Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9000/16.8T8LSB.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR ACTO JURISDICIONAL
ERRO JUDICIÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (art.º 663º nº 7 do CPC)

1. O regime aprovado pela Lei n.º 62/2007, de 31 de dezembro - Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas (RRCEE) - concretiza o princípio consagrado artigo 22.º da CRP sobre a responsabilidade do Estado e demais entidades públicas, considerando as suas diferentes funções: administrativa, jurisdicional e político-legislativa.

2. No que concerne à função jurisdicional, o referido regime confere aos lesados o direito a serem ressarcidos dos danos causados no exercício da função jurisdicional, por acções ou omissões, nomeadamente as decorrentes de "erro judiciário” previsto no nº 1 do artigo 13º. do citado diploma.

3. O erro judiciário pode consistir num erro de direito ou num erro de facto. O erro de direito deve ser manifestamente inconstitucional ou ilegal, devendo tratar-se de erro qualificado, grosseiro, evidente, crasso e indesculpável de qualificação, subsunção ou aplicação de uma norma jurídica. O erro de facto deve ser clamoroso e grosseiro, no que toca à admissão e valoração dos meios de prova e à fixação dos factos materiais da causa.

4. O n.º 2 do artigo 13.º da Lei n.º 61/2007 exige a prévia revogação pelo órgão jurisdicional competente da decisão que se considera danosa susceptível de despoletar a ulterior acção de responsabilidade civil do Estado por actos da função jurisdicional, requisito que se prende com a estabilidade e segurança das decisões judiciais e o instituto do caso julgado.

5. A exigência estabelecida no citado nº 2 do artigo 13º da Lei nº 67/2007, de 31.12, apesar do seu caráter restritivo, não cerceia de forma arbitrária e desproporcionada o princípio da responsabilidade do Estado, não enfermando, consequentemente, de vício de inconstitucionalidade material.

6. A jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) vem decidindo que na apreciação da responsabilidade civil do Estado por acto da função jurisdicional, quando está em causa a violação do direito comunitário por um órgão jurisdicional nacional que decida em última instância, deve ter-se por definitivamente afastada a regra contida no artigo 13. º, n.º 2, da Lei n.º 62/2007, de 31/12, não devendo exigir-se a prévia revisão ou revogação da decisão danosa.

7. Não estando em causa uma decisão em violação do direito comunitário cometida por um julgador em última instância, nem um erro grosseiro, indesculpável que torne a invocada decisão arbitrária, demonstrativa de uma actividade dolosa ou gravemente negligente, não é possível considerar verificada a ilicitude, o que determina, desde logo, a improcedência da acção para efetivação da responsabilidade civil do Estado por erro judiciário.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I. RELATÓRIO

MARIA, residente ……, intentou, em 07.04.2016, contra ESTADO PORTUGUÊS, acção declarativa de condenação com processo comum, pedindo a condenação do réu no pagamento da quantia de €177.241,72, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a citação, até integral pagamento.
Fundamentou a autora, no essencial, esta sua pretensão da forma seguinte:
1. Foi forçada a sair do imóvel que identificou, em 17.10.2013, por decisão que reputa violadora do seu direito que considera real de habitação.
2. A decisão padece de erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto, devendo assim o Estado responsabilizar-se pelos danos decorrentes do exercício da função jurisdicional por decisão viciada por erro judiciário.
3. Era nessa casa que a autora tinha instalado o seu domicílio vitalício, a qual tem um valor patrimonial de €295.402,86.
4. A autora nasceu a 16.06.1955, tendo sido forçada a sair a 17.10.2013, pelo que tem direito a receber 60% do valor do imóvel correspondente ao valor que peticiona.
Citado, o réu apresentou contestação, em 03.06.2016, por excepção, invocando a incompetência relativa do Tribunal em razão do território, porquanto se tratou de decisão proferida em 05.06.2013 no âmbito de uma execução que corre na 1.ª Secção da Instância Central de Execução de Lisboa, J9, sob o n.º 6060/14.0t8LSB (anterior 32379/85.7tvlsb-B da 10ª Vara Cível de Lisboa e que inicialmente correu termos sob o n.º 10248-B/1985 da 1.ª Secção do 10.º Juízo Cível de Lisboa), sendo que tal decisão foi produzida por um juiz do Tribunal de Oeiras em sede de carta precatória para venda à qual foi atribuído o n.º 6123/11.3TBOER.
Mais invocou a falta de um pressuposto de procedibilidade porquanto o pedido deveria ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, tal como decorre do n.º 2 do art.º 13.º, do RRCEE, que constitui um pré-requisito da responsabilidade civil pelo exercício da função jurisdicional. Deveria, por isso, a autora ter obtido a prévia revogação da decisão, o que não ocorreu, além de que nem sequer a autora o invoca, o que constitui facto impeditivo do seu direito por constituir excepção peremptória.
Impugnou ainda o réu parte do alegado, por a decisão da entrega efectiva da casa penhorada encontrar fundamento legal no n.º 1 do artigo 840.º, do CPC, limitando-se o juiz deprecado a assim proceder, não constituindo, além disso, a decisão um qualquer direito real de habitação previsto no artigo 1484.º, do CCg
Alegou ainda o réu que a autora ao não reagir à decisão que determinou a entrega e ao solicitar a prorrogação para essa entrega consentiu na mesma, aceitando o decidido.
Termina, requerendo que a acção seja julgada improcedente.
A autora pronunciou-se, em 23.09.2016, sobre as excepções invocadas pelo réu.
Por decisão de 28.10.2016, o Tribunal da Comarca de Lisboa, instância central, declarou-se territorialmente incompetente, por ser competente a Instância Central da Comarca de Lisboa Oeste, ordenando a remessa do processo para este Tribunal.
Em 31.03.2017 realizou-se audiência prévia, mantendo as partes as posições já assumidas nos autos, tendo sido proferido o seguinte Despacho: Afigurando-se que os autos contêm desde já todos os elementos necessários para proferir decisão de mérito final, determina-se a conclusão do processo. Notifique.”
E, por se ter considerado que os autos continham todos os elementos para conhecer do mérito da causa, foi proferida, desde logo, decisão, em 15.11.2017, constando do Dispositivo da Sentença, o seguinte:
Em face do exposto:
julgo o pedido formulado na petição inicial por  MARIA improcedente por não provado, dele absolvendo o R. Estado Português.
Custas pela Autora (cfr. art.º 527.º, do Código de Processo Civil).
Notifique e registe.
Junte ao processo os despachos proferidos no processo 10248-B/1985 datado de 05/09/2011 e 6123/11.3 TBOER datados de 8/11/2012, 22/01/2011 referidos em 6 e 9 dos factos provados, e certidão da sentença proferida no processo 1652/13.7tboer com nota de trânsito em julgado, notificando-os às partes (art.º 412.º, n.º 2, do CPC).
Inconformada com o assim decidido, a autora interpôs, em 20.12.2017, recurso de apelação, relativamente à sentença prolatada.
São as seguintes as CONCLUSÕES da recorrente:
i. apesar de a Recorrente ter alegado na petição inicial e trazido aos autos os elementos que, no seu entender, consubstanciam um erro grosseiro do julgador na apreciação dos respetivos pressupostos de facto de ação anterior e de obrigar a recorrente a devolver o seu direito de habitação.
ii. 1ª instância considerou que a Autora não esgotou todas as instâncias de recurso, não está preenchido, no caso concreto, o disposto no artigo 132, nº2 da lei nº 67/2007, de 31/12 - daí advindo a improcedência da presente ação;
iii. Pois como porque se tratava de uma ação com o valor de recurso, deveria ter recorrido até ao Supremo Tribunal de Justiça, por força dos artigos 629º, nº1 do CPC e 44º, nº l da LOSJ;
iv. De acordo com a Recorrente, admitir a prévia revogação da decisão danosa proferida em último grau de jurisdição, como pressuposto da responsabilidade civil extra-contratual do Estado, implica a violação do artigo 229 da CRP, pois não se vislumbram "outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos" que possam justificar essa restrição, nos termos do artigo 182,  nº2 da CRP.
v. No direito comunitário é criticado o pressuposto da prévia revogação da decisão danosa para a efetivação da responsabilidade civil do Estado por danos causados no exercício da função judicial, uma vez que para o TJCE basta que (i) a norma de direito comunitário confira direitos aos particulares, (ii) a violação seja suficientemente caracterizada e (iii) exista um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
vi. Mais afirmou o TJCE que, de acordo com um princípio de equivalência, “as condições fixadas pelas legislações nacionais em matéria de reparação dos danos não podem ser menos favoráveis do que as respeitantes a reclamações semelhantes de natureza interna" e de acordo com o princípio da efetividade, "não podem estar organizadas de forma a, na prática tornarem impossível ou excessivamente difícil a obtenção da reparação".
vii. Logo, pelos menos nos casos referentes a violações suficientemente caraterizadas de normas de direito comunitário que se destinam a conferir direitos aos particulares, e exista um nexo de causalidade entre o facto e o dano, entende a Recorrente que a Lei nº 67/2007 é desconforme ao direito comunitário, na medida em que existe um requisito adicional para que se intente ação de responsabilidade civil contra o Estado - vide Acórdãos Kõbler e Traghetti deI Mediterraneo SpA.
viii. Nestes casos a "prévia revogação da decisão danosa" constitui uma violação do direito comunitário pela decisão jurisdicional causadora de danos, ou seja, é uma restrição, não autorizada pelo direito comunitário e pela interpretação dele feita pelo TJCE, do direito dos particulares a obterem a reparação dos danos causados por violações, pelos Estados-Membros, dos direitos conferidos pelo Direito Comunitário.
ix. Porquanto, e tendo em conta a jurisprudência do TJCE, a condição de "prévia revogação da decisão danosa" não deve ser aplicada nos casos em que está em causa a responsabilidade do Estado por violação do direito comunitário, sob pena de se pôr em causa o princípio do primado afirmado na jurisprudência do TJCE nos acórdãos Costa vs Enel (C-6/64), Simmenthal (C-106/77) e Internationale Handelgesellschaft (Proc. 11/70).
x. E mais ainda, no artigo 41º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, permite-se que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condene o Estado que viola um direito fundamental a indemnizar os danos que resultaram, para o lesado, desse comportamento.
xi. Assim, ao inverso do que tem sido entendido pela doutrina nacional, a prévia revogação da decisão danosa não é um pré-requisito aferidor da ilicitude da atuação do Estado para efeito de imputação de responsabilidade civil extra-contratual por danos causados no exercício da função jurisdicional e, consequentemente, mesmo as decisões de órgãos jurisdicionais insuscetíveis de recurso ordinário, ou não revogadas, podem fundamentar ação de responsabilidade contra o Estado.
xii. A Autora adquiriu no Tribunal e por decisão judicial por sentença transitada em julgado, o direito da habitação em processo de divórcio e como o Tribunal lhe retirou tal direito na execução onde a recorrente nem é parte, não restam dúvidas à Recorrente que a segunda decisão judicial lhe causou os prejuízos - e o erro judicial- invocados.
Pede, por isso, a apelante, que seja julgada procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida.
O réu apresentou contra-alegações, em 01.02.2018, e formulou as seguintes CONCLUSÕES:

