Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
938/08.7PCCSS.L1-3
Relator: CONCEIÇÃO GONÇALVES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MEDIDA DE PENA
PRISÃO EFECTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – Preenche o tipo legal da previsão do art. 152.º, nº 1 e 2, do Código Penal a prática de qualquer acto de violência que afecte a saúde, física, psíquica ou emocional, do cônjuge vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida naquela realidade conjugal.
II – A reiteração dos actos como elemento integrador do tipo foi expressamente afastado na nova redacção do art. 152.º que no n.º 1 pune quem [no caso do crime de maus tratos a cônjuge a pessoa que tenha esse dever de solidariedade conjugal] “de modo reiterado ou não”.
III – Provando-se que, desde o início da vida em comum, que perdurou cerca de dez anos, na residência do casal, “pelo menos uma vez por mês, mas por vezes com intervalos de um mês a dois meses de ausência de agressões, o arguido agrediu fisicamente a ofendida a socos e puxões de cabelos”. ”No mesmo período de tempo, na residência do casal, por diversas vezes dirigiu à ofendida as expressões “filha da puta” e “quem matou a primeira, mata a segunda”; “Em finais de 1999, na residência do casal, o arguido agarrou a ofendida pelos ombros e empurrou-a, fazendo-a cair e bater com a face no chão”. Já depois da separação, em 2008, o arguido, dirigindo-se à ofendida, chamou-lhe “porca” e perante a recusa desta em falar com o arguido, este disse-lhe: “vai ser pior para ti, já sei onde moras”.
IV – Há que concluir que esta conduta consciente do arguido colocou seguramente em risco, de modo relevante, a saúde física e psíquica da ofendida, tornando-a vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal que se quer igualitária, conduzindo, necessariamente, os maus tratos infligidos à sua degradação enquanto pessoa.
V – Considerando o modo de actuação do arguido revelador de elevado grau de ilicitude, perdurando as agressões ao longo de cerca de dez anos, evidenciando o arguido indiferença face às consequências nefastas do crime para a saúde da ofendida, bem como o dolo directo. Tendo em conta as prementes exigências de prevenção geral que se fazem sentir neste tipo de crime, dada a frequência com que ocorre e as consequências tão negativas no seio familiar para a saúde física e psíquica do lesado, atingindo, por vezes, a própria vida, assim como as exigências de prevenção especial, evidenciadas na personalidade revelada pelo arguido, marcada pela ausência de autocrítica, de arrependimento ou interiorização do mal do crime, assim como os seus relevantes antecedentes criminais. E tendo ainda em mente as condições pessoais do arguido, encontrando-se a trabalhar, ainda que de forma irregular, e a viver com uma outra companheira de quem tem um filho de 9 meses de idade.”
VI – Acautela as exigências de tutela dos bens jurídicos em causa dentro do que é consentido pela culpa e mostra-se justa e equilibrada a fixação da pena próxima do seu limite médio de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
VII – Face à personalidade revelada pelo arguido expressa nos factos, o elevado grau de ilicitude dos mesmos, não tendo o arguido admitido a prática dos factos nem revelado qualquer arrependimento, revelando por isso não ter interiorizado o mal do crime, e considerando ainda, os seus antecedentes criminais, a pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão, não tem consistência bastante para ter reflexos sobre o seu comportamento, de modo a que, no futuro, evite a repetição de comportamentos delituosos. E a mesma conclusão se retira, ainda que sujeite a suspensão a regime de prova.
VIII – Neste quadro circunstancial, mesmo tendo em mente a situação pessoal do arguido, não convergem factos que permitam um juízo de prognose positivo sobre o comportamento futuro do arguido, mesmo com regime de prova, concluindo-se assim que a pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, desde logo, numa perspectiva de prevenção especial.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 938/08.7PCCSS.L1
3.ª Secção.

Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa.

I.RELATÓRIO.

