Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
207/11.5TBVFC-B.L1-8
Relator: OCTÁVIA VIEGAS
Descritores: DOAÇÃO
COLAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - A doação de coisas móveis, não depende de qualquer formalidade externa, quando acompanhada da coisa doada (art. 947 do C.Civil)
- A assinatura pela donatária, a pedido dos doadores e de acordo com as suas instruções, dos documentos de transferência de uma conta bancária destes para conta daquela, configura doação manual e simultaneamente aceitação da doação.
- Nos termos do art. 2113, nº3, do C.Civil a colação presume-se dispensada nas doações manuais.
(sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

No presente processo de inventário por morte de A  e de B, veio a interessada C, nos termos do n.° 1 do artigo 1348º do Código de Processo Civil aplicável (cfr. artigo 29.° da Portaria n.° 278/2013, de 26 de Agosto, reclamar contra a relação de bens apresentada a fis. 146 a 183 (cfr. Ref.' 170888), o que fez, em apertada síntese, nos seguintes termos:

a) Na verba n.° 1 está relacionada a quantia de 136 226,52 € quando deveria estar relacionada a quantia de 372 619,61 E, por ser este o saldo actual da referida conta, resultante da soma das quantias depositadas nas contas de depósito à ordem e da conta de depósito existentes na Caixa , conforme resulta da documentação junta ao processo de prestação de contas n.° ---/----- TB------ (artigos 1.º e 2.° da reclamação).

b) O valor dos prédios relacionados nas verbas n.°s 7 a 29 não é o que consta da relação de bens, uma vez que tais prédios têm valores superiores, valores esses que foram indicados nos artigos 6. a 27.° da reclamação (artigos 3.° a 28.° da reclamação).

c) Não foram relacionados dois prédios rústicos que são propriedade do Inventariado A, os quais deverão sê-lo, pelos valores indicados (artigos 29.° 34.° da reclamação).

d) Foi relacionada pela Cabeça-de-Casal uma quantia de 2 122 254,45 € como dizendo respeito a urna doação que lhe foi feita pelos seus pais, devendo, diferentemente, tal quantia ser relacionada como activo e devendo a Cabeça-de-Casal restituí-Ia à herança.

A referida quantia estava depositada na conta Banco E com o n.° ------------- e foi transferida, no dia 25/07/2011, de acordo com ordem da Cabeça-de-Casal, para a conta n.° -------------------, também do  Banco E, não configurando tal operação uma doação feita pelos pais da Cabeça-de-Casal a esta, mas sim uma transferência ordenada pela Cabeça - de-Casal para uma conta de que também era titular.

O dinheiro em causa era propriedade do Inventariado A, embora a conta pudesse ser movimentada pela Cabeça-de-Casal, não tendo havido qualquer entrega de dinheiro do Inventariado à Cabeça-de-Casal.

Assim, não tendo havido tradição, não houve doação. Para que fosse uma doação, a dispensa das formalidades prevista no artigo 947°, n.° 2, do Código Civil só operaria se tivesse havido tradição da coisa, que não houve. Não havendo qualquer documento escrito, a doação é nula por falta de forma.

Caso fosse uma doação manual, a obrigação de colação sempre existiria pelo facto de a Cabeça-deCasal ser uma herdeira legitimária.

e) A Cabeça-de-Casal passou, em 24/06/2011, a seu favor um cheque no valor de 50 000,00 € sobre a conta referida na verba n.° 2, quantia que fez sua. Levantou em numerário, em 25/07/2011, da mesma conta, a quantia de 10 000,00 E, que fez sua. Em 11/07/2011, levantou em numerário o valor de 15 000,00 E, da mesma conta, quantia que fez sua. Em todas as três situações não houve tradição, pelo que deu a Reclamante por reproduzidos os fundamentos de Direito já referidos em 4, concluindo pela obrigação da Cabeça-de-Casal de restituir tais quantias à herança, devendo as mesmas ser relacionadas como activo (artigos 51º a 58.° da reclamação).