i. A presente acção só poderia ser proposta depois da revogação da decisão considerada danosa, exigência decorrente da lei (artigo 13° da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro;
ii. Esta disposição legal (artigo 13°, nº 2, da Lei n° 67/2007, de 31 de Dezembro) não é inconstitucional pois que não retira, limita ou diminui às partes qualquer acesso ao Direito e aos tribunais; antes consagra a possibilidade e o direito de expor e discutir as suas razões e o poder de vir a obter uma decisão justa;
iii. Constatando-se a não verificação de tal pressuposto essencial, a revogação prévia da decisão danosa, decide-se a improcedência da acção, decisão que não viola o disposto nos artigos 19° e/ou 20° da Constituição da República Portuguesa, pelas razões plasmadas sob B;
iv. Não ocorre violação de normas de Direito Comunitário nem a A. agora recorrente menciona uma que tenha sido violada;
v. A decisão - fundamento da pretensão da A. - de ordenar a entrega do imóvel não constitui erro grosseiro, porquanto se fundamenta no disposto no artigo 840º do Código de Processo Civil com a redacção dada pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março.
vi. A sentença agora em apreço não merece censura e deverá ser mantida, improcedendo o recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO

Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 635º, nº 4 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação da recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Assim, e face ao teor das conclusões formuladas a solução a alcançar pressupõe ponderar sobre: A VERIFICAÇÃO DE ERRO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA ADUZIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS.

O que implica a análise sobre:     
a) Da responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional e a Lei 62/2007, de 31/12, que aprovou o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas (RRCEE).
b) Do pressuposto exigido no nº 2 do artigo 13º do RRCEE para fundar o direito de indemnização - Da falta de prévia revogação da decisão danosa.
c) Do erro judiciário enquanto pressuposto material da responsabilidade civil do Estado.

