Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1236/12.7TVLSB.L1-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: DECISÃO DE FACTO
PESSOA COLECTIVA
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
CAUSA DE PEDIR
FACTO JURÍDICO
FACTOS INSTRUMENTAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/02/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - O fim último da decisão de facto é a realidade da vida em sociedade mas, considerando a variedade de meios e modos de comunicação interpessoal – verbalizada ou não verbalizada, documentada ou não documentada, expressa ou tácita, directa ou indirecta –, assim como a diversidade dos tipos de comunicação e da imputação dos seus conteúdos – sérias e não sérias, em nome próprio ou nome alheio, no interesse próprio ou por conta de outrem -, umas vezes limitada às pessoas individuais outras abrangendo a comunicação das pessoas colectivas, através dos seus órgãos, compreende-se que nem sempre os conteúdos desses actos comunicacionais e as vontades envolvidas sejam de fácil apreensão.
II - Na imputação das comunicações efectuadas pelos indivíduos titulares dos órgãos das pessoas colectivas, em particular relativamente a terceiros, deve atender-se ao concreto circunstancialismo envolvente e às regras estabelecidas nos artigos 236º a 239º do Código Civil, tendo como limite a consideração de que a personalidade colectiva visa potenciar a economia e a dinâmica social e não ser um instrumento fraudatório ou delusório.
III - O limite para a indagação factual é a causa de pedir, ou seja, o facto jurídico de que deriva a pretensão deduzida.
IV – Assim, na enunciação da factualidade apurada não basta indicar quais dos factos alegados se consideram provados e quais se consideram não provados, devendo também enunciar-se aqueles que, sendo instrumentais, complemento ou concretização, possam vir a influenciar a decisão jurídica da causa.
V - O conceito de ‘adjudicação’, sendo o cerne da discussão jurídica da causa, não é susceptível de ser reduzido a uma questão factual e, consequentemente, não pode ser reduzido a mero facto (quer positivo quer negativo), impondo-se a sua eliminação do elenco factual.
(A.M.)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – Relatório:

A., Lda intentou acção declarativa contra D., Lda pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 243.995,04 €, e juros, correspondentes ao remanescente do preço ainda em dívida da execução gráfica de uma colecção editorial por cujo pagamento a Ré é (também) responsável.

A Ré contestou negando ter celebrado com a Autora qualquer negócio ou assumido qualquer responsabilidade no pagamento dos trabalhos por esta executados.

A final foi proferida sentença que, considerando não ter a Autora feito prova da constituição de qualquer vínculo com a Ré que a obrigasse ao pagamento peticionado, julgou a acção improcedente absolvendo a Ré do pedido.

Inconformada, apelou a A. concluindo, em síntese, por erro na decisão de facto, uma vez que logrou provar os factos constitutivos do direito que se arroga.

Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido.

II – Questões a Resolver

Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
            - do erro na decisão de facto;
            - da prova dos factos constitutivos do direito.

III – Fundamentos de Facto

A sentença recorrida considerou o seguinte elenco factual:

Factos provados :

1) A autora é uma sociedade comercial que se dedica de forma habitual e com escopo lucrativo à execução gráfica de publicações.
2) A ré tem por objecto o armazenamento, comércio e distribuição de livros e afins.
3) Em 26 de Abril de 2011, a autora foi contactada, no exercício da sua actividade, para orçamentar, além do mais, o custo da execução gráfica de uma colecção editorial denominada "Contos de Verão”, composta por vinte e sete títulos.
4) O pedido de orçamento foi dirigido à autora pela representante legal da E., Lda, JF.
5) Em 3 de Maio de 2011, na sequência deste pedido, a autora respondeu à representante legal da E., Lda, indicando as condições comerciais que propunha para a execução do trabalho em causa.
6) Em 4 de Maio de 2011, a representante legal da E., Lda respondeu à autora, com pedido de esclarecimentos adicionais quanto às condições de execução do trabalho.
7) Em 18 de Maio de 2011, a autora recebeu um e-mail, enviado pelo director-geral da ré, AA, com o seguinte conteúdo:
"Caro Sr. Dr. JP,
Na sequência dos nossos contactos pessoais e telefónicos, confirmamos a adjudicação de 27 livros de CONTOS os quais integrarão uma colecção denominada BIBLIOTECA DE VERÃO, a publicar pela E., LDA sob as chancelas JN e DN com as seguintes características:
1. Formato: 110 x 170mm
2. Nr. Págs.: 64
3. Impressão do miolo: 1/1 cores
4. Impressão da capa: 5/1 cores
5. Papel do miolo: Munken Pocket 1.8 -70grs. (ou similar)
6. Papel da capa: Cartolina prado 300grs. I 2 faces
7. Acabamento: Fresado, com capa plasticizada a brilhante
8. Tiragens: 26 títulos x 138.000 exemplares + 1 título x 180.000 exemplares = TOTAL 3.768.000 exemplares
9. Prazos e Quantidades: 04 Julho  - 1 título x 180.000 + 4 títulos x 138.000 exemplares
                                         11   »       - 4 títulos x 138.000 exemplares
                                         18   »       - 4    »      x       »             »
                                         25   »       - 4    »      x       »             »
                                         01Agosto- 4    »      x       »             »
                                         8      »      - 4    »      x       »             »
                                         15    »      - 4    »      x       »             »
                                         22    »      - 2    »      x       »             »

NOTA: Chamamos a v/ especial atenção para a imperiosidade do rigoroso cumprimento dos referidos prazos de entrega pelos motivos já do v/ conhecimento.
10. Preço unitário: €0,139 (cento e trinta e nove cêntimos)
11. Preço total: €523.752,00 (quinhentos e vinte e três mil setecentos e cinquenta e dois euros)
12. Pagamentos: 31 Maio    - €50.000,00 (cinquenta mil euros)
                             09 Junho  -         »                         »
                             17     »      - €1 00.000 (cem mil euros)
Restantes pagamentos a 60 dias das respectivas datas de entrega acima    mencionadas e na proporção em falta.
Aguardamos a minuta do contrato a ser-nos remetido pelo JN para, em conjunto, pormenorizarmos todos os aspectos,
( ... )".