f) A venda de todos os animais, utensílios, viaturas e cessão dos contratos de arrendamento e de trabalho feitos pela Cabeça-de-Casal são actos de administração extraordinária ou de disposição, ineficazes relativamente à Reclamante, devendo tal ineficácia ser declarada (cfr. artigos 59.° e 60.° da reclamação).

g) Sem prejuízo do referido em 6, os animais devem ser relacionados individualmente, e não como universalidade de facto, por aplicação analógica do regime previsto para o relacionamento dos estabelecimentos comerciais e industriais (artigo 61º da reclamação).

h) O valor da venda da lavoura é o de 1100 000,00€ (artigo 63.° da reclamação).

i) Não foram relacionados bens imóveis que compõem o recheio das casas propriedade do Inventariado A, designadamente obras de pintura, mobiliário, arte sacra, porcelana e pratas (cfr. artigo 64.° da reclamação).

J) Não foram relacionadas as quantias de 957 450,00 € e de 2 948,79 E, as quais se encontram em discussão no proceso de prestação de contas n.° ....../--------- TB-------- (cfr. artigo 65.° da reclamação). Juntou trinta documentos e arrolou prova testemunhal.

1.2 - Notificada nos termos e para os efeitos do n.° 1 e 2 do artigo 1349.° do Código de Processo Civil, a Cabeça-de-Casal respondeu à reclamação apresentada, o que fez, em apertada síntese, nos seguintes termos:

a) O montante de 136 226,52 E era o existente na conta da Caixa F, estando discriminados no processo de prestação de contas n.° -----/------ TB----- os movimentos de que tal conta foi, posteriormente, alvo, uma vez que a mesma é a que tem sido movimentada a débito e a crédito no que respeita a todas as importâncias relacionadas com a herança. Tal quantia sofre várias variações mensais, pelo que o saldo actual foi declarado no processo de prestação de contas, por ser um processo dinâmico (artigos 1.º a 5.o da resposta à reclamação).

b) Os valores dos imóveis relacionados correspondem aos respectivos valores patrimoniais, sendo certo que é na conferência de interessados que ocorre a deliberação sobre o valor em que se devem computar os bens a que a reclamação se refere (artigos 6.° a 12.° da resposta à reclamação).

c) No que respeita aos dois prédios rústicos que a Reclamante alega serem propriedade do Inventariado AA, os mesmos são propriedade da Cabeça-de-Casal e do respectivo marido (artigos 13.° a 18.' da resposta à reclamação).

d) O dinheiro que foi doado à Cabeça-de-Casal era propriedade tanto do Inventariado A como da Inventariada B, ambos pais da Cabeça-de-Casal, sendo a Reclamante filha apenas de A

O referido dinheiro foi doado pelos pais da Cabeça-de-Casal a esta, o que foi feito por meio de transferência bancária, tendo os documentos respectivos sido assinados pela própria Cabeça-de-Casal – co-titular da conta dos pais - em virtude da incapacidade física dos pais para assinarem.

Os Inventariados eram, à data de 25/07/2011, pessoas idosas, com patologias crónicas que os impediam de escrever, bem como de fazer a sua higiene e comer sozinhos, necessitando, para tanto, da ajuda de terceiros.

No dia 25/07/2011, receberam a visita de dois funcionários bancários, que à casa foram chamados pelo Inventariado A para tratarem dos procedimentos para que fosse dado o referido dinheiro à Cabeça-de-Casal, tendo o Inventariado, na presença da mulher e da filha, dito aos referidos funcionários bancários que ele e a esposa queriam dar o dinheiro da conta deles no Banco E à Cabeça-de-Casal, mas lhes dizendo para tratarem de tudo o que fosse preciso para que ela ficasse com o dinheiro.

Nessa sequência, os funcionários do Banco E solicitaram à Cabeça-de-Casal que assinasse o documento da transferência do dinheiro dos pais para a conta da filha, urna vez que os Inventariados não assinavam e esta era co-titular da conta e podia movimentá-la.