III . FUNDAMENTAÇÃO

A –
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Foi dado como provado na sentença recorrida, o seguinte:
1. A Autora foi casada sob o regime da comunhão de adquiridos com  José, tendo ambos contraído matrimónio aos 12 de Outubro de 1981.
2. Na constância do matrimónio, ao 19 de Março de 1982, o então cônjuge marido adquiriu, apresentando-se como divorciado, a fracção E do prédio urbano sito na …. Paço de Arcos, registada a favor do então cônjuge marido pela AP. 49 de 1982/03/19 e descrita na 1ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o nº 302/19850903. Foi feito o averbamento pela AP. 3088 de 2011/05/26, da qual consta que era casada em comunhão de adquiridos com  José no dia da aquisição.
3. Tal moradia destinou-se à casa de morada de família do então casal.
4. A A. sempre aí residiu, juntamente com os filhos do casal, até à separação do casal por sentença com trânsito em julgado aos 14 de Junho de 1993.
5. Sendo que no acordo relativo à casa de morada de família, “O direito à habitação sita na …., em Paço D'Arcos – Oeiras, propriedade do casal, registada na Conservatória do Registo Predial de Oeiras com o nº 6… a folhas 1.. do livro B-2., bem como todo o seu recheio mobiliário é atribuído à segunda outorgante”, Aqui A.
6. Não obstante, ainda na constância do matrimónio do ex-casal, corria termos o processo nº 10248-I/1985, na 1ª Secção da 10ª Vara Cível de Lisboa, em que  José surgia como executado – conforme doc nº 5, sendo exequente Banco Fonsecas & Burnay, EP.
7. Processo este em que a autora não era parte, nem nunca foi, na execução que correu termos;
8. Na qual foi penhorada a casa de morada de família supra referida em 26/02/1988, e onde residia a Autora e os seus filhos.
9. Nesses autos foi remetida carta precatória para venda do imóvel penhorado ao Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras a qual seguiu com o n.º 6123/11.3tboer do 2.º juízo cível do Tribunal Judicial de Oeiras.
10. Nesse processo foi ordenada a entrega do imóvel por despacho de 05/06/2013 proferido pelo 2.º juízo cível do Tribunal Judicial de Oeiras onde se lê “notifique  MARIA, quer na pessoa do seu ilustre Mandatário, quer pessoalmente, através de O.P.C., para, em 10 dias, proceder à entrega do imóvel ao encarregado da venda/fiel depositário, livre de pessoas e bens, sob pena de ser ordenada a sua entrega com recurso ao auxílio da força pública”.
11. Notificada, a A. requereu o protelamento da entrega do imóvel por período não inferior a três meses - cfr. fls. 98 e 99.
12. O que veio a ser deferido parcialmente por despacho de 06/09/2013, fixando-se o prazo de 30 dias para a mesma ser efectivada (cfr. fls. 100).
13. A A. não recorreu da decisão referida em 10, dando apenas entrada do requerimento mencionado em 11.
14. No dia 17/10/2013 MARIA entregou ao encarregado da venda cinco chaves de acesso ao prédio penhorado, sito … em Paço d´Arcos-
15. A fracção no âmbito da execução foi avaliada em €245.000,00 e vendida em 23/07/2015 por €175.000,00.
16. A execução tinha o valor inicial de €1.402.363$00 e foi proposta pelo Banco Fonsecas e Burnay, tendo prosseguido para pagamento de créditos reclamados no valor global de €171.695,89 e juros.
17. A A. propôs contra o exequente Banco BPI no processo mencionado em 6. acção de reivindicação da propriedade do imóvel mencionado em 2. E que correu termos sob o n.º 1652/13.7tboer nesta instância Central J1, na qual foi proferida sentença já transitada em julgado que a julgou improcedente.


B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A presente acção assenta na imputação ao Estado de danos patrimoniais causados à autora em virtude de um alegado erro judiciário.
Insurge-se a autora/recorrente contra a sentença recorrida que julgou improcedente a acção, por se ter concluido, em síntese, não só pela falta de verificação do pressuposto exigido para fundar o direito de indemnização, ou seja, a falta de prévia revogação da decisão danosa, como também pela ausência do invocado erro judiciário.
Em causa está, em suma, a ilicitude do alegado não reconhecimento do direito da autora à casa de morada de família, cujo imóvel veio a ser vendido no processo de execução interposto contra o seu ex. cônjuge.

A responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional tem sido objecto de longa controvérsia, muito por falta de regulamentação própria expressa.

Apesar disso, foi-se manifestando uma tendência crescente no sentido do reconhecimento da referida responsabilidade, com fundamento no nº 1 do artigo 22º da CRP, no qual se dispõe que: O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.

Esta norma consagra o princípio da responsabilidade patrimonial directa do Estado e das entidades públicas pelos danos causados aos cidadãos. Tratando da previsão de direitos de natureza análoga a direitos fundamentais, está sujeita ao regime destes (art. 17º da CRP) e, nessa medida, é directamente aplicável (art. 18º da CRP), não carecendo de mediação normativa para poder ser invocada pelos lesados.

Assim, os particulares, cujos direitos, liberdades e garantias hajam sido violados ou sofreram prejuízos na sua esfera jurídico-subjectiva, sempre poderiam, observados os pressupostos gerais da responsabilidade civil, accionar judicialmente o Estado com o objectivo de obter a reparação pelas lesões ou prejuízos sofridos.

Reportando-se tal normativo às acções ou omissões praticadas aí referidas sem quaisquer restrições e a própria letra do preceito ao aludir a funções, inculca o entendimento que abrangem todas as funções do Estado, incluindo a função jurisdicional.

Era, todavia, reconhecida a dificuldade de conciliar os princípios da independência do poder judicial e da irresponsabilidade dos juízes, garante do desempenho imparcial da sua função, com a responsabilidade do Estado por actos ilícitos do juiz.

É certo que também haverá que atentar nos comandos constitucionais vertidos nos artigos 20.º n.º 4 (“Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”) e 32.º n.º 2 (“Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”) e ainda ponderar a jurisprudência que nesta matéria tem sido consolidada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) por referência à interpretação e aplicação do artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (“Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. (…)”).

Com efeito, Portugal aderiu à aludida Convenção (aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/75, de 13 de Outubro) e declarou, para os efeitos previstos no artigo 46.º da Convenção, reconhecer como obrigatória a jurisdição daquele Tribunal para todos os assuntos relativos à interpretação e aplicação da Convenção (Aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros, publicado no D.R., I série, de 06.02.1979).

Nos termos do artigo 50.º da Convenção, na sua versão inicial, se o TEDH “declarar que uma decisão tomada ou uma providência ordenada por uma autoridade judicial ou qualquer outra autoridade de uma Parte Contratante se encontra, integral ou parcialmente, em oposição com obrigações que derivam da presente Convenção, e se o direito interno da Parte só por forma imperfeita permitir remediar as consequências daquela decisão ou disposição, a decisão do Tribunal concederá à parte lesada, se for procedente a sua causa, uma reparação razoável.”

A Convenção foi actualizada pelo Protocolo n.º 11, o qual foi aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 21/97, de 3 de Maio e ratificado por Decreto do Presidente da República n.º 20/97, da mesma data. E, na nova redacção da Convenção o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos é instituído “a fim de assegurar o respeito dos compromissos que para as Altas Partes contratantes resultam da presente Convenção” (art.º 19.º), reconhecendo o artigo 41.º à parte lesada o direito a uma reparação razoável, se for caso disso, em termos idênticos aos constantes no anterior artigo 50.º da Convenção.

Por outro lado, na sequência do Protocolo n.º 14, de 13.5.2004, no artigo 46.º, sob a epígrafe “força vinculativa e execução das sentenças”, consagrou-se a obrigatoriedade, para as Altas Partes Contratantes, das “sentenças definitivas do Tribunal nos litígios em que forem partes” (nº 1), prevendo-se, nos números seguintes, medidas a tomar para assegurar a respectiva execução. De tal Protocolo, que foi ratificado pelo Presidente da República pelo Decreto n.º 14/2006, de 21.02 e entrou em vigor em 01.06.2010, resultou a alteração introduzida à alínea f) do artigo 771.º do CPC de 1961 pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, o qual acrescentou à lista de casos justificativos da revisão extraordinária de sentenças a necessidade de conciliar a decisão recorrida com “decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português.

Ora, com a publicação da Lei 62/2007, de 31/12, que aprovou o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas (RRCEE), passou este diploma a contemplar, de forma global e sistemática, o exercício das diferentes funções estaduais: administrativa, jurisdicional e político-legislativa.

No que concerne à responsabilidade por actos da função jurisdicional, o legislador avançou no sentido do alargamento da responsabilidade civil do Estado, estendendo ao domínio do funcionamento da administração da justiça, o regime da responsabilidade da Administração.

