Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1329/10.5TBBRG.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
RESOLUÇÃO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
VEÍCULO
REGISTO AUTOMÓVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1.– Não pode o tribunal, depois de, em decisão «avulsa», transitada em julgado, considerar um co-réu parte ilegítima e, consequentemente, e o absolver da instância, por nessa altura ter concluído que ele não celebrou o contrato de locação financeira objeto da ação, nem praticou qualquer um dos factos que lhe eram imputados na petição inicial, e que foi vítima de crimes de burla e de falsificação de documentos, tendo a sua assinatura sido falsificada, declarar, sete meses depois, em sede de sentença, «resolvido o contrato celebrado entre a autora e esse mesmo co-réu.»
2.– É que a resolução constitui uma relevância negocial negativa (a sua frustração) de um facto, tipicamente unilateral-humano ou atipicamente natural, extrínseco e superveniente (o facto relevante da resolução surge em momento posterior à formação do negócio e à verificação dos seus efeitos imediatos ou, pelo menos, de alguns), ou seja, é a destruição da relação contratual, operada por um dos contraentes, com base num facto posterior à celebração do contrato.
3.– Assim, não pode haver resolução contratual se nenhum contrato foi celebrado entre as pessoas que nele figuram como supostos contraentes.
4.– Antes deve ser considerado onticamente inexistente um aparente contrato de locação financeira no caso de se demonstrar que a pessoa nele indicada como locatária nunca foi parte no negócio, tendo o seu nome sido usado graças a documentos que lhe haviam sido furtados, posto que nunca existiu qualquer acordo de vontades entre os supostos contraentes.
5.– O contrato de compra e venda de veículo automóvel não está dependente da observância de qualquer formalidade especial, nem sequer se exigindo a forma escrita, sendo, no entanto, obrigatório o registo do direito de propriedade sobre os veículos automóveis.
6.– O registo automóvel não tem eficácia constitutiva, pois a sua finalidade consiste, essencialmente, em individualizar os respetivos proprietários, destinando-se a dar publicidade aos direitos inerentes aos veículos automóveis, funcionando como simples presunção, ilidível, (presunção «juris tantum») da existência do direito bem como da respetiva titularidade.
7.– O art. 291.º do C.C. trata de nulidade substantiva, ou seja, dos casos de nulidade e anulabilidade do negócio jurídico, enquanto o art. 17.º do CRP respeita à nulidade registral, nos casos previstos no artigo 16.º do mesmo código, sendo certo, obviamente, que na origem de uma nulidade registral pode estar uma nulidade substantiva.
8.– O ato registral pode sofrer de invalidade substantiva ou de invalidade registal, havendo invalidade substantiva quando não corresponde à realidade substantiva, e invalidade registal quando está afetado pela violação de uma das regras principais que comandam a atividade registal.
9.– O art. 291.º do C.C. deve prevalecer, como meio de aquisição de direitos, sobre o artigo 17.º, n.º 2, do CRP, norma que só aplicável no caso de invalidades registais, sem repercussões na transmissão da titularidade de direitos, a qual só poderia ser regulada pelas normas do C.C.
10.– O artigo 291.º só é aplicável quando, na origem da cadeia de negócios inválidos, esteja o verdadeiro proprietário ou titular do direito.
11.– No caso de alguém, obtendo um registo de aquisição com base em documentos falsos, vender a terceiro de boa fé, que regista imediatamente a sua aquisição, não estão reunidos os requisitos do artigo 291.º nem do artigo 17.º, n.º 2, do CRP, pois o sujeito que deu origem à cadeia de negócios (ou de registos) inválidos nunca foi proprietário do bem, sendo as alienações sucessivas, a partir do sujeito que obtém o registo falso, res inter alias acta ou totalmente ineficazes em relação ao verdadeiro proprietário ou titular do direito.

(Elaborado pelo relator e da sua inteira responsabilidade – art. 663.º, n.º 7, do CPC)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

1–RELATÓRIO:

R... Crédito, S.A., intentou, no dia 25 de fevereiro de 2010, na antiga Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, a presente ação declarativa de condenação contra Artur C., Gl..., Lda, Via..., Lda, e Pedro A., alegando, em suma, que em agosto de 2008, no exercício da sua atividade, financiou o réu Artur na aquisição do veículo automóvel de marca Renault, modelo Megane Break, com a matrícula..., através de um contrato de locação financeira.

Para o efeito, adquiriu o GG pelo preço de € 23.292,32, que em seguida cedeu ao réu Artur em regime de locação financeira, em contrapartida do que este se comprometeu a pagar-lhe 84 rendas mensais, uma no valor de € 588,44, vencida no dia 6 de agosto de 2008, e as restantes 83, mensais e sucessivas, no valor de € 414,44 cada uma, com vencimento, a primeira delas no dia 30 de agosto de 2008, e as restantes no mesmo dia de cada um dos meses subsequentes, e ainda, no final do prazo de vigência do contrato, em 5 de agosto de 2015, a quantia de € 1.398,54, a título de valor residual.

Sucede que o réu Artur apenas pagou à autora a primeira renda, no referido montante de € 588,44, não tendo procedido ao pagamento de qualquer outra das 83 rendas subsequentes.

Por essa razão, a autora perdeu interesse na manutenção do contrato, pelo que, através de carta registada enviada ao réu Artur, com data de 19 de novembro de 2008, procedeu à sua resolução.

Até ao momento, o réu Artur, além de não lhe ter pago qualquer outra quantia, também não lhe devolveu o GG, apesar de interpelado para o fazer.

Acontece que ao consultar uma certidão registral do GG com vista à sua apreensão, verificou que o mesmo já não se encontrava registado em seu nome, mas de um terceiro, que desconhece quem seja, e com o qual não celebrou qualquer contrato.

A autora não procedeu à transmissão da propriedade do GG para quem quer que fosse.

O primeiro registo incidente sobre o GG refere-se à aquisição, por si, do direito de propriedade sobre o veículo, e o segundo, ao contrato de locação financeira celebrado com o réu Artur.

Todos os subsequentes registos são falsos, tendo sido efetuados com base em falsas declarações, pois a autora não vendeu o GG a quem quer que fosse.

O GG foi apreendido no dia 21 de janeiro de 2010, no âmbito do procedimento cautelar apenso a estes autos, e entregue à autora, encontrando-se presentemente imobilizado, o que o sujeita a eventuais problemas de origem mecânica.

A autora conclui assim a petição inicial com que introduziu em juízo a presente ação:
«Nestes termos, (…) deve a presente ação ser julgada procedente, por provada e, por via dela:
a) Ser declarada a resolução do contrato celebrado entre a A. e o 1.º R.
b)-  Ser reconhecida a propriedade do veículo 07-GG-11 a favor da A. e, nessa medida, serem cancelados todos os registos incompatíveis com o direito de propriedade da A.;
c)- Ser o 1.º R. condenado a pagar à A. uma indemnização, a liquidar em incidente de liquidação, pelos prejuízos decorrentes do incumprimento do contrato.
d)-  Serem os RR. condenados, solidariamente, a pagar à A. uma indemnização, a liquidar em incidente de liquidação, pelos prejuízos advindos à A. decorrentes da utilização não autorizada do veículo.»
***

O réu Pedro contestou, começando por arguir a sua ilegitimidade para os termos da presente ação, por se encontrar desacompanhado do seu cônjuge.

No mais, alega que é o titular do direito de propriedade sobre o GG, tendo-o adquirido de boa-fé à ré Via..., Lda, e procedido posteriormente ao respetivo registo.

Conclui pugnando para que:
 a matéria de exceção dilatória seja julgada procedente, por provada, com a sua consequente absolvição da instância; caso assim se não entenda,
a matéria de exceção perentória seja julgada procedente, com a sua consequente absolvição de todos os pedidos contra si formulados; caso ainda assim se não entenda,
-  a ação seja, quanto a si, julgada improcedente, por não provada, com a sua consequente absolvição de todos os pedidos.
***

A ré Via..., Lda também contestou, começando por arguir a exceção dilatória consistente na incompetência territorial do tribunal de Braga para tramitar e julgar esta ação, considerando competente para o tribunal da comarca de Lisboa.

No mais, alega, no essencial, que apenas teve contacto comercial com a ré Gl..., Lda, a quem, no âmbito de um contrato de permuta adquiriu o GG, vendendo-o em seguida ao réu Pedro, tendo, em ambos as situações, agido de boa-fé.

Além de contestar, deduziu reconvenção contra a autora, alegando que a instauração, contra si, da presente ação, é ofensiva da sua reputação e bom nome, além de gravemente lesiva dos seus interesses comerciais.

Por isso, deve ser indemnizada pelos danos não patrimoniais causados pela instauração, contra si, da presente ação.

Conclui pugnando para que:
- seja decretada a incompetência do tribunal de Braga para a tramitação e julgamento da ação, em razão do território, ordenando-se a remessa dos autos ao tribunal de Lisboa, o territorialmente competente para o efeito;
- a ação seja, quanto a si, julgada improcedente, por não provada, com a sua consequente absolvição do pedido;
- a reconvenção seja julgada procedente, por provada, com a consequente condenação da autora a pagar-lhe, a título de danos não patrimoniais, a quantia que desde logo liquidou em € 5.000,00, relegando para momento posterior a liquidação dos demais danos desta natureza.
***

A ré Gl..., Lda também contestou, alegando, em suma e com interesse, que nunca teve qualquer contacto com a autora, confirmando, no entanto, que em 5 de novembro de 2008 adquiriu o GG, encontrando-se, então, o direito de propriedade sobre o veículo registado a favor de José F..

A compra do GG foi tratada e acordada com um indivíduo de nome Rui C..., que lhe apresentou a pessoa a favor de quem se encontrava registado o direito de propriedade sobre o veículo.

Os cheques através dos quais foi paga uma parte do preço do GG foram, por solicitação do referido José F., emitidos pelo legal representante da ré Gl..., Lda à ordem de Sérgio A..

A ré Gl..., Lda procedeu em seguida ao registo da aquisição do GG e, após ter transferido para uma seguradora a responsabilidade civil decorrente da sua circulação, passou a utilizá-lo no dia-a-dia.