1.No processo comum com intervenção de Tribunal Singular procedente do 1º Juízo Criminal da Comarca de Cascais, com o número supra indicado, o arguido L, com os sinais dos autos, por sentença proferida em 11/10/2010, foi condenado como autor material de um crime de maus-tratos, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1 e 2, do Código Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão, cuja execução foi declarada suspensa por igual período, sujeita a regime de prova e mediante plano individual de readaptação social a delinear pela DGRS.

2.Nessa peça processual o tribunal considerou provado o seguinte:
“1.O arguido L... e a ofendida A... viveram como se marido e mulher fossem durante período aproximado de 10 anos, tendo cessado a coabitação em data não concretamente apurada do mês de Julho de 2008.
Da referida união nasceram dois filhos, G, nascido a 27/7/2000, e P, nascida a 27/7/2001.
2.A partir de data não concretamente apurada, mas desde o início da vida em comum, pelo menos uma vez por mês, mas por vezes com intervalo de 1 mês e 2 meses de ausência de agressões, o arguido agrediu fisicamente a ofendida com socos e puxões de cabelos.
Também nesse período de tempo, na residência do casal, o arguido, por diversas vezes, dirigiu à ofendida as expressões “filha da puta”, “quem matou a primeira, também mata a segunda”.
3.Em finais do ano de 1999, em dia não concretamente apurado, na residência do casal, o arguido, por várias vezes, agarrou a ofendida pelos ombros e empurrou-a, fazendo-a cair e bater com a face no chão.
4.As agressões referidas em 2. e 3. supra foram praticadas na residência em que a ofendida e o arguido moravam, sita na Estrada da …, Alcabideche.
5.Em virtude das agressões que lhe vinham a ser infligidas pelo arguido e das mencionadas expressões que ele lhe dirigia, a ofendida, em Julho de 2008, abandonou a residência comum, levando consigo os filhos do casal.
6.Após a separação, em data não determinada, na via pública, o arguido, dirigindo-se à ofendida, chamou-lhe “porca”.
E no dia seguinte, quando a ofendida se deslocou à Escola …, a fim de ir buscar o filho de ambos, deparou-se com o arguido e perante a recusa desta em falar com o arguido, este disse-lhe: “vai ser pior para ti, já sei onde moras”.
7.Ao actuar da forma descrita nos pontos 2., 3., 5., e 6 supra, o arguido estava consciente que molestava fisicamente a ofendida, a atingia na sua honra e consideração, a atemorizava, lhe afectava a sua saúde mental.
O arguido actuou sempre deliberada, livre e conscientemente com intenção de molestara fisicamente a ofendida, de a atingir na sua honra e consideração e de lhe causar medo.
O arguido bem sabia que as suas condutas são proibidas e punidas por lei.
8.Era habitual o arguido discutir com a ofendida por achar que a residência do casal estava suja e desarrumada.
9.O arguido provem de uma família humilde.
O pai dedicava-se à pastorícia, sendo a mãe doméstica.
O pai consumia álcool em excesso, mantendo com a mulher e filhos um relacionamento conflituoso e de violência.
O arguido tem como habilitações literárias o 4º ano de escolaridade.
Começou a trabalhar com cerca e 15 anos de idade, acompanhando o pai na guarda de rebanho.
Mais tarde, passou a trabalhar na construção civil.
Actualmente faz biscates como pedreiro, com o que aufere mensalmente cerca de 600,00€, trabalhando também no campo.
A esposa fez trabalhos de limpeza.
Além dos filhos já referidos, tem uma filha com nove meses de idade.
10.O arguido já sofreu as seguintes condenações:
-A 13/02/1992, por acórdão proferido no processo comum colectivo nº 11149/91 do 3º Juízo do tribunal de Cascais, foi condenado pela prática de crimes de homicídio, roubo e furto p.p nos arts. 131º, 306, nº 1 e 5, 297º, nº 2, al c) d h), 304º, nº 1 do CP, na pena de 11 anos e 6 meses de prisão.
-Em data que se ignora, por acórdão no âmbito do processo comum colectivo nº 71/98 do 1º Juízo criminal de Cascais, foi o arguido condenado pela prática de 8 crimes de furto qualificado p.p no artº 297º do CP, praticados em Fevereiro de 1990, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa por três anos.
-A 5/12/2007, por sentença proferida no processo abreviado nº 1252/06 do 4º Juízo Criminal de Cascais, foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução ilegal p.p no artº 3º do DL nº 2/98 de 3/01, praticado a 8/12/2006, na pena de 130 dias de multa à taxa diária de €4,00, o que perfez a quantia global de €520,00.
-A 25/05/2009 por acórdão proferido no processo comum colectivo nº 178/04 do 4º juízo Criminal de Cascais, foi o arguido condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças p.p no artº 172º nº 2 do CP, praticado no ano de 2004, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa por 4 anos e 6 meses, sendo a suspensão acompanhada de regime de prova.
Não se provaram os seguintes factos:
-que durante a vida em comum, o arguido chamava “porca” à ofendida.
-que a 22/07/2008, o arguido agrediu fisicamente a ofendida.
-que após a separação do casal, o arguido chamou “puta à ofendida e lhe disse que a matava.
-que os filhos menores do casal presenciavam as agressões, ameaças e insultos cometidos pelo arguido.

