Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18897/11.7T2SNT.L1-6
Relator: MANUEL RODRIGUES
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
REQUISITOS
MÁ-FÉ
ÓNUS DA PROVA
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - A autoridade de caso julgado tem a ver com a existência de relações entre acções, já não de identidade jurídica (própria da excepção de caso julgado), mas de prejudicialidade entre acções, de tal ordem que julgada, em termos definitivos, uma certa questão em acção que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre essa questão ou objecto da primeira causa, se impõe necessariamente em todas as acções que venham a correr termos, ainda que incidindo sobre objecto diverso, mas cuja apreciação dependa decisivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na acção posterior.
II - A exequente que em oposição à execução obtém sentença que reconhece o crédito exequendo pode invocar a seu favor, em acção de impugnação pauliana posteriormente intentada contra os executados-devedores, a autoridade de caso julgado, para efeitos demonstrar o requisito da existência do crédito.
III – O art.º 614.º, n.º 1, do Cód. Civil admite que o credor, cujo crédito já se constituiu, mas ainda não se venceu, possa recorrer à impugnação pauliana.
IV - Considera-se que havendo uma certeza sobre a existência do crédito, apesar deste não ser ainda exigível, o perigo da perda dos bens e das provas necessárias à demonstração dos requisitos da impugnação pauliana justificava que se atribuísse ao seu titular a possibilidade de recorrer a este meio de defesa da sua garantia patrimonial.
V - Por maioria de razão, também o titular de crédito simplesmente ilíquido tem o direito de utilizar a impugnação pauliana, uma vez que nesta situação o crédito já é certo e exigível, faltando apenas determinar o seu exacto montante.
VI - O art.º 612 do Cód. Civil postula a má-fé subjectiva, que compreende o dolo (nas diversas modalidades) e a negligência consciente (mas já não a negligência inconsciente), não sendo necessário demonstrar a intenção de originar prejuízo ao credor.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório
1.1. Caixa Geral de Depósitos, S.A., intentou a presente acção de impugnação pauliana contra A João Manuel (…), B Maria Adelaide (…) e (…) C [Investimentos Imobiliários, Lda.], pedindo que seja decretada a ineficácia em relação à Autora do acto de compra e venda da fracção autónoma designada pelas letras “AO” correspondente ao sexto andar D do prédio sito na (…) freguesia da Reboleira, concelho da Amadora, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial da Amadora (
1.2.(…), fracção esta registada definitivamente a favor dos 1ºs Réus (…), negócio que foi celebrado entre os Réus, de modo a que a Autora se possa pagar à custa desse imóvel, podendo executá-lo no património da segunda Ré.
Alegou, em resumo, que é titular de um crédito vencido e exigível sobre os primeiros Réus, no montante de 35.574,70€ (trinta e cinco mil, quinhentos e setenta e quatro euros e setenta cêntimos), calculado em 27.07.2011, valor a que acrescem os juros vincendos, crédito esse relativo a contrato de mútuo celebrado com os referidos primeiros Réus e que para garantia do capital mutuado, respectivos juros e despesas, foi constituída hipoteca definitivamente registada a favor da Autora sobre a fracção que identificaram.
Mais alegou que os primeiros Réus, por escritura outorgada no dia 29 de Dezembro de 2006, venderam à Ré sociedade, pelo preço de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) a referida fracção autónoma, acto que implicou uma diminuição da garantia patrimonial, tendo inclusivamente sido efectuado para evitar que à Autora fosse possível a penhora do imóvel em execução própria, já que se trata do único bem imóvel dos primeiros Réus.
Alegou, ainda, que embora subsista registada sobre o imóvel uma hipoteca a favor da ora Autora, o certo é que a mesma apenas garante o capital e três anos de juros e, consequentemente, da venda resulta a impossibilidade da satisfação integral do crédito da Autora, na medida em que se encontram juros em dívida que excedem três anos, que os 1ºs e 2º Réus tiveram e têm consciência do prejuízo que o acto causa ao credor, tendo agido de má-fé.
1.2.  Citados, os Réus apresentaram contestação, impugnando os factos alegados pela Autora, contrapondo que procederam ao pagamento de Esc. 3.600.000$00, i.e., actualmente “€7.217,35”, em 1998, junto de depósito realizado pessoalmente no balcão da CGD em Alvalade, tendo então liquidado todo o montante em dívida que à data foi solicitado pela ora Autora, uma vez que a dívida era inferior a esse valor, que a venda foi realizada de forma transparente, que o eventual crédito da Autora se encontra assegurado pela hipoteca constituída sobre a fracção e que os primeiros Réus possuem outros bens, designadamente os rendimentos da respectiva actividade empresarial.
Concluíram pugnando pela improcedência da acção.
1.3. A Autora, na réplica, impugnou o pagamento alegado pelos Réus, bem como a existência de outros bens no património dos primeiros Réus, que permitam ressarcir o crédito em causa nos autos, e pediu a condenação dos Réus como litigantes de má-fé.
1.4. Em sede de audiência preliminar a Autora foi instada a esclarecer o seu interesse em agir em face da hipoteca pendente sobre o imóvel, tendo declarado entender que “existe esse interesse uma vez que, mesmo que venha a ser superada no âmbito da execução mencionada nos autos, a questão do registo da penhora do imóvel, certo é que naquela execução a Caixa Geral de Depósitos não conseguirá ver satisfeito o seu crédito contabilizando mais do que três anos de juros, pelo que inexistindo quaisquer outros bens no património do executado ora primeiro Réu, em vista do negócio simulado nos presentes autos, vê a Autora falecer a garantia do complemento de obrigações perante si assumidas.”
1.5. Elaborou-se despacho saneador, no qual concluiu pela verificação de interesse em agir, e se procedeu à selecção dos factos assentes e organização da base instrutória, sem que tivesse sido apresentada qualquer reclamação.
1.6. A audiência de discussão e julgamento realizou-se com observância do legal formalismo.
1.7. No âmbito da audiência de discussão e julgamento foi determinado exame pericial, a fim de se proceder ao cálculo do valor do crédito da Autora que permaneceu em dívida após os pagamentos efectuados pelos Réus, decisão confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito de recurso interposto pela Autora, tendo no decurso da realização da perícia as partes apresentado os requerimentos documentados nos autos, nos quais se imputam mutuamente litigância de má-fé.
1.8. Na sequência, em 07 de Março de 2018 foi proferida sentença que decidiu:
1. Julgar a presente ação improcedente por não provada e, em consequência, absolver os Réus do pedido formulado pela Autora.
2. Julgar os pedidos de condenação das partes como litigantes de má-fé, improcedentes por não provados.” [ref.ª Citius 109599865].
1.9. Inconformada, a Autora interpôs o presente recurso de apelação, extraindo das alegações as seguintes Conclusões:
“1. Conforme ficou provado em sede de julgamento, nomeadamente, pelos depoimentos de CÉSAR (…) e de ANA  (…), os 1ºs Réus não tinham à data da transmissão referida em D) dos factos provados, qualquer outro bem para além daquele imóvel, da quota referida em F) dos factos provados, e de uma viatura. Deve, pois, aditar-se à matéria de facto dada como provada que: “Os 1ºs Réus não tinham à data referida em D), qualquer outro bem para além daquele imóvel, da quota referida em F), e de uma viatura.”
2. A Ré B foi citada pessoalmente para os termos dos autos de execução na morada da garantia hipotecária, Rua Ary dos Santos (…), em 13.03.2007, pelas 14:10. Também nestes autos, os RR. foram citados na mesma morada, já em 2011.
3. A citação, seja para a execução em 2007, seja para os presentes autos, em 2011, é prova evidente de que os RR. continuaram a habitar o imóvel após a escritura referida em D), ou quanto muito, a fazer uso dele.
4. Deve, pois, aditar-se à matéria de facto dada como provada que: “Não obstante o referido em D), os 1ºs Réus continuaram a usar o referido imóvel;”
5. O 1º R. marido foi citado pessoalmente para a execução em 28.12.2006. É justamente no dia seguinte ao da citação que os RR. se apressam a celebrar a escritura de compra e venda. Da própria escritura consta que o imóvel, à data da escritura, não só se encontrava hipotecado à Caixa, mas também penhorado por dívidas à Caixa e à Fazenda Nacional.
6. A sociedade adquirente teve anteriormente como gerente o 1º R. e tem como sócios a 1ª Ré mulher, os dois filhos do casal, o Il. Mandatário que os representa, Sr. Dr. José (…) e, por último, uma sociedade anónima, Vila (…), S. A. também representada pelo referido Mandatário e com sede no seu escritório, sito (…) em Lisboa. Também a adquirente (…) tem a sua sede na Rua da  (…), em Lisboa, precisamente onde se localiza o escritório do Sr. Dr. José (….). É de concluir que as pessoas singulares que controlam as sociedades em causa são as mesmas: os ora 1ºs RR. e o seu Il. Mandatário.
7. Deve, pois, considerar-se provado que “Os Réus outorgaram a referida escritura para furtarem o referido imóvel à penhora no âmbito da execução referida em C):”
8. Por tal resultar da certidão judicial junta aos autos em 26/02/2013, ref.ª 5209946, deve ainda considerar-se provado que A execução referida em C) foi instaurada em 07-07-2006, para cobrança da quantia de 29.053,41 eur, sendo o capital de 14.511,85 eur e juros de 08-04-1998 a 07-07-2006 de 14.541,56 eur, encontrando-se ainda pendente.”
9. A decisão transitada em julgado nos embargos de executado em que se discute o valor da dívida dos 1ªs RR à A. faz caso julgado material, impondo-se necessariamente a esta ação.
10. Nessa sentença apenas se ordenou a redução da quantia exequenda em conformidade com o pagamento da quantia de 1905,83 eur, razão pela qual não pode concluir-se nesta ação diferentemente.
11. Conforme se alegou e provou por certidão judicial o A. é titular de um crédito sobre os 1ºs RR. vencido e exigível, sendo anterior à transmissão aqui posta em causa.
12. Embora já se tenha procedido à liquidação do julgado na execução, o Instituto da Impugnação Pauliana não exige que o crédito seja líquido ou sequer ainda exigível; basta que exista (cfr. 614º do C. Civil).
13. Está assente que a A. peticiona a cobrança na execução de juros desde 1998, pelo que excedem manifestamente o limite de 3 anos dos juros cobertos pela hipoteca.
14. Face à prova produzida e às alterações requeridas à matéria de facto provada, é manifesto que os RR. não dispõem de qualquer bem além de uma viatura de 2004 e de uma quota residual na Sociedade (…). A transmissão, não só implicou uma diminuição da garantia patrimonial, como uma autêntica impossibilidade de cobrança de tudo o que exceda o montante garantido pela hipoteca.
15. O “terceiro adquirente” comprou um imóvel com hipoteca e penhora a favor da Caixa Geral de Depósitos (e também à Fazenda Nacional), pelo que não podia desconhecer a existência do crédito. Forçosamente, por regra de experiência comum e de presunção judicial, terá que se concluir que todos os RR. agiram em conluio e de má fé, tendo consciência do prejuízo que o acto causou ao credor.