Assim, até 3 de março de 2009, foi proprietária do GG, data em que o entregou à ré Via..., Lda, a título de retoma na aquisição de uma outra viatura.

Suscita ainda o incidente de intervenção principal, ou subsidiariamente, acessória, de Rui C. e de José F.

Conclui pugnando para que:
-  a ação seja, quanto a si, julgada improcedente, por não provada, com a sua consequente absolvição do pedido;
- o incidente de intervenção principal, ou subsidiariamente, acessória, de Rui C. e José F., seja julgado procedente, por provado, com a consequente citação destes para, querendo, contestarem a ação.
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A autora replicou, pugnando pela improcedência da reconvenção, com a sua consequente absolvição do pedido reconvencional.
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Por decisão de fls. 127-131, a Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial da Comarca de Braga decidiu:
- não admitir a intervenção provocada de Rui C., quer a título principal, quer a  título acessório;
-  admitir a intervenção principal provocada de José F., tendo sido ordenada a sua citação para os termos da causa.
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Na sequência de convite efetuado pelo Tribunal a quo para o efeito, a autora veio deduzir o incidente de intervenção principal provada de Elisabete L., cônjuge do réu Pedro, nos termos e para os efeitos do art. 28.º-A, n.ºs 1 e 3, do CPC/1995-96 (atual art. 34.º, n.ºs 1 e 3, do CPC/2013), sob pena de preterição de litisconsórcio necessário passivo.

Admitido o incidente e citada a chamada, veio esta declarar fazer seu o articulado de contestação apresentado pelo seu marido.
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O réu Artur e o chamado José F. não contestaram.
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Por decisão proferida a fls. 190-192 dos autos, foi o Tribunal Judicial da Comarca de Braga julgado territorialmente incompetente para a tramitação e julgamento desta ação, tendo sido considerado competente para o efeito o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, para onde os autos foram remetidos.
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Na sequência da junção aos autos da certidão do acórdão datado de 11 de fevereiro de 2014, transitado em julgado no dia 11 de janeiro de 2017, proferido no âmbito do Proc. n.º 347/09.0PBBRG, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Central Criminal de Braga – Juiz 2, no qual o ali arguido, Sérgio A., foi condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 anos e 4 meses de prisão efetiva, pela prática, em concurso real, de um crime de falsificação de documento e de um crime de burla qualificada, por ter celebrado em nome do réu Artur, um contrato de locação financeira que teve por objeto o GG, forjando a assinatura deste, quer no contrato a que se reportam os presentes autos, quer nos documentos que instruíram tal contrato, designadamente na autorização de débito das prestações acordadas (cfr. fls. 381-387), a juíza a quo proferiu o despacho de fls. 392, ordenando a notificação da autora para, em dez dias, esclarecer se pretendia «prosseguir com os presentes autos, nomeadamente com o agendamento da audiência prévia, ou requerer o que [entendesse] por conveniente.»

Notificada desse despacho, veio a autora apresentar o requerimento de fls. 397-398, nos termos do qual requereu que fosse «chamado a intervir nos presentes autos como parte principal – Réu – Sérgio A., devendo ocupar o lugar do Réu Artur C., que deverá ser considerado parte ilegítima.»

Sobre esse requerimento recaiu a “decisão avulsa” de fls. 401, que:
- julgou o réu Artur C. parte ilegítima para os termos da presente ação e, consequentemente, o absolveu da instância;
- ordenou a notificação dos «demais RR. e intervenientes para, em dez dias, se pronunciarem sobre a requerida intervenção de Sérgio A..».
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Por decisão de fls. 411-412, foi indeferido, por considerado legalmente inadmissível, o incidente de intervenção principal provocada do referido Sérgio A..
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Transitadas ambas as decisões em julgado, a juíza a quo, através do despacho de fls. 417, voltou a insistir junto da autora para que esta dissesse, em dez dias, se pretendia a prossecução dos autos contra os demais réus, ao que a autora respondeu através do requerimento de fls. 419, declarando, como não poderia deixar se considerar óbvio, que «não obstante a ilegitimidade do R. Artur C., pretende a prossecução dos autos, nomeadamente tendo em conta o pedido formulado na alínea b) da petição inicial.»
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Perante tal posição da autora, o tribunal a quo, dispensando a realização da audiência prévia, proferiu o despacho de fls. 421, nos termos do qual fixou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.
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Na subsequente tramitação dos autos realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Pelo exposto, julgo a ação parcialmente procedente e, em consequência, declaro resolvido o contrato celebrado entre a Autora e o 1.º Réu, Artur C., declaro reconhecida a propriedade, a favor da Autora, da viatura de matrícula...  e ordeno o cancelamento dos registos posteriores ao registo dessa propriedade.
Absolvo os Réus dos demais pedidos formulados pela Autora.
Julgo improcedente o pedido reconvencional formulado pela Ré Via..., Lda, Lda., absolvendo a Autora/reconvinda desse pedido.
Custas por Autora e Réus, em igual proporção, quanto aos pedidos principais, e pela Ré Via Centro quanto ao pedido reconvencional.»
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Os réus Pedro A. e Elisabete L. não se conformaram com tal decisão, pelo que dela vieram interpor o presente recurso de apelação, cuja alegação concluem assim:
1.– Os recorrentes foram notificados da sentença que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, declarou resolvido o contrato celebrado entre a autora e o 1.º réu, Artur C., bem como declarou reconhecida a propriedade, a favor da autora, da viatura de matrícula ... e ordenou o cancelamento dos registos posteriores ao registo dessa propriedade;
2.– Os recorrentes sustentam que o facto provado sob o número 24 deveria ter sido dado como provado nos seguintes termos: “o GG manteve-se imobilizado desde a sua apreensão, em 21.01.2010, até 13.12.2010, data em que foi decretado o levantamento da providência cautelar e entrega aos embargantes no processo n.º 2185/09.1TBBRG (apenso ao procedimento cautelar)”, porquanto a sentença de embargos de terceiro, proferida no processo n.º 2185/09.1TBBRG (apenso ao procedimento cautelar proposto pela autora) e junta aos autos a fls. (…), ordenou a restituição do veículo aos recorrentes, enquanto possuidores de boa-fé;
3.– Os recorrentes entendem, sempre com o devido respeito, que a decisão do tribunal a quo violou gravemente o disposto no artigo 291.º, n.º 2, do Código Civil, porquanto desconsiderou o facto de os recorrentes terem um registo de aquisição prévio a seu favor;
4.– Os recorrentes sustentam, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 639.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil, que o predito preceito apenas tem aplicação quando o negócio invalidado não foi registado (…);
5.– Por conseguinte, é aplicável o disposto no artigo 17.º n.º 2, do Código do Registo Predial, ao qual é indiferente que a ação de nulidade ou de anulação tenha sido proposta ou não nos três anos subsequentes à conclusão do negócio, mas é necessária a existência duma aparência registral, consubstanciada no registo de aquisição anterior a favor do transmitente;
6.– Por força do disposto no citado artigo do Código do Registo Predial, a declaração de nulidade do registo de aquisição a favor de Artur C. nunca poderá implicar a nulidade ou o cancelamento do registo de aquisição a favor dos recorrentes, na medida em que se verificam todos os requisitos exigidos pelo artigo 17.º, n.º 2: aquisição do direito a título oneroso; boa-fé do terceiro; prioridade do registo dos correspondentes factos relativamente ao registo da acção de nulidade e cancelamento;
7.– (…) o artigo 17.º, n.º, do Código de Registo Predial ajusta-se perfeitamente à situação sub judice, tornando-se, assim, irrelevante, averiguar o prazo de três anos, previsto no n.º 2, do artigo 291.º, do Código Civil;
8.– Em função do exposto, a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 17.º, n.º 2, do Código do Registo Predial e 291.º, n.º 2, do Código Civil, merecendo censura e devendo, como tal, ser revogada e substituída por decisão que reconheça o direito de propriedade dos recorrentes sobre o veículo automóvel.
Normas jurídicas violadas: artigo 291.º, n.º 2, do Código Civil e artigo 17.º, n.º 2, do Código do Registo Predial.
Nestes termos e nos demais de direito (…),deve o presente recurso ser julgado integralmente procedente e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida e substituída por decisão que reconheça o direito de propriedade dos aqui recorrentes.
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A autora contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso, com a consequente manutenção da decisão recorrida.
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2–ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe e, aliás, vem de ser referido, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1, do CPC) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem.

Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º).

Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.

Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.é., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º1, 631, n.º1 e 639.º, do CPC).

Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3, do CPC) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, do CPC, ex vi do art. 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).

No caso sub judice, não constituindo, como se disse, o presente recurso, uma via jurisdicional para alcançar decisões novas, mas apenas, se disso for o caso, modificar a decisão recorrida, e não apreciar questões não decididas pelo tribunal a quo, emerge das conclusões da alegação de recurso apresentado pelos apelantes que o objeto da presente apelação está circunscrito às seguintes questões:
No essencial, da além da alteração da decisão sobre a matéria de facto, a questão a decidir neste recurso consiste em saber se deve ser reconhecido à autora o direito de propriedade sobre o veículo com a matrícula ..., e determinado o cancelamento de todos os registos incompatíveis com tal direito de propriedade.
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3–FUNDAMENTAÇÃO:

3.1–Fundamentação de facto:
A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
1.–  Em Agosto de 2008, no exercício da sua atividade comercial, a Autora financiou ao 1.º Réu, através da celebração de um contrato de locação financeira, do veículo automóvel de marca Renault, modelo “Mégane Break”, com a matrícula ... e quadro nº ...
2.–  Tal contrato foi celebrado pelo prazo de 84 meses, com início em 06.08.2008 e pelo preço global de € 23.292,32, tendo sido acordado o pagamento de 84 prestações mensais, sendo a primeira no valor de € 588,44 e as restantes 83 no valor de € 414,44 cada, com início em 30.08.2008, bem como o valor residual de € 1.398,54.
3.–  O 1.º Réu apenas liquidou a primeira renda, com a receção da viatura, e não procedeu ao pagamento da renda que se vencia em 30.08.2008, nem das subsequentes, pelo que, por carta datada de 19.11.2008, registada com aviso de receção, a Autora procedeu à comunicação da resolução do contrato e, além do mais, solicitou àquele a restituição imediata do veículo.
4.– O 1.º Réu não liquidou os pagamentos em dívida e não entregou o veículo.
5.–  Da certidão do registo automóvel constante dos autos, resulta que, em 03.11.2008, foi averbada a transferência da propriedade da viatura da Autora para o 1.º Réu, deste para o chamado José F. que, por sua vez, a transferiu para a sociedade 2.ª Ré.
6.–  A 2.ª Ré adquiriu a viatura por € 24.500,00, em 05.11.2008.
7.– No mesmo dia, a 2.ª Ré procedeu ao registo da viatura, tendo o modelo oficial para registo de aquisição da propriedade sido assinado pelo respetivo gerente e pela pessoa que lhe foi apresentada como o chamado José F., titular do registo.
8.– O preço da venda foi liquidado através de dois cheques, no valor de € 7000 cada, que acresceram ao valor de € 10.500,00 previamente entregue em circunstâncias não concretamente apuradas.
9.–  Dada a circunstância de a viatura Mégane registar, segundo o legal representante da 2.ª Ré, elevados consumos de combustível e não proporcionar uma condução confortável, este contactou a 3.ª Ré com vista à aquisição de uma outra viatura mediante a entrega da Mégane GG.
10.– A 3.ª Ré apresentou então uma viatura de marca Mercedes que agradou ao legal representante da 2.ª Ré.
11.– A 2.ª Ré, mediante uma permuta, vulgo “retoma”, no dia 28 de Fevereiro de 2009, adquiriu à 3.ª Ré um veículo automóvel, marca Mercedes e com a matrícula ..., e entregou-lhe a quantia de € 11.000,00, acrescida do veículo ...
12.– O 4.º Réu e chamada adquiriram a viatura à 3.ª Ré através de uma proposta de compra, que foi aceite, no valor de € 20.800,00, liquidados através de dois cheques datados de 14 e 28 de Março de 2009, respetivamente, nos montantes de € 250,00 e € 20.550,00.
13.– O veículo encontrava-se em exposição no stand da 3.ª Ré, a qual tinha tomado tal veículo em “retoma” à 2.ª Ré, não obstante não ter procedido ao respetivo registo automóvel, atentos os usos comerciais do sector, mas tendo acertado o preço e as condições de venda com os 4.º Réu e chamada.
14.–  Os 4.º Réu e chamada Elisabete não conhecem a Autora nem nenhum dos restantes Réus, à exceção da 3.ª Ré.
15.– A viatura encontra-se registada a favor do 4.º Réu e chamada Elisabete, pela apresentação nº 07427, junto da Conservatória dos Registos Comercial e Predial de Santarém, de 31.03.2009.
16.– Desde a data de aquisição do automóvel até à sua apreensão, os 4.º Réu e chamada utilizaram o automóvel, de forma exclusiva, atuando em conformidade e julgando-se seus legítimos e únicos proprietários, encontrando-se o mesmo afeto à sua vida profissional e pessoal.
17.– Correu termos neste Tribunal Judicial a providência cautelar com o nº 2185/09.1TBBRG, proposta pela ora Autora contra os ora 1.º e 2.ª Réus, na qual a primeira peticionou a apreensão e entrega do veículo, tendo tal providência merecido decisão de procedência, datada de 25.09.2009, cumprida pela GNR em 21.01.2010.
18.– Por apenso aos autos de procedimento cautelar, o ora 4.º Réu e mulher deduziram embargos de terceiro, os quais foram julgados procedentes, aí tendo sido determinado, por decisão de 13.12.2010, já transitada em julgado, o levantamento da apreensão da viatura e a sua entrega aos aí embargantes.
19.– No âmbito do processo-crime nº 347/09.0PBBRG que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Central Criminal de Braga – Juiz 2, foi Sérgio A. condenado pela prática, em concurso real, de um crime de falsificação de documento e de um crime de burla qualificada.
20.– Nesse mesmo processo-crime, ficou provado, por Acórdão já transitado em julgado, que o mesmo Sérgio A. celebrou, em nome do ora Réu Artur Araújo, um contrato de locação financeira que teve por objeto o veículo de matrícula ..., forjando a assinatura deste no contrato e nos documentos que o instruíram, designadamente, na autorização de débito das prestações convencionadas.
21.– A 3.ª Ré é uma empresa comercial que se dedica ao comércio de automóveis e peças, exercendo a sua atividade há mais de dez anos.
22.– A 3.ª Ré goza de reputação de seriedade e competência no mercado em que se movimenta.
23.– Após a apreensão do GG, e como atenção comercial, a 3.ª Ré disponibilizou ao 4.º Réu uma viatura de substituição durante cerca de um ano.
24.– O GG mantém-se imobilizado.
25.– Só no decorrer da providência cautelar de apreensão do veículo é que a autora teve conhecimento do registo da viatura a favor da 3.ª Ré.
26.– A presente ação foi registada em 26.07.2011.
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A sentença recorrida considerou «não existirem outros factos, designadamente, aqueles alegados nos artigos 38.º a 42.º da petição inicial.
A restante matéria dos articulados constitui alegação de factos meramente instrumentais, conclusivos e/ou considerações de Direito.»
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3.2–Apreciação do mérito do recurso:

3.2.1.–Da impugnação/alteração da decisão sobre a matéria de facto:

Os apelantes impugnam a decisão da matéria de facto relativamente ao ponto 24., defendendo que o tribunal a quo em vez de ter dado como provado que «o GG mantém-se imobilizado, deveria ter dado como provado que «o GG manteve-se imobilizado desde a sua apreensão, em 21.01.2010, até 13.12.2010, data em que foi decretado o levantamento da providência cautelar e entrega aos embargantes no processo n.º 2185/09.1TBBRG (apenso ao procedimento cautelar.»
Não oferece dúvida que os apelantes, em sede de impugnação da decisão da matéria de facto observaram o estatuído no art. 640.º, n.º 1, als. a) a c), do CPC.
Sucede que o tribunal a quo se equivocou na enunciação dos temas da prova e na fundamentação de facto da sentença, o que inexoravelmente leva a que este tribunal de recurso altere, nos termos do art. 662.º, n.º 1, do CPC, a decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto.
Conforme referido no relatório que antecede, na sequência da junção aos autos da certidão do acórdão de 11 de fevereiro de 2014, transitado em julgado no dia 11 de janeiro de 2017, proferido no âmbito do Proc. n.º 347/09.0PBBRG, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Central Criminal de Braga – Juiz 2, nos termos do qual o ali arguido Sérgio A. foi condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 anos e 4 meses de prisão efetiva, pela prática, em concurso real, de um crime de falsificação de documento e de um crime de burla qualificada, por ter celebrado em nome de Artur C., um contrato de locação financeira que teve o por objeto o GG, forjando a assinatura deste, quer no contrato a que se reportam os presentes autos, quer nos documentos que instruíram tal contrato, designadamente na autorização de débito das prestações acordadas (cfr. fls. 381-387), a juíza a quo proferiu o despacho de fls. 392, ordenando a notificação da autora para, em dez dias, esclarecer se pretendia «prosseguir com os presentes autos, nomeadamente com o agendamento da audiência prévia, ou requerer o que [entendesse] por conveniente.»

Notificada desse despacho, veio a autora apresentar o requerimento de fls. 397-398, nos termos do qual requer que «seja chamado a intervir nos presentes autos como parte principal – Réu – Sérgio A., devendo ocupar o lugar do Réu Artur C., que deverá ser considerado parte ilegítima.».

Sobre esse requerimento da autora, e sem que aos réus com intervenção processual no processo, tivesse sido sequer dada a oportunidade de se pronunciarem sobre tal questão, recaiu desde logo a “decisão avulsa” de fls. 401. 

E tratava-se de uma decisão deveras importante, não apenas porque em consequência dela deixava (deixou) de figurar na causa um dos réus, precisamente aquele a quem vinha imputado o despoletar de todo o litígio subjacente à presente ação, como pelas implicações que a mesma, associada à decisão que indeferiu o pedido formulado pela autora com vista à intervenção nos autos de Sérgio A., trouxe relativamente a posteriores atos processuais, nomeadamente ao despacho que enunciou os temas da prova e, sobretudo, à sentença, quer no que respeita à sua fundamentação, tanto de facto como de direito, quer no que respeita à sua parte decisória, implicações essas que o tribunal a quo não equacionou.

Vejamos!

Na petição inicial com que introduziu em juízo a presente ação alega a autora que em agosto de 2008 adquiriu o GG pelo preço de € 23.292,32, o qual, de seguida cedeu em locação financeira a Artur C., através do contrato que identifica, com vista à futura aquisição, por este, de tal veículo.

Em contrapartida, Artur C. comprometeu-se a pagar-lhe 84 rendas mensais, uma no valor de € 588,44, vencida no dia 6 de agosto de 2008, e as restantes 83, mensais e sucessivas, no valor de € 414,44 cada uma, com vencimento, a primeira delas no dia 30 de agosto de 2008 e as restantes no mesmo dia de cada um dos meses subsequentes, e ainda, no final do prazo de vigência do contrato, em 5 de agosto de 2015, a pagar-lhe a quantia de € 1.398,54, a título de valor residual.

Sucede que, diz a autora, Artur C. apenas pagou lhe a primeira renda, no referido valor de € 588,44, não tendo procedido ao pagamento de qualquer outra das 83 subsequentes.

Por essa razão, continua a autora, perdeu interesse na manutenção do contrato, pelo que, através de carta registada enviada a Artur C., com data de 19 de novembro de 2008, procedeu à sua resolução.

Acontece que, e continuamos a acompanhar a autora, veio a constatar que Artur C. logrou, com base em documentos falsos, registar o direito de propriedade do GG a seu favor, e vendê-lo a terceiro.