3. Não se conformando com esta decisão o Ministério Público veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
“1. Nos presentes autos foi o arguido condenado pela prática de um crime de maus tratos previsto e punido no artº 152º nºs 1 e 2 do Código Penal, não beneficiando de quaisquer circunstâncias atenuantes.
2.No contexto da sociedade portuguesa actual são prementes as razões de prevenção geral, dado o crescimento do tipo legal de crime em referência e as consequências negativas no seio familiar para a saúde física e psíquica do lesado, atingindo, por vezes, a própria vida.
3.O grau de ilicitude é razoavelmente elevado, considerando a reiteração das condutas maltratantes do arguido e a indiferença evidenciada face às consequências do crime.
4.A falta de arrependimento manifestado, a falta de autocrítica, a intensidade do dolo directo e a ausência da manifestação de um propósito firme em não tornar a delinquir, exigem ao nível da prevenção especial, a aplicação de uma pena efectiva que actue preventivamente no arguido de forma a evitar o cometimento de novos crimes da mesma natureza.
5. A suspensão da execução da pena aplicada não assegura de forma adequada e suficiente as finalidades da punição na condenação pela prática do crime de maus tratos previsto no artº 152º nº 1 e 2 do Código Penal, quando o crime é cometido através de actos repetidos, quando o arguido não evidencia uma clara interiorização sobre o significado da conduta e não esteja demonstrada uma intenção firme de não a repetir.
6.Deve assim ser afastada a suspensão da execução da pena de dois anos e seis meses de prisão aplicada na douta sentença recorrida, optando-se pela aplicação de uma pena efectiva superior à aplicada, tendo sido violados pela douta decisão judicial os normativos previstos nos artigos 40º, 42º, nº1, 51º, nº 1, 70º e 71º, nºs. 1 e 2, todos do Código Penal.
Termos em que, e revogando a sentença recorrida, na parte relativa à suspensão da execução da pena e sua graduação, substituindo-a por outra que condene o arguido em pena efectiva mais gravosa”.

4.O arguido não ofereceu qualquer resposta à motivação de recurso.

5. O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo (cfr. despacho de fls.330).

6.Neste Tribunal, o Srº Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que deverá manter-se a medida concreta da pena aplicada, propendendo pela não suspensão da execução da pena, segmento que deverá merecer provimento.

7.Cumprido o artº 417º, nº 2, do CPP, o arguido não ofereceu qualquer resposta.

8.Colhidos os Vistos legais, procedeu-se à Conferência.

Cumpre, agora, decidir.

*

II-Fundamentação.

O objecto do recurso interposto pelo Ministério Público, delimitado pelas conclusões, coloca a questão da medida da pena: saber se a pena de prisão deverá ser aplicada em medida mais gravosa? E se a suspensão deverá ser revogada por inadequada?