Decidindo como decidiu, violou o Tribunal a quo o disposto nos art.ºs 610º a 614º do Cód. Civil e 580º do CPC.
Pelo exposto e sobretudo pelo que será suprido pelo Sábio Tribunal, deve ser concedido provimento ao presente recurso e revogada a douta sentença recorrida, substituindo-se por outra que julgue procedente a ação, com as legais consequências, assim se fazendo JUSTIÇA”.
1.10. Não foram apresentadas contra-alegações pelo Réu.
1.11. Foram colhidos os vistos legais.
II) Objecto do recurso - Questões a decidir
De acordo com o disposto nos artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este Tribunal da Relação adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. Tal limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, contanto que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, n.º 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas. ([1])
Assim, e face ao teor das conclusões formuladas, a solução a alcançar pressupõe a ponderação das seguintes questões:
- Saber se o Tribunal “a quo” incorreu em erro na apreciação dos meios de prova que imponha a alteração da decisão da matéria de facto nos termos pretendidos;
- Saber se, a verificar-se tal alteração da matéria de facto, a mesma conduz à revogação da sentença recorrida e à sua substituição por acórdão que julgue a acção procedente.
III) Fundamentação
A) Motivação de facto:
Na 1ª instância julgaram-se provados e não provados os seguintes factos:
- Factos provados:
“A. No exercício da sua atividade, em 30/10/1984, a ora Autora outorgou com os Réus A (…) e B (…) Instrumento Notarial Avulso de “empréstimo” da quantia de 2.500.000$00 (dois milhões e quinhentos mil escudos) formalizado por Instrumento Notarial Avulso, por meio do qual os referidos Réus se confessaram devedores àquela da quantia de dois mil e quinhentos escudos que por esta “lhes foi emprestada para aquisição do fogo adiante hipotecado e que se obrigam a pagar-lhe no prazo de vinte e cinco anos a contar de oito de Novembro próximo. (…) A taxa contratual será a máxima legal em cada momento em vigor para este tipo de operações; sendo inicialmente de trinta e dois e meio por cento ao ano (…)”, conforme teor do documento de fls. 11 a 17, que no mais se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais;
B. Para garantia do capital mutuado, respetivos juros e despesas, foi constituída hipoteca definitivamente registada a favor da ora Autora através da inscrição C-1, Ap. 65 de 1984/05/10 sobre o bem seguinte: Fracção autónoma designada pelas letras “AO” correspondente ao sexto andar D do prédio sito na Rua Ary dos Santos (…), freguesia da Reboleira, concelho da Amadora, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial da Amadora (…), fração esta então registada definitivamente a favor dos Réus João Manuel (…) e Maria Adelaide (…);
C. A ora Autora instaurou ação executiva contra os ora Réus A (…) e B (…)para pagamento de valores que reclama em dívida relativamente ao acordo referido em A., que corre termos sob o nº 3782/06.2TBAMD na Comarca da Grande Lisboa Noroeste - Sintra - Juízo de Execução - Juiz 2, onde requereu a penhora da fração referida em B).
D. Por escritura outorgada no dia 29 de Dezembro de 2006, no Cartório Notarial de Lisboa a cargo do Dr. Carlos Henrique Ribeiro Melon, os ora Réus A (…) e B (…) declararam vender à Ré (…) Investimentos imobiliários, Lda., pelo preço de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), que já receberam a Fracção autónoma designada pelas letras “AO” correspondente ao sexto andar D do prédio sito na Rua Ary dos Santos (…), freguesia da Reboleira, concelho da Amadora, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial da Amadora ( …, tendo esta declarado aceitar tal venda, conforme teor do documento de fls. 32 a 35 que no mais se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais;
E. Mostra-se inscrita a aquisição por compra do imóvel referido em B. a favor da Ré sociedade (…) pela Ap 24 de 2007/06/12;
F. A Ré sociedade tem como sócios: A (…), com uma quota no valor nominal de €13.000; Sandra (…), com uma quota no valor nominal de €13.000; João (…), com uma quota no valor nominal de €13.000; José (…) com uma quota no valor nominal de €1.000; e Vila (…), SA com uma quota no valor nominal de €360.000 que lhe foi transmitida pela Passion Investments, LLC; sendo seu gerente José (…), conforme teor da certidão de fls. 35 a 37, que no mais se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais;
G. Relativamente à Ré C (…) Investimentos Imobiliários, Lda. mostra-se registada a cessação de funções do gerente João (…) por renúncia em 2005.09.26, pelo Av. 1 OF à Ap. 35/2006.03.09, conforme teor do documento de fls. 38, que no mais se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais.
H. Relativamente ao empréstimo referido em A. os Réus A (…) e B (…) depositaram, em 08.08.2002 o montante de dezasseis mil euros e em 20.09.2002, o valor de dois mil, setenta e oito euros e trinta e quatro euros, que foram pela Autora imputados ao empréstimo da forma referida no documento de folhas 368 que a Autora juntou aos autos.”
- Factos não provados:
Com interesse para a boa decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos, designadamente que:
“- Os 1ºs Réus não tinham à data referida em D), qualquer outro bem para além daquele imóvel;
- Não obstante o referido em D), os 1ºs Réus continuaram ou continuam a usar o referido imóvel;
- Que os Réus tivessem outorgado a referida escritura para furtarem o referido imóvel a penhora no âmbito da execução referida em C):
- Que os pagamentos referidos em H. tivessem sido realizados em 1998;
- Que o valor dos pagamentos referidos em H. lhes tivesse sido indicado por funcionária do referido balcão como o suficiente para liquidar integralmente todo o montante em dívida à data relativamente ao acordo referido em A. e respetivos encargos.”
B) Motivação de Direito:
B.1) Primeira questão: Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Pretende a Apelante a reapreciação da prova e consequente alteração da decisão sobre a matéria de facto, por entender que:
- as declarações prestadas em audiência pelas testemunhas César (….) e Ana (…), impunham que se tivesse dado como provado que “Os 1.ºs Réus não tinham à data referida em D), qualquer outro bem para além daquele imóvel, da quota referida em F), e de uma viatura”;
- do teor da certidão junta em 26/02/2013 [ref.ª 5209946] resulta que a Ré Maria Adelaide foi citada pessoalmente para os termos dos autos de execução pendente na morada da garantia hipotecária, ou seja, na Rua Ary dos Santos (…), Reboleira, Amadora, e que também nestes autos ambos os Réus foram citados na mesma morada, em 22/07/2011 e 16/09/20111, respectivamente, estando, assim, indiciado que os Réus continuam a habitar o imóvel após a escritura referida em D), ou quanto muito a fazer uso dele. Note-se que são os próprios Réus quem declarou na escritura de compra e venda junta à PI como doc. n.º 6 que têm “domicílio profissional na Av. Almirante Reis (…). Deve, pois, segundo a Apelante, aditar-se à matéria de facto provada, como alínea J), que: “Não obstante o referido em D), os 1.ºs Réus continuaram a usar o referido imóvel”.
- Defende, ainda, a Apelante que também deve dar-se como provado, sob a alínea K), que: “Os Réus outorgaram a referida escritura para furtarem o imóvel à penhora no âmbito da execução referida em C)”.
Segundo a Apelante, tal facto resulta da ponderação dos seguintes elementos:
(i) a escritura de compra e venda foi celebrada no dia seguinte ao da citação do 1.º Réu marido para os autos de execução, ocorrida em 28/12/2006;
(ii) não é normal que a sociedade adquirente [3.ª Ré] se tenha predisposto a comprar um imóvel sem se encontrar assegurado o cancelamento dos ónus e encargos [hipoteca à CGD e penhoras por dívidas à CGD e à Fazenda Nacional];
(iii) a sociedade adquirente teve anteriormente como gerente o 1.ª Réu e tem como sócios a 1.ª Ré mulher, os dois filhos do casal [cf. certidões de nascimento juntas em 13/03/2013, sob a ref.ª 5112436], o Mandatário que os representa, Sr. Dr. José (…) e, por último, uma sociedade anónima, Vila (…), S. A. também representada pelo referido Mandatário e com sede no seu escritório, sito na Rua da  (…), em Lisboa (cfr. certidão permanente – doc. 7 junto à PI);
(iv) Também a sociedade (…) tem a sua sede na Rua da  (…), em Lisboa, precisamente onde se localiza o escritório do Sr. Dr. José (…) - cfr. certidão permanente – doc. 7 junto à PI;
(v) É, pois, fácil concluir que as pessoas singulares que controlam as sociedadesem causa são as mesmas: os ora 1ºs Réus e o seu Mandatário;
(vi) De resto, o filho dos 1.ºs Réus, A (…) declarou que o imóvel foi dado como “garantia” de um empréstimo de cerca 300 mil euros contraído junto de um fornecedor da empresa e que “quando o empréstimo ficar concluído (…) depois retorna, A garantia retorna para a gente”;
(vii) Também Frederico (…), apontado como a pessoa que financiou os 1.ºs Réus, afirmou em audiência de julgamento que a venda do imóvel se destinou a garantir um empréstimo de 100.000,00 em 2005 ou 2006 e que “ficou combinado que enquanto não pagasse de volta, (o imóvel) ficava na sociedade”, ou seja, “quando fosse feito o pagamento, saía da …”. Referiu, ainda, que entre mutuante e mutuários não foram convencionadas prestações e que estes últimos pagavam o que podiam e quando podiam e que o acordo foi verbal.
- Pretende, por fim, a Apelante, que se considere provado, sob a alínea L) da matéria de facto o que se extrai da certidão judicial junta aos autos em 26/02/2013, com a ref.ª 5209946, nomeadamente: A execução referida em C) foi instaurada em 07-07-2006, para cobrança da quantia de 29.053,41 euros, sendo o capital de 14.511,85 euros e juros de 08-04-1998 a 07-07- 2006 de 14.541,56 euros, encontrando-se ainda pendente.
Vejamos, então, se o Tribunal “a quo” incorreu ou não em erro na apreciação da prova, no segmento da matéria de facto impugnado pela Recorrente.
Nos termos exarados no artigo 607º do CPC vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido.
Além deste princípio, que só cede perante situações de prova legal - prova por confissão, por documentos autênticos, por certos documentos particulares e por presunções legais -, vigoram ainda os princípios da imediação, da oralidade e da concentração, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto, ampliados pela reforma processual operada pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, e mantidos pela reforma processual operada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados
Perante o disposto no artigo 712º do CPC, a divergência quanto ao decidido pelo Tribunal a quo, na fixação da matéria de facto só assumirá relevância no Tribunal da Relação se for demonstrada, pelos meios de prova indicados pelo recorrente, a verificação de um erro de apreciação do seu valor probatório, sendo necessário, qua tais elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo apelante (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26-06-2003, acessível em www.dgsi.pt).
Não se trata de possibilitar um novo e integral julgamento, mas a atribuição de uma competência residual ao Tribunal da Relação para poder proceder a uma reapreciação da matéria de facto.