Ora, tendo o tribunal a quo, pelo referido despacho de fls. 401, transitado em julgado, e com base no que ficou provado e foi decidido no acórdão de 11 de fevereiro de 2014, transitado em julgado no dia 11 de janeiro de 2017, proferido no âmbito do Proc. n.º 347/09.0PBBRG, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Central Criminal de Braga – Juiz 2, julgado Artur C. parte ilegítima para os termos da presente causa, absolvendo-o da instância, não poderia o tribunal o tribunal recorrido enunciar como tema da prova «a falta de pagamento das prestações do contrato de locação financeira celebrado em agosto de 2008, entre a Autora e Artur C., com o n.º 08502565500».

É que, depois de ter julgado Artur C. parte ilegítima para os termos da causa, absolvendo-o da instância, pelas razões acima apontadas, não poderia o tribunal a quo enunciar como tema da prova, a ser discutida e a ser objeto de atividade probatória, a questão atinente à falta de pagamento, por aquele, de prestações relativas a um contrato de locação financeira relativamente ao qual, como o mesmo tribunal havia reconhecido anteriormente, nada teve a ver, relativamente ao qual não foi tido nem achado!

A não ser assim, não o teria julgado parte ilegítima para os termos da ação, absolvendo-o da instância.

A partir do momento em que o tribunal a quo julgou Artur C. parte ilegítima para os termos da causa, absolvendo-o da instância, por reconhecer que o mesmo não celebrou com a autora o contrato de locação financeira por esta invocado na petição inicial, a questão enunciada naquele tema da prova não mais poderia ser objeto de discussão nos autos, desde logo desde logo por falta do respetivo sujeito passivo.

Por outras palavras, se se quiser, não podia o tribunal pretender discutir a questão da «(…) falta de pagamento das prestações do contrato de locação financeira celebrado em agosto de 2008, entre a Autora e Artur C., com o n.º 08502565500», depois de considerar (bem ou mal, não interessa agora) que este não tem interesse direto em contradizer (n.º 1 do art. 30.º do CPC) - interesse este que, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, se exprime pelo prejuízo que para o demandado decorre da procedência da ação -, pois, enfatiza-se, caso contrário, não o teria absolvido da instância.

No entanto, e mais grave, depois julgar Artur C. parte ilegítima para os termos da causa, depois de o ter absolvido da instância, depois de ter considerado que o mesmo não tinha interesse direto em contradizer, por ter concluído que o mesmo não foi parte, que nada teve a ver, que não foi tido nem achado no contrato de locação financeira invocado pela autora na petição inicial, nunca o tribunal a quo poderia considerar provados os seguintes factos:
2.1.- Em Agosto de 2008, no exercício da sua atividade comercial, a Autora financiou ao 1.º Réu, através da celebração de um contrato de locação financeira, do veículo automóvel de marca Renault, modelo “Mégane Break”, com a matrícula ... e quadro nº ...
2.2.- Tal contrato foi celebrado pelo prazo de 84 meses, com início em 06.08.2008 e pelo preço global de € 23.292,32, tendo sido acordado o pagamento de 84 prestações mensais, sendo a primeira no valor de € 588,44 e as restantes 83 no valor de € 414,44 cada, com início em 30.08.2008, bem como o valor residual de € 1.398,54.
2.3.- O 1.º Réu apenas liquidou a primeira renda, com a receção da viatura, e não procedeu ao pagamento da renda que se vencia em 30.08.2008, nem das subsequentes, pelo que, por carta datada de 19.11.2008, registada com aviso de receção, a Autora procedeu à comunicação da resolução do contrato e, além do mais, solicitou àquele a restituição imediata do veículo.
2.4.- O 1.º Réu não liquidou os pagamentos em dívida e não entregou o veículo.
O assim decidido em sede de matéria de facto está em total contradição com a decisão que julgou Artur C. parte ilegítima para os termos da causa e o absolveu da instância, violando de modo flagrante o caso julgado formado com esta decisão.

Dispõe o art. 662º, n.º 1, do C.P.C., que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»

É ao abrigo desta disposição que este tribunal de recurso vai alterar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, o que faz nos seguintes termos:
1.– A autora adquiriu à fornecedora C...auto, SA, o veículo de marca Renault, modelo Megane Break, com a matrícula ..., pelo preço de € 23.292,32;
2.– Em 6 de agosto de 2008 foi feito o documento cuja cópia de encontra a fls. 9-10, intitulado “CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA”, com o n.º LSG08502565001, tendo por objeto o veículo automóvel identificado em 1.;
3.– Consta desse documento:
- como locadora, a aqui autora;
- no espaço destinado ao locatário, o nome de Artur C.;
4.– Mais consta desse documento:
Condições da Locação

Início do contrato
2008/08/06
Termo do contrato
2015/08/05
Dur. Contrato
84
Periodicidade das parcelas
Mensal
Tipo de Renda
Antecipada
(…)Tipo de taxa
Normal fixa
Juros moratórios
12%
(…)TAEG
8,048%
(…)(…)(…)PVP Pagamento
23,292,23

Pagamentos periódicos

1.º PagamentoData
2008/08/06
Valor
490,36
IVA
98,08
Total
588,44
Pagamentos periódicosCada dia
30
Número
83
Total
345,36
89,08414,44
Valor residualData
2015/08/05
Valor
1.165,45
IVA
233,09
Total
1.398,54
5.– Na parte final das Condições Particulares desse contrato, no lugar destinado ao “Locatário”, consta uma assinatura como sendo da autoria de Artur C.;
6.– A autora apenas recebeu a primeira das referidas rendas, vencida em 6 de agosto de 2008, no valor de € 588,44;
7.– A autora endereçou a Artur C. a carta cuja cópia se encontra a fls. 12, datada de 19 de novembro de 2008, da qual consta, além do mais, o seguinte:
«Resolução contrato(s) leasing
LSG08502565001 /Renault /...
(…)
Comunicamos a resolução do(s) contrato(s) referenciado(s) em epígrafe
(…)»
8.– No dia 3 de novembro de 2008, foi inscrita na Conservatória do Registo Automóvel a aquisição do GG favor de José F., por compra a Artur C.;
9.– No dia 5 de novembro de 2008 a ré Gl..., Lda adquiriu o GG pelo preço de € 24.500,00;
10.– Nesse mesmo dia, a ré Gl..., Lda procedeu à inscrição na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa, a seu favor, do direito de propriedade sobre o GG;
11.– (…) tendo o modelo oficial através do qual foi efetuado tal registo, sido assinado pelo gerente da ré Gl..., Lda e pela pessoa que lhe foi apresentada como sendo o chamado José F.;
12.– O preço referido em 9. foi pago:
- através de dois cheques no valor de € 7.000,00, cada um, emitidos por Isabel CC. à ordem de Sérgio A.;
- através da entrega € 10.500,00, em circunstâncias não concretamente apuradas;
13.– Posteriormente, o gerente da ré Gl..., Lda, por considerar que o GG apresentava elevados consumos de combustível e não proporcionava uma condução confortável, contactou a contactou a ré Via..., Lda, com vista à aquisição de uma outra viatura mediante a entrega do GG a título de “retoma”;
14.– A ré Via..., Lda mostrou então ao gerente da Gl..., Lda uma viatura de marca Mercedes que agradou a este;
15.– Na sequência do que a Gl..., Lda, no dia 28 de fevereiro de 2009, mediante a entrega o GG a título de “retoma”, e a entrega da quantia de € 11.000,00, adquiriu à ré Via..., Lda o veículo automóvel de marca Mercedes, com a matrícula ...;
16.– A ré Via..., Lda não procedeu à inscrição na Conservatória do Registo Automóvel, da aquisição do GG a seu favor;
17.– Posteriormente, o réu Pedro A. e mulher, a chamada Elisabete L., adquiriram o GG à ré Via..., Lda pelo preço de € 20.800,00, através da entrega de dois cheques, datados de 14 e 28 de Março de 2009, nos montantes de € 250,00 e € 20.550,00, respetivamente;
18.– Na altura da sua aquisição por Pedro A. e mulher, Elisabete L., à Via..., Lda, o GG encontrava-se exposto para venda no stand da ré Via..., Lda;
19.– Pedro A. e mulher, Elisabete L., nunca tiveram qualquer contacto com a autora ou qualquer um dos outros réus, com exceção da ré Via..., Lda, nos termos referidos em 18. e 19.;
20.– Pela Ap 07..., de 31.03.2009, encontra-se registada na Conservatória do Registo Automóvel, a aquisição do GG a favor de Pedro A. e mulher, Elisabete L., por compra à ré Via..., Lda;
21.– Desde a data de aquisição do GG até à sua apreensão no âmbito do procedimento cautelar apenso, Pedro A. e mulher, Elisabete L., utilizaram o automóvel de forma exclusiva, no âmbito das suas vidas pessoais e profissionais, no convencimento de serem os seus donos;
22.– O GG foi apreendido na sequência de decisão datada de 21 de janeiro de 201.º, proferida no âmbito do procedimento cautelar de apreensão de veículo que se encontra apenso a estes autos;
23.– Por decisão proferida no dia 13 de dezembro de 2016, nos autos de embargo de terceiro instaurados por Pedro A. e mulher, Elisabete L., e que que correrem termos por apenso a esse procedimento cautelar, foi determinado o levantamento da apreensão do GG;
24.– Por acórdão datado de 11 de fevereiro de 2014, proferido no âmbito do Processo Comum n.º 347/09.0PBBRG, que correu nas então Varas de Competência Mista do Tribunal da Comarca de Braga, transitado em julgado no dia 11 de janeiro de 2017, foi o arguido Sérgio A. condenado pela prática, em concurso real, de um crime de falsificação de documento e de um crime de burla qualificada, aquele previsto e punível pelo artigo 256°, n.º 1, alíneas c) e d), do Código Penal e este pelos artigos 217°, n.º 1 e 218°, n.º 2, alínea a), do mesmo diploma legal, nas penas de 1 (um) ano de prisão e 3 (três) anos de prisão, também respetivamente, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão efetiva;
25.– Nesse acórdão foram considerados provados, além de outros, os seguintes factos:
«Em data não indeterminada, anterior a 6 de Agosto de 2008, e por meio que também não se apurou, o arguido entrou na posse de diversos documentos de identificação de Artur C., nomeadamente do respetivo bilhete de identidade e cartão de contribuinte.
Uma vez na posse desses documentos, o arguido concebeu um plano para obter vantagens patrimoniais indevidas e que consistia na utilização dos elementos de identificação do Artur C. para celebrar um contrato de locação financeira tendo por objeto um veículo automóvel e no subsequente fabrico de um requerimento/declaração para registo de propriedade desse veículo a favor do locatário sem que estivesse cumprido o contrato, de modo a apropriar-se dele sem desembolsar o respetivo preço.
Pondo em prática esse desígnio, em data não concretamente apurada, anterior ao dia 6 de Agosto de 2008, o arguido dirigiu-se ao stand explorado pela firma “C...auto, SA” e, sendo atendido pelo vendedor Paulo O., mostrou-se interessado no veículo com a matrícula ..., um Renault Megane, afirmando que o mesmo se destinava a um amigo seu, o indicado Artur C., em nome do qual deveria ser formalizado o financiamento que pretendia para custear o preço correspondente.
Porque de nada tivesse desconfiado, o vendedor em causa forneceu ao arguido os impressos necessários para a obtenção do financiamento, no montante de €23.292,32, a fim de este os submeter à assinatura do pretenso interessado por conta do qual agia e, ulteriormente, os devolver àquele, devidamente instruídos com a documentação de suporte exigida pela instituição de crédito financiadora, a “R..., SA”.
Aprovado o financiamento, o contrato de locação financeira, a que foi atribuído o número LSG08502565000 1, veio a ser celebrado 110 dia 6 de Agosto de 2008 em nome de Artur C., mediante a utilização dos documentos de identificação deste, nomeadamente o NIF (19...).
Todavia, foi o arguido, ou alguém a seu mando, quem apôs nesse contrato, corporizado no escrito de fls. 32 a 33, por imitação da assinatura constante do respetivo bilhete de identidade, o nome de Artur C. no espaço destinado à assinatura do locatário.
Acresce que a morada atribuída a este corresponde a uma fração onde o próprio arguido havia vivido (Rua José..., em Braga).
Após pagar a primeira prestação, no valor de € 588,44, com vencimento imediato, o arguido indicou ainda o NLB de uma conta bancária titulada pelo Artur C. no Banco Comercial Português e, pelo seu próprio punho, ou por alguém a seu mando, assinou, como se fosse o titular de tal conta, a autorização de débito das prestações convencionadas.
Formalizado o contrato em nome de Artur C., o arguido, alegando mais uma vez agir por conta daquele, compareceu nas instalações do stand na data aprazada para a entrega do veículo e procedeu ao seu levantamento.
Posteriormente, com data de 22 de Outubro de 2008, procedeu ao preenchimento do requerimento-declaração para registo de propriedade constante de fls. 50 a 51, que corporiza a pretensa venda do 07-00-11 por parte da “RCI Oest” a favor de Artur C., no qual forjou as assinaturas do suposto comprador e do representante da vendedora, bem como o reconhecimento desta por parte de uma advogada, incluindo a assinatura e o carimbo com os dizeres “Raquel C.”, por si igualmente fabricado.
Logrou, desse, modo extinguir o registo do ónus da locação financeira que incidia sobre o veículo em causa, que fez seu e a que deu o destino que lhe aprouve.
Bem sabia o arguido que não estava autorizado a utilizar documentos de identificação alheios e, apesar disso, não se coibiu de celebrar um contrato de locação financeira em nome de Artur C., imitando, por si por através de outrem a seu mando, a assinatura deste e forjando ainda as assinaturas, quer do suposto comprador, quer do representante da vendedora no requerimento-declaração que serviu de base à extinção do registo do ónus da locação financeira, incluindo o reconhecimento dele constante (carimbo e assinatura da agente reconhecedora), tudo com o propósito de ingressar na titularidade do veículo automóvel com a matrícula... sem desembolsar o respetivo valor integral (mas apenas o valor da primeira prestação, com vencimento na própria data da celebração do contrato e sem o pagamento da qual este não seria celebrado).
Animado pelo mesmo propósito, atuou de modo a criar uma falsa aparência de regularidade do contrato de locação financeira, gerando a errada convicção de que o mesmo fora celebrado pelo Artur C., e induziu os funcionários da conservatória do registo automóvel a procederem à extinção do registo da locação financeira no pressuposto, também erróneo, de que o documento apresentado para esse efeito era genuíno.
Agiu sempre de modo livre e deliberado, com o intuito de obter uma vantagem patrimonial que sabia ser indevida, correspondente ao valor do financiamento concedido para aquisição do veículo deduzido do valor da primeira prestação convencionada, ou seja, € 22.703,98, com plena consciência da censurabilidade penal das suas condutas.».