1. Importa começar por dizer que o Digníssimo recorrente não coloca em causa a decisão proferida sobre a matéria de facto, e também se não vislumbra do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, qualquer dos vícios elencados no nº 2 do artº 410º, do CPP, cujo conhecimento sempre seria oficioso.
Deste modo, não se verificando qualquer dos vícios referidos nem existindo qualquer nulidade de conhecimento oficioso, tem-se por definitivamente fixada a matéria de facto.

2. O Direito.

2.1. O Tribunal a quo, em face da matéria de facto que deu como assente, considerou que o arguido com a sua conduta incorreu como autor material na prática de um crime de maus-tratos, p. e p. pelo artigo 152º, nºs. 1 e 2, do Código Penal, na redacção anterior à actualmente em vigor.

A protecção do cônjuge contra os maus tratos surge pela primeira vez na versão originária do Código Penal de 1982, através do nº 3 do artº 153º, vindo a sofrer alterações com a revisão do Código Penal em 1995, passando a integrar o artº 152º, o qual foi alterado pela Lei nº 65/98, de 2 de Setembro, e ainda pela Lei nº 7/2000, de 27 de Maio.
A evolução no tratamento destas matérias levou às modificações resultantes da 23ª alteração ao CP, operada pela Lei nº 59/2007, de 4/09, dando nova redacção ao artº 152º, agora baptizado com a expressão “Violência doméstica” na epígrafe. Os maus-tratos de outra natureza e as regras de segurança passaram então a ser tipificados autonomamente nos artigos 152º-A e 152º-B.
No essencial, o ilícito em causa continua a punir, em termos idênticos, a conduta do agente que inflija maus tratos físicos ou psíquicos à pessoa do seu cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, ainda que sem coabitação, esclarecendo-se agora expressamente que tal actuação pode ser “de modo reiterado ou não”, incluindo-se nos maus tratos “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”.
Conforme entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico, podemos dizer que nada se alterou, sendo os bens jurídicos protegidos a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade humana, podendo este bem jurídico ser lesado por qualquer comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge. Deste modo, e nas palavras de Plácido Conde Fernandes (In “Violência Doméstica”, Novo Quadro Penal e Processual Penal, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1º semestre de 2008, nº 8, p. 305). “O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos”. Também Taipa de Carvalho, em anotação a este artigo ( In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, pág.132). refere que a ratio do artº 152º do CP não está “na protecção da comunidade familiar, conjugal (...), mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana”, acrescentando que “o bem jurídico protegido por este crime é a saúde -bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental”.
Podemos assim dizer que preenche este crime a prática de qualquer acto de violência que afecte a saúde, física, psíquica ou emocional, do cônjuge vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida naquela realidade conjugal.
Este tem sido o sentido da jurisprudência dos nosso tribunais, considerando que o crime pode realizar-se através de uma pluralidade de actos, ou através de um único acto, que atinja a saúde física, psíquica ou moral do cônjuge e afecte a sua dignidade pessoal. No fundo, não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos, mas sim os actos, isolados ou reiterados, que apreciados á luz da vida em comum possam de modo relevante colocar em risco a saúde do cônjuge, tornando-o vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro daquele espaço de intimidade [Nestes sentido, entre outros:
-O ac. STJ de 17.10.1996 “O artigo 152º do CP não exige, para a verificação do crime nele previsto, uma conduta plúrima e repetitiva dos actos de crueldade” (in CJ STJ, Tomo3, pág.170).
-O Ac.STJ de 14.11.1997 “Só as ofensas, ainda que praticadas por uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, ou seja, que traduzam crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária por parte do agente é que cabem na previsão do artº 152º do CP” (in CJ STJ, tomo 3, pág.235)]. De qualquer modo, como vimos, a reiteração dos actos como elemento integrador do tipo foi expressamente afastado na nova redacção do artº 152º que no nº 1 pune quem (Tratando-se de um crime específico, na medida em que só pode ser levado a cabo por certas categorias de pessoas (no caso do crime de maus tratos a cônjuge, por quem tenha esse dever de solidariedade conjugal). “de modo reiterado ou não”.