8) Em 20 de Maio de 2011, a autora enviou um e-mail à ré, com o seguinte conteúdo:

"Exmo. Senhor
AA
Acusamos a recepção do seu e-mail de 18 do corrente confirmando a adjudicação de 27 livros de CONTOS que integrarão a colecção BIBLIOTECA DE VERÃO a publicar pela E., Lda sob as chancelas JN e DN, e em resposta vimos comunicar a nossa aceitação, nas condições de produção e financeiras propostas.

Aproveitamos para o informar que assegurámos já as matérias primas necessárias à execução do trabalho, pelo que é de toda a conveniência que nos possam facultar os ficheiros para a imposição em plano com a máxima brevidade.

Ficamos de qualquer modo a aguardar a marcação da reunião prevista na sua mensagem de adjudicação.
( ... )".
9) Ao longo do processo negocial que precedeu a comunicação referida em 7), a autora foi contactada pessoalmente pelo então director-geral da ré, AA.
10) AA tinha grande experiência e reputação na área editorial, tendo já dirigido editoras nacionais.
11) AA era já conhecido dos representantes legais da autora, não só pela sua reputação, mas também por já terem mantido relações comerciais quando aquele dirigia outras editoras nacionais.
12) O trabalho de execução gráfica da colecção de livros em causa foi integralmente efectuado pela autora, que observou as condições e os prazos de entrega fixados.
13) O referido trabalho foi elogiado por representantes da ré, da E., Lda e da G., S.A. sociedade esta que detém o controlo do Jornal de Notícias e do Diário de Notícias.
14) A autora emitiu em nome da E., Lda e enviou-lhe as seguintes facturas:
- n.º 20110686, com data de 25.07.2011, no valor de €81.331,68 (oitenta e um mil trezentos e trinta e um euros e sessenta e oito cêntimos);
- n.º 20110710, com data de 01.08.2011, no valor de €81.331,68 (oitenta e um mil trezentos e trinta e um euros e sessenta e oito cêntimos);
- n.º 20110729, com data de 08.08.2011, no valor de €81.331,68 (oitenta e um mil trezentos e trinta e um euros e sessenta e oito cêntimos).
15) O valor destas facturas não foi, até ao momento, liquidado à autora.
16) Em 19 de Setembro de 2011, a ré comunicou à autora que só pagaria à E., Lda ao longo dos próximos quatro meses, tendo solicitado à autora que aceitasse que a E., Lda repercutisse de igual forma os pagamentos a efectuar pela mesma à autora.
17) A autora respondeu à ré, no mesmo dia, transmitindo preocupação com a situação, não ter condições de suportar a alteração de pagamentos e ser imperioso que concretizasse os prazos mínimos que estava em condições de garantir, as verbas envolvidas e a compensação que será dada pelo não cumprimento das condições acordadas.
18) Em resposta à autora, a ré comunicou-lhe, no mesmo dia, as datas e os montantes dos pagamentos que seria possível efectuar à E., Lda e esta efectuá-los à autora, em virtude de ter chegado a um novo entendimento com o Grupo C.
19) Em 23 de Novembro de 2011, a ré enviou à autora um e-mail, com o seguinte teor:
"Conforme combinado, cumpre-nos informar que, estando a D., Lda disponível para adquirir a quota de uma das sócias da E., Lda, Lda. (correspondente a 50% do capital social), caso a A., Lda aceite receber 25% do montante em débito de € 243.994,76 e, simultaneamente, proceder ao crédito dos restantes 75%, poderá dirigir-se à empresa que nos presta os serviços administrativos e financeiros: L., Lda ( ... ). Nessa conformidade, ser-vos-á entregue um cheque no montante de €60.998,70, contra o recebimento da vossa referida nota de crédito e de um documento de quitação total inerente à encomenda denominada «Biblioteca de Verão».
Passando a D., Lda a ter uma posição societária na E., Lda, assumimos o compromisso de pugnar pela priorização das encomendas da E., Lda à A., Lda no pressuposto de que os vossos preços acompanhem os da concorrência, mas aos quais seria sempre acrescido um montante correspondente a 25% de cada respectivo valor, até perfazer o total agora creditado. Neste turbilhão de acontecimentos e reiterando o nosso pedido de desculpas por estes recentes desenvolvimentos, lamentamos não estar em condições de vos apresentar uma proposta mais favorável. Contudo não descansaremos enquanto não vos conseguirmos ressarcir."
20) A autora recusou esta proposta.
21) AA, na qualidade de director-geral da ré, negociou com um representante da G., S.A. a publicação, com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias, da colecção de livros em causa, mediante o pagamento de determinada contrapartida monetária, por parte da G., S.A. à ré.
22) Nessa sequência, e com vista à concretização deste negócio, AA, na qualidade de director-geral da ré, negociou com a representante legal da E., Lda, a edição daquela colecção de livros, mediante o pagamento de determinada contrapartida monetária, por parte da ré à E., Lda.
23) Na sequência dos factos referidos em 21) e 22), a representante legal da E., Lda contratou com a autora a execução gráfica e a entrega à G., S.A. da colecção de livros em causa.
24) As actividades de edição e de execução gráfica da colecção de livros inseriam-se no âmbito do desenvolvimento do negócio referido em 21), delas dependendo o pontual cumprimento das obrigações assumidas pela ré perante a G., S.A..
25) Os factos referidos em 9) a 11) e em 21) foram determinantes para a autora aceitar a execução gráfica da colecção de livros.
26) AA, na qualidade de director-geral da ré, liderou e acompanhou os trabalhos desenvolvidos pela autora e pela E., Lda, tendo sido um dos interlocutores da autora.
27) AA procedeu deste modo em virtude da situação referida em 21) a 24), procurando assegurar o êxito de toda a operação.
28) Para tanto, AA, na qualidade de director-geral da ré, transmitiu ainda à autora e à E., Lda as condições comerciais fixadas entre a ré e a G., S.A. e que influíam nos termos do trabalho a desenvolver pela autora e pela E., Lda, mantendo-as informadas acerca das alterações ocorridas quanto aos pagamentos a efectuar pela G., S.A. à ré.
29) A G., S.A. procedeu à totalidade dos pagamentos devidos à ré no âmbito do negócio referido em 21).
30) A autora nunca enviou à ré quaisquer facturas relativas ao preço devido pela execução gráfica da colecção de livros em causa.