26.– A ré Via..., Lda uma sociedade comercial que se dedica ao comércio de automóveis e peças, exercendo a sua atividade há mais de dez anos;
27.– (…) gozando de reputação de seriedade e competência no mercado em que exerce a sua atividade;
28.– Após a apreensão do GG, e como atenção comercial, a ré Via..., Lda disponibilizou ao réu Pedro A. uma viatura de substituição durante cerca de um ano.
29.– O GG manteve-se imobilizado desde a data em que foi apreendido no âmbito do procedimento cautelar referido em 22., até ser restituído a Pedro A. e mulher, Elisabete L., na sequência do decidido no âmbito dos autos de embargos de terceiros referidos em 23.;
30.– A autora só teve conhecimento de o direito de propriedade sobre o GG se encontrava registado na Conservatória do Registo Automóvel a favor da ré Via..., Lda, no decurso do procedimento cautelar referido em 22;
30.– A presente ação foi registada em 26.07.2011.
***

Factos não provados:
a)- Em Agosto de 2008, no exercício da sua atividade comercial, a Autora financiou ao 1.º Réu, através da celebração de um contrato de locação financeira, do veículo automóvel de marca Renault, modelo “Mégane Break”, com a matrícula... e quadro...
b)- Tal contrato foi celebrado pelo prazo de 84 meses, com início em 06.08.2008 e pelo preço global de € 23.292,32, tendo sido acordado o pagamento de 84 prestações mensais, sendo a primeira no valor de € 588,44 e as restantes 83 no valor de € 414,44 cada, com início em 30.08.2008, bem como o valor residual de € 1.398,54.
c)- O 1.º Réu apenas liquidou a primeira renda, com a receção da viatura, e não procedeu ao pagamento da renda que se vencia em 30.08.2008, nem das subsequentes, pelo que, por carta datada de 19.11.2008, registada com aviso de receção, a Autora procedeu à comunicação da resolução do contrato e, além do mais, solicitou àquele a restituição imediata do veículo.
d)- O 1.º Réu não liquidou os pagamentos em dívida e não entregou o veículo.
***

Motivação:

Os enunciados de facto descritos sob os pontos 1. a 30. foram considerados provados com base nos elementos probatórios identificados da motivação da decisão de facto constante da sentença recorrida.
Os enunciados de facto descritos em a) a d) supra foram considerados não provados face ao teor da certidão extraída do Processo Comum n.º 347/09.0PBBRG, e que constitui o documento de fls. 381-387.
Nos termos do art. 623.º do C.P.C., «a condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração.»
No caso concreto não foi ilidida tal presunção.
***

3.2.1.– Do enquadramento jurídico:
Na sua parte dispositiva, a sentença recorrida começa por declarar «resolvido o contrato celebrado entre a Autora e o 1.º Réu, Artur C. (…)».

Trata-se, uma vez mais, de um evidente equívoco do tribunal a quo.

Artur C., que figurou como réu nesta ação, foi julgado parte ilegítima para e, consequentemente, absolvido da instância, por decisão datada de 4 de maio de 2017.
Portanto, quando em 6 de dezembro de 2017, foi proferida a sentença recorrida, havia mais de sete meses que Artur C. tinha, por determinação do tribunal, deixado de ser parte, sujeito processual passivo, enfim, réu, nesta ação.
E o tribunal a quo considerou-o parte ilegítima para os termos desta ação, absolvendo-o da instância nos termos do despacho «avulso» de fls. 401, datado de 4 de maio de 2017, por, em face da factualidade provada no acórdão proferido no dia 11 de fevereiro de 2014, no âmbito do Processo Comum n.º 347/09.0PBBRG, que correu nas então Varas de Competência Mista do Tribunal da Comarca de Braga, transitado em julgado no dia 11 de janeiro de 2017, logo ali se ter convencido que ele foi «vítima do crime de burla (e de falsificação de documento, acrescentamos nós), que teve por objeto o veículo em causa nestes autos, não tendo sido ele quem celebrou o contrato de locação financeira que teve por objeto tal veículo», considerando, em consequência, «que se terá de considerar assente que o R. Artur C. não praticou os factos em causa nestes autos, razão pela qual a eventual procedência da ação não lhe poderá causar qualquer prejuízo.»

Perante isto, que se mostra vertido na decisão de fls. 401, datada de 4 de maio de 2017, transitada em julgado, não poderia o tribunal a quo, na sentença recorrida, datada de 6 de dezembro de 2017, sob pena de, uma vez mais, incorrer, como incorreu, em contradição de julgados, em violação do caso julgado formado com aquela primeira decisão, declarar «resolvido o contrato celebrado entre a Autora e o 1.º Réu, Artur C..».

Além de Artur C. já não ser, em 6 de dezembro de 2017, data da prolação da sentença recorrida, parte, réu, nesta ação, havia mais de sete meses, o segmento decisório agora em análise - que declara «resolvido o contrato celebrado entre a Autora e o 1.º Réu, Artur C. (…)» - pressupõe que entre ele e a autora foi celebrado e produziu efeitos, exatamente o mesmo contrato que, na decisão de fls. 410, datada de 4 de maio de 2017, o tribunal a quo considerou não ter sido por ele celebrado (acrescentando até que o referido Artur C. não praticou os factos que lhe se são imputados na petição inicial), razão pela qual (bem ou mal, não interessa agora para o caso), o absolveu da instância.

Conforme refere Brandão Proença, a resolução constitui uma relevância negocial negativa (a sua frustração) de um facto (tipicamente unilateral-humano ou atipicamente natural) extrínseco e superveniente (o facto relevante da resolução surge em momento posterior à formação do negócio e à verificação dos seus efeitos imediatos ou, pelo menos, de alguns).