A utilização da gravação dos depoimentos em audiência não modela o princípio da prova livre ínsito no direito adjectivo, nem dispensa operações de carácter racional ou psicológico que gerem a convicção do julgador, nem substituem esta convicção por uma fita gravada.
O que há que apurar é da razoabilidade da convicção probatória do primeiro grau de jurisdição face aos elementos agora apresentados, ou seja, a modificação da matéria de facto só se justifica quando haja um erro evidente na sua apreciação.
Porém, uma coisa é a compreensão da fundamentação e outra diferente a concordância ou não com a mesma, já que, há que fazer a destrinça entre a convicção objectiva do julgador e, outra muito diferente, a vontade subjectiva da parte que pretende alcançar a sua própria verdade, sem uso de um espírito crítico.
A este propósito refere-se lapidarmente no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 25.Nov.2005 (proc. 1046/02), disponível in www.dgsi.pt., que “a possibilidade de alteração da matéria de facto deverá ser usada com muita moderação e equilíbrio, ainda que toda a prova esteja gravada em áudio ou vídeo, devendo tao só o erro grosseiro ou clamoroso na apreciação da prova ser sindicado pela Relação com base na gravação dos depoimentos”.
Por erro notório deve entender-se “aquele que é de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores; em que o homem médio facilmente dá conta de que um facto, pela sua natureza ou pelas circunstâncias em que pode ocorrer, em determinado caso, não pode ser dado como provado ou não é dado como provado e devia sê-lo – por erro na apreciação da prova” ([2]).
Ou, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.Jul.1997 (proc. 97P612), disponível in www.dgsi.pt., “o erro notório na apreciação da prova é um vício de raciocínio na apreciação das provas evidenciado pela simples leitura da decisão. Erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de qualquer exercício mental. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica ou excluindo dela algum facto essencial”.
Sem embargo, como afirma Abrantes Geraldes([3]), “se a Relação, procedendo à reapreciação dos meios de prova postos à disposição do tribunal a quo, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, a convicção acerca da existência de erro deve proceder à correspondente modificação da decisão”.
                                                  **
- Por uma questão de precedência lógica, apreciaremos, em primeiro lugar a impugnação da matéria de facto na parte atinente à prova da existência do crédito da Autora, ora Apelante.
Neste âmbito, pretende a Apelante, que se considere provado, sob a alínea L) da matéria de facto o que se extrai da certidão judicial junta aos autos em 26/02/2013, com a ref.ª 5209946, nomeadamente: A execução referida em C) foi instaurada em 07-07-2006, para cobrança da quantia de 29.053,41 euros, sendo o capital de 14.511,85 euros e juros de 08-04-1998 a 07-07- 2006 de 14.541,56 euros, encontrando-se ainda pendente.
Isto porque a Autora entende que foi produzida prova suficiente quanto à existência do seu crédito, considerando que a testemunha Ana (…), no seu segundo depoimento, descreveu as entregas que foram feitas em 2002, bem como o remanescente em dívida, que então seria aproximadamente de € 20.000, bem como os extractos juntos pela CGD em 10/04/2013 e a declaração de dívida junta em 11/06/2013.
Argumenta, por fim, que não se pode ignorar que a existência da dívida foi discutida na execução própria referida em C) dos factos provados e já foi decidida definitivamente, conforme se refere. Aliás, no despacho de 25/06/2014.
Esta factualidade está relacionada com os artigos 4.º e 5.º da Base Instrutória, a saber:
“4º) Em 1998, os 1ºs RR procederam ao pagamento de Esc. 3.600.000$00 por meio de depósito realizado pessoalmente junto do balcão da CGD de Alvalade?
5º) Tendo sido esse o valor que então lhes foi indicado por funcionária do referido balcão como o suficiente para liquidar integralmente todo o montante em dívida à data relativamente ao acordo referido em A) e respectivos encargos?”
A propósito do segmento da matéria de facto atinente à existência do crédito da Autora e seu montante o Tribunal a quo expressou a sua motivação nos seguintes termos:
«O Tribunal fundou a sua convicção na conjugação de toda a prova produzida, designadamente no exame crítico dos depoimentos prestados pelas testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, e, bem assim na análise global e pormenorizada do teor dos documentos juntos, tendo ainda em atenção o acordo das partes.
Assim, atendeu o Tribunal aos depoimentos das seguintes testemunhas:
ANA (…), funcionária da Autora que depôs por forma a confirmar a versão da Autora acerca do montante em dívida, e, depois de instada, esclareceu que em 2002 foram efetuadas duas entregas de quantias para pagamento no âmbito do contrato de crédito que a Autora celebrou com os Réus A  e  B, uma no valor de dezasseis mil euros e outra no valor de dois mil e setenta e oito euros, e oitenta e quatro cêntimos, referindo que então ficaram em dívida (vinte mil euros), encontrando-se à data em que prestou declarações, em dívida a quantia de trinta e oito mil, setecentos e quarenta e três e cinquenta e nove euros), valores que, porém, não soube esclarecer em concreto, designadamente os cálculos realizados em consequência de tais pagamentos, aludindo vagamente a características do empréstimo, como “prestações crescentes”, revelando, pois, ter, dos valores relativos aos empréstimo em causa, um conhecimento fundado apenas nos documentos que lhe foram facultados pela Autora, cujo teor não soube explicar;
Ouvida segunda vez referiu que o incumprimento do empréstimo data de Abril de 1998, voltando a referir que em 2002 houve dois pagamentos, um no valor de dezasseis mil euros e outro no valor de dois mil euros, que referiu ser sua convicção não terem sido suficientes para pagamento integral, embora não tivesse sabido explicar porquê, designadamente a razão da diferença entre as datas de pagamento e de imputação;
[…]
O valor dos pagamentos dados como provados, que difere ligeiramente dos demonstrados nos autos de oposição à execução que penderam entre as partes, fundou-se na admissão expressa dos valores pela Autora a folhas 359 e ss e 361/362 e da respetiva demonstração no extrato de folhas 319 e seguintes, sendo que tais ligeiras diferenças dever-se-ão certamente ao desconto de quantias que terão sido aplicadas em despesas.
A Autora intentou a presente ação alegando que celebrou com os Réus A e B um contrato de crédito, através do qual lhes emprestou a quantia de Esc. 2.500.000$00 (dois milhões e quinhentos mil euros), a que correspondem €12.469,95 (doze mil, quatrocentos e sessenta e nove euros, e noventa e cinco cêntimos), destinado à aquisição habitação permanente pelos Réus, contrato do qual juntou cópia a folhas 12 a 15, para garantia do qual foi constituída hipoteca sobre o imóvel em causa nos autos.
Sem nada referir quanto à data do incumprimento do referido contrato pelos referidos Réus, aos valores pelos mesmos pagos ou a forma como os imputou à dívida, referiu que se encontra em dívida, à data da propositura da ação, o valor de €35.574,70 (trinta e cinco mil, quinhentos e setenta e quatro euros e setenta cêntimos), valor que referiu incluir capital, no montante de €13.275,06 e juros desde 08.04.1998 a 21.07.2011, no valor de €21.648,91.
Refere que não obstante a pendência da hipoteca, na execução que instaurou para cobrança do crédito, a penhora sobre o mesmo não pode ser registada definitivamente em consequência do negócio que pretende impugnar, e que a mesma apenas garante o capital mutuado e três anos de juros, pelo que do negócio resulta a impossibilidade de satisfação integral do crédito da Autora, já que, segundo alega, os Réus pessoas singulares, não possuem outro património.
Ora, sendo certo que a conversão do registo da hipoteca se resolve com a intervenção da adquirente do imóvel onerado com a mesma nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 54º, n.º 2 do Código de Processo Civil, pelo que, de resto, a Autora já diligenciou, como consta das informações obtidas junto da execução, servem estas considerações para concretizar o crédito que a Autora pretende garantir através da presente ação e que, como a própria esclareceu em sede de audiência preliminar (cf. folhas 95), consiste no montante em dívida que excede o capital e os juros que se encontram garantidos pela hipoteca, ou seja, os juros em dívida que respeitem a mais de três anos. Daí a importância, para ajuizar do pedido formulado pela Autora, da determinação de tal valor, a que se tentou através da prova oferecida pelas partes e determinada pelo Tribunal, designadamente pericial, proceder. E pese embora todas tais diligências, tal valor permanece desconhecido.
Nenhuma das testemunhas indicadas pela Autora soube esclarecer a forma como foram calculados os valores que a Autora indica nos documentos que fez juntar aos autos e que pretendem demonstrar os valores em dívida, apenas revelaram saber o que consta de tais documentos que lhes foram fornecidos pela Autora. Nenhuma revelou conhecer a data do incumprimento, o capital que então ficou em dívida, o momento em que o capital deixou, em conformidade com o disposto no artigo 781º do Código Civil, de vencer juros remuneratórios para passar a vencer apenas juros moratórios, sendo certo que a obrigação de restituição das quantias emprestadas, em consequência da resolução, não inclui os juros remuneratórios das prestações que ainda não se tenham vencido[4].
Também nenhuma soube esclarecer a que se deveram os pagamentos que os Réus fizeram em 2002, já depois de a ora Autora ter instaurado em 1998 uma execução para cobrança do crédito, altura em que, portanto, o considerava já definitivamente incumprido, depois de as prestações deixarem de ser pagas em 1995 - conforme consta da sentença proferida nos autos de oposição à execução que a ora Autora moveu contra os ora Réus A e B - e a razão pela qual a Autora, não obstante os pagamentos de 2002, computa juros desde 1998, ou pela qual um pagamento efetuado em 2002 só foi imputado ao empréstimo em causa em 2007 ou se o foi tendo em consideração o capital e os juros em dívida à data do pagamento ou à data da imputação. Também não foi esclarecida a diferença entre os valores indicados em dívida nestes autos, e os indicados na execução (fls 195 e ss.)
Importa ter em consideração, neste ponto, a versão que os Réus apresentam a tal respeito – a de que fizeram o pagamento da quantia que no balcão da Autora lhe disseram que estava em dívida, nesse sentido apontando o valor do último depósito que se demonstrou ter sido efetuado, cujo valor (€2.078,38) não consegue facilmente explicar-se sem ter sido indicado por qualquer motivo. Na verdade, em termos de experiência comum, é mais expectável que quem pretenda fazer um depósito para amortizar uma dívida, sem consultar os serviços do credor bancário, utilize uma quantia mais certa (v.g. €2.000,00, €2.100,00, ou mesmo €2.070.00). Pela testemunha Tiago ……, filho dos Réus A e B foi até transmitida a convicção do pai, de que o empréstimo estava saldado.
Assim, não tendo sido produzida prova direta acerca da matéria de facto indicada no artigo 5º da base instrutória, pois nenhuma testemunha referiu ter presenciado a indicação a que ali se alude, não pôde tal matéria dar-se como provada, porém, em face dos elementos mencionados, não pode afastar-se que possa ter assim ocorrido.
