendidos pela jurisprudência como “uma relação directa e suficientemente precisa entre o contrato e a satisfação de necessidades públicas Acórdão do STA, 1ª, de 25/1/2001, proc. 46798. E a doutrina aponta como exemplos destes contratos aqueles em que um particular se obriga a exercer uma tarefa que assegura a regularidade e continuidade de um serviço da organização administrativa contratante Ver Pedro Gonçalves in O Contrato Administrativo, fls. 73.
A tarefa que a Autora se obrigou a efectuar através dos contratos em causa nos autos não visa a regularidade ou a continuidade dos serviços a prestar pela Ré no Aeródromo Municipal, na Assembleia Municipal, no Museu Condes de Castro Guimarães, na Piscina Municipal, etc. Isto é, a regularidade e continuidade da actividade destes vários serviços da Câmara Municipal de Cascais não depende da vigilância a efectuar pela Prosegur. Esta actividade de vigilância apenas garante que não se verifique perturbação dessa actividade mas, mesmo sem esta vigilância, aqueles serviços funcionariam e cumpririam os objectivos de natureza pública a que se destinam. Não nos parece, por isso, que se possa falar em fins de imediata utilidade pública.
A alínea f) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF refere-se aos contratos de objecto passível de acto administrativo. Será que os contratos dos autos se podem enquadrar nesta categoria? Para Pedro Gonçalves in obra citada a fls. 58 “o contrato de objecto passível de acto administrativo é aquele que é celebrado no contexto de uma relação que é, em si mesma, regulada pelo Direito Administrativo: contratos sobre o exercício de poderes públicos, contratos de delegação de funções públicas ou de gestão de estabelecimentos públicos. Parece-nos evidente que os contratos celebrados entre Autora e Ré não revestem estas características.
A conclusão a tirar do que fica exposto é a de não estarmos perante contrato administrativo. Esta conclusão afasta as duas excepções deduzidas pela Ré: não se tratando de contrato administrativo, os tribunais competentes para conhecer do pedido são os tribunais comuns e, neste caso contrário, o tribunal cível a que a acção foi distribuída nem existe nulidade por o contrato não se revestir da forma exigida para os contratos administrativos.
Outra consequência deste entendimento é a de que, face à ausência de contestação dos factos alegados pela Autora, se impõe conhecer, de imediato, do pedido.
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Face à falta de contestação da Ré, podem considerar-se assentes os seguintes factos:
- A Autora – Prosegur, Companhia de Segurança, L.da – é uma sociedade que se dedica à actividade de prestação de serviços de vigilância na área da segurança estática, por conta e ordem de terceiros;
- Entre Fevereiro de 2001 e Outubro de 2002, a Autora prestou à Ré – Câmara Municipal de Cascais -, a solicitação desta, serviços de vigilância em vários equipamentos pertencentes à Ré, tendo esses serviços importado em € 681.196,19 a que acrescem € 118.471,55 de IVA;
- Os referidos valores deviam ser pagos no prazo de 60 dias;
- A Ré, por despacho, decidiu que estas quantias recaem no despacho do DJA (exigir judicialmente o pagamento destas importâncias).
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Pacta sunt servanda. A Ré contratou com a Autora a prestação de serviços de vigilância nas suas instalações. Estes serviços foram prestados. A Ré não se pode eximir ao pagamento do respectivo preço. Não o tendo feito no prazo estipulado, constituiu-se em mora e tem de pagar juros à taxa legal desde essa data até efectivo reembolso.
A Ré, entidade de direito público, fez uso manifestamente indevido do processo. Assumindo o seu débito para com a Autora, que não contesta quer no que se refere à qualidade dos serviços prestados quer quanto ao preço facturado, a Ré limitou-se a usar expedientes que lhe permitissem dilatar no tempo o cumprimento da sua obrigação. Aliás, o despacho da Ré impondo o recurso aos meios judiciais para pagamento desta dívida já é revelador duma intenção de pagar “o mais tarde possível”. Na sua qualidade de ente público, incumbe à Ré uma obrigação especial de agir com lisura e boa fé no seu relacionamento com as entidades privadas com quem contrata. A sua actuação processual tem de ser considerada como litigância de má fé, nos termos e para os efeitos do artigo 456º n.º 2, alínea d) do Código de Processo Civil.
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Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, julgando os tribunais comuns competentes para conhecer do pedido e condenam a Ré a pagar à Autora € 849.093,78 acrescidos de juros, à taxa legal, sobre € 799.667,74 desde 23 de Junho de 2003 até efectivo reembolso e ainda a pagar uma multa no valor de 20 UC como litigante de má fé.
Custas pela agravada.

Lisboa, 13 de Julho 2005

a) José Albino Caetano Duarte

a) Domingos Manuel Gonçalves Rodrigues

a) António Pedro Ferreira de Almeida