Há, por conseguinte, responsabilidade do Estado por actos ilícitos dos juízes e outros magistrados quando:
(1) houver grave violação da lei resultante de “negligência grosseira”;
(2) afirmação de factos cuja inexistência é manifestamente comprovada no processo;
(3) negação de factos, cuja existência resulta indesmentivelmente dos actos do processo;
(4) adopção de medidas privativas da liberdade fora dos casos previstos na lei;
(5) denegação da justiça resultante da recusa, omissão ou atraso do magistrado no cumprimento dos seus deveres funcionais.
           
É inquestionável, atenta a data dos factos invocados pela autora, que o regime aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31.12 (Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas), que entrou em vigor em 31.01.2008 (art.º 12.º, n.º s 1 e 2, 1.ª parte, do Código Civil), será aqui aplicável.

Distingue este diploma entre:
a) Os danos ilicitamente causados pela administração da justiça, com destaque para a "violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável", com o regime previsto no artigo 12º, aos quais é aplicável o "regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa"(artigos 7º a 10º); 
b) Os danos decorrentes de "erro judiciário", com o regime previsto no artigo 13º.

Dispõe, com efeito, o aludido artigo 13º: 1. Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.
2. O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.

Prevê o nº 1 os pressupostos materiais da responsabilidade por erro judiciário (fora dos casos de condenação penal injusta e de privação ilegal da liberdade) e deles decorre, como refere CARDOSO DA COSTA, Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado por actos da função judicial, RLJ 138-162, que a responsabilidade é aqui, "limitada às situações de erro grave, ou porventura muito grave, do ponto de vista da percepção do direito ou dos factos exigível ao decisor jurisdicional, já que apenas poderá caber nos casos em que tal percepção contrarie, de modo manifesto, o sentido normativo da Constituição ou da lei, ou se traduza numa análise grosseiramente errada dos factos".

No caso de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais, ilegais ou injustificadas, por erro grosseiro, na apreciação dos respectivos pressupostos de facto ou de direito, o Estado só está incurso no dever de indemnizar se, como resulta de lei, estiver em causa situações de erro grosseiro e se a decisão for manifestamente ilegal, inconstitucional ou injustificada.

Como se mencionou no Ac. STJ de 10.05.2016 (Pº 136/14.0TBNZR.C1.S1): A previsão legal não postula qualquer erro, seja por violação da lei, seja por errada apreciação dos factos, antes exige um erro qualificado, “grosseiro” e que na causa dele esteja uma percepção/julgamento manifestamente inconstitucional ou ilegal ou injustificado, que partindo da decisão de facto exprima, faça emergir uma solução a todas as luzes indefensável, patentemente ilegal por inconstitucionalidade ou inadmissível, por numa perspectiva lógica a apreciação dos factos ou a operação de subsunção deles ao direito ser insustentável à luz de uma criteriosa avaliação exigível ao julgador.

O erro judiciário pode, portanto, consistir num erro de direito ou num erro de facto.

O erro de direito, como sublinha CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades  Públicas  Anotado,  210,  "deverá  revestir-se  de  um suficiente grau de intensidade, no sentido de que deverá resultar de uma decisão que, de modo evidente, seja contrária à Constituição ou à lei, e por isso desconforme ao direito, e que não possa aceitar-se como uma das soluções plausíveis da questão de direito. Deverá tratar-se, nestes termos, de uma decisão proferida contra lei expressa e que, em si, represente um comportamento anti-jurídico susceptível de gerar, nos termos gerais, um dever de indemnizar".

Pode consistir num erro de qualificação, de subsunção ou de estatuição jurídicas ou ainda na aplicação de uma norma que devesse ser tida como inconstitucional. Mas, como salienta o aludido autor, ob. cit., 213, o reconhecimento do direito de indemnização não se basta com a mera constatação, em sede de recurso, por um tribunal superior, de uma errada interpretação e aplicação do direito, tornando-se ainda exigível que se trate de um erro evidente que, por ser evitável segundo a normalidade das coisas, tenha desnecessariamente gerado prejuízos a uma das partes.

O erro de direito terá de ser manifestamente inconstitucional ou ilegal, não bastando a mera existência de inconstitucionalidade ou ilegalidade, devendo tratar-se de erro evidente, crasso, indesculpável, que o magistrado tem a obrigação de não cometer.
                       
O erro na apreciação dos pressupostos de facto releva apenas se for um erro grosseiro, e, por isso, também indesculpável, inadmissível e sem justificação, que só por desatenção ou desleixo foi cometido, circunscrevendo-se "aos casos em que houve um clamoroso erro de avaliação dos meios de prova"; erro que "tanto poderá respeitar a um erro na apreciação das provas, isto é, um erro sobre a admissibilidade e valoração dos meios de provas, como a um erro sobre a fixação dos factos materiais da causa" - neste sentido CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, ob. cit., 214 e ANA CELESTE CARVALHO, Responsabilidade Civil por Erro Judiciário, E-book Centro de Estudos Judiciários, 48 e ss. e ainda Ac. STJ de 23.20.2014 (Pº 1668/12.0TVLSB.L1.S1).

Mas, como se reconhece no Ac. STJ de 24.02.2015 (Pº 2210/12.9TVLSB.L1.S1) “(…)
exige-se no nº 2 do art. 13º que o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente. Trata-se de opção do legislador derivada da necessidade, já acima aflorada, de compatibilizar o instituto da responsabilidade civil com a segurança e certeza jurídica do caso julgado.
Assim, o erro de julgamento deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis; não na acção de responsabilidade em que se pretenda efectivar o direito de indemnização.
Não pode, pois, "atribuir-se qualquer relevo a um alegado erro judiciário sem que ele seja reconhecido como tal pela competente instância jurisdicional de revisão. Sem tal reconhecimento, o «erro» (o puro «erro») só o será do ponto de vista ou no plano da análise crítico-doutrinária da decisão, não num plano jurídico-normativo: neste outro plano, o que subsiste é a definição do direito do caso, emitida por quem detém justamente o múnus e a legitimidade para tanto" – cfr. em idêntico sentido Ac. STJ de 10.05.2016 (Pº 136/14.0TBNZR.C1.S1), ambos acessíveis em www.dgsi.pt.

É que, não se mostra curial que uma decisão jurisdicional consolidada, por não ter sido impugnada, pudesse vir a ser posteriormente "desautorizada" por outro tribunal, porventura de diferente espécie ou da mesma espécie, mas de grau inferior.

Assim, e como se fez menção no citado acórdão do STJ de 24.02.2015, a revogação da decisão danosa terá de constar de uma decisão definitiva, isto é transitada em julgado, e é aí que terá de ser reconhecido o pressuposto substantivo da responsabilidade – "o carácter manifesto do erro de direito ou o carácter grosseiro do erro na apreciação dos factos". Por outro lado, a revogação deve emanar de um tribunal superior em via de recurso ou do próprio tribunal que proferiu a decisão questionada, quando tal seja admissível (através de reclamação ou pedido de reforma – cfr. art. 616º do CPC). "Onde não caiba ou não seja viável qualquer destes instrumentos processuais, ficará também precludida a possibilidade da acção de responsabilidade” - cfr. também neste sentido CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, ob. cit., 217 e 218.