Assim, se é certo que o ónus de prova do pagamento pertence aos Réus, certo é também que a prova do crédito cabia à Autora, pelo que, em face da falta dos elementos já citados e mencionados pelo Senhor Perito nomeado nos autos, que impedem de perceber a exata medida em que o crédito deve considerar-se pago, o mesmo não foi concretamente demonstrado.
De resto, o Sr. Perito concluiu mesmo que em face dos pagamentos realizados em 2002, não restou qualquer quantia em dívida, e pese embora tivesse realizado os cálculos com a taxa que considerou aplicável, diversa da acordada no empréstimo, certo é que também evidenciou os elementos que, estando em falta, o impossibilitavam de realizar cálculos diversos.
A prova produzida não logrou, pois, convencer o Tribunal do valor em dívida, quer a título de capital, quer de juros remuneratórios e/ou moratórios
Ora, salvo o devido respeito, reexaminada que foi por esta Relação toda a prova produzida, que conjuga prova documental e testemunhal, com relevo para as declarações prestadas em audiência por Ana (…), não podemos acompanhar a conclusão a que chegou o Tribunal a quo de que não foi feita prova relativamente à existência da dívida, embora se acompanhe em parte o decidido por se considerar que não foi feita prova do valor exacto da dívida à data da transmissão do imóvel, quer a título de capital, quer de juros moratórios e/ou remuneratórios.
Em primeiro lugar, como, alias, dá devida nota a Senhora Juíza a quo, a testemunha Ana (…), no seu segundo depoimento, descreveu as entregas que foram feitas em 2002 pelos 1.ºs Réus, ora Apelados, bem como o remanescente que ficou em dívida, que então seria de aproximadamente € 20.000,00, remanescente a que acresciam então cerca de €18.000,00 de juros contados desde o incumprimento. E esclareceu que desde então não houve mais entregas. Esta testemunha foi confrontada com a Nota de Débito que instruiu a Petição Inicial (PI) e asseverou que após o incumprimento o empréstimo nunca esteve regularizado.
A existência da dívida também se retira dos extractos juntos pela CGD em 10/04/2013 [ref.ª Citius 5516790] e da declaração de dívida e nota de débito juntas em 11/06/2013 [ref.ª Citius 5925348].
Esta matéria da existência da dívida e do seu valor exacto, com particular incidência no que diz respeito à imputação à dívida dos valores de €16.000,00 e € 2.078,34, respectivamente, provenientes dos depósitos efectuados em 08/08/2002 e 20/09/2002, e ao remanescente apurado após essas imputações (abatimentos) foi exaustivamente debatida em sede de oposição à execução referida em C) dos factos provados, intentada pela CGD, que correu termos no Juiz 2 do Juízo de Execução de Sintra, sob o n.º 3782/06.2TBAMD [cf. certidão de fls. 72 a 75 verso do Apenso].
Na referida oposição foi proferia sentença em 07/10/2012, que transitou em julgado em Dezembro de 2013, decisão esta que determinou o montante (ilíquido) em dívida, os valores relativos aos pagamentos efectuados pelos executados, as respectivas aplicações e a existência de remanescente.
Na execução, a CGD, aqui Autora e Apelante, reclamava o pagamento de um crédito total de € 29.053,41, correspondendo € 14.511,85 a dívida de capital e €14.541,56 a juros contabilizados desde 08/04/1998 até 07/07/2006 [cf. certidão de fls. 42 e segs. do Apenso].
Na sentença proferida em 07/10/2012 nos autos de oposição à execução mencionados julgaram-se improcedentes as excepções invocadas pelos executados, aqui Réus e Apelados, de falta de interpelação e de vencimento antecipado das prestações e parcialmente procedente a excepção peremptória do pagamento, decidindo-se, a final, pela redução da quantia exequenda em conformidade com o pagamento da quantia de € 1.905,83 que, embora efectuado em 2003, por razões contabilísticas, apenas foi imputado à dívida em 2007.
Considerou a referida sentença que “aquando da instauração da execução que constitui o processo principal, não foi tido em consideração para o cálculo da quantia exequenda a quantia de €1.905,83, uma vez que, apesar de ter sido paga em data anterior à propositura da execução, só foi processada em data posterior”.
Decorre de tudo o exposto que existe caso julgado sobre a matéria da existência da dívida e relativamente aos critérios da determinação do seu exacto valor à data da propositura da execução pendente que à mesma respeita.
Por força da autoridade do caso julgado decorrente do trânsito em julgado da sentença proferida na oposição à execução, o crédito da CGD, ora Apelante, sobre os 1.ºs Réus, à data da propositura da execução, em Julho de 2006, era o reclamado na execução € 29.053,41 [€ 14.511,85 de capital e €14.541,56 de juros] deduzido da quantia de €1.905,83.
Na verdade, embora não ocorra a excepção de caso julgado e a preclusão, verifica-se a autoridade de caso julgado, sendo que em relação a esta última, como se sabe, não se exige a tríplice identidade [quanto aos sujeitos, objecto pedido e causa de pedir].
“A autoridade de caso julgado, por via da qual é exercida a função positiva do caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da aludida tríplice identidade [a que se reporta o artigo 498.º n.º 1 do CPC], pressupondo, todavia, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida” [Acórdão do STJ de 23/11/2011 - Conselheiro PEREIRA DA SILVA, proc.º n.º 644/08.2TBVFR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt].
Elucidativo a este respeito é o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/11/2016 [Desembargador JORGE SEABRA, proc.º n.º 1677/15.8T8VNG.P1, disponível em www.dgsi.pt.], citado pela Apelante, aresto este em que se afirma que “a autoridade de caso julgado tem a ver com a existência de relações entre acções, já não de identidade jurídica (própria da excepção de caso julgado), mas de prejudicialidade entre acções, de tal ordem que julgada, em termos definitivos, uma certa questão que correu entre determinadas partes, a decisão sobre essa questão ou objecto da primeira causa, se impõe necessariamente em todas as acções que venham a correr termos, ainda que incidindo sobre objecto diverso, mas cuja apreciação dependa exclusivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na acção posterior”.
Ora, é precisamente essa a situação dos autos, em que se nos apresenta uma decisão prejudicial que foi tomada na primeira sentença [na sentença de 07/10/2012, proferida na oposição à execução] que não pode ser contraditada na presente acção: na primeira sentença afirmou-se a existência do crédito e o seu valor, ainda que ilíquido; com esta acção, pretende-se o reconhecimento da existência desse mesmo crédito.
Dito de outro modo: na primeira acção discutiu-se e afirmou-se a existência de um crédito da CGD sobre os 1.ºs Réus e nesta acção discute-se também a existência desse mesmo crédito, desta feita enquanto requisito da acção de impugnação pauliana [art.º 610.º a 618.º do Cód. Civil].
No caso concreto, verifica-se essa intercepção entre o objecto dos processos em concurso (anterior e posterior), ou seja, existe a aludida relação de prejudicialidade ou de condição prévia pelo que se justifica plenamente invocação da força vinculativa da autoridade de caso julgado.
A tudo acresce que o Solicitador de Execução, a testemunha ouvida em audiência, Carlos (…), na sequência do decidido nos autos de oposição à execução procedeu à liquidação do julgado, tendo elaborado para o efeito, em 07/06/2014, a Nota Discriminativa e Justificativa que consta de fls. 98 do Apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. Como se pode ler na referida Nota, o valor da quantia exequenda, após a redução ordenada, por via da imputação do pagamento efectuado, no valor de €1.905,83, passou para €27.147,58.
Nessa data, como decorre da referida Nota Discriminativa e Justificativa, os juros vencidos posteriormente à propositura da execução [entre 07/07/2006 e 27/05/2014] já ascendiam a um total de €12.599,23.
Em suma, impõe-se considerar procedente este segmento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto e, em consequência, aditar à matéria de facto provada o teor relevante das certidões judiciais juntas aos autos no que concerne à quantias reclamadas a título de capital e de juros na execução referida em C) dos factos provados, à pendência da oposição à execução e à decisão final proferida neste autos.
Por tudo o exposto, decide-se aditar aos Factos Provados, sob as alíneas I), J) e K), a seguinte matéria de facto:
«I) A execução referida em C) foi instaurada em 07-07-2006, para cobrança da quantia de 29.053,41 euros, sendo o capital de 14.511,85 euros e juros de 08-04-1998 a 07-07- 2006 de 14.541,56 euros, encontrando-se ainda pendente.
J) Os executados, aqui Apelados, A e B, deduziram oposição à referida execução, que correu seus termos por apenso ao processo principal, alegando, além do mais, que pagaram a totalidade da dívida exequenda;
k) Em 07-10-2012 foi proferida sentença, que transitou em julgado em Dezembro de 2013, pela qual se julgou parcialmente procedente a oposição à execução, determinando-se que a dívida exequenda referida em I) fosse reduzida em conformidade com o pagamento da quantia de €1.905,83 efectuado pelos executados anteriormente à propositura da execução, mas que não havia sido considerado para o cálculo da quantia exequenda – cf. certidão judicial de fls. 42 e segs. do Apenso e doc. De fs. 901 a 905 verso destes autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.»
*
- Relativamente ao pretendido aditamento aos Factos Provados de uma alínea com o seguinte teor: “Os 1.ºs Réus não tinham à data referida em D), qualquer outro bem para além daquele imóvel, da quota referida em F), e de uma viatura”.
Uma vez mais a razão está do lado da Apelante, pois as declarações prestadas em audiência, quer pela testemunha César (…), quer pela testemunha Ana (…), que neste particular não foram contrariadas por outro meio de prova, impunham que se tivesse dado como provada tal factualidade.
Do depoimento prestado por César ….., que exerceu e exerce as funções de Agente de Execução no âmbito da Execução referida em C) dos Factos Provados, e que nesse âmbito pesquisou o património dos executados, resulta que apenas foi encontrado o imóvel objecto da presente acção e três viaturas, duas das quais foram entretanto alienadas, tendo uma delas passado para a propriedade da Vila (…), S.A., sociedade que é detida pelos executados e participa no capital social da 2.ª Ré […, Lda.]. Aliás, as declarações da testemunha foram consonantes com o teor do e’mail por si enviado ao Ilustre mandatário da exequente, ora autora e Apelante, a relatar as diligências realizadas no processo executivo n.º 3782/06.2TBAMD com vista à localização de bens penhoráveis [cfr. Doc. 5 junto com a PI].
Por sua vez, o depoimento prestado pela testemunha Ana ….. que efectuou pesquisas telemáticas de património dos executados, ora réus e Apelados, foi no mesmo sentido.
Da valoração conjugada destes depoimentos com o teor da certidão constante de fls. 35 a 37 dos autos impõe-se concluir que os 1.ºs Réus não tinham à data da alienação do imóvel [29 de Dezembro de 2006] qualquer outro bem, para além do imóvel alienado, da quota referida em F) e de uma viatura.
Face ao exposto e sem necessidade de outros considerandos, decide-se:
a) Eliminar dos Factos Não Provados: “Os 1.ºs Réus não tinham à data referida em D) qualquer outro bem para além daquele imóvel”;
b) Aditar aos Factos Provados a alínea L), com a seguinte redacção:
«L) Os 1.ºs Réus não tinham à data referida em D) qualquer outro bem para além do imóvel alienado a favor da Ré (…), Lda., da quota referida em F) e de uma viatura».