Segundo o mesmo Autor, «o fundamento ético-jurídico e o interesse económico-social do cumprimento recíproco do contrato ou da sua estabilidade, referidos nos arts. 406.º, n.º 1, 1.ª parte, e 762.º do C.C., podem ser postos em crise em situações de inexecução “subjetiva” ou em hipóteses objetivamente “injustas”. Não podendo o ordenamento jurídico pactuar com a manutenção dos «estados contratuais alterados», concede-se ao contraente lesado a possibilidade (ponderada) de uma desvinculação unilateral, conexa, em regra, com uma finalidade recuperatória do que já tiver sido prestado. Este desejo libertador lato sensu ou de rutura da primitiva concertação dos interesses é atuado pelo instrumento resolutivo, reconhecido por lei (arts. 406.º,1, in fine, 432.º, 1, e 801.º, 2, do C.C., entre outros) ou admitido por convenção (art. 432.º, 1, parte final, do C.C.), refletindo uma racionalidade que não hesitamos em considerar verdadeira (mas não plena) lex privata. Pressupondo uma estrutura negocial perfeita (existente e válida), a resolução, mormente a legal, surge motivada por fatores supervenientes e exteriores ao próprio «corpo» negocial, que geram situações violadoras da disciplina contratual originária (a hipótese típica e mais relevante do não cumprimento por uma das partes das obrigações integradas num contrato bilateral) ou estados de desequilíbrio entre as prestações (a situação atípica e específica derivada da «fricção» entre a pressuposta inalterabilidade contratual e a anormalidade da alteração circunstancial posterior). Não se afirmando como instrumento jurídico necessário (como veremos, a resolução é apenas uma das opções que se abrem ao contraente adimplente ou lesado, ao lado de outros meios «sanatórios» da perturbação contratual) e refletindo, por vezes, um certo sentido axiológico ou «normativo» (maxime no âmbito dos chamados direitos sociais, como o arrendamento), a resolução tutela o duplo interesse liberatório-recuperatório e permite, ao contraente adimplente (ou com aptidão para tal) uma nova composição contratual.».

Antunes Varela afirma que «a resolução é a destruição da relação contratual, operada por um dos contraentes, com base num facto posterior à celebração do contrato.».

No caso concreto, nenhum contrato foi celebrado entre a autora e Artur C., pelo que, obviamente, não há que declarar «resolvido o contrato celebrado entre a Autora e o 1.º Réu, Artur C. (…)».

O que acontece é que o contrato invocado pela autora na petição inicial e a que se reporta o documento de fls. 9-10, intitulado de «Contrato de Locação Financeira» é juridicamente inexistente.

Conforme se decidiu no Ac. da R.L. de 30.04.2015, Proc. n.º 904/09.5TJLLSB.L1-8 (António Valente), in www.dgsi.pt, «celebrado um contrato de locação financeira e vindo a verificar-se que a pessoa indicada como locatário nunca foi parte no negócio, tendo o seu nome sido usado graças a documentos que lhe haviam sido furtados, o contrato deve considerar-se como juridicamente inexistente na medida em que nunca existiu qualquer acordo de vontades entre os supostos contraentes.».

Carlos Ferreira de Almeida refere que tendo como referência o direito português vigente, o negócio jurídico e o contrato são inexistentes, por exemplo, se o facto referido não ocorreu. Trata-se da chamada inexistência material, de que são exemplos uma declaração que não foi emitida.

Segundo o mesmo Autor «o artigo 1630.º estabelece o regime da inexistência do casamento, dispondo que (n.º 1) não produz qualquer efeito jurídico (e nem sequer é havido como putativo) e que (n.º 2) pode ser invocada por qualquer pessoa, a todo o tempo, independentemente de declaração judicial". Este regime tem sido generalizado para outros atos inexistentes, embora por vezes se usem expressões mais fortes: que o ato inexistente é nada, que está fora do direito, não se podendo sequer equacionar a produção de efeitos"; "o facto nunca teve vida, não nasceu sequer - nunca existiu".

Ora não é bem assim. Tal como o ato nulo, o ato inexistente não produz os efeitos correspondentes ao significado que alguém lhe pretenda atribuir, mas pode produzir efeitos derivados da sua própria inexistência: todos aqueles que um ato nulo pode desencadear, designadamente a obrigação de restituir do que tiver sido prestado e a responsabilidade civil, imputável a quem culposamente causar aparência de um ato jurídico (cfr. artigos 245.º, n.º 2, e 246.º, 2.ª parte).».

Pedro Pais de Vasconcelos afirma que «a inexistência assume três modos de ser na teoria do negócio jurídico: a inexistência ôntica, a inexistência qualificativa, e a inexistência por mera imposição da lei.

A inexistência ôntica ocorre quando não existe onticamente qualquer negócio. O negócio de que se trata não foi de todo celebrado, não ocorreu, não aconteceu: trata-se de uma mentira ou de uma falsidade, embora possivelmente suportada por uma aparência que possa induzir a ilusão. Podem ser indicados como exemplos a total falsificação do negócio através da fabricação dos documentos que supostamente o formalizam, ou o caso em que sem que tenham ocorrido as formalidades previstas na lei se tenha lavrado o registo do casamento entre duas pessoas que nem sequer se conhecem ou souberam disso. São também casos de inexistência ôntica os previstos nos artigos 245.º e 246.º do Código Civil, de declarações não sérias, de coação física e de falta de consciência da declaração, em que não existe ação negocial e, como tal, não existe onticamente um negócio jurídico; os casos de dissenso oculto, em que não chegou a haver acordo negocial, embora as partes disso se não tenham apercebido; e também os de casamento em cuja celebração tenha faltado a declaração de vontade de um ou ambos os nubentes ou do procurador de um deles, ou ainda o do casamento celebrado por um falsus procurator (artigo 1628.º, alíneas c) e d) do Código Civil). Em todos estes casos, o ato é onticamente inexistente: não houve ação negocial, não houve negócio jurídico.».

No caso concreto, estamos, manifestamente, perante uma situação de inexistência ôntica do negócio jurídico invocado na petição inicial; aquele alegado negócio mais não é, no que a Artur C.A. diz respeito, do que uma mentira, uma falsidade, montada por Sérgio A., ainda que suportada por uma aparência, o documento de fls. 9-10, suscetível de induzir a ilusão.

Ou seja, no que ao documento de fls. 9-10, que supostamente formalizaria o contrato de locação financeira pretensamente celebrado entre a autora e Artur C.A.:

–   constam dele, falsamente, factos juridicamente relevantes, tais como:
– ser Artur C., o locatário financeiro do GG;
– as afirmações de que Artur C., declarou «ter tomado conhecimento e aceitar, sem reservas, as Condições Gerais (…) às quais fica submetido este Contrato» e declarou também ter tomado conhecimento das informações a que se refere o n.º 1 do art. 10.º das Condições Gerais deste Contrato.»;
–   Sérgio A., ou alguém a seu mando, apôs naquele documento, por imitação da assinatura constante do respetivo bilhete de identidade, o nome de Artur C., no espaço destinado à assinatura do locatário; ou seja, Sérgio A., ou alguém a seu mando abusou da assinatura de Artur C. para falsificar tal documento.
Em suma, pois, há declarar inexistente o negócio jurídico invocado pela autora na petição inicial, e não declarar «resolvido o contrato celebrado entre a Autora e o 1.º Réu, Artur C.».
Consigna-se que, como é sabido, ao tribunal compete qualificar juridicamente os factos, resultando do art. 5.º, n.º 3, do C.P.C./13, tal como já resultava do art. 664.º do CPC/1995-96, que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

No caso concreto:
- a autora pede que seja «declarada a resolução do contrato celebrado entre a A. e o 1.º R.», e não a declaração de inexistência do contrato;
- na sentença recorrida o tribunal a quo declarou «resolvido» e não inexistente o pretenso «contrato celebrado entre a Autora e o 1.º Réu, Artur C.»;
No entanto, no caso concreto, tendo em consideração até o âmbito do recurso, a declaração de inexistência do contrato não configura uma situação de «condenação “ultra petitum”» pois que tem enquadramento no efeito útil que a autora pretende alcançar com esta ação.
***

Os apelantes insurgem-se contra a sentença recorrida, considerando que a mesma violou o disposto no art. 291.º, n.º 2, do C.C., porquanto desconsiderou o registo de aquisição do GG a seu favor.
Entendem os apelantes que tal preceito apenas tem aplicação quando o negócio inválido não foi registado, sendo aplicável ao caso sub judice o disposto no art. 17.º, n.º 2, do Código do Registo Predial, preceito por força do qual a declaração de nulidade do registo de aquisição a favor de Artur C. nunca poderá implicar a nulidade ou o cancelamento do registo de aquisição a favor dos recorrentes, na medida em que se verificam todos os requisitos exigidos por aquele preceito: aquisição do direito a título oneroso; boa-fé do terceiro; prioridade do registo dos correspondentes factos relativamente ao registo da ação de nulidade e cancelamento.

Assim, o artigo 17.º, n.º 2, do CRP, ajusta-se perfeitamente à situação sub judice, tornando-se, assim, irrelevante, averiguar o prazo de três anos, previsto no n.º 2, do artigo 291.º, do Código Civil.

A sentença recorrida considerou que a autora tem «direito ao reconhecimento da propriedade da viatura a seu favor, com a consequente anulação dos registos posteriores ao registo dessa propriedade», por considerar verificado «o condicionalismo restritivo dos efeitos do registo a que alude o artigo 291.º, n.º 2, do Código Civil.»

Por isso, afirma-se na sentença recorrida, «o 4.º Réu, apesar de ser um terceiro, de boa fé para efeitos de registo, vê o seu direito ceder a verdadeira proprietária da viatura, a ora autora.»

Vejamos, então, de que lado está a razão!