Feita esta incursão, podemos dizer que nenhuma dúvida pode suscitar o enquadramento jurídico dos factos operado pelo tribunal a quo, no crime de maus-tratos entre cônjuges.
O que se apurou foi que desde o início da vida em comum, que perdurou cerca de 10 anos, na residência do casal, “pelo menos uma vez por mês, mas por vezes com intervalos de 1 mês a 2 meses de ausência de agressões, o arguido agrediu fisicamente a ofendida a socos e puxões de cabelos”. ”No mesmo período de tempo, na residência do casal, por diversas vezes dirigiu à ofendida as expressões “filha da puta” e “quem matou a primeira, mata a segunda”; “Em finais de 1999, na residência do casal, o arguido agarrou a ofendida pelos ombros e empurrou-a, fazendo-a cair e bater com a face no chão”. Já depois da separação, em 2008, o arguido, dirigindo-se á ofendida, chamou-lhe “porca” e perante a recusa desta em falar com o arguido, este disse-lhe: “vai ser pior para ti, já sei onde moras”.
Esta conduta consciente do arguido colocou seguramente em risco, de modo relevante, a saúde física e psíquica da ofendida, tornando-a vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal que se quer igualitária, conduzindo, necessariamente, os maus tratos infligidos á sua degradação enquanto pessoa.

2.2. Quanto à medida da pena e da sua substituição.
Num quadro de moldura abstracta de 1 a 5 anos (na redacção anterior), foi aplicada ao arguido a pena de 2 anos e 6 meses de prisão.
O Ministério Público, considerando “as exigências de prevenção geral e especial, a intensidade do dolo directo, a reiteração nas condutas, a ilicitude dos factos, a ausência de arrependimento sincero, as condições pessoais do arguido e as condenações sofridas”, pugna pela aplicação de pena superior à aplicada, e efectiva, porquanto a suspensão da execução da pena neste caso não assegura de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

a) Quanto à medida concreta da pena.

A determinação da medida concreta da pena faz-se em função da culpa do arguido, determinando esta o limite máximo e inultrapassável da pena, das exigências de prevenção geral, com vista a obter uma pena que tutele os bens jurídicos em causa dentro do que é consentido pela culpa, de modo a restabelecer o sentimento de segurança e a conter a criminalidade, e das exigências de reprovação especial de modo a atingir as necessidades de socialização e reintegração do agente.
Daqui resulta que a determinação da pena será feita em função das categorias da prevenção e da culpa, sendo a culpa uma censura dirigida ao agente em virtude da atitude de desvalor relativamente a certo facto, indicando sempre o limite máximo da pena. Por sua vez, o limite mínimo decorrerá de considerações ligadas á necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto. Assim decorre do artº 40º do C.P., em que a medida da pena, em primeiro lugar, é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral (moldura de prevenção), no dizer da Prof. Anabela Rodrigues.( In “O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, RDCC 12-2, Abril/Jun de 2002). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização e integração do agente ou das necessidades de intimidação e de segurança individuais.
In casu, o tribunal a quo sopesou as circunstâncias agravantes e atenuantes. Teve em conta, designadamente, o modo de actuação do arguido revelador de elevado grau de ilicitude, perdurando as agressões ao longo de cerca de 10 anos, evidenciando o arguido indiferença face às consequências nefastas do crime para a saúde da ofendida, bem como a intensidade do dolo que é directo. Teve igualmente em conta as prementes exigências de prevenção geral que se fazem sentir neste tipo de crime, dada a frequência com que ocorre e as consequências tão negativas no seio familiar para a saúde física e psíquica do lesado, atingindo, por vezes, a própria vida, assim como as exigências de prevenção especial, evidenciadas na personalidade revelada pelo arguido, marcada pela ausência de autocrítica, de arrependimento ou interiorização do mal do crime, assim como os seus relevantes antecedentes criminais. Por fim, as condições pessoais do arguido, encontrando-se a trabalhar, ainda que de forma irregular, e a viver com uma outra companheira de quem tem um filho de 9 meses de idade.
Assim, ponderados os supra citados elementos de ilicitude e de culpa e exigências de prevenção e reprovação do crime, a fixação da pena próxima do seu limite médio, parece-nos ainda capaz de acautelar as exigências de tutela dos bens jurídicos em causa dentro do que é consentido pela culpa, donde, temos a pena que foi fixada, de 2 ano de 6 meses de prisão, como justa e equilibrada.