A jurisprudência, e grande parte da doutrina, têm defendido, portanto, que, se não se fizer a prova, no processo destinado a efectivar a responsabilidade civil, da revogação da decisão que tenha incorrido em erro judiciário, não será possível considerar verificada a ilicitude, pelo que a acção deverá necessariamente improceder. Se a decisão pretensamente ilegal ou inconstitucional não é recorrível ou se o tribunal de recurso, que poderia pronunciar-se em última instância sobre a matéria em causa, manteve o entendimento do tribunal recorrido, não pode dar-se como existente um erro de julgamento para efeitos de responsabilidade civil – cfr. CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, ob. cit. 220; ANA CELESTE CARVALHO, ob. cit., 61 e Acs. STJ, de 03.12.2009 (Pº 9180/07.3TBBRG.G1.S1) e os já citados de 23.10.2014 e de 24.02.2015.

É certo que como resulta supra o artigo 22º da CRP, sob a epígrafe Responsabilidade das Entidades Públicas preceitua que: O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.

Sucede, porém, que é reconhecida ao legislador ordinário uma larga margem de conformação quanto à densificação da norma do referido artigo 22º, mormente no que toca à definição dos pressupostos da responsabilidade civil do Estado - Cfr. GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA,
CRP Anotada, Vol. I, 429.

O legislador constitucional deixou ao critério do legislador ordinário a tarefa de clarificar em que específicas condições o direito dos lesados, resultante de actos e omissões praticados pelos titulares dos órgãos do Estado, funcionários ou agentes no exercício das suas respectivas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem, como se encontra legalmente previsto, pois para que o direito a uma indemnização possa ser exercido, necessário se torna que a decisão danosa tenha sido previamente revogada pela jurisdição competente e que essa revogação tenha como fundamento a declaração de que se mostram verificados os vícios enumerados no nº 1 do artigo 3° do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado.
De resto, sempre se terá de entender que a compressão do princípio consagrado no artigo 22º da CRP resulta da necessidade de harmonizar o regime de responsabilidade com outros preceitos constitucionais, como é o caso dos que respeitam à função jurisdicional, em especial no que toca à independência dos tribunais e à força do caso julgado.
Donde se terá de concluir que o regime do artigo 13º nº 2 do RRCEE, ao pressupor a prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, não exclui, nem cerceia, arbitrária e desproporcionadamente, o princípio da responsabilidade do Estado, consagrado no artigo 22º da CRP, não violando esta norma.
Aliás, o Tribunal Constitucional, chamado a pronunciar-se sobre esta questão, decidiu no Pº 185/15, publicado no DR, 2ª série, n.º 186 de 23/09/2015: “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 13.º, n.º 2 do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31/12, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.
Declinando a inconstitucionalidade da norma, invoca-se no aludido aresto, no que respeita à solução prevista no artigo 13º n.º 2 do Decreto-Lei nº 67/2007: “… importa começar por recordar o amplo espaço de conformação legislativa quanto à definição do âmbito e dos pressupostos da responsabilidade do Estado reconhecido pelo artigo 22.º da Constituição (cfr. supra o n.º 8). Em especial, no que se refere à responsabilidade do Estado por erro judiciário, esta interfere, pelas razões já mencionadas, com a própria configuração e modo de funcionamento do sistema judiciário, tal como prefigurados na Constituição, ampliando desse modo ainda mais o campo de intervenção do legislador ordinário. Assim, para além da previsão genérica do direito à reparação pelos ilícitos cometidos pelos titulares dos órgãos do estado e demais entidades públicas, que, justamente por ser geral, também deve abranger os juízes e os ilícitos que estes eventualmente cometam no exercício das respetivas funções, não é possível a partir do citado preceito constitucional determinar com mais exatidão os contornos do direito à indemnização fundada em erro judiciário. Certo é que a mencionada solução legal não exclui em absoluto tal direito, limitando-se a estabelecer que o erro judiciário relevante seja previamente reconhecido pela jurisdição competente, o mesmo é dizer, que o exercício da função jurisdicional coenvolvido na reapreciação da decisão judicial danosa se faça com respeito pelas competências e hierarquia próprias do sistema judiciário e de acordo com o seu específico modo de funcionamento: o reconhecimento do erro judiciário implica uma revogação da decisão danosa pelo órgão jurisdicional competente no quadro de um recurso ou de uma reclamação (ou, porventura, de uma revisão oficiosa). Ao fazê-lo, o artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP não está a interferir com qualquer âmbito de proteção constitucionalmente pré-definido (muito menos a invadi-lo). E, por isso mesmo, também não se pode dizer que essa norma revista a natureza de uma lei harmonizadora destinada a resolver um qualquer conflito de bens jurídicos fundamentais ou de uma lei restritiva de um direito fundamental (sobre estas categorias e as consequências jurídicas que a elas vão associadas na dogmática dos direitos fundamentais, v., por todos, Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 216-217 e, quanto às leis restritivas, p. 277 e ss., e quanto às leis harmonizadoras, p. 298 e ss.). Em rigor, a norma do artigo 13.º, n.º 2, RCEEP concorre, juntamente com a do n.º 1 do mesmo artigo, para a configuração do conteúdo do direito de indemnização emergente da responsabilidade do Estado por erro judiciário do Estado. É, nessa exata medida, uma lei conformadora ou constitutiva: “não restringe o conteúdo do direito ou da garantia, porque é a ela própria que cabe determiná-lo, para além do conteúdo mínimo do direito ou do núcleo essencial da garantia, que decorrem  da Constituição”   (cfr. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 213). Na verdade, o direito à indemnização por erro judiciário civil foi fixado, na parte respeitante à determinação de quem é o juiz competente para realizar a apreciação da decisão judicial danosa, legislativamente pelo artigo 13.º, n.º 2, em causa (cfr. Vieira de Andrade, ibidem, que, na nota 63, refere como exemplo de direitos e faculdades cujo conteúdo é juridicamente construído pelo legislador, entre outros, os direitos às indemnizações previstas nos artigos 27.º, n.º 5, e 29.º, n.º 6, da Constituição – isto é: as indemnizações por erro judiciário penal). Como explica Vieira de Andrade, “apesar do poder legislativo de configuração, ao juiz cabe ainda verificar o respeito pelo conteúdo essencial do direito (que será em regra o seu conteúdo mínimo) […], avaliado segundo um critério de evidência” (v. o Autor cit., ob. cit., p. 214). Ora, como referido, a norma do artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP não elimina o direito à indemnização por erro judiciário, limitando-se a acomodar no regime respetivo, as exigências correspondentes à estrutura e ao modo de funcionamento do sistema judiciário constitucionalmente consagrado. Inexiste, por conseguinte, qualquer evidência de desrespeito pelo conteúdo essencial do referido direito. Se à partida, e de modo constitucionalmente legítimo, o direito à indemnização em causa é delimitado negativamente em função da possibilidade legal de reapreciação judicial pelo tribunal competente antes do trânsito em julgado da decisão tida como danosa, também não se coloca qualquer problema de acesso ao direito. Este último, enquanto direito-garantia, pressupões um direito material, que, no caso, inexiste. Finalmente, as referidas exigências orgânico-funcionais relacionadas com o sistema judiciário explicam satisfatoriamente a solução legal, afastando a ideia de que a mesma seja arbitrária”.