Está provado que a autora adquiriu à fornecedora C...auto, SA, o veículo automóvel de marca Renault, modelo Megane Break, com a matrícula..., pelo preço de € 23.292,32, após o que, em 6 de agosto de 2008, foi feito o documento cuja cópia de encontra a fls. 9-10, intitulado “CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA”, com o n.º LSG08502565001, tendo por objeto aquele veículo.

Tal documento tem a aparência de um contrato de locação financeira, contrato que o art. 1.º do Dec. Lei n.º 149/95, de 24.06, com as sucessivas alterações que lhe foram introduzidas define como «o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados.»

Conforme decorre dos arts. 7.º e 9.º, n.ºs 1, al. a), e 2, al. a), do mesmo diploma legal, o contrato de locação financeira pressupõe a prévia aquisição, pelo locador, do bem objeto da locação, que integra na sua esfera jurídica.

Apesar de no caso concreto, pelas razões acima explanadas, inexistir contrato de locação financeira, é dado adquirido que a autora adquiriu à C... auto, SA o direito de propriedade sobre o GG, antes de feito o documento de fls. 9-10, o qual, reitera-se, mais não é do qua a aparência de um tal contrato.

Trata-se de um aspeto que ninguém pôs em causa ao longo dos autos, o mesmo é dizer que ninguém questiona que a autora adquiriu o GG à Confiato antes de feito o tal documento de fls. 9-10, que tem a aparência de um contrato de locação financeira.

Independentemente:
- da autora ter adquirido o GG com o objetivo de o ceder em locação financeira a um indivíduo que julgava tratar-se de Artur C.; e, por via disso,
- alguém em sua representação, enquanto locadora, ter assinado aquele documento no convencimento de que estava, efetivamente, a celebrar com Artur C. um contrato de locação financeira tendo por objeto o GG;
- de a autora desconhecer a atuação criminosa de Sérgio A. que conduziu à feitura daquele do cumento, isso em nada belisca a
aquisição do GG pela autora à C... auto, SA e o seu consequente direito de propriedade sobre o veículo, tanto mais que, como é do domínio público, são inúmeras as situações em que as rendas não são pagas, gerando incumprimento que se refletirá na locação financeira, mas sem abranger o direito de propriedade que permanece na esfera jurídica do locador.

Conforme resulta do art. 874.º do C.C., «compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço.»

Dispõe o art. 879.º do C.C., «a compra e venda tem como efeitos essenciais:
a)- A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito;
b)- A obrigação de entregar a coisa;
c)- A obrigação de pagar o preço.»

Nos termos do n.º 1 do art. 408.º do C.C., «a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato (…)», não dependendo, portanto, da tradição material ou simbólica da coisa.

Constitui, tal como referido na sentença recorrida, e decorre do art. 892.º, n.º 1, do C.C., um princípio geral dos negócios jurídicos, que vem dos romanos, aquele segundo o qual «ninguém pode transferir para outro mais direito do que ele próprio teria» (Nemo plus iuris in alium transferre potest quam ipse habet); ou seja, não pode o adquirente obter qualquer direito se nenhum direito pertence ao transmitente, nem obter qualquer direito se nenhum direito pertence ao transmitente, nem obter mais direitos do que aqueles que tinha.

Aliás, sendo o contrato de compra e venda, conforme resulta do citado art. 408.º, n.º 1, do C.C., um contrato real (quod effectum), transferindo, só por si, a propriedade da coisa que constitui o seu objeto, obviamente, a coisa vendida deve pertencer ao vendedor.
O contrato de compra e venda de veículo automóvel não está dependente da observância de qualquer formalidade especial, nem sequer se exigindo a forma escrita.

A prova da realização de um tal contrato por fazer-se prova por qualquer meio permitido em direito.

No entanto, é obrigatório o registo do direito de propriedade sobre os veículos automóveis (art. 5.º, n.ºs 1, al. a), e 2), do Dec. Lei n.º 54/75, de 12.02).

O registo automóvel não tem eficácia constitutiva, pois a sua finalidade consiste, essencialmente, em individualizar os respetivos proprietários, destinando-se a dar publicidade aos direitos inerentes aos veículos automóveis (art. 1.º do referido diploma), funcionando como simples presunção, ilidível, (presunção «juris tantum») da existência do direito (arts. 1°, n.º 1 e 7°, do CRP e 350.º, n.º 2, do C.C.) bem como da respetiva titularidade.

Está demonstrado que nem a autora, nem, obviamente, Artur C., intervieram em qualquer contrato de compra e venda do GG, desde que aquela o adquiriu à C... auto, SA.

Nunca é de demais realçar que no caso em apreço nem sequer se verifica uma nulidade do contrato de locação financeira entre a autora e Artur C., pois a nulidade decorre da existência de um determinado vício no negócio jurídico, o que, obviamente, pressupõe ter existido tal negócio jurídico.

Na situação dos autos, tal como se enfatizou, não se pode sequer falar de nulidade de um contrato de locação financeira enquanto negócio jurídico bilateral, celebrado entre a autora e Artur C., já que nunca existiu um acordo de vontades entre ambos; este, ignorava o que se estava a passar, mediante o uso fraudulento de documentos seus, enquanto a autora julgava estar a contratar com o dito Artur A., quando na verdade estava fazê-lo o autor de um crime de burla e de falsificação de documentos.

Ou seja:
nunca existiu um contrato de locação financeira, tal como nunca existiu qualquer venda do GG pela autora a quem quer que fosse;
- a autora não foi vendedora do GG em nenhuma das transações que o tiverem por objeto e que se mostram descritas nos autos.

Dispõe o art. 892.º do C.C.: «É nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar; mas o vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa-fé, como não pode opô-la ao vendedor de boa-fé o comprador doloso.»
Uma vez que a autora não vendeu o GG no âmbito de qualquer uma das transações enunciadas nos autos, não se lhe aplica, relativamente a qualquer uma delas, incluindo, obviamente, a efetuada aos réus Pedro A. e Elisabete L., aqui apelantes, a restrição prevista naquele preceito consistente na proibição de oposição, pelo vendedor ao adquirente de boa-fé, da nulidade da venda.

Tal como decidido no Ac. do STJ de 13.02 1979, B.M.J. 284.º, 176, «é nula a venda de coisa alheia sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar. Tal nulidade não se estabelece, porém, em relação ao dono da coisa, pois aplica-se apenas nas relações entre alienante e adquirente. Perante o verdadeiro proprietário aquele contrato não tem qualquer valor, assumindo o cariz de inter alios acta, operando-se a ineficácia ipso jure, razão por que não lhe é aplicável o artigo 291.º».

Significa isto que não produzindo o ato de disposição de coisa alheia efeitos em relação ao seu verdadeiro proprietário, só entre os próprios contraentes (vendedor e comprador de coisa alheia) é que a venda é nula ou anulável.

Tal como afirma Santos Justo, «(…) a nulidade só afeta a relação ente vendedor e comprador porque, quanto ao proprietário, a venda é ineficaz. Diz-se, a propósito, que a venda é res inter acta alia relativamente ao verdadeiro proprietário da coisa ou titular do direito.».

A este propósito, vejam-se:
- Pires de Lima e Antunes Varela: «A nulidade da venda prescrita no art. 892 apenas se refere, no entanto, às relações entre o vendedor e o comprador de coisa alheia. No que se refere ao verdadeiro proprietário da coisa, a venda, como res inter alios, é verdadeiramente ineficaz.».
- Nuno Manuel Pinto Oliveira: «O contrato de compra e venda de coisa alheia é ineficaz em relação ao titular do direito de propriedade».
- Raul Ventura: «Relativamente ao verdadeiro proprietário da coisa, o contrato de venda de coisa alheia é res inter alios acta, que não altera o seu direito de propriedade.».
- Paulo Olavo Cunha: «A nulidade prescrita no art. 892.º apenas se refere à relação entre o vendedor e o comprador de coisa alheia.

No tocante ao verdadeiro proprietário da coisa, a venda, como res inter alios, é ineficaz, não alterando o seu direito de propriedade.».

O que se discute na doutrina é se o verdadeiro proprietário, sendo estranho ao contrato de compra e venda da coisa de que é dono, tem legitimidade para propor ação tendente à declaração de nulidade daquele contrato.

Trata-se, no entanto, de uma questão carecida de interesse para o presente recurso, uma vez que a autora não vem pedir a declaração de nulidade de qualquer contrato de compra e venda, mas, antes, o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o GG e, consequentemente, que se determine o cancelamento de todos os registos incidentes sobre o veículo incompatíveis com tal direito.

Aqui chegados, está facilitada a questão da aplicação ao caso concreto, quer do art. 291.º do C.C., quer do art. 17.º, n.º 2, do CRP, não sem que antes se esclareça que é diferente o âmbito de aplicação de cada um dos normativos.

Menezes Cordeiro salienta que à luz do art. 291.º do C.C., «os terceiros são protegidos por estarem de boa fé e por terem realizado o investimento de confiança: o título oneroso e o decurso dos 3 anos atestam-no. Este preceito não se confunde com o art. 17.º/2 do CRP: exige-se, aqui, um registo prévio, nulo ou anulado, não requerido pela lei civil.».

Na verdade, o art. 291.º do C.C. trata de nulidade substantiva, ou seja, dos casos de nulidade e anulabilidade do negócio jurídico; por sua vez, o art. 17.º do CRP respeita à nulidade registral, nos casos previstos no artigo 16.º do mesmo código, sendo certo, obviamente, que na origem de uma nulidade registral pode estar uma nulidade substantiva.

Uma tal distinção surge bem nítida no Ac. do STJ de 21.04.2009, Proc. n.º 5/09.6YFLSB (Sebastião Póvoas), in www.dgsi.pt, onde, depois da afirmação de que o conceito de terceiro surge tanto no art. 291.º, n.º 2, do C.C., como no art. 17.º, n.º 2, do CRP, se esclarece o seguinte:
«Não nos suscitam grandes dúvidas ao considerar que o conceito constante no artigo 291º nº 2 da lei civil se reporta à invalidade substantiva, enquanto o nº 2 do artigo 17º do Código do Registo Predial se limita à nulidade registral (cf. Dr. Henrich Ewald Horster, in Regesta, 52, 160; no sentido de serem disposições com igual âmbito de aplicação, a Dr..ª Isabel Pereira Mendes, in “Código do Registo Predial – Anotado e Comentado” 15..ª ed., 169).