b) Da substituição da pena de prisão.

Vejamos então se assiste razão ao Digníssimo recorrente ao pretender ver revogada a suspensão da pena de prisão?
Não merece dúvida que a grande finalidade do instituto da suspensão da pena se contem no afastamento do delinquente da prática de futuros crimes. E por isso é que, a aplicação da suspensão da execução da pena de prisão só pode e deve ser aplicada se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, o tribunal concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artº 50º, nº1, do CP).
Como bem sabemos, as finalidades da punição circunscrevem-se à protecção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade (cfr. artº 40º, nº 1, do CP), e são precisamente finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção geral e especial, que aqui estão em causa, sendo em funções dessas considerações preventivas que no caso se façam sentir que o tribunal terá de orientar a escolha da pena.
E de que modo o fará?
Em primeiro lugar, importa ponderar as exigências de prevenção geral na vertente da necessidade de protecção dos bens jurídicos, ou seja, importa que a pena de suspensão da execução da prisão não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e da estabilização das expectativas da comunidade na validade da norma violada, e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade. Em segundo lugar, importa que o tribunal se convença de que a censura expressa na condenação e a ameaça de execução da pena de prisão aplicada serão suficientes para afastar o arguido de futuros comportamentos delituosos. Ou seja, é preciso a concorrência de factos concretos que permitam formular um prognóstico favorável sobre o comportamento futuro do arguido, que apontem de forma clara a forte probabilidade de o arguido renegar a prática de futuros actos ilícitos, tendo em vista, como a letra da lei o impõe, a personalidade do agente, as suas condições de vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste.
E pode até o tribunal concluir por um prognóstico favorável á luz de considerações exclusivas de prevenção especial, e não ser de decretar a suspensão. Tal acontecerá (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 2005, págs.333 e 344) “se à suspensão se opuserem considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico (…). Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas á luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão, se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias”.
Por isso é que, serão de considerar prevalentemente as finalidades de “prevenção especial de intimidação”, na expressão do Prof. Taipa de Carvalho, ou, no equivalente dizer do Prof. Figueiredo Dias “as exigências de prevenção especial de socialização”, mas limitadas por considerações de prevenção geral, se estiver em causa a defesa irrenunciável de tutela dos bens jurídicos.