O Banco executou no próprio dia, em casa dos doadores e na presença destes, a ordem dos Inventariados.

Concluiu, portanto, que houve tradição, uma vez que a doação não ocorreu em virtude de a Cabeça-de-Casal ser co-titular da conta, tanto que reconhece que o dinheiro depositado na referida conta foi propriedade dos pais até lhe ter sido doado em 25/07/2011, mas sim em virtude de um acto de disposição específico e concreto dos seus pais no dia 25/07/2011, acompanhado (ou seguido) de tradição do dinheiro.

Mais concluiu pela existência de uma doação manual, nos termos do artigo 947º, n.° 2, do Código Civil, afirmando que a tradição da coisa pode ser feita em momento diverso daquele em que é feita a declaração donatária, sem que com tal circunstância fique prejudicada a validade da doação.

Afirmou, ainda, que tal doação não está sujeita a colação, nos termos do artigo 2111º, n.° 2, do Código Civil, e que nunca foi intenção dos doadores propiciar-lhe uma antecipação do dinheiro para mais tarde o restituir, mas sim, pura e simplesmente, dar-lho, o que é uma evidência no caso da Inventariada B, a qual não tinha qualquer relação com a Reclamante (cfr. artigos 19.° a 70.° da resposta à reclamação).

e) Os três movimentos bancários referidos nos artigos 51º a 53º da reclamação foram todos efectuados em execução das instruções do Inventariado A, que pretendeu reforçar a conta a prazo existente no Banco E (com 50 000,00 E, correspondentes ao cheque emitido em 24/06/2011) e a conta à ordem existente na Caixa F (com 10 000,00 E, correspondente à quantia em numerário levanta em 25/07/2011+ 11 000,00 E, correspondente à quantia em dinheiro levantada em 11/07/2011) com os referidos montantes, tendo o Inventariado A ficado com a quantia de 4 000,00 € (correspondente ao remanescente do levantamento feito em 11/07/2011) em numerário, em casa (artigos 7j0 a 74 da resposta à reclamação).

f), g) e h) A venda da lavoura constituiu um acto de administração ordinária, o qual a Cabeça-de-Casal foi forçada a praticar em virtude da caducidade, por morte do pai, relativos a 340 alqueires de terra, e da necessidade de substituir o equipamento afecto à lavouras, sob pena de, mantendo-se os animais a serem alimentados, parcialmente, a ração, nos pastos remanescentes, sobrevirem consequências ruinosas ara a herança.

Antes da venda da lavoura, foram vendidas várias cabeças de gado, como se encontra espelhado na acção de prestação de contas com o n.° ------/---- TB------.

A lavoura foi vendida a quem ofereceu o melhor preço - 210 000,00 € -, tendo sido apresentadas três propostas (artigos 75 a 99 da resposta à reclamação).

i) Não foram, de facto, relacionados os móveis identificados no artigo 100.° da resposta à reclamação, em virtude de os mesmos terem valor quase insignificante, por serem velhos (cfr. artigo 100 da resposta à reclamação).

Juntou treze documentos e arrolou prova testemunhal.

1.3 - A reclamante respondeu à resposta à reclamação apresentada pela Cabeça-de-Casal, tendo tal requerimento sido mandado desentranhar, por inadmissível, conforme despacho proferido em 14/04/2014, Ref.a 726586, §3 (fls. 398/399).

1.4 - No mesmo despacho, deixou-se consignado que o pedido de declaração de ineficácia dos actos que a Reclamante alegou terem sido praticados pela Cabeça-de-Casal para além dos poderes de administração da herança que lhe assistem não se contém no objecto da reclamação contra a relação de bens, tal como este objecto se encontra conformado no artigo 1348°, n.° 1, do Código de Processo Civil, e que não deveria ser produzida qualquer prova quanto ao valor dos bens relacionados ou, em caso de procedência, parcial ou total, da reclamação, a relacionar, uma vez que é à conferência de interessados que incumbe deliberar sobre as reclamações deduzidas sobre o valor atribuído a tais bens, nos termos do artigo 1351°, no 4, ai. a), do Código de Processo Civil aplicável ( 4).