                                               *
- Quanto ao pretendido aditamento aos Factos Provados de uma alínea com o seguinte teor: “Não obstante o referido em D), os 1.ºs Réus continuaram a usar o imóvel”.
Para sustentar esta sua pretensão, a Apelante argumenta que do teor da certidão junta em 26/02/2013 [ref.ª Citius 5209946] resulta que a Ré B foi citada pessoalmente para os termos dos autos de execução pendente na morada da garantia hipotecária, ou seja, na Rua Ary dos Santos (…), Reboleira, Amadora, e que também nestes autos ambos os Réus foram citados na mesma morada, em 22/07/2011 e 16/09/20111,
E efectivamente isso mesmo está documentado nos autos, por via das referidas certidões de citação dos 1.ºs Réus.
Mas esses elementos não nos permitem concluir, como concluiu a Apelante, que os 1.ºs Réus continuaram a habitar aquele imóvel após a sua alienação em 29/12/2006.
Que os 1.ºs Réus já não habitam este imóvel desde 1994 é facto que ficou esclarecido nos autos em razão das declarações prestadas, quer pela testemunha Isabel (…), quer pela testemunha João (…), que revelaram conhecimento directo dos factos.
Todavia, a circunstância de terem recebido as citações postais enviadas para o imóvel em causa, já em 2011, decorridos que eram cerca de cinco anos sobre a transmissão deste bem para a Ré (…), Lda. E bem assim a circunstância de os 1.ºs Réus e os seus filhos controlarem esta sociedade, é bastamente indiciadora de que aqueles continuam a usar o imóvel em causa, seja a título pessoal, seja como representantes da sociedade “(…), Lda.”. Ademais, como resulta quer do depoimento do filho dos 1.ºs Réus, João (…), quer do depoimento prestado por Frederico (…), a compra e venda do imóvel não passou de um acto simulado, pois a transferência da propriedade do imóvel para a sociedade (…), Lda., segundo aqueles, teve por objectivo garantir um empréstimo alegadamente efectuado aos 1.ºs Réus pelo referido Frederico (…), sendo que uma vez liquidado o empréstimo, o imóvel retornava à titularidade dos anteriores proprietários.
Tudo a indiciar que os 1.ºs Réus continuaram, pelo menos, a usar o imóvel.
Pelo exposto, decide-se:
«a) a) Eliminar dos Factos Não Provados: “Não obstante o referido em D), os 1.ºs Réus continuaram ou continuam a usar o imóvel”;
b) Aditar aos Factos Provados, sob a alínea M), o seguinte:
«M) Não obstante o aludido em D), os 1.ºs Réus continuaram a usar o referido imóvel».
                                                 *
- Relativamente ao pretendido aditamento aos Factos Provados de uma alínea com o seguinte teor: “Os Réus outorgaram a referida escritura para furtarem o móvel à penhora no âmbito da execução”.
Segundo a Apelante, tal facto resulta provado da ponderação dos seguintes elementos:
(i) a escritura de compra e venda foi celebrada no dia seguinte ao da citação do 1.º Réu marido para os autos de execução, ocorrida em 28/12/2006;
(ii) não é normal que a sociedade adquirente [2.ª Ré] se tenha predisposto a comprar um imóvel sem se encontrar assegurado o cancelamento dos ónus e encargos [hipoteca à CGD e penhoras por dívidas à CGD e à Fazenda Nacional];
(iii) a sociedade adquirente teve anteriormente como gerente o 1.ª Réu e tem como sócios a 1.ª Ré mulher, os dois filhos do casal [cf. certidões de nascimento juntas em 13/03/2013, sob a ref.ª 5112436], o Mandatário que os representa, Sr. Dr. José (…) e, por último, uma sociedade anónima, Vila (…), S. A. também representada pelo referido Mandatário e com sede no seu escritório, sito na Rua da (…), em Lisboa (cfr. certidão permanente – doc. 7 junto à PI);
(iv) Também a sociedade (…), LDA. tem a sua sede na Rua da (…), em Lisboa, precisamente onde se localiza o escritório do Sr. Dr. José (…) - cfr. certidão permanente – doc. 7 junto à PI;
(v) É, pois, fácil concluir que as pessoas singulares que controlam as sociedades  em causa são as mesmas: os ora 1ºs Réus e o seu Mandatário;
(vi) De resto, o filho dos 1.ºs Réus, João (…) declarou que o imóvel foi dado como “garantia” de um empréstimo de cerca 300 mil euros contraído junto de um fornecedor da empresa e que “quando o empréstimo ficar concluído (…) depois retorna, A garantia retorna para a gente”;
(vii) Também Frederico (…), apontado como a pessoa que financiou os 1.ºs Réus, afirmou em audiência de julgamento que a venda do imóvel se destinou a garantir um empréstimo de 100.000,00 em 2005 ou 2006 e que “ficou combinado que enquanto não pagasse de volta, (o imóvel) ficava na sociedade”, ou seja, “quando fosse feito o pagamento, saía da (…)”.
- Ao expressar a sua motivação acerca desta matéria, referiu a Senhora Juíza “a quo”:
«O Tribunal fundou a sua convicção na conjugação de toda a prova produzida, designadamente no exame crítico dos depoimentos prestados pelas testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, e, bem assim na análise global e pormenorizada do teor dos documentos juntos, tendo ainda em atenção o acordo das partes.
[…]
PEDRO (.…), engenheiro civil, que presta serviços para a ora Autora, e que declarou que o imóvel em causa nos autos, valia cerca de oitenta mil euros, e que em 2011, o valor seria já de sessenta e cinco mil euros, esclarecendo, depois de instado, que se referia a valores médios, já que nunca visitou o imóvel, desconhecendo o seu estado, acabando por admitir que o valor de cinquenta mil euros para o imóvel, caso se tivesse em consideração que estava onerado, lhe parecia adequado;
[…]
FREDERICO (…) – consultor imobiliário, que referiu ser sócio maioritário da (…) Investimentos Imobiliários, Lda., e amigo dos Réus A e B  há cerca de quinze anos, esclarecendo que o negócio de compra e venda em causa nos autos foi realizado no âmbito de um empréstimo de uma quantia de cerca de cem mil euros que entregou ao ora Réu, esclarecendo que a transferência de propriedade do imóvel foi realizada para garantir tal empréstimo, referindo que acordaram que quando recebesse a totalidade da quantia que emprestou, extinguia-se a participação e o imóvel passaria para a titularidade do ora Réu, ficando titular do mesmo caso não ocorresse o pagamento;
[…]
JOÃO (…) – gestor financeiro, filho dos Réus A e B  (…) e sócio da sociedade Ré, que referiu que desde 1994 os pais moram na Avenida Conde Carlos Guimarães (…), e que o imóvel em causa nos autos se encontra fechado desde então, e referiu que em meados de 2005 a empresa estava com grandes dificuldades, o que a determinou a pedir um empréstimo a um fornecedor, tendo os pais dado o imóvel em garantia de tal empréstimo, esclarecendo que o pai lhe transmitiu que pagou a dívida à Caixa Geral de Depósitos ao balcão, que efetuou um pagamento de cerca de vinte mil euros, e que o pai tinha a convicção de que havia pago integralmente a dívida à ora Autora, acrescentando que foi outra empresa que beneficiou do empréstimo, que o outro sócio do pai é Frederico ….., que é o dono da “Ambiente (…), Lda.”, tendo sido o mesmo quem emprestou o dinheiro de que o pai precisava.
 […]
[…] não foi a prova produzida de molde a demonstrar que o negócio em causa nos autos foi realizado apenas para furtar o imóvel à penhora, no âmbito da execução a que já se aludiu. Basta pensar que o imóvel foi transferido com a hipoteca, o que permitiria desde logo a penhora de acordo com o regime processual a que já se fez referência.
Importa, nesta matéria considerar que a versão que os Réus apresentaram a este respeito, foi confirmada pelas testemunhas Tiago (…) e Frederico (…), que referiram que a compra e venda foi realizada no âmbito de um mútuo e transferida a propriedade como garantia de reembolso do mesmo, que nesta matéria não foram contrariados por qualquer meio de prova, sendo que o valor constante da escritura foi considerado adequado pela testemunha Pedro ….., indicada pela Autora, tendo em consideração que o prédio se encontrava onerado.
[…]
Os factos não provados resultaram, pois, da circunstância de acerca dos mesmos não ter sido produzida prova que demonstrasse a respetiva realidade, ou de ter sido demonstrada realidade diversa dos mesmos» [Fim de citação].
No artigo 13.º da PI a autora, aqui Apelante, alegou:
São sócios da 2ª R. a 1ª R. B  (…) e os filhos dos 1ºs RR João T…. (…) e Sandra (…)!”.
E no art.º 14.º da PI alegou:
O 1º R. A  (…) chegou a exercer as funções de gerente da 2ª R. pelo menos até 26.09.2005”.
Que João (…) e Sandra (…) são filhos dos 1.ºs Réus resulta provado das certidões juntas aos autos em 13/02/2013, sob a ref.ª Citius 5112436.
Que a sociedade adquirente, (…), Lda. [2.ª Ré] teve anteriormente como gerente o 1º Réu e que tem como sócios a 1ª Ré mulher, os dois filhos do casal e uma sociedade anónima denominada Vila (…), S. A., representada pelo mandatário dos 1.ºs Réus, Dr. José (…), é facto que resulta da certidão permanente junta à PI como Doc. n.º 7.
Que o 1º Réu A chegou a exercer as funções de gerente da 2ª Ré, pelo menos até 26/09/2005 é facto atestado pelo doc. n.º 8 junto com a PI.
Resulta, ainda, demonstrado nos autos que as sociedades (…), Lda. [2.ª Ré] e Vila (…), S.A. têm a sua sede na Rua da  (…), em Lisboa, precisamente onde se localiza o escritório do Sr. Dr. José (…) [confrontar certidão permanente junta com a PI sob Doc. 7 com as procurações forenses juntas com a contestação dos 1.ºs Réus – ref.ª Citius 2722510, de 17/10/2011].
Daí que se acompanhe a Apelante na conclusão, que necessariamente tem de se extrair da conjugação de todos estes elementos de prova, de que as pessoas singulares que controlam a sociedade (…), Lda., adquirente do imóvel, são as mesmas: os 1.ºs Réus e o seu Mandatário.
É neste contexto de relações entre a sociedade adquirente e devedores que tem de ser apreciado se ao negócio impugnado [compra e venda do imóvel] presidiu ou não uma intenção finalística específica, qual seja a de evitar que o bem alienado viesse a responder pela satisfação do crédito da Apelante.