Factos não provados:
a)A ré adjudicou à autora o trabalho de execução gráfica da colecção de livros em causa.
b)A adjudicação do trabalho de execução gráfica da colecção de livros foi feita pela ré e pela E., Lda.
c)A ré conduziu todo o processo negocial subjacente à adjudicação da execução gráfica da colecção de livros.
d)A ré conduziu todas as negociações relativas ao preço da execução gráfica da colecção de livros e ao pagamento do mesmo.
e)Foi acordado com a ré o prazo de pagamento de sessenta dias, a contar da emissão de cada factura por parte da autora.
f)Por solicitação da ré e da E., Lda as facturas seriam emitidas pela autora à segunda.
g)As facturas referidas em 14) foram enviadas à ré e por esta aceites sem qualquer reserva.
h)Após o contacto inicial da representante legal da E., Lda, em 26 de Abril de 2011, AA contactou os representantes legais da autora afirmando que o projecto editorial em causa era seu, mas que teria que publicar sob a marca da E., Lda.
i)De acordo com o que AA comunicou à autora, e como era sabido e comentado no meio editorial, aquele negociou com o grupo editorial “L” a venda ao mesmo da editora de que era proprietário.
j)AA estava impedido de publicar a colecção de livros em causa através de uma editora sua, em virtude do negócio celebrado com o grupo editorial “L” incluir uma cláusula de não concorrência pelo prazo de cinco anos, que ainda se encontrava em curso.
k)AA assegurou à autora que estava por trás da edição da colecção de livros em causa, estando ligado à E., Lda, na medida em que ambas as sócias eram pessoas da sua confiança.
I)A ré e a E., Lda, por contrato celebrado entre ambas e a G., S.A. concederam a esta última o direito de, mediante o pagamento de um preço, comercializar e distribuir a colecção de livros em causa.
m)A ré e a E., Lda venderam a colecção de livros em causa à G., S.A..
n)A ré obrigou-se a proceder ao pagamento do preço da execução gráfica da colecção de livros então em dívida em diversas "tranches".
o)A ré procedeu a pagamentos à autora devidos pela execução gráfica da colecção de livros em causa.
p)A autora interpelou repetidamente a ré com vista ao pagamento do valor em falta.
q)Em conversa telefónica, os representantes da ré e da E., Lda adiantaram que ou a autora aceitava receber parte do valor em dívida, dando quitação do remanescente, ou apresentar-se-iam à insolvência, com as consequências inerentes.
r)A E., Lda recebeu na íntegra o preço pago pela G., S.A..
s)A ré liquidou integralmente à E., Lda todos montantes ajustados no âmbito do negócio referido em 22).

A Ré impugna os factos não provados a), b), c) e d).

Antes, porém, de entrar na análise da impugnação da decisão de facto importa, desde já e com vista ao enquadramento da estrutura discursiva do presente acórdão, deixar expressas algumas considerações.

A primeira para afirmar que se entende o ‘direito’ como um instrumento de regulação da sociedade; e como instrumento que é ele tem de se adaptar à realidade cuja regulação visa, e não o contrário. Daí resulta que o jurista em geral, e o juiz em particular, ao fazer a indagação e descrição da factualidade do litígio cuja resolução se pretende alcançar, não pode deixar que o filtro da juridicidade, que aí sempre usa, o descole da vida quotidiana tal como ela é vivenciada e desenvolvida nas relações sociais, prendendo-o antes a redutores conceptualismos hermenêuticos. O fim último da decisão de facto (bem difícil de alcançar, bem o sabemos, mas no nosso – ingénuo, admitimos – modo de ver sempre de perseguir) é a realidade ‘nua e crua’. As vestes e condimentos vêm depois (as mais das vezes ao modo e jeito de cada um do ‘estilista’ ou do ‘chefe’ em serviço), trazidas por quem tem de subsumir essa realidade na juridicidade.