Na verdade, o RRCEE não dá uma noção de erro judiciário, apontam-se as características que esse erro deve revestir para que seja fonte geradora de responsabilidade civil: ter sido praticada uma decisão jurisdicional manifestamente inconstitucional ou ilegal (erro manifesto de direito) ou que seja injustificada, por erro  grosseiro  na  apreciação  dos pressupostos de facto (erro grosseiro de facto), isto é, em ambos os casos, erros evidentes e indesculpáveis, os quais consistem nos pressupostos materiais da responsabilidade civil por erro judiciário – v. a este propósito ANA CELESTE CARVALHO, ob. cit., 53.

Assim, para efeitos de responsabilidade civil por erro judiciário, releva apenas o erro manifesto ou grosseiro.

O erro de direito deve ser manifesto e, por isso, especialmente qualificado e intenso e, por outro lado, o erro na apreciação dos pressupostos de facto deve igualmente ser grosseiro.

O Supremo Tribunal de Justiça tem, repetidamente, qualificado como erro grosseiro o erro indesculpável em que não incorreria um julgador prudente, agindo com ponderação conhecimento e competência – cfr. entre vários e a título exemplificativo, Acs. de 08.09.2009 (Pº 368/09.3YFLSB), de 15.12.2011 (Pº 364/08.OTCGMR,G1.S1), de 28.2.2102 (Pº 825/06.3TVLSB.L1.S1), de 23.10.2014 (Pº 1668/12.0TVLSB.L1.S1) e de 24.2.2015 (Pº 2210/12.9TVLSB.L1.S1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.

Ora, qualquer destas situações é sanável, podendo o erro ser reparado ou eliminado através do competente recurso ordinário da decisão. Será este, o instrumento normal para superar a incorrecção da decisão judicial, não a acção de responsabilidade.

Como também se decidiu no Ac. STJ de 10.05.2016 (Pº 136/14.0TBNZR.C1.S1): Para lá do requisito erro grosseiro, de facto ou de direito, envolvendo este a decisão manifestamente inconstitucional, a Lei n.º 61/2007, exige no n.º 2 do art. 13.º, a prévia revogação pelo órgão jurisdicional competente da decisão que se considera danosa e que despoleta a ulterior acção de responsabilidade civil do Estado-juiz por actos da função jurisdicional: trata-se de um requisito  que se prende  com a jurisdictio  da sentença  e o  instituto do caso julgado, como factores de estabilidade e segurança das decisões judiciais: por via de regra, essa estabilidade é assegurada pelo esgotamento das vias do recurso.

A necessidade de prévia revogação da decisão danosa prevista no nº 2 do artigo 13.º da Lei n.º 67/2007, que terá de ser exercida por via processual adequada para o efeito, designadamente, o recurso, não exclui ou limita, de forma arbitrária e desproporcionadamente, o princípio da responsabilidade do Estado, consagrado no artigo 22º da CRP. Este tem sido o entendimento preconizado na jurisprudência dos tribunais superiores – cfr., para além dos já citados acórdãos do STJ, o Ac. do TRE 17.03.2016 (Pº 389/14.4TVLSB.E1), Ac. do TRL de 09/07/2014 (Pº 2210/12.9TVLSB.L1), Acs. do TRG de 01.10.2015 (Pº 6982/13.5TBBRG.G1) e de 20.03.2018 (Pº 1803/13.1TBBRG.G1); Acs. do TRP de 06.12.2016 (Pº 2746/16.2T8PRT.P1) e de 16.10.2017 (Pº 379/16.2T8PVZ.P1).


O pressuposto processual da prévia revogação da decisão jurisdicional para que o erro fundamente o direito à reparação do lesado, tem o significado de salvaguardar a autoridade da sentença e o instituto do caso julgado, por o juiz da accão de responsabilidade não se pronunciar sobre a bondade intrínseca da decisão jurisdicional proferida, deixando-a intacta.

Essa opção do legislador compatibiliza, pois, os institutos da responsabilidade civil com a segurança e certeza jurídica do caso julgado, preservando a paz social, pois impede a reabertura de conflitos antigos, que determinem a perda de segurança no sistema judicial.

Por prévia revogação da decisão deve entender-se a decisão que anteriormente tenha sido revogada através de recurso ou alterada por qualquer modo, ou seja, todas as formas legalmente admissíveis de suscitar a reapreciação da decisão em que instância for: - no mesmo tribunal que proferiu a decisão ou em tribunal superior - cabendo não apenas o recurso ordinário, como todos os previstos no ordenamento jurídico e que possam conduzir à revogação, rectificação ou alteração da decisão judicial.

Também defendendo a exigência do aludido pressuposto se pronunciou ANA CELESTE CARVALHO, ob. cit., 58 a 61, ao afirmar: “Deve questionar-se se é justificável ou sequer razoável a exigência do pressuposto da prévia revogação, desde logo considerando que em termos de direito comparado, esta exigência não foi seguida em todos os ordenamentos jurídicos. Sendo inquestionável o constrangimento que esse pressuposto pode acarretar no imperativo de responsabilização estabelecido pelo TJUE e no princípio geral consagrado no artigo 22º da Constituição, por se traduzir num seu limite, importa ter presente, o seguinte:
1) que o TJUE alheia-se da subsistência da decisão lesiva, considerando-a matéria da autonomia processual dos Estados, embora limitada pelo princípio da efetividade e
2) que o princípio da solidariedade não vai ao ponto de destruir um caso julgado por ofensa ao Direito da União Europeia - Acórdão Kapferer, de 16/01/2006, caso C-234/04.
Assim, considerando esses motivos e ainda,
3) por razões de objetividade,
4) de segurança e de certeza jurídica,
5) pelo critério juridicamente claudicante, da “séria probabilidade” de existir erro judiciário e
6) perante o atual regime processual de recursos e de reapreciação da decisão jurisdicional, entendemos como justificada a solução acolhida pelo legislador, considerando-a compatível com o direito europeu, maxime, com o princípio da efetividade.
Além do mais, mostra-se relevante a atual lei processual, que tem a virtualidade de, em certa medida, corrigir o erro da decisão, seja quando a mesma é irrecorrível, seja quando é proferida em última instância.