Que o acto impugnado causou prejuízo à credora CGD, aqui Apelante, parecem não restar dúvidas, pois o valor do seu crédito excede largamente o valor acautelado pela garantia cujo privilégio que, quanto a juros, apenas abrange apenas os relativos a três anos [art.º 693.º, n.º 2, do Cód. Civil], sendo que o incumprimento se iniciou em 1998 e são devidos juros desde então sobre o capital em dívida. Conforme se extrai da certidão predial junta com a PI a hipoteca voluntária constituída a favor da CGD está inscrita pela Ap. 65/100584 e garante os créditos seguintes: Valor de capital: 2.500.000$00; Saldo devedor: 7.633.665$00; Juro anual até 32,5%; Despesas: 100.000$00; Montante máximo 15.176.488$00.
Ora, estando em dívida juros que excedem largamente três anos, a CGD, em consequência da alienação do imóvel, não obstante a hipoteca constituída a seu favor, ficou impossibilitada de ser ressarcida por inteiro do seu crédito de juros, na medida em que os 1.ºs Réus não dispõem de outro património para pagar a dívida em causa.
Conforme resulta da certidão de ónus e encargos junta à PI sob o doc. 3, bem como da própria escritura de compra e venda [doc. 6 junto à PI], o imóvel, à data da escritura, não só se encontrava hipotecado à CGD, mas também penhorado por dívidas à Caixa e à Fazenda Nacional (Ap. 13 de 1999/03/01 – embora referente a execução anterior já extinta – e Aps. 8 de 2006/08/02 e 23 de 2006/10/10).
Como bem refere a Apelante e resulta das regras de experiência comum, “não se pode conceber que alguém logre vender e alguém se predisponha a comprar um imóvel nessas condições, sem se encontrar assegurado o cancelamento dos ónus e encargos”.
Não se olvida que os 1.ºs Réus sempre negaram a dívida, afirmando que já haviam procedido à sua liquidação integral em 2002. No entanto esta sua tese não ficou provada e nem sequer encontra qualquer suporte ou sustentação nas condutas por si adoptadas posteriormente a 2002, se analisadas segundo as regras da lógica e da normalidade.
Como aceitar que os 1.ºs Réus, pessoas ligadas ao negócio imobiliário, estando convictos da liquidação integral, em 2002, do crédito contraído junto da CGD, não tivessem diligenciado junto desta credora pelo distrate/cancelamento da hipoteca?
Como aceitar que em 2006, decorridos quatro anos sobre a alegada regularização e liquidação da dívida à CGA, tivessem alienado o imóvel onerado com essa mesma hipoteca que, segundo a sua tese, já devia ter sido cancelada?
Na audiência de julgamento, o filho dos 1.ºs Réus, João (…), e a testemunha Frederico (…) afirmaram que o objectivo do negócio foi dar o imóvel em garantia de um alegado empréstimo que este último fizera aos 1.ºs Réus e que quando fosse feito o pagamento desse empréstimo o imóvel retornaria à propriedade dos 1.ºs Réus.
Trata-se de uma tese peregrina, que surgiu pela primeira vez na audiência, e que não tem qualquer ponta de credibilidade.
Em primeiro lugar, as testemunhas contradisseram-se quanto ao valor mutuado: enquanto João (…) falou em €300.000,00 a testemunha Frederico (…) afirmou ter emprestado €100.000,00;
Depois, não é crível, segundo a lógica e as regras de experiência comum, que alguém empreste €100.000,00 verbalmente e sem nada convencionar quanto ao reembolso [prazo, prestações, etc.]. Frederico (…) disse que não foram acordas prestações com os 1.ºs Réus e que estes pagavam o que podiam e quando podiam e que o acordo foi verbal;
Assim como não é crível que o alegado mutuante [Frederico…] aceite em garantia a venda de um imóvel a uma sociedade terceira […, Lda.], da qual são sócios os próprios devedores, sendo que o mutuante não demonstra ter qualquer relação com essa sociedade.
Tudo a indiciar, claramente, que os 1.ºs Réus, que com o seu Mandatário controlam a sociedade (…), Lda., utilizaram este sociedade para porem o imóvel ao abrigo dos credores - a CGD e a Fazenda Nacional.
No caso, com o objectivo de evitar que a CGD lograsse a satisfação integral do seu crédito de juros, na parte que excedesse os três anos cobertos pela garantia, seja furtando o imóvel à penhora, seja, na hipótese de esta ter lugar, impedindo a satisfaao do crédito da CGD não coberto pela garantia [hipoteca].
Donde, considerar-se procedente, também nesta parte, a impugnação da matéria de facto.
Devendo, ainda, aditar-se aos Factos Provados o alegado pela Autora nos artigos 13.º, 14.º e 17.ª (2.ª parte) da PI, face à sua relevância para a boa decisão da causa.
Face ao exposto, decide-se:
«a) Eliminar dos Factos Não Provados: “Que os Réus tivessem outorgado a referida escritura para furtarem o referido imóvel a penhora no âmbito da execução referida em C)
b) Aditar aos Factos Provados, sob as alíneas N), O) e P), a seguinte factualidade:
«N) São sócios da 2ª Ré a 1ª Ré B (…) e os filhos dos 1ºs Réus, João (…) e Sandra (…);
O) O 1º Réu, A,  chegou a exercer as funções de gerente da 2ª Ré pelo menos até 26/09/2005;
P) Os Réus outorgaram a escritura aludida em D) para furtarem o imóvel à penhora no âmbito da execução referida em C) e/ou evitarem a satisfação integral do montante em dívida à Autora».
                                                 **
B.2. Segunda questão: Deve a sentença ser revogada e substituída por outra que julgue procedente a acção?
A Autora, ora Apelante, na invocada e demonstrada qualidade de credora dos 1ºs Réus, lançou mão da impugnação pauliana do negócio jurídico patrimonial (compra e venda) celebrado entre estes devedores e a 2.ª Ré […, Lda.]
A impugnação pauliana consiste na faculdade que a lei concede aos credores de atacarem judicialmente certos actos válidos ou mesmo nulos celebrados pelos devedores em seu prejuízo.[5]
Nos termos dos artigos 610º e 612º do Código Civil a impugnação pauliana depende da verificação simultânea destes requisitos:
- existência de determinado crédito;
- anterioridade desse crédito em relação à celebração do acto ou, sendo posterior, que tenha sido o acto realizado dolosamente visando impedir a satisfação do direito do futuro credor;
- resultar do acto a impossibilidade para o credor de obter a satisfação plena do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade;
- que tenha havido má-fé, tanto da parte do devedor como do terceiro, tratando-se de acto oneroso, entendendo-se por má-fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.
Como bem observa ANTUNES VARELA (in «Das Obrigações em Geral», voI. II, 4ª ed., 1990, p. 421), «a lei não se limita a conceder ao credor o direito de promover a execução forçada da prestação no caso de o devedor não cumprir voluntariamente e de se ressarcir à custa do património do obrigado, se a realização coactiva da prestação não for possível». «Concede-lhe ainda os meios necessários para o credor defender a sua posição contra os actos praticados pelo devedor, capazes de prejudicarem a garantia patrimonial da obrigação, diminuindo a consistência prática do seu direito de agressão sobre os bens do obrigado» (ibidem). Ora, um dos instrumentos de tutela predispostos na lei para a preservação da consistência prática do direito de crédito é precisamente a chamada impugnação pauliana, a qual confere ao credor o poder de reagir contra os actos praticados pelo devedor (ainda que válidos) que envolvam diminuição da garantia patrimonial, seja porque diminuam o activo, seja porque aumentem o passivo do património do devedor (A., ob. e vol. cit., pp. 422 e 434).
São dois os requisitos gerais exigidos pela lei para que o credor possa lançar mão da impugnação pauliana: a) que o acto impugnado cause prejuízo à garantia patrimonial do crédito; b) que o crédito seja anterior ao acto impugnado.
«O requisito da nocividade concreta do acto (impugnado) vem explicitado, com maior precisão, no texto da alínea b) do artigo 610º (do Código Civil), segundo a qual é necessário que do acto resulte a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade» (A. VARELA, ob. e vol. cit., p. 435 «in fine» e 436).
«Confrontando ( ... ) a redacção da alínea c) do artigo 610° com o texto do artigo 1033° do Código Civil de 1867 («O acto ou contrato verdadeiro, mas celebrado pelo devedor em prejuízo do seu credor. pode ser rescindido a requerimento do mesmo credor, se o crédito for anterior ao dito acto ou contrato, e deste resultar insolvência do devedor ), à luz dos trabalhos preparatórios do Código vigente, fácil se torna verificar que, com a sua nova formulação, quis a lei abranger os casos em que, não determinando embora o acto a insolvência do devedor, dele resulte, no entanto, a impossibilidade prática, de facto, de pagamento forçado do crédito» (A. VARELA, ibidem). «É o caso típico do devedor que vende o único imóvel capaz de garantir com segurança, através da sua penhora, a satisfação integral dos seus débitos, pensando na fácil subtracção do preço à acção da justiça» (A. VARELA, ibidem). Mete-se pelos olhos dentro de qualquer observador minimamente atento que «o Código de 1966, através da nova formulação do requisito, pretendeu deliberdadamente colocar ao alcance da pauliana os actos deste tipo, que, não provocando embora, em bom rigor, a insolvência do devedor, podem criar para o credor a impossibilidade de facto (real, efectiva) de satisfazer integralmente o seu crédito, através da execução forçada» (A., ob. e vol. citt., p. 437).
A data relevante para determinar se do acto resultou ou não, para o credor impugnante, a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade é a do acto impugnado.
Quanto ao onus probandi relativo ao prejuízo da garantia patrimonial dos credores, o art.º 611° do Código Civil abre uma excepção à regra geral sobre o ónus da prova consagrada no n.º 1 do art.º 342º do mesmo diploma e reparte-o nos seguintes termos: ao credor (impugnante) cabe a prova do montante do passivo do devedor; a este (ou ao terceiro, eventualmente interessado na manutenção do acto) compete, por sua vez, demonstrar que possui bens penhoráveis, de valor igual ou superior.
Esta excepção encontra o seu fundamento na dificuldade ou impossibilidade que o credor sempre teria de provar que o devedor não tem bens.
Relativamente à exigência (constante da alínea a) do cit. art.º 610° do Código Civil) de que o crédito seja anterior ao acto impugnado, a sua razão de ser está em que «só os titulares de créditos anteriores a esse acto se podem considerar lesados com a sua prática, porque só eles podiam legitimamente contar com os bens saídos do património do devedor como valores integrantes da garantia patrimonial do seu crédito» (A. VARELA in ob. e vol. citt., p. 438).
Neste ponto, o Código Civil de 1966 introduziu, porém, uma relevante inovação, ao admitir, embora a título excepcional, a impugnação pauliana de actos anteriores à própria constituição do crédito quando os mesmos tenham sido praticados com dolo com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor (cfr. a parte final da cit. al. a) do art.º 610°). Os casos que a lei pretendeu, assim, abranger são «aqueles em que o devedor, para obter o crédito, faz dolosamente crer ao credor que certos bens por ele alienados ou onerados ainda pertencem ao seu património, como bens livres de quaisquer encargos» (A., ob. e vol. citt., p. 439).