Todos nós construímos o devir social na comunicação inter-pessoal com outros indivíduos, adoptando os nossos comportamentos aos compromissos e entendimentos advenientes dessa inter-acção individual. Mas dada a variedade de meios e modos dessa comunicação – verbalizada ou não verbalizada, documentada ou não documentada; expressa ou tácita, directa ou indirecta – nem sempre os conteúdos desses actos comunicacionais e as vontades envolvidas são de fácil apreensão. E essa apreensão é tanto mais difícil quanta a diversidade dos tipos de comunicação e da imputação dos seus conteúdos: sérias, não sérias, em nome próprio, em nome alheio, no interesse e por conta de outrém. E essa complexidade ainda aumenta pelo facto de essa actividade comunicacional não se limitar às pessoas individuais mas abranger, também, a actividade comunicacional das pessoas colectivas, que sendo autónomos centros de imputação jurídica, se manifestam através do comportamento dos titulares dos seus órgãos, que são pessoas individuais, nem sempre se encontrando bem definida a fronteira entre o comportamento próprio e enquanto órgão da pessoa colectiva. A personalidade colectiva surgiu como forma de possibilitar o desenvolvimento económico e social, facilitando a congregação de esforços, competências e capitais bem como a repartição ou limitação do risco e para deslindar as ambiguidades quanto à imputação das comunicações efectuadas pelos indivíduos titulares dos seus órgãos, em particular relativamente a terceiros, deve atender-se ao concreto circunstancialismo envolvente e às regras estabelecidas nos artigos 236º a 239º do CCiv, tendo como limite a consideração de que personalidade colectiva visa potenciar a economia e a dinâmica social e não ser um instrumento fraudatório ou delusório.

A presente acção corre termos sob o domínio do NCPC em que, não deixando de recair sobre as partes o ónus de alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir ou da excepção invocada (artº 5º, nº 1) e ficando a instrução da causa sujeita apenas a uma genérica enumeração dos temas de prova (no caso, “quem adjudicou à Autora a execução gráfica da colecção de livros ‘Biblioteca de Verão’”), o juiz deve ainda atender aos factos notórios e do seu conhecimento oficial, aos factos instrumentais resultantes da instrução da causa e, também, aos factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado resultantes da instrução da causa, desde que sobre eles tenha havido a possibilidade de se pronunciarem (artº 5º, nº 2). Sendo que quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito o juiz não está sujeito à alegação das partes (‘iura novit curia’). Na enunciação da factualidade apurada não basta, assim, indicar quais dos factos alegados se consideram provados e quais se consideram não provados, devendo também enunciar aqueles que, sendo instrumentais, complemento ou concretização, possam vir a influenciar a decisão jurídica da causa.

O limite para a indagação factual é a causa de pedir, ou seja, o facto jurídico de que deriva a pretensão deduzida (artº 581º, nº 4 do NCPC). No caso dos autos, e conforme resulta da petição inicial, a causa de pedir é ter, no âmbito de um projecto de publicação de uma colecção de livros designada ‘Biblioteca de Verão’ com os jornais Jornal de Notícias e Diário de Notícias no Verão de 2011, que envolveu a participação e o consenso, para além de si, de outras empresas e pessoas, procedido à execução gráfica da referida colecção, segundo os critérios que acordou com os demais participantes, sendo que também a Ré é responsável pelo pagamento do respectivo preço. Não indica a Autora com precisão o fundamento jurídico dessa obrigação, mas também não necessita de o fazer, pois que a tarefa de indagação, interpretação e aplicação das regras de direito compete ao tribunal e não às partes. O que as parte necessitam é de enunciar os factos jurídicos donde entendem emergir a pretensão deduzida; e por facto jurídico deve entender-se não apenas a enunciação naturalística dos factos de que se entende advir a pretensão deduzida mas também a sua cobertura por um manto diáfano de juridicidade, ou seja, um mínimo de integração num instituto ou numa área específica do direito, de forma a limitar o objecto do processo. No caso dos autos, como resulta manifesto dos termos da petição inicial, a responsabilidade adveniente das vinculações que se estabeleceram entre as partes durante a execução do referido projecto, ou, mais concisamente, a responsabilidade contratual[1].

Vejamos agora os específicos pontos em que vem impugnada a decisão de facto.

Quanto ao facto não provado a) - a ré adjudicou à autora o trabalho de execução gráfica da colecção de livros em causa – dir-se-á que na parte em que se refere à utilização do termo ‘adjudicação’ da comunicação à Autora de que poderia passar à fase de execução ele já consta do facto provado 7. Quanto ao conceito jurídico de ‘adjudicação’, que é o cerne da discussão jurídica da causa, ele não é susceptível de ser reduzido a uma questão factual e, consequentemente, não pode ser reduzido a mero facto (quer positivo quer negativo), impondo-se a sua eliminação do elenco factual.

Quanto ao facto não provado b) - a adjudicação do trabalho de execução gráfica da colecção de livros foi feita pela ré e pela E., Lda - vale aqui o que ficou dito no parágrafo anterior (havendo, em adicional, de retirar conotação conclusiva ao facto provado 23).

E daí decorre, também, a eliminação do facto não provado e) porquanto o que nele se encontra de relevante – que foi acordado com a ré – é conclusivo e integra a questão jurídica da causa.

Quanto aos factos não provados c) - a ré conduziu todo o processo negocial subjacente à adjudicação da execução gráfica da colecção de livros – e d) - a ré conduziu todas as negociações relativas ao preço da execução gráfica da colecção de livros e ao pagamento do mesmo – mais do que o que consta do seu enunciado (que é, aliás, conclusivo) importará deixar expresso os factos que resultaram da audiência de discussão e julgamento, e que puderam ser amplamente debatidos por ambas as partes, e que permitirão aferir dos termos e modos da intervenção dos participantes no projecto.

São particularmente relevantes para a indagação dos factos os depoimentos prestados por FM (gerente da Ré), JP (gerente da Autora), JF (gerente da E., Lda) e AA (Director Geral da Ré), todos eles com intervenção directa nos factos e que em termos muito consensuais expuseram a sua intervenção nos mesmos.