Senão vejamos.
Pode ocorrer que a decisão jurisdicional não seja suscetível de recurso, pelo que, admitindo-se que se encontre enfermada de erro manifesto ou grosseiro, o pressuposto da prévia revogação tem como consequência, em princípio, vedar o acionamento da responsabilidade civil do Estado por erro judiciário.
Nesse caso, podendo existir uma decisão danosa, não só a mesma perdurará na ordem jurídica, como o lesado não pode ser desse facto ressarcido, questionando-se se não existirá um défice na efetividade no regime legal estabelecido.
Esta questão merece-nos resposta negativa, não traduzindo o pressuposto da prévia revogação da decisão uma deficiência de tutela ressarcitória do lesado.
Primo porque não basta ao lesado invocar que existe uma decisão jurisdicional lesiva, para que a mesma se encontre efetivamente enfermada de erro, sendo necessário que o tribunal assim o conclua e, nesse caso, que o erro seja qualificado de manifesto ou grosseiro.
Secundo porque, verificando-se que essa decisão não é suscetível de recurso, isso tem o significado para o ordenamento jurídico da sua diminuta relevância jurídica.
É sabido que a ordem jurídica hierarquiza direitos e interesses, pois nem todos assumem o mesmo grau de tutela, pelo que, se a resposta do sistema de justiça se traduz na insusceptibilidade de recurso, significa que o bem ou direito em causa não é juridicamente relevante.
Tertio, é relevante a possibilidade atualmente concedida pelo artigo 669º, nº 2 do CPC, a qualquer das partes, de requerer a reforma da sentença em situação de irrecorribilidade da decisão, fundada em “manifesto lapso do juiz”, no “erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos” e quando “constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida”.
Nos termos da aludida norma, concede-se a possibilidade ao juiz de reparar o erro da decisão que não seria susceptível de recurso, numa compatibilização dos dois principais interesses em presença, o da justiça material e o da segurança jurídica.
Quarto porque esta será uma via de responsabilização do lesado pela inércia em promover a reapreciação da decisão judicial, mantendo-se a situação de dano.
A atuação do lesado se pode contribuir para a produção do dano, pode determinar a sua manutenção, o que ocorrerá na falta de interposição de recurso/reparação do erro.
Em suma, faltando o pressuposto da prévia revogação da decisão jurisdicional, por impossibilidade de interposição de recurso, isso traduz uma opção feita a priori pela ordem jurídica, diretamente decorrente do sistema vigente de recursos e por razões de segurança jurídica, e não do RRCEE, admitindo-se amplamente a possibilidade de reparação do erro em caso de irrecorribilidade da decisão, o que para efeitos indemnizatórios, deverá equivaler à prévia revogação da decisão danosa.
Questão conexa com a falta de grau de jurisdição que possibilite a revogação da decisão danosa, consiste a do erro judiciário cometido pela última instância judiciária, em que se questiona se estará vedado ao lesado suscitar a reapreciação jurisdicional da decisão.
Analisando esta situação, o TJUE, no Acórdão Köbler (Caso C-224/01, 30/09/2003) considerou que há responsabilidade do Estado por violação do direito europeu, no exercício da função jurisdicional, quando o incumprimento resulte, no caso excecional, de uma decisão de um órgão que decide em último grau, conquanto haja violação manifesta do direito comunitário aplicável.
Nesta situação alguma doutrina entende que não é aplicável o requisito da prévia revogação da decisão danosa para efeitos de efetivação do direito de indemnização, mas temos algumas reservas quanto a este entendimento.
1)Embora o erro seja cometido pela última instância, ao admitir-se a ação de responsabilidade sem o requisito da prévia revogação da decisão, implica conceder que um tribunal de primeira instância, na ação de responsabilidade, se vá pronunciar sobre tal erro, em total inversão da ordem jurisdicional vigente.
2) Por outro lado, o artigo 669º, nº 2 do CPC permite ao próprio Tribunal, funcionando em subsecção ou em Pleno, oficiosamente ou a requerimento, suprir erros materiais e de julgamento, abrindo portas à correção do erro de julgamento na mesma (última) instância, donde, atualmente a limitação decorrente de se tratar da última instância não mais constitui obstáculo ao valor da justiça.
Nesta situação, à semelhança do ónus de interposição de recurso, deve impor-se ao lesado o ónus de requerer a supressão do erro de julgamento.
3) É ainda de conceder que da decisão da última instância seja interposto recurso para o TC, o qual, concedendo-lhe provimento, determina que voltem os autos a esse tribunal para que reforme ou mande reformar a decisão recorrida, permitindo que se dê por verificado o pressuposto previsto no artigo 13º, nº 2, aqui entendido como reapreciação da decisão danosa.
4) Por último, em sede de ação por incumprimento, o TJUE pode formar um juízo de desvalor da interpretação da norma comunitária aplicada pelo juiz nacional, sendo o Estado condenado por violação do direito comunitário, por facto da função jurisdicional, o que poderá ser equiparado ao pressuposto processual da prévia revogação da decisão.
Donde, não se vislumbram motivos para conceder tratamento distinto para o erro cometido em última instância, em relação ao regime legal traçado por, mesmo nesse caso, não estar vedada a possibilidade de obter a prévia revogação da decisão danosa.
Sobre a relevância do recurso de revisão para efeito de aplicação do regime de responsabilidade por erro judiciário, percorrendo as várias alíneas do artigo 771º do CPC, nas situações previstas nas alíneas d) e e), é de conceder que haja uma atuação ilícita do juiz, pelo que, nestes casos, não é de excluir que o recurso de revisão constitua um meio de obtenção de revogação da decisão danosa, relevante para efeitos de responsabilidade civil por erro judiciário, para além de a alínea f) ter a aptidão, em princípio, de corrigir o erro jurisdicional apurado em decisão de instância internacional, maxime, o erro por violação do direito comunitário.
Não distinguindo o legislador do CPC a instância internacional, apenas exigindo a sua vinculatividade para o Estado português, deve entender-se que a alínea f) do artigo 771º está pensada, quer para as decisões emanadas do TEDH, quer para as decisões do TJUE, permitindo-se, por essa via, a correção do erro em que incorreu a decisão nacional.
Em suma, quando não exista a prévia revogação da decisão danosa, seja porque dela não cabe recurso, seja porque o lesado não proveu a interposição de recurso ou a sua reapreciação, não existe erro de julgamento que deva ser reparado no domínio da ação de responsabilidade civil por erro judiciário.”

É certo que se não desconhece a citada jurisprudência do TJUE que tem defendido, como decorre do COMUNICADO DE IMPRENSA n.º 96/15 Luxemburgo, 9 de setembro de 2015, a sua oposição a uma legislação nacional que, como a legislação portuguesa, exige, como condição prévia à declaração da responsabilidade do Estado, a revogação da decisão danosa, quando essa revogação se encontra, na prática, excluída. O Tribunal de Justiça sublinha que uma regra de direito nacional desse tipo pode tornar excessivamente difícil a obtenção da reparação dos danos causados pela violação do direito da União, uma vez que as hipóteses de reapreciação das decisões do Supremo Tribunal de Justiça são extremamente limitadas.

E, no acórdão de 09/09/2015 no processo C-160/14 (Ferreira da Silva e Brito et al./Estado português), o TJUE entendeu que o direito da União e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça sobre a responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito da União, cometida por um órgão jurisdicional nacional que decide em  última instância, devem ser interpretados no sentido de que obstam à aplicação de uma norma nacional que exige como fundamento do pedido de indemnização a prévia revogação da decisão danosa, quando essa revogação está, na prática, excluída – cfr. -http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=167205&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=1058029

Perante a doutrina deste acórdão de 09/09/2015, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, no Blog do IPPC, de 15.09.2015, salientou que “sempre que numa ação de responsabilidade civil proposta contra o Estado, seja invocado um erro judiciário por violação do direito europeu, não pode ser exigida, ao contrário do que dispõe o art. 13.º, n.º 2, RRCEE, a prévia revogação da decisão que alegadamente contém aquele erro… Isto significa que, daqui em diante, bastará a qualquer interessado invocar que, segundo a jurisprudência do TJ, a ação de indemnização baseada em erro judiciário por violação do direito europeu não exige a prévia revogação da decisão pretensamente ilegal.”