1.5 - Ainda no despacho referido em 1.4, foi designada data para a inquirição das testemunhas arroladas, tendo a Cabeça-de-Casal sido convidada a, em 5 (cinco) dias, adequar o seu rol de testemunhas ao limite máximo previsto no artigo 304.°, n.° 1, do Código de Processo Civil aplicável, com a menção de que, se nada fosse dito no referido prazo, seriam considerados não escritos os nomes das testemunhas que no rol ultrapassassem o número legal. A Cabeça-de-Casal nada disse.

1.6 - Procedeu-se á inquirição de testemunhas, conforme resulta das actas com a Refª 758726 (fls. 439 a 443) e com a Ref.ª 763194 (fis. 452 a 460), tendo-se, com o acordo das partes, decidido proferir as decisões de facto e de direito em conjunto, conforme resulta do despacho exarado na segunda das actas identificadas.

Foi proferida decisão que:

1) Determinou que a verba n.° 1 se mantenha relacionada com o valor de 136 226,52 € (cento e trinta e seis mil duzentos e vinte e seus euros e cinquenta e dois cêntimos).

2) Não determinou a relacionação, como bens da herança, dos prédios rústicos inscritos na matriz predial respectiva sob os artigos ---°, Secção O, da Freguesia de ........., e ------, secção U, também da freguesia de -------------.

3) Determinou a relacionação, como dinheiro doado pelos Inventariados à Cabeça-de-Casal, com dispensa de colação, do montante de 2 131 040,58 € (dois milhões, cento e trinta e um mil e quarenta euros e cinquenta e oito cêntimos).

4) Não determinou a relacionação, como bens da herança, dos montantes de 50 000,00 E, 10 000,00 € e 15 000,00 E, levantados pela Cabeça-Casal da conta referida na verba ri.0 2, respectivamente, em 24/06/2011, 25/07/2011 e 11/07/2011.

5) Determinou que sejam incluídos na verba n.° 5 as 58 (cinquenta e oito) cabeças de gado em falta, alterando-se o valor de tal verba em conformidade.

6) 6) Não determinou a relacionação, como bens da herança, dos montantes de 957 450,00 € e 2 958,79 €.

7) Determinou a relacionação dos seguintes bens, pelos valores que vierem a ser indicados pela Cabeça-de Casal:

2 ternos de sala,

1 estante,

1 banca de TV,

1TV,

2 quartos de cama de casal,

1 guarda-fatos,

1 aparador, mesa e 6 cadeiras,

4 quadros,

1 secretária e cadeira,

 8 taças,

 talheres,

pratos,

copos,

1 serviços de chá,

1 serviço de café,

3 tapetes,

1 fogão,

1 microondas,

 4 panelas,

 2 tachos,

2 frigideiras,

2 baús,

3 lustres,

1 redoma,

2 camas articuladas (de hospital),

1 cadeira articulada (de hospital),

1 bengala,

1 andarilho, e

1 cadeira de rodas

Inconformada, C recorreu, apresentando as seguintes conclusões da alegações:

1.° Vem a requerente recorrer do despacho que decide a reclamação contra a relação de bens por si apresentada na parte em que determina a relacionação, como dinheiro doado pelo inventariados à cabeça-de-casal, com dispensa de colação, do montante de €.2.13 1.040,58 (ponto 3 da parte decisória da reclamação contra a relação de bens).

2.°A transferência de dinheiro ordenada pela requerida e para uma conta de que ela é também é titular só ocorreu por a requerida ser titular da conta dos inventariados, o que vale por dizer que, se tal não sucedesse, o Banco não executaria a ordem de transferência, e só fá-lo por a ordenante ser, também ela, titular da conta.

3º Ou seja, para que fosse uma doação, a dispensa das formalidades prevista no artigo 947.°, n.° 2, do Cód. Civil só funcionaria se tivesse havido tradição da coisa, o que não há. Porque não há documento escrito, a doação é nula por falta de forma.