É possível conciliar os dois preceitos naqueles precisos termos.

Já quanto ao conceito de terceiros, teremos de o precisar, deixando dito – como é óbvio – que não há “terceiro”, sem “segundo” ou “primeiro”.

No caso de alienação de um bem, o alienante é o primeiro na cadeia negocial, sendo que o transmissário é “segundo”, só sendo “terceiro” o adquirente do bem transmitido por este.

Se o “primeiro” aliena o mesmo bem duas vezes a duas diferentes pessoas estes são segundos adquirentes, só sendo “terceiros” nas suas relações entre si, aqui com a conceptualização registral.

Por isso no nº 1 do artigo 291º do Código Civil o “terceiro de boa fé” é o adquirente de um “segundo” na cadeia de transmissões.

Já para o direito registral o conceito de terceiro é o que consta do nº 4 do artigo 5º do Código de Registo Predial, que, como se disse, no direito substantivo, corresponde, ao adquirente (“segundo”) após a aquisição do mesmo bem por outro (também “segundo”).

Para evitar esta sobreposição de conceitos impor-se-ia uma clarificação pela via legislativa.».

Por sua vez, no Ac. do mesmo Alto Tribunal, datado de 16.11.2010, Proc. n.º 42/2001.C1.S1 (Garcia Calejo), in www.dgsi.pt, decidiu-se que o art. 17.º do CRP, «em confronto com o referido art. 291.º (que está inserido na secção de nulidade e anulabilidade do negócio jurídico), estabelece, a propósito das causas de nulidade do registo, as condições de invocação da nulidade (n.º 1) e as circunstâncias em que a declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé. Ou seja, o art. 291.º trata da nulidade e anulabilidade do negócio jurídico (nulidade substantiva), ao passo que o art. 17.º trata da nulidade do registo (nulidade registral).

Evidentemente que se não desconhece que na base de uma nulidade registral, pode estar uma nulidade substantiva. Como refere Gabriel Órfão Gonçalves (…) a respeito desta norma “no art. 291.º eram os vícios do negócio anterior que não afetavam os direitos adquiridos por terceiro sobre determinado bem, decorrido que estivesse um prazo de três anos sobre aquele primeiro negócio sem ter sido registada uma ação de anulação ou de declaração de nulidade. Aqui (art. 17.º n.º 2) não há qualquer negócio viciado cuja validade venha a ser exposta. O que há é um registo nulo. A declaração de nulidade de um registo não prejudica então terceiros que adquiriram direitos sobre o bem cujo registo era nulo. E o registo é nulo nos casos previstos no art. 16.º do CRPr.”

Portanto são diversos os pontos de incidência das normas em confronto Diga-se a este propósito, como tem vindo a decidir, segundo cremos de forma uniforme, este Supremo Tribunal, o art. 291.º n.ºs 1 e 2 está em vigor, não tendo sido revogado pelo art. 17.º n.º 2 do C.R.Predial – Ac. de 27-4-2005 – Col. Jur. 2005, Tomo II, págs. 74 e segs. e Oliveira Ascenção (em Reais, pág. 372) sublinha a discrepância entre os conceitos valorativos das normas (arts. 291.º do C.Civil e 17.º n.º 2 do C.R.Predial), entendendo dever aplicar o prazo de três também às situações de nulidade o registo a que alude o art. 17.º n.º2. Isto porque “se aquele que negociou com outrem pode, no prazo de 3 anos, desfazer a aparência em que terceiros confiaram, com prejuízo para os mesmos, por maioria de razão se há-de conceder o mesmo benefício a quem, com total desconhecimento da realidade, vê um bem até aí seu ser transferido para a esfera jurídica de outrem, sem que a sua vontade tivesse qualquer relevância nessa ocorrência jurídica” (…). Neste sentido afirma-se no Acórdão deste STJ de 21-4-2009 (in www.dgsi.pt/jstj.nsf) que “não nos suscitam dúvidas que o conceito constante do artigo 291.º n.º 2 da lei civil se reporta à invalidade substantiva, enquanto o n.º 2 do artigo do Código de Registo Predial se limita à nulidade registral…”».

Ou seja, tal como assevera Oliveira Ascensão, «o ato registral pode sofrer de invalidade substantiva ou de invalidade registal. Há invalidade substantiva quando não corresponde à realidade substantiva; invalidade registal quando está afetado pela violação de uma das regras principais que comandam a atividade registal.».

No desenvolvimento da afirmação de que está facilitada a questão da aplicação ao caso concreto, quer do art. 291.º do C.C., quer do art. 17.º, n.º 2, do CRP, importa atentar nas palavras de Maria C... S...:
«Alguma doutrina considera que o fundamento do artigo 291.º reside na fé pública do registo, isto é, no facto de o adquirente ter confiado num registo preexistente a favor do transmitente, o que conduz à conclusão de que o artigo 291.º implicitamente exige outro requisito: que o negócio inválido conste do registo (Oliveira Ascensão, 2003: 394). Esta posição fundamenta-se no princípio da legitimação registal (artigo 9.º, n.º 1, do CRegP), de acordo com o qual não será legalmente admitida a celebração de um negócio de disposição ou oneração de imóveis sem a inscrição prévia a favor do alienante, aproximando o artigo 291.º do artigo 17.º, n.º 2, do CRegP, que admite, em casos de invalidade do registo, a proteção imediata do terceiro de boa fé, que tenha confiado no registo inválido. Contudo, o autor aplica, por analogia, o período de carência de três anos consagrado no artigo 291.º, n.º 2, às situações abrangidas pelo artigo 17.º, n.º 2, do CRegp, não aceitando a aquisição imediata do terceiro. Outro sector da doutrina sustenta que deve prevalecer o regime do artigo 17.º, n.º 2, do CRegP como forma de aquisição imediata a non domino, mantendo-se a exigência dos requisitos do artigo 291.º unicamente para os casos em que o negócio nulo ou anulável não foi registado e em que o terceiro não atuou com base num registo anterior (Menezes Cordeiro, 2000: 94; Isabel Pereira Mendes, 2009: 160).
A norma do artigo 291.º deve ser interpretada em conjugação com os artigos 9.º (princípio da legitimação) e 34.º do CRegP (princípio do trato sucessivo), sendo exigível o requisito do registo prévio a favor do alienante, sob pena de nulidade do registo do terceiro adquirente [artigo 16.º, al. e) do CRegP (a qual retira a proteção do artigo 291.º ao terceiro de boa fé. Contudo, este pode solicitar a realização das duas inscrições (a sua e a do alienante) em simultâneo, ou, se por lapso foi feito o seu registo sem a inscrição a favor do alienante, proceder, antes de intentada e registada a acção de nulidade ou de anulação do negócio ou de nulidade do seu registo, à feitura do registo intermédio em falta, sanando a nulidade do seu registo, nos termos do artigo 121.º, n.º 4, do CRegP (Clara Sottomayor, 2010: 728-729).

A exigência de registo prévio a favor do alienante não significa que a proteção do terceiro se fundamente no princípio da fé pública do registo. Trata-se, apenas, de uma condição da proteção do terceiro, cuja falta pode ser sanada, e não do fundamento dessa proteção, o qual reside, nos termos da lei (artigo 291.º, n.º 3), na ignorância não culposa do vício que afeta o negócio inválido (Clara Sottomayor, 2010: 728). O artigo 291.º deve prevalecer, como meio de aquisição de direitos, sobre o artigo 17.º, n.º 2, do CRegP, norma que só se aplicaria quando estivessem em causa invalidades registais, sem repercussões na transmissão da titularidade de direitos, a qual só poderia ser regulada pelas normas do CC (Hórster, 1986: 302-303; Clara Sottomayor, 2010: 733-738 e 925). O artigo 291.º só é aplicável quando, na origem da cadeia de negócios inválidos, esteja o verdadeiro proprietário ou titular do direito (Clara Sottomayor, 2010: 882 e 923). Se um sujeito, obtendo um registo de aquisição com base em documentos falsos, vende a terceiro de boa fé, que regista imediatamente a sua aquisição, não estão reunidos os requisitos do artigo 291.º nem do artigo 17.º, n.º 2, do CRegP, pois o sujeito que deu origem à cadeia de negócios (ou de registos) inválidos nunca foi proprietário do bem, sendo as alienações sucessivas, a partir do sujeito que obtém o registo falso, res inter alias acta ou totalmente ineficazes em relação ao verdadeiro proprietário ou titular do direito.»-.

Assim, pois, à luz de todo o excurso que antecede:
- o recurso deve ser julgado improcedente, uma vez que, ao invés do defendido pelos apelantes, não tem aplicação ao caso concreto o disposto no art. 17.º, n.º 2, do Código de Registo Predial;
- deve ser mantida a decisão impugnada na parte em que declarou reconhecido o direito de propriedade da autora sobre o GG e determinou o cancelamento de todos os registos incidentes sobre o veículo posteriores ao registo daquele direito, ainda que por razões que nada têm a ver com as explanadas na sentença recorrida, ou seja, não por se verificar «o condicionalismo restritivo dos efeitos do registo a que alude o artigo 291, n.º 2, do Código Civil», conforme entende o tribunal a quo, mas simplesmente porque o art. 291.º do C.C. não tem sequer aplicação ao caso concreto.
***

4–DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes desta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em considerar juridicamente inexistente o contrato de locação financeira invocado pela autora/apelada na petição inicial, alegadamente celebrado com Artur C. e, no mais, em confirmar, ainda que com fundamentos substancialmente diferentes, a sentença recorrida, reconhecendo-se, por isso, o direito de propriedade da autora/apelada sobre o veículo automóvel de marca Renault, modelo Megane Break, com a matrícula..., e determinando-se o cancelamento de todos os registos sobre o mesmo incidentes, posteriores ao registo daquele direito.
Custas pelos apelantes – art. 527, n.ºs 1 e 2, do CPC.



Lisboa, 22 de maio de 2018



(José Capacete)
(Carlos Oliveira)
(Maria Amélia Ribeiro)