Mais defende o aludido autor que: Após o acórdão do TJ parece claro que, sempre que numa acção de responsabilidade civil proposta contra o Estado, seja invocado  um erro  judiciário por violação  do direito  europeu, não pode ser exigida, ao contrário do que dispõe o art. 13.º, n.º 2, RRCEE, a prévia revogação da decisão que alegadamente contém aquele erro.
Isto coloca a necessidade de avaliar a vantagem (ou a possibilidade) de manter o requisito da revogação da decisão que alegadamente contém o erro judiciário, quando este não incida sobre a interpretação ou a aplicação de direito europeu. Uma resposta afirmativa a esta questão é mais do que duvidosa, fundamentalmente por três razões:
-- Primeiro, porque origina uma duplicidade de regimes para o erro judiciário por violação do direito europeu (em que a prévia revogação da decisão não pode ser exigida) e para o erro por violação do direito interno e do direito decorrente de convenções internacionais (em que aquela revogação continuaria a ser requerida);
-- Segundo, porque exige colmatar a actual lacuna que se verifica no ordenamento jurídico português, dado que, neste momento, não se prevê nenhuma forma de impugnar, com fundamento em alegado erro judiciário, uma decisão que não é impugnável por recurso ordinário (nomeadamente, por motivo da alçada ou da circunstância de a decisão provir do STJ ou do STA);
-- A isto acresce, num plano mais geral, que a exigência da revogação prévia da decisão alegadamente errada subverte o sentido da indemnização que o lesado pretende obter do Estado; o que este lesado quer é ser ressarcido dos danos provocados por uma decisão ilegal, não afastar esta mesma decisão do ordenamento jurídico; aliás, a exigência da prévia revogação da decisão como pressuposto da responsabilidade do Estado não deixa, num certo sentido, de ser algo contraditória, porque estabelece como requisito da responsabilidade a supressão da própria fonte da responsabilidade (o que, pelo menos na grande maioria dos casos, tem como consequência que só poderão ser indemnizados os danos provocados entre o proferimento e a revogação da decisão).

Sucede que, como acima ficou dito, os danos decorrentes de erro judiciário só são indemnizáveis se a responsabilidade emergir de situações que possam ser caraterizadas por erro grave ou muito grave, quer do ponto de vista da interpretação do direito, quer do ponto de vista de apreciação dos factos e que conduza a uma situação manifestamente violadora da lei ou da Constituição, conforme decorre do disposto no n.º 1 do artigo 13º da aludida Lei.

Apenas se sanciona “o erro manifestamente inconstitucional, ilegal, ou injustificado,” pelo que o erro de direito praticado pelo juiz só poderá constituir fundamento de responsabilidade civil do Estado quando seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, demonstrativas de uma actividade dolosa ou gravemente negligente.
No caso vertente, não está em causa uma decisão em violação do direito da União, cometida por um órgão jurisdicional nacional que decidiu em última instância, como sucedia nas decisões do TJUE, tanto no Acórdão Kobler, como no Acórdão Traghetti ou no processo C-160/14 (Ferreira da Silva e Brito et al./Estado português).
Efectivamente, em todas estas decisões do TJUE a decisão violadora do direito comunitário havia sido proferida por um Tribunal Supremo, insusceptível de recurso e, portanto, insusceptível de prévia revogação pela jurisdição competente, o que não é o caso aqui em apreciação.
No caso vertente, admite-se que no processo de execução interposto contra o então cônjuge da autora/apelante, aquando da penhora do imóvel, que era, afinal, um bem comum do casal, e que, em momento posterior, o direito de habitação da casa de morada da família foi atribuído à ora autora na acção de divórcio, deveria esta, com efeito,  ter sido citada nos termos do artigo 825º do então CPC, o que não sucedeu.
Porém, a autora/apelada poderia - ou antes deveria - ter suscitado as questões que entendia pertinentes, no momento em que teve conhecimento da realização da penhora, o que não fez.
Acresce que as decisões judiciais, em regra, são corrigíveis por via de recurso tendo em conta, naturalmente, os critérios legais definidores da recorribilidade das decisões, como sejam o valor da causa, o da alçada do tribunal e a sucumbência. No caso vertente, sempre poderia ainda existir outra instância de recurso que, dada a inércia da autora/apelante, não foi chamada a apreciar a questão, caso a decisão de 1ª instância não lhe tivesse dado razão, podendo hipoteticamente o alegado vício ser declarado verificado, e apreciada a pretensão da autora/apelante na mencionada acção executiva.

Aliás, na sentença proferida na acção interposta pela autora (Pº 1652/13.7TBOER) foi dado como provado que a autora tomou conhecimento da penhora em 04.03.1998 e em 08.10.1998 e que apenas em 07.03.2008 havia deduzido embargos de terceiro (Pº 10248-B/1985), que foram julgados improcedentes.

Mas, ainda que se privilegiasse a supra mencionada jurisprudência do TJUE, não obstante a mesma se reportar a violação do direito da União, cometida por um órgão jurisdicional nacional que decide em última instância – o que não era a situação presente - a verdade é que, in casu, não se mostra verificado o erro grosseiro, o erro indesculpável em que não incorreria um julgador prudente, agindo com ponderação conhecimento e competência.

Como acima ficou dito, para efeitos de responsabilidade civil por erro judiciário necessário se torna que tal erro seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, demonstrativas de uma actividade dolosa ou gravemente negligente.

Segundo a formulação legal, a decisão jurisdicional será́ injustificada se incorrer em erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto, o que traduz a actividade de valoração dos factos e das provas.

Por decisão injustificada, por erro grosseiro de facto, entende-se aquela que não tem justificação, que não se encontra alicerçada nas concretas circunstâncias de facto que deveriam determinar o seu proferimento, as situações de afirmação ou negação de um facto cuja verificação se mostre incontestada no processo ou que não deixe margem para quaisquer dúvidas ou quando o juiz decidiu em flagrante contradição com os factos dados por provados.
                       
In casu, perante a ausência da citação do cônjuge do executado, o qual na escritura pública de compra e venda se havia identificado como divorciado e, tendo a autora/apelante tomado conhecimento da penhora do imóvel, em 04.03.1998, certo é que se manteve numa total inacção até 07.03.2008, data em que deduziu embargos à execução, julgados improcedentes, e nos quais, como se refere no despacho de 05.08.2011, proferido no Pº 10248-B/1985, não foi invocada pela ora autora, nem a circunstância de à data da penhora o imóvel ser um bem comum do casal, nem a omissão da sua citação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 825º do CPC então em vigor. Se o tivesse feito, a pretensão da autora/apelante teria sido atempadamente apreciada, e corrigido qualquer eventual vício.

Assim, o erro grosseiro, “crasso, palmar, indiscutível”, aquele que torna uma “decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, demonstrativas de uma actividade dolosa ou gravemente negligente”, a que se alude, nomeadamente no Acórdão do STJ de 15.02.2007 (Pº 06B4564), não se mostra inequivocamente consubstanciado nos autos, antes pretendendo a autora/apelante defender, a destempo, os seus alegados direitos que, em tempo oportuno, negligenciou.

Destarte, improcede a apelação, mantendo-se nos seus precisos termos a decisão recorrida.

As custas do recurso ficam a cargo da recorrente, sem prejuízo da dispensa do seu pagamento em virtude do apoio judiciário de que beneficia, conforme decisão de 03.05.2016, a fls. 68-69.

IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

As custas do recurso ficam a cargo da recorrente, sem prejuízo da dispensa do seu pagamento em virtude do apoio judiciário de que beneficia.

Lisboa, 13 de Setembro de 2018
Ondina Carmo Alves - Relatora
Pedro Martins
Arlindo Crua