Segundo esses depoimentos AA era pessoa com vasta actividade e experiência na actividade de edição e distribuição; no âmbito dessa actividade, e servindo-se dos seus conhecimentos pessoais, conseguiu angariar junto da administração da sociedade dona do Jornal de Notícias e do Diário de Notícias a elaboração de uma colecção de livros a entregar com os jornais durante a época de Verão. Concomitantemente havia sido constituída a empresa Ré, de que eram sócios o filho de AA e FM (amigo do filho e antigo colaborador de AA), em que AA exercia o cargo de Director Geral e era quem detinha o ‘know how’ da actividade da empresa. Ao longo de todo o processo da distribuição da colecção em causa foi exclusivamente AA quem contactou em exclusivo com a sociedade dona dos referidos jornais; não esclareceu, contudo, se tais contactos eram feios em nome pessoal ou na qualidade de Director geral da Ré, mas uma vez que o negócio veio a ser formalizado com a Ré, é de entender que o fez nessa última qualidade; o que aliás foi correctamente assumido na sentença recorrida (vejam-se designadamente os factos provados 9, 10, 11 e 21).

Na execução desse projecto AA, na qualidade de Director geral da Ré, negociou com a E., Lda a edição daquela colecção e esta solicitou à Autora a execução gráfica da mesma, de todas dependendo o êxito do projecto (tudo isto levado aos factos provados 22, 23 e 24).

A execução gráfica proposta à Autora era de grande envergadura e muito apetecível mas implicava igualmente elevado risco económico, tanto mais que a Autora desconhecia a E., Lda e não sabia se esta tinha capacidade económica para suportar os respectivos custos; daí que desde a primeira hora tenha colocado questões ao nível da prestação de garantias (o que é reconhecido nos depoimentos citados) sendo caso de levar aos factos provados tal circunstância (factos provados 5 e 6A).

Com vista a acelerar o processo e a coordenar os seus intervenientes realizou-se uma reunião entre as três entidades, onde se desbloqueou as questões ainda por resolver, designadamente a exigência de garantias por parte da Autora; pela importância que essa reunião assume no iter negocial afigura-se importante levar tal facto ao elenco dos factos provados (Factos provados 6A, 6B, 6C e 25).

O projecto da ‘Biblioteca de Verão’ consolidou-se no dia 18MAI2011, altura em que AA fechou o negócio com a empresa proprietária dos jornais, tendo de imediato dado disso conhecimento aos demais intervenientes no projecto, tendo em vista o início da sua execução, nessa circunstância se enquadrando o mail referido no facto provado 7, impondo-se a referência a tal situação.

Apesar de ter sido integralmente pago à Ré o preço acordado com a empresa proprietária dos jornais esta não pagou à E., Lda a totalidade do preço que com ela convencionara por ter feito a compensação com o montante resultante de cláusula penal estipulada noutros contratos que tinha com a E., Lda e que accionou invocando o incumprimento dos mesmos. Situação essa que originou o não pagamento das facturas referidas nos autos. E também, como ambas as partes afirmaram, a insolvência da editora no âmbito da qual foi reclamado o crédito nesta acção peticionado. O que igualmente se entende dever ser levado ao elenco factual (Factos provados 29A, 29B, 29C e 29D) .
           
Em face do exposto fixa-se o seguinte elenco factual (assinalando a negrito as alterações introduzidas):
Factos provados

1) A autora é uma sociedade comercial que se dedica de forma habitual e com escopo lucrativo à execução gráfica de publicações.
2) A ré tem por objecto o armazenamento, comércio e distribuição de livros e afins.
3) Em 26 de Abril de 2011, a autora foi contactada, no exercício da sua actividade, para orçamentar, além do mais, o custo da execução gráfica de uma colecção editorial denominada "Contos de Verão, composta por vinte e sete títulos.
4) O pedido de orçamento foi dirigido à autora pela representante legal da E., Lda, JF.
5) Em 3 de Maio de 2011, na sequência deste pedido, a autora respondeu à representante legal da E., Lda, indicando as condições comerciais que propunha para a execução do trabalho em causa e fazendo notar da necessidade de consideração de outras questões, entre as quais as condições de pagamento e garantias efectivas do mesmo.
6) Em 4 de Maio de 2011, a representante legal da E., Lda respondeu à autora, com pedido de esclarecimentos adicionais quanto às condições de execução do trabalho.
6A) Com vista a acelerar o processo (cujos prazos estavam a ficar críticos) a coordenar a actividade de todos os intervenientes e a ultimar os acordos que entre eles haviam de ser firmados (designadamente a insistência da Autora pela prestação de garantias de pagamento) veio a realizar-se uma reunião, nas instalações da A., com a participação de representantes da A. da Ré e da E., Lda.
6B) Nessa reunião AA expôs os contornos do negócio, pondo em evidência a capacidade financeira da empresa proprietária dos jornais, o que assegurava cabalmente o pagamento de todos os intervenientes no projecto.
6C) Nessa mesma reunião, e depois daquela intervenção de AA, foram definidas todas as condições da execução gráfica da colecção, designadamente prazos de execução, o preço e as condições do seu pagamento.
7) Na sequência daquela reunião e uma vez que o acordo com a G., S.A. ficou definitivamente fechado em 18 de Maio de 2011, AA, enquanto director-geral da ré, enviou nesse mesmo dia à Autora, que o recebeu, um e-mail com o seguinte conteúdo:
"Caro Sr. Dr. JP,
Na sequência dos nossos contactos pessoais e telefónicos, confirmamos a adjudicação de 27 livros de CONTOS os quais integrarão uma colecção denominada BIBLIOTECA DE VERÃO, a publicar pela E., Lda sob as chancelas JN e DN com as seguintes características:
1. Formato: 110 x 170mm
2. Nr. Págs.: 64
3. Impressão do miolo: 1/1 cores
4. Impressão da capa: 5/1 cores
5. Papel do miolo: Munken Pocket 1.8 -70grs. (ou similar)
6. Papel da capa: Cartolina prado 300grs. I 2 faces
7. Acabamento: Fresado, com capa plasticizada a brilhante
8. Tiragens: 26 títulos x 138.000 exemplares + 1 título x 180.000 exemplares = TOTAL 3.768.000 exemplares
9. Prazos e Quantidades: 04 Julho  - 1 título x 180.000 + 4 títulos x 138.000 exemplares
                                         11   »       - 4 títulos x 138.000 exemplares
                                         18   »       - 4    »      x       »             »
                                         25   »       - 4    »      x       »             »
                                         01 Agosto- 4    »      x       »             »
                                         8      »       - 4    »      x       »             »
                                         15    »       - 4    »      x       »             »
                                         22    »       - 2    »      x       »             »