Porém, as condições que devem verificar-se para que proceda a impugnação pauliana são diversas, consoante se trate de actos praticados a título oneroso ou a título gratuito.
Tratando-se de actos a título oneroso, a lei exige ainda, a par dos dois requisitos de ordem geral acima enunciados, um outro requisito adicional: terem o devedor e o terceiro agido de má-fé (cf. a 1ª parte do n.º 1 do art.º 612° do Cód. Civil); pelo contrário, relativamente aos actos gratuitos, a impugnação procede, mesmo que o devedor e o terceiro agissem de boa-fé (cfr. a parte final do mesmo preceito).
Como notam PIRES DE LIMA-ANTUNES VARELA (ob. e vol. citt., p. 628), «a diversidade de regimes tem explicação fácil: sendo o acto gratuito, há sempre prejuízo para o credor, e prejuízo injustificável, porque quem procura interesses (certat de lucro capiendo, como diziam as fontes romanas) deve ceder a quem procura evitar prejuízos (certat de damno vitando: nemo liberalis nisi liberatus); sendo o acto oneroso, em tese geral não há prejuízo para o credor, porque à prestação cedida há-de corresponder, por conceito, uma prestação de valor equivalente». «Deve, portanto, exigir-se mais alguma coisa». «E essa mais alguma coisa é a má-fé» (ibidem).
Sobre o sentido e verdadeiro alcance do conceito de má-fé, prescreve o n.º 2 do mesmo art.º 612º que se entende por má fé «a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor».
O confronto entre esta fórmula legal da má-fé e a definição do mesmo conceito consagrada no 2º período do art.º 1036º do Código Civil de 1867 («A má fé, em tal caso, consiste no conhecimento desse estado», sendo o estado aqui referido o de insolvência definido no 1º período da mesma disposição) logo evidencia que elas diferem num duplo aspecto.
«Por um lado, a lei vigente afasta-se de caso pensado (...) da ideia de que a pauliana se encontra ligada forçosamente à insolvência do devedor, apelando antes para a impossibilidade de facto da satisfação integral do crédito como consequência do acto» (A. VARELA, ob. e vol. cit., p, 440). «Por outro lado, não basta que o devedor e o terceiro, partes no acto realizado, tenham conhecimento da situação precária do devedor, porque podem eles ter até fundadas razões para crer que o acto virá a provocar uma melhoria dessa situação» (ibidem). «Essencial é que o devedor e o terceiro tenham consciência do prejuízo que a operação causa aos credores» (ibidem). Mas «a formulação da lei também se demarca nitidamente da posição dos autores que identificam a má fé com a intenção de prejudicar os credores» (ibidem). Com efeito, «o devedor e o terceiro podem agir com outra intenção, em busca dum outro objectivo, mas com perfeita consciência do prejuízo que vão causar» (ibidem). «E tanto basta, no pensamento da lei, para que a pauliana proceda» (ibidem).
Em resumo - como concluem PIRES DE LIMA-ANTUNES VARELA (ob. e vol. cit., p. 629) - «pode dizer-se que o conceito (de má-fé) adoptado representa uma solução intermédia entre o antigo conceito psicológico do conhecimento da insolvência e o requisito bem mais apertado da intenção de prejudicar (animus nocendi) os credores».
Assentes estas premissas, vejamos agora se os requisitos acabados de enunciar concorrem no caso dos autos.
Vejamos, então, se se verifica ou não o primeiro dos requisitos da impugnação pauliana.
i) Da existência do crédito da Autora:
Estão em causa obrigações resultantes de um mútuo com hipoteca celebrado entre a Autora e os 1.ºs Réus.
Decorre dos factos provados, nomeadamente dos aditados sob alíneas I), J) e K) que os 1.ºs Réus incumpriram com as obrigações assumidas perante a mutuária CGD e que, à data da alienação do imóvel, pendia contra estes uma execução movida por aquela credora, para cobrança da dívida emergente do mútuo, a qual se cifrava em € 29.053,41 [€ 14.511,85 de capital e €14.541,56 de juros], deduzidos da quantia de €1.905,83, conforme sentença definitiva proferida na oposição à execução.
O art.º 614.º, n.º 1, do Cód. Civil admite que o credor, cujo crédito já se constituiu, mas ainda não se venceu, possa recorrer à impugnação pauliana. Considera-se que havendo uma certeza sobre a existência do crédito, apesar deste não ser ainda exigível, o perigo da perda dos bens e das provas necessárias à demonstração dos requisitos da impugnação pauliana justificava que se atribuísse ao seu titular a possibilidade de recorrer a este meio de defesa da sua garantia patrimonial [cfr. Por todos, VAZ SERRA, em Responsabilidade patrimonial, no B.M.J., n.º 75, págs 210-. 211 296].
Por maioria de razão, também o titular de crédito simplesmente ilíquido tem o direito de utilizar a impugnação pauliana [VAZ SERRA, estudo citado, pág. 211, nota 296 e ALMEIDA COSTA, em Direito das obrigações, pág. 862, nota 1], uma vez que nesta situação o crédito já é certo e exigível, faltando apenas determinar o seu exacto montante [cfr. JOÃO CURA MARIANO, em Impugnação pauliana, 2.ª edição Revista e Aumentada, págs. 166 a 168].
Nesta conformidade e à guisa de conclusão, considera-se verificado o enunciado requisito da existência do crédito [ilíquido] invocado pelo Autora.
b) Da anterioridade do crédito em relação ao acto impugnado:
O segundo requisito da impugnação pauliana é a anterioridade do crédito em relação ao acto impugnado. Efectivamente, tal como sucedeu seguramente no caso vertente, aquando da constituição do crédito, o credor toma normalmente em consideração a situação patrimonial do devedor, pelo que é com essa situação que deve poder contar para efeitos da garantia geral. Por esse motivo, se admite que o credor possa reagir contra posteriores actos do devedor que afectem essa garantia, já dificilmente se compreenderia que a sua reacção se estendesse aos actos anteriores à constituição do crédito. Conferir essa amplitude aos direitos do credor seria inaceitável, uma vez que tal implicaria fazer abranger na garantia patrimonial bens que já não pertenciam ao património do devedor no momento em que o crédito se constituiu e com os quais o credor não poderia contar. É apenas relevante a data da constituição do crédito, e não a data em que o credor obteve um título executivo sobre o devedor, dado que essa circunstância não se inclui entre os pressupostos da impugnação pauliana. A lei admite, porém, uma excepção a essa regra, que consiste na circunstância de o acto ter sido realizado dolosamente (dolus decipiendi) com o fim de prejudicar a satisfação do direito do futuro credor. Será, por exemplo, o caso de o devedor solicitar a concessão de um mútuo, que lhe é deferida, atendendo à sua situação patrimonial mas, antes da efectiva celebração do contrato, proceder à alienação de todos os seus bens. Nestes casos de fraude, em que é manifesto que o acto teve em vista precisamente defraudar a garantia com que contava o credor, justifica-se que o credor possa reagir através da impugnação pauliana, apesar da anterioridade do acto em relação à constituição do crédito.[6]
O critério a atender para a fixação da data de nascimento do crédito, para o efeito de se verificar a anterioridade do crédito relativamente ao acto que se pretende impugnar, varia em consonância com a sua origem e natureza. Assim, por exemplo, o crédito resultante de contrato nasce quando a declaração de aceitação é do conhecimento ou é cognoscível pela contraparte (art.º 224º, n.º 1, 1ª aparte, do CC) e o crédito de indemnização por responsabilidade civil nasce quando se verifica o evento determinante da obrigação de indemnizar (artigos 483º e 562º do CC).
Não aludindo o art.º 610º, n.º 1, do Código Civil, ao vencimento como requisito da impugnação, limitando-se a exigir “ser o crédito anterior ao acto”, não será necessário que o crédito já se encontre vencido para que o credor possa reagir contra os actos (de diminuição de garantia patrimonial) anteriores ao vencimento, contanto que a constituição do crédito seja anterior ao acto.[7]
Revertendo ao caso concreto e tendo presentes os anteriores considerandos, logo se alcança que o crédito da Autora é manifestamente anterior ao negócio impugnado (escrituras de compra e venda de 29/12/2006), pois que, como se viu, um crédito derivado de um contrato de mútuo celebrado em 30/10/1984 [alínea A) dos Factos Provados].
Termos em que se considera verificado igualmente o requisito da anterioridade do crédito do Autora relativamente ao acto impugnado.
Indaguemos, de seguida, da verificação ou não do terceiro requisito da impugnação pauliana.
c) Da ocorrência de lesão da garantia patrimonial:

A data relevante para determinar se do acto resultou ou não, para o credor impugnante, a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito é a do acto impugnado[8].
Quanto ao onus probandi relativo ao prejuízo da garantia patrimonial dos credores, o art.º 611° do Código Civil abre uma excepção à regra geral sobre o ónus da prova consagrada no n.º 1 do art. 342º do mesmo diploma[9] e reparte-o nos seguintes termos: ao credor (impugnante) cabe a prova do montante do passivo[10] do devedor; a este (ou ao terceiro, eventualmente interessado na manutenção do acto) compete, por sua vez, demonstrar que possui bens penhoráveis, de valor igual ou superior.
Esta excepção encontra o seu fundamento na dificuldade ou impossibilidade que o credor sempre teria de provar que o devedor não tem bens[11].
Assentes estas premissas, vejamos então se o requisito enunciado – da ocorrência de lesão da garantia patrimonial - ocorreu no caso dos autos.
Ora, no que concerne ao referido requisito de ordem geral exigido pelo art.º 610º do Código Civil - resultar do acto impugnado a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade, a matéria factual provada não deixa margem para dúvidas quanto à sua verificação no caso sub judice.
A Autora logrou, portanto, provar que é titular dum crédito de juros sobre os 1ºs Réus vencidos posteriormente ao prazo de três anos coberto pela hipoteca – ou seja, posteriormente a 2001, atendendo a que o incumprimento se iniciou em 1998.
Logrou, outrossim, provar - como lhe competia, por força do disposto nos citados artigos 611º e 614.º do Código Civil – a existência do crédito, ainda que ilíquido.
Ora, como nem os 1ºs Réus devedores/vendedores, nem a 2ª Ré - terceira/adquirente lograram, por seu turno, fazer a prova de que os 1ºs Réus possuem bens penhoráveis de valor igual ou superior ao das suas dívidas - como lhes competia nos termos da parte final do mesmo art.º 611° -, está demonstrado que do acto impugnado (escritura de 29/12/2006) resultou para a credora, ora Autora a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou, pelo menos, o agravamento dessa impossibilidade, que já estava verificada, aliás, na execução que lhes movida pela CGD.
Por conseguinte, está demonstrada no caso em apreço a verificação do terceiro requisito - ocorrência de lesão da garantia patrimonial.
Apreciemos, de seguida se se mostra preenchido no caso em apreço o quarto e último requisito de procedência da impugnação pauliana:
d) Da existência de má-fé dos 1ºs Réus e da 2.ª Ré no negócio impugnado:
Estabelece o artigo 612.º que o ato oneroso só estará sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má-fé. Se o ato for gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa-fé. Esta dispensa da má quanto aos actos gratuitos justifica-se pelo facto de existir um maior interesse na protecção do cumprimento das obrigações do que na protecção de liberalidades, uma vez que nestas não existe qualquer contrapartida, não podendo prevalecer sobre os direitos do credor.