Referidos estes parâmetros de apreciação, atentemos agora no caso dos autos.
O tribunal a quo decretou a suspensão da execução da pena sujeita ao regime de prova “considerando as condições de vida do arguido e acreditando que a simples censura do facto e a ameaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Pena é que a Srª Juiz não tenha melhor esclarecido as razões da sua convicção para a opção feita, de suspender a execução da pena, ficando-se por uma fórmula tabelar.
Importa então aferir da bondade da decisão.
Como vimos, no caso dos autos, mostra-se elevado o grau de ilicitude dos factos, face ao longo período em que perduraram as agressões maltratantes, sendo graves as consequências para a saúde da ofendida em vista do desrespeito a que foi sujeita, sendo intenso o dolo directo, evidenciando o arguido indiferença face a tais consequências e nenhum sinal de autocrítica ou arrependimento, não assumindo a sua culpa, demonstrando assim não ter interiorizado o mal do crime. Depois, importa ter presente as prementes exigências de prevenção geral, tendo em conta a frequência com que ocorre a prática deste crime, com consequências muito nefastas para a saúde, física e psíquica, das pessoas violentadas. A verdade é que o fenómeno da violência doméstica no nosso País tem sido sinalizado como um problema social a exigir medidas para a sua resolução, que têm vindo a ser adoptadas, no que se insere a mais recente alteração nesta matéria através da revisão do CP de 2007, assim como a adopção de um Plano Nacional contra a Violência Doméstica, em execução o III Plano ( 2007-1010) [O III Plano Nacional contra a Violência Doméstica, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 83/2007, publicado no DR, 1ª série, nº 119, de 22 de Junho de 2007,pp. 3987 e ss. A protecção às mulheres vítimas de violência é ainda assegurada pela Lei nº 61/91, de 13/08, pelo DL nº 323/2000, de 19/12, que a regulamenta, pela Lei nº 107/99, de 3/08, que estabelece o quadro geral da rede pública de apoio às mulheres vítimas de violência doméstica, e pela Lei nº 104/2009, de 14/09 que aprova o regime de concessão de indemnização às vítimas.].
Acresce o facto de o arguido já ter sofrido anteriores condenações, designadamente, por acórdão de 13/02/1992, pela prática de crimes, de homicídio, roubo e furto p.p nos arts. 131º, 306, nº 1 e 5, 297º, nº 2, al c) d h), 304º, nº 1 do CP, na pena de 11 anos e 6 meses de prisão; a condenação pela prática de 8 crimes de furto qualificado p.p no artº 297º do CP, praticados em Fevereiro de 1990, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa por três anos; e, por acórdão de 25/05/2009, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças p.p no artº 172º nº 2 do CP (sobre a sua enteada), praticado no ano de 2004, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa por 4 anos e 6 meses, sendo a suspensão acompanhada de regime de prova. É patente a componente de violência nestes crimes (homicídio, roubo, abuso sexual sobre crianças e agora maus tratos), a evidenciar um temperamento violento, além de demonstrar que as condenações anteriores não foram suficientes para o afastar da prática de futuros crimes, sendo, pois, elevadas as exigências de prevenção especial.
Em síntese, diremos que em face da personalidade revelada pelo arguido expressa nos factos, o elevado grau de ilicitude dos mesmos, não tendo o arguido admitido os factos nem revelado qualquer arrependimento, revelando por isso não ter interiorizado o mal do crime, e ainda, os seus antecedentes criminais, não vemos como a suspensão da execução da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento, possa no futuro evitar a repetição de comportamentos delituosos. E a mesma conclusão se retira, mesmo sujeitando a suspensão a regime de prova. A verdade é que a personalidade patenteada pelo arguido, desde logo pela não assunção da sua culpa, e ausência de reflexão sobre o mal do crime, não permite, com todo o respeito, sustentar um juízo de confiança no comportamento futuro do arguido por forma a que, se vierem a deparar-se-lhe situações idênticas, não venha a delinquir. Não deixa de se anotar que o próprio relatório social de fls. 305 e segs., nas conclusões que apresenta, não deixa de ter como “pertinente manter a ausência de contactos com a sua anterior companheira”.
Neste quadro circunstancial, mesmo considerando a situação pessoal do arguido, não vemos que concorram factos que permitam um juízo de prognose positivo sobre o comportamento futuro do arguido, mesmo com regime de prova, concluindo-se assim que a suspensão da pena não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, desde logo, numa perspectiva de prevenção especial.
Assiste, assim, nesta parte, inteira razão ao recorrente, impondo-se a modificação da decisão no que tange à revogação da suspensão da pena.

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III-Decisão

Termos em que os Juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa acordam em julgar parcialmente procedente o recurso e, consequentemente, revoga-se a decretada suspensão da pena, mantendo-se o mais decidido.
Sem custas.

Lisboa, 2/03/2011.

Elaborado, revisto e assinado pela relatora Conceição Gonçalves e assinado pela Desembargadora Maria Elisa Marques.


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