NOTA: Chamamos a v/ especial atenção para a imperiosidade do rigoroso cumprimento dos referidos prazos de entrega pelos motivos já do v/ conhecimento.
10. Preço unitário: €0,139 (cento e trinta e nove cêntimos)
11. Preço total: €523.752,00 (quinhentos e vinte e três mil setecentos e cinquenta e dois euros)
12. Pagamentos:  31 Maio    - €50.000,00 (cinquenta mil euros)
                              09 Junho  -         »                         »
                             17     »      - €1 00.000 (cem mil euros)
Restantes pagamentos a 60 dias das respectivas datas de entrega acima    mencionadas e na proporção em falta.

Aguardamos a minuta do contrato a ser-nos remetido pelo JN para, em conjunto, pormenorizarmos todos os aspectos,
( ... )".

8) Em 20 de Maio de 2011, a autora enviou um e-mail à ré, com o seguinte conteúdo:
"Exmo. Senhor
AA
Acusamos a recepção do seu e-mail de 18 do corrente confirmando a adjudicação de 27 livros de CONTOS que integrarão a colecção BIBLIOTECA DE VERÃO a publicar pela E., Lda sob as chancelas JN e DN, e em resposta vimos comunicar a nossa aceitação, nas condições de produção e financeiras propostas.
Aproveitamos para o informar que assegurámos já as matérias primas necessárias à execução do trabalho, pelo que é de toda a conveniência que nos possam facultar os ficheiros para a imposição em plano com a máxima brevidade.
Ficamos de qualquer modo a aguardar a marcação da reunião prevista na sua mensagem de adjudicação.
( ... )".
9) Ao longo do processo negocial que precedeu a comunicação referida em 7), a autora foi contactada pessoalmente pelo então director-geral da ré, AA.
10) AA tinha grande experiência e reputação na área editorial, tendo já dirigido editoras nacionais.
11) AA era já conhecido dos representantes legais da autora, não só pela sua reputação, mas também por já terem mantido relações comerciais quando aquele dirigia outras editoras nacionais.
12) O trabalho de execução gráfica da colecção de livros em causa foi integralmente efectuado pela autora, que observou as condições e os prazos de entrega fixados.
13) O referido trabalho foi elogiado por representantes da ré, da E., Lda e da G., S.A. sociedade esta que detém o controlo do Jornal de Notícias e do Diário de Notícias.
14) A autora emitiu em nome da E., Lda e enviou-lhe as seguintes facturas:
- n.º 20110686, com data de 25.07.2011, no valor de €81.331,68 (oitenta e um mil trezentos e trinta e um euros e sessenta e oito cêntimos);
- n.º 20110710, com data de 01.08.2011, no valor de €81.331,68 (oitenta e um mil trezentos e trinta e um euros e sessenta e oito cêntimos);
- n.º 20110729, com data de 08.08.2011, no valor de €81.331,68 (oitenta e um mil trezentos e trinta e um euros e sessenta e oito cêntimos).
15) O valor destas facturas não foi, até ao momento, liquidado à autora.
16) Em 19 de Setembro de 2011, a ré comunicou à autora que só pagaria à E., Lda ao longo dos próximos quatro meses, tendo solicitado à autora que aceitasse que a E., Lda repercutisse de igual forma os pagamentos a efectuar pela mesma à autora.
17) A autora respondeu à ré, no mesmo dia, transmitindo preocupação com a situação, não ter condições de suportar a alteração de pagamentos e ser imperioso que concretizasse os prazos mínimos que estava em condições de garantir, as verbas envolvidas e a compensação que será dada pelo não cumprimento das condições acordadas.
18) Em resposta à autora, a ré comunicou-lhe, no mesmo dia, as datas e os montantes dos pagamentos que seria possível efectuar à E., Lda e esta efectuá-los à autora, em virtude de ter chegado a um novo entendimento com o Grupo C.
19) Em 23 de Novembro de 2011, a ré enviou à autora um e-mail, com o seguinte teor:
"Conforme combinado, cumpre-nos informar que, estando a D., Lda disponível para adquirir a quota de uma das sócias da E., Lda, (correspondente a 50% do capital social), caso a A., Lda aceite receber 25% do montante em débito de €243.994,76 e, simultaneamente, proceder ao crédito dos restantes 75%, poderá dirigir-se à empresa que nos presta os serviços administrativos e financeiros: L., Lda ( ... ). Nessa conformidade, ser-vos-á entregue um cheque no montante de €60.998,70, contra o recebimento da vossa referida nota de crédito e de um documento de quitação total inerente à encomenda denominada «Biblioteca de Verão».
Passando a D., Lda a ter uma posição societária na E., Lda, assumimos o compromisso de pugnar pela priorização das encomendas da E., Lda à A., Lda no pressuposto de que os vossos preços acompanhem os da concorrência, mas aos quais seria sempre acrescido um montante correspondente a 25% de cada respectivo valor, até perfazer o total agora creditado. Neste turbilhão de acontecimentos e reiterando o nosso pedido de desculpas por estes recentes desenvolvimentos, lamentamos não estar em condições de vos apresentar uma proposta mais favorável. Contudo não descansaremos enquanto não vos conseguirmos ressarcir."
20) A autora recusou esta proposta.
21) AA, na qualidade de director-geral da ré, negociou com um representante da G., S.A. a publicação, com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias, da colecção de livros em causa, mediante o pagamento de determinada contrapartida monetária, por parte da G., S.A. à ré.
22) Nessa sequência, e com vista à concretização deste negócio, AA, na qualidade de director-geral da ré, negociou com a representante legal da E., Lda, a edição daquela colecção de livros, mediante o pagamento de determinada contrapartida monetária, por parte da ré à E., Lda.
23) Na sequência dos factos referidos em 21) e 22), a representante legal da E., Lda solicitou à autora a execução gráfica e a entrega à G., S.A. da colecção de livros em causa.
24) As actividades de edição e de execução gráfica da colecção de livros inseriam-se no âmbito do desenvolvimento do negócio referido em 21), delas dependendo o pontual cumprimento das obrigações assumidas pela ré perante a G., S.A..
25) Os factos referidos em 6B), 9) a 11) e em 21) foram determinantes para a autora aceitar a execução gráfica da colecção de livros.
26) AA, na qualidade de director-geral da ré, liderou e acompanhou os trabalhos desenvolvidos pela autora e pela E., Lda, tendo sido um dos interlocutores da autora.
27) AA procedeu deste modo em virtude da situação referida em 21) a 24), procurando assegurar o êxito de toda a operação.
28) Para tanto, AA, na qualidade de director-geral da ré, transmitiu ainda à autora e à E., Lda as condições comerciais fixadas entre a ré e a G., S.A. e que influíam nos termos do trabalho a desenvolver pela autora e pela E., Lda, mantendo-as informadas acerca das alterações ocorridas quanto aos pagamentos a efectuar pela G., S.A. à ré.
29) A G., S.A. procedeu à totalidade dos pagamentos devidos à ré no âmbito do negócio referido em 21).
29A) A ré não entregou à E., Lda todos montantes ajustados no âmbito do negócio referido em 22) por ter feito a compensação com o montante resultante de cláusula penal estipulada noutros contratos que com ela celebrara e que accionou invocando o incumprimento dos mesmos.
29B) Situação essa que originou o não pagamento das facturas referidas nos autos.
29C) E a apresentação da E., Lda à insolvência.
29D) Onde a Autora reclamou o crédito nesta acção peticionada.
30) A autora nunca enviou à ré quaisquer facturas relativas ao preço devido pela execução gráfica da colecção de livros em causa.