O legislador procedeu assim a uma ponderação de interesses, considerando “mais digno de protecção o interesse dos credores (que procuram evitar prejuízos) do que o interesse de terceiro (que procura vantagens)” – vide ALMEIDA E COSTA, Direito das Obrigações, p. 864. Se o ato é gratuito, irá existir sempre prejuízo para o credor, na medida em que não entrou no seu património uma contraprestação, o que faz com que os interesses dos credores prevaleçam sobre os terceiros. A punibilidade da acção fraudulenta por parte do devedor enquanto fundamento da acção pauliana tem vindo a perder lugar para a utilização deste instituto como mecanismo de protecção da garantia geral do direito de crédito[12].
O facto de existir um princípio da autonomia da vontade tendo como consequência uma livre iniciativa dos particulares, trouxe a necessidade de prever instrumentos que assegurassem o efectivo cumprimento das obrigações, de forma a garantir o respeito pelo referido princípio.
O Código de Seabra previa que a má-fé consistia no conhecimento do estado de insolvência do devedor, estabelecendo que existia insolvência, quando a soma dos bens e créditos do devedor, estimados no justo valor, não iguala a soma das suas dívidas. Assim, era suficiente que o devedor tivesse consciente da sua débil situação económica, assim como o terceiro adquirente, para que o ato lesivo da garantia dos credores fossem considerados de má-fé.
Já GUILHERME MOREIRA[13], entendia que não bastava o conhecimento do estado de insolvência, exigindo-se a consciência do prejuízo que o acto causava ao credor. Neste sentido se veio a manifestar também a restante doutrina e jurisprudência. VAZ SERRA[14] debruçou-se sobre a discussão na doutrina entre a indispensabilidade da intenção de prejudicar os credores, a consciência do prejuízo causado aos credores e o conhecimento do estado de insolvência. O autor começa por excluir que se exija a intenção de prejudicar (animus nocendi), uma vez que, caso tal fórmula fosse exigida, seriam bastante raros os casos de procedência da acção, uma vez que se revela bastante difícil a prova deste requisito – o acto pode ser praticado sem aquela intenção e existir todavia, consciência do prejuízo. Qual das duas restantes deveria então prevalecer para VAZ SERRA? Nas palavras do autor[15]: “Aceita a primeira, pode haver o perigo de o devedor ou o terceiro, sabendo que o devedor está ou se torna insolvente, julgarem seriamente que não prejudicam os credores porque a fortuna daquele vai melhorar, e enganarem-se nas suas previsões. Ficam, assim, os credores sujeitos aos pensamentos, mais ou menos falíveis, do devedor ou do terceiro, que, tendo embora motivos sérios para supor que os credores não virão a ser prejudicados, podem ver a fortuna do devedor piorar ou manter-se precária. Em tal hipótese, os credores não poderiam utilizar-se da acção pauliana. Mas, inversamente, a simples exigência do conhecimento do estado de insolvência também tem o inconveniente de levar o devedor e o terceiro a não praticarem actos, que poderiam vir a ter como efeito uma melhoria da situação económica do devedor e, portanto, um benefício para os seus credores. Se o devedor e o terceiro sabem que, pelo facto de conhecerem a insolvência daquele, o acto pode ser impugnado, poderão ser naturalmente levados a não o realizar, com receio de que, correndo mal as coisas, apesar dos bons motivos que têm para admitir que corram bem, os credores viram atacá-lo com a acção pauliana.”
Assim, o autor optou por excluir a fórmula que exigia a intenção de prejudicar, deixando a decisão de optar entre a consciência do prejuízo ou o conhecimento da insolvência à doutrina e à jurisprudência.
A actual redacção do n.º 2 do artigo 612.º do C.C. traduziu-se na reflexão de VAZ SERRA ao estabelecer que – “entende-se por má fé a consciência do prejuízo que o ato causa ao credor”. Pode assim afirmar-se que a má-fé é entendida como a consciência de que o ato em causa vai provocar a impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou um agravamento dessa impossibilidade[16].
Este conceito de má-fé traduz-se numa má-fé subjectiva ou em sentido subjectivo, também conhecida por sentido psicológico, que consiste na convicção do agente de que não tem um comportamento conforme ao direito[17].
A consciência do prejuízo apresenta-se, assim, como um resultado de um raciocínio em que o devedor e o terceiro adquirente devem ter noção da situação patrimonial em que se encontra o primeiro e dos efeitos provenientes do ato que irão praticar, juntamente com a percepção de que este pode prejudicar a garantia patrimonial do credor e impossibilitá-lo de obter a satisfação do seu crédito[18].
Ora, a factualidade que emergiu provada conduz inexoravelmente à procedência da impugnação pauliana relativamente ao negócio jurídico patrimonial (compra e venda de 29/12/2006, celebrada entre os 1.ºs Réus e a 2.ª Ré), pois resultaram provados factos que permitem concluir pelo preenchimento de todos os requisitos da impugnação pauliana, designadamente que os 1ºs Réus e a 2.ª Ré actuaram de má-fé, ou seja, conluiados entre si e com consciência de que esse acto prejudicava a garantia patrimonial da credora [factos provados sob as alíneas A), B), D), I), J) e K) quanto à existência e anterioridade do crédito; sob as alíneas C), D), N), O) e P) relativamente à má-fé dos 1ºs e 2.ª Ré; e sob as alíneas L), quanto ao requisito da impossibilidade ou agravamento de satisfação do crédito da Autora].
O complexo de factos provados permite concluir que a 2.ª Ré actuou de má-fé, ou seja, de conluio com os 1ºs Réus (devedores e sócios da 2.ª Ré, sociedade que controlam juntamente com o seu Mandatário) e com consciência de que esse acto prejudicava a garantia patrimonial da credora. Ao celebrarem este negócio, retirando da esfera patrimonial dos 1.ºs Réus o imóvel e transferindo-o para a titularidade da sociedade 2.ª Ré (…, Lda.), os Réus não podiam ignorar que, se não impossibilitavam, pelo menos dificultavam ou agravavam sobremaneira a satisfação integral do crédito da Autora [na parte de juros não garantida pela hipoteca].
A 2.ª Ré, “terceiro adquirente” comprou um imóvel com hipoteca e penhora a favor da Caixa Geral de Depósitos (e também à Fazenda Nacional), pelo que não podia desconhecer a existência do crédito. Forçosamente, por regra de experiência comum e de presunção judicial, terá que se concluir que todos os Réus agiram em conluio e de má fé, tendo consciência do prejuízo que o acto causou ao credor.
Entende-se, por isso, que a Autora logrou demonstrar o requisito da má-fé, para efeitos do n.º 2 do artigo 612º do Cód. Civil, quanto ao referido negócio jurídico patrimonial.[19]
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Procede, portanto, a apelação.
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IV - Decisão                                       
Em conformidade com o exposto, decide-se:
a) Julgar procedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos decididos supra;
b) Julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida;
c) Julgar procedente, por provada, a acção e em consequência decretar a ineficácia em relação à Autora do acto de compra e venda de imóvel celebrado em 29/12/2006, de modo a que a Autora se possa pagar à custa do valor desse imóvel, podendo executá-lo no património da 2.ª Ré (…);
d) Condenar os Réus nas custas da acção e do recurso - artigo 527º do CPC.
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Registe e notifique.
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Lisboa, 28 de Fevereiro de 2019
                    
Manuel Rodrigues
Ana Paula A. A. Carvalho
Gabriela de Fátima Marques

[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil. Almedina, 2017, 4ª edição revista, pág. 109.
[2] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 3.Dez.1997, proc. 9710990, disponível in www.dgsi.pt.
[3] Obra citada, pp. 287.288.
[4] 1 Cf. o Acórdão da Relação de Lisboa de 26.01.2017, proferido no âmbito do processo n.º 1570/13.9TBCSC-A-2, disponível em www.dgsi.pt
[5] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª ed., 857 e segs.
[6] Vide Menezes Leitão, in Garantias das Obrigações, 4ª ed., 2012, Almedina, pp. 66-67.
[7] Antunes Varela, em “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 4ª ed., Coimbra, 1990, p. 438 nota 1.
[8] Cf., neste sentido, A. VARELA (in ob. e vol. cit., p. 437) e, na jurisprudência, o Ac. do STJ, de 19/12/1972 (publicado in BMJ, n.º 222, p. 386).
[9] De harmonia com a qual, «em princípio, numa acção de impugnação devia caber inteiramente ao autor fazer prova dos requisitos necessários à procedência do pedido (…) e, portanto, devia caber-lhe não só a prova do montante da dívida e da anterioridade do crédito, como da diminuição da garantia patrimonial nos termos da alínea b) do artigo 610º» (PIRES DE LIMA – ANTUNES VARELA in “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed. 1987, pp. 627-628).
[10] Como advertem PIRES DE LIMA-ANTUNES VARELA (in ob. e vol. citt., p. 628), «o artigo 611º impõe ao credor o ónus de provar o montante das dívidas – e não apenas da dívida, de que ele é titular activo»
[11] Cf., neste sentido, PIRES DE LIMA-ANTUNES VARELA (in ob., vol. e loc. ultima citt.), e JACINTO RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código Civil”, vol. III, 1993, p. 77).
[12] Neste sentido, MENEZES CORDEIRO, in Da Boa fé no Direito Civil, vol. I, p. 496. O autor ilustra que no período romanístico, o consilium fraudis, ou seja a pactuação entre o devedor e terceiro para prejudicar a garantia patrimonial do credor, encontrava-se entre os requisitos que permitiam a impugnação pauliana. A demonstração desta fraude apresentava grandes dificuldades, o que fez com que o Código de Seabra permitisse a impugnação em qualquer caso dos atos gratuitos – artigo 1035.º - e dos atos onerosos, quando houvesse má fé, sendo esta definida como o conhecimento do estado de insolvência do devedor – artigo 1036º.
[13] LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Volume II, nota 615, e GUILHERME MOREIRA, Instituições de Direito Civil Português, Vol. II, p. 170 e seguintes.
[14] Responsabilidade Patrimonial, B.M.J., n.º 75, p. 213.
[15] Responsabilidade Patrimonial, B.M.J., n.º 75, pp. 213-214.
[16] JOÃO CURA MARIANO, Impugnação Pauliana, p. 199.
[17] ALMEIDA E COSTA in Anotação ao Acórdão do STJ de 23 de Janeiro de 1992, Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3846, ano 127, p. 275.
[18] JOÃO CURA MARIANO, obra citada, p. 199.
[19] No sentido de que a má-fé não abrange os casos de negligência inconsciente, vide, por todos, o Ac. do S.T.J. de 13-10-2011, relatado por Lopes do Rego, Processo n.º 116/09.8T2AVR-Q.C1.S1), disponível em www.dgsi.pt.