Factos não provados

a) [Eliminado].
b) [Eliminado].
c) [Eliminado].
d) [Eliminado].
e) [Eliminado].
f) Por solicitação da ré e da E., Lda as facturas seriam emitidas pela autora à segunda.
g) As facturas referidas em 14) foram enviadas à ré e por esta aceites sem qualquer reserva.
h) Após o contacto inicial da representante legal da E., Lda, em 26 de Abril de 2011, AA contactou os representantes legais da autora afirmando que o projecto editorial em causa era seu, mas que teria que publicar sob a marca da E., Lda.
i) De acordo com o que AA comunicou à autora, e como era sabido e comentado no meio editorial, aquele negociou com o grupo editorial “L” a venda ao mesmo da editora de que era proprietário.
j) AA estava impedido de publicar a colecção de livros em causa através de uma editora sua, em virtude do negócio celebrado com o grupo editorial “L” incluir uma cláusula de não concorrência pelo prazo de cinco anos, que ainda se encontrava em curso.
k) AA assegurou à autora que estava por trás da edição da colecção de livros em causa, estando ligado à E., Lda, na medida em que ambas as sócias eram pessoas da sua confiança.
I) A ré e a E., Lda, por contrato celebrado entre ambas e a G., S.A. concederam a esta última o direito de, mediante o pagamento de um preço, comercializar e distribuir a colecção de livros em causa.
m) A ré e a E., Lda venderam a colecção de livros em causa à G., S.A..
n) A ré obrigou-se a proceder ao pagamento do preço da execução gráfica da colecção de livros então em dívida em diversas "tranches".
o) A ré procedeu a pagamentos à autora devidos pela execução gráfica da colecção de livros em causa.
p) A autora interpelou repetidamente a ré com vista ao pagamento do valor em falta.
q) Em conversa telefónica, os representantes da ré e da E., Lda adiantaram que ou a autora aceitava receber parte do valor em dívida, dando quitação do remanescente, ou apresentar-se-iam à insolvência, com as consequências inerentes.
r) A E., Lda recebeu na íntegra o preço pago pela G., S.A..
s) [Eliminado].

IV – Fundamentos de Direito

Do elenco factual apurado resulta que AA angariou para a empresa de que era Director Geral – a ora ré – o negócio da ‘Biblioteca de Verão’ dos JN e DN. Dado que a ré não possuía recurso próprios necessitou de angariar externamente colaboração para a edição e execução gráfica daquela ‘Biblioteca de Verão’ tendo-se vindo a construir um esquema de contratação em cascata, com contratos autónomos, mas interdependentes, na medida em que o êxito do negócio dependia da boa execução de todos eles e era a ré que detinha o conhecimento de todas as características da ‘Biblioteca de Verão’ (Factos 1, 2, 3, 4, 9, 21, 22, 23, 24, 26 e 27).

Quando contactada pela E., Lda para proceder à execução gráfica da colecção a autora mostrou-se interessada na proposta mas desde logo colocou a questão da necessidade de garantias de pagamento para poder aceitar a execução gráfica proposta (Factos 3, 4, 5 e 6A).

Com vista a ultrapassar as dificuldades existentes (onde avultava a relutância da autora em se comprometer sem que lhe fossem prestadas garantias de pagamento) realizou-se uma reunião com a participação de todos os intervenientes no projecto (Facto 6A).

Nessa reunião AA, na qualidade de representante da ré, expôs os contornos do negócio pondo em evidência que o pagamento de todos os intervenientes era assegurado pela empresa proprietária dos jornais e a solvabilidade desta (Facto 6B).

Só perante esta perspectiva a autora acedeu a comprometer-se definitivamente na execução gráfica da colecção (Factos 7, 8, 10, 11, 25 e 28).

A posição assumida pela ré na reunião ocorrida entre ela e a autora e a E., Lda afigura-se-nos de primordial importância para o desfecho da acção.

Com efeito ela foi convocada com o fito, entre outros, de ultrapassar a relutância da autora em aceitar proceder à execução gráfica sem que lhe fossem prestadas garantias de pagamento. Daí que a actuação da ré não possa deixar de ser vista como intencionalmente dirigida a esse fim; a ré não participa nessa reunião como mero observador, facilitador ou mediador, mas como parte plenamente interessada no êxito da operação e com vontade de frustrar a referida relutância.

E foi no uso dessa vontade que expôs os contornos financeiros do negócio, enfatizando que o risco económico estava na empresa proprietária dos jornais, pois que era aí que se encontrava a fonte do financiamento do negócio. Assegurada a solvabilidade dessa empresa estava eliminado qualquer outro risco (em particular o desconhecimento da E., Lda e a sua pequena dimensão, que eram invocados pela autora conforme referido pelo seu sócio gerente no seu depoimento) uma vez que efectuado o pagamento por aquela desde logo ficava assegurado a pagamento a todos eles (Ré, E., Lda e Autora).

E foi nessa perspectiva – convicta da solvabilidade da empresa proprietária dos jornais e de que os pagamentos por ela efectuados seriam direccionados ao seu próprio pagamento - que a autora acedeu a proceder à execução gráfica da colecção.

Nesse circunstancialismo a posição da ré não pode ser vista como uma mera declaração informativa; em que se limitou a apresentar a um outro interveniente no projecto (com quem até não tinha nenhuma vinculação) uma outra perspectiva ou outros argumentos para efeitos de avaliação do risco de negócio. Pelo contrário, a afirmação desta de que os pagamentos recebidos da empresa proprietária dos jornais seriam imediatamente utilizados no pagamento à E., Lda não pode ser vista como uma mera descrição factual do que se prevê, em termos de normalidade esperada, venha a ocorrer futuramente mas antes como a afirmação de que se compromete a actuar daquela maneira; ou seja, constitui uma vinculação, no uso da liberdade consagrada nos artigos 405º e 398º do CCiv, da ré perante a autora de que procederá da forma enunciada. A ré voluntária e intencionalmente, reconhecendo que isso era também do seu interesse, colocou-se a par da E., Lda como proponente da execução gráfica da colecção. E foi confortada com tal posição que a autora acedeu a comprometer-se com a execução gráfica da colecção.

Conclui-se, assim, que o acordo para a execução gráfica da colecção foi concluído entre a E., Lda e a Ré, por um lado, e a A., pelo outro.

E o comportamento posterior das partes é absolutamente consentâneo com essa conclusão.

Só a consciência de ser parte integrante do contrato explica o mail enviado em 18MAI segundo o qual é confirmada a adjudicação da execução gráfica e reafirmadas as condições acordadas subscrito pela Ré (sendo perfeitamente descabida a justificação dada em audiência de que tal ocorreu porquanto a gerente da E., Lda se encontrava impossibilitada de fazer a comunicação por estar em Lisboa tendo pedido a AA que fizesse tal comunicação, quando é sabido que um mail ou um SMS se envia de qualquer parte; como também não se compreende que um simples mensageiro tenha conhecimento de todas as condições contratuais acordadas e sinta a necessidade de as reafirmar). E só a vinculação para com a Autora justifica toda a actuação posterior da Ré no sentido de a informar da situação dos pagamentos por parte da empresa proprietária dos jornais e dos acordos que com esta faz (factos 16 e 18) e mesmo de lhe fazer uma proposta de pagamento (facto 19).

Relativamente aos juros de mora, porque a Autora, nunca enviou à Ré qualquer factura (facto 30), não obstante ser de ambos conhecida a sua pretensão de cobrar o preço, entende-se não ter ocorrido por parte da Autora interpelação da Ré para o respectivo pagamento, pelo que aqueles apenas são devidos desde a citação.

V – Decisão:

Termos em que, na procedência da apelação, se decide:

a) Alterar o elenco factual nos termos acima indicados;
b) Revogar a decisão recorrida e, em substituição, condenar a ré a pagar à autora a quantia de 243.995,04 € (duzentos e quarenta e três mil novecentos e noventa e cindo euros e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal para créditos de empresas comerciais desde a citação até integral pagamento.

Custas, da acção e do recurso, pela ré.

                                                                                   Lisboa, Lisboa-02.06.2015
  
(Rijo Ferreira) 
(Afonso Henrique)
(Rui Vouga)


[1] - e como tal foi claramente entendido pela Ré como o demonstra o teor da sua contestação.