4º Não se provando qualquer tradição das importâncias depositadas, o que sempre pressuporia o levantamento e entrega, em vida dessas importâncias à cabeça de casal, teria sempre a aventada doação de assumir a forma escrita, sob pena de nulidade.

5º A jurisprudência e a doutrina são proficuas nesse sentido - ver, por todos e entre muitos, na jurisprudência, o Ac. RC de 05/06/2001, tirado no Processo 1004-2001, o Ac. STJ, de 26/10/2010, no Proc. 303-A/1996. S2, o Ac. RL, de 15/11/2012, no Proc. 1241/10.8TBJLSB-B.L1.2, o Ac. RP, de 11/10/2001, no Proc. 1262/2001,0 Ac. STJ de 28.06.55, BMJ 49 - 416, e, ainda, na doutrina, Menezes Cordeiro Dir. das Obrigações 1980 l°4l9 nota 8l.

6.° Não há tradição, nem sequer simbólica, pois a requerida, pelo facto de ser cotitular já tinha a' posse, não obstante o direito de propriedade do dinheiro ser do inventariado.

7º Um enquadramento teleológico do artigo 947.°, n.° 2, do Cód. Civil, também permite chegar à conclusão de que ou havia um documento assinado pelo inventariado quer com o seu punho ou com o seu dedo (nesse caso, a rogo, que é a forma legal prevista e que consta do artigo 371°, n.° 1, d Cód. Civil), ou então não pode ser feita prova contra uma norma legal imperativa.

8.° Logo, não existirá animus donandi, nem entrega pelo simples facto de se consentir numa transferência, não sendo certo que um mero depósito ou movimento de fundos numa conta solidária produza por si mesmo os efeitos de uma doação, se considerarmos que a todo o momento, o depositante pode através de um levantamento, retirar as quantias da conta, logo atingindo a irrevogabilidade, enquanto elemento essencial do contrato.

9º A decisão recorrida vai no sentido de não se exigir a simultaneidade da tradição da coisa com a declaração de doação. Só que neste caso não houve, não chegou a haver, nenhuma tradição, em função e por efeito de a transferência não ter sido assinada pelo inventariado, pelo que a exigibilidade da forma escrita sempre se impunha.

10º O despacho recorrido, ao relacionar como dinheiro doado pelo inventariados à cabeça-de-casal com dispensa de colação, a quantia de €.2.131.040,58, viola os artigos 220.°, 3710, n.° 1, 947º, n.° 2, 969.°, e 2111°, n.° 2, do Cód. Civil, pelo que deve revogado e substituído por outro que determine que a dita quantia deve ser relacionada como activo e que a cabeça-de-casal deve restitui-Ia à herança.

Termina dizendo que o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que revogue o despacho recorrido na parte em que relacionou como dinheiro doado pelo  pelo inventariados à cabeça-de- casal com dispensa de colação a quantia de € 2.131.040,58

H respondeu, apresentando as seguintes conclusões:

1. Na presente cumulação de inventários por óbito de B e A  (ambos pais da recorrida e este último, pai da recorrente) foi decidido no douto despacho ora em recurso, que fosse relacionada a quantia de € 2.131.040,58 como bem por eles doado à recorrida com dispensa de colação (para se apreciar posteriormente se ocorre ou não ofensã da legítima)

2. Discorda a recorrente dizendo que o dinheiro era de A; que não houve doação e que esta não estaria dispensada de colação.

3. Invoca diversa jurisprudência, que porém versa sobre situações distintas da dos autos.

4. Contudo, não fundamenta que o dinheiro fosse apenas de A nem que estivesse sujeito a colação, limitando o recurso, nas suas conclusões, quanto à questão de doação.

S. Não lhe assiste razão.

6.A Matéria de Facto provada (e cuja Motivação é clara e inequívoca), não é posta em causa pela recorrente.

7. Da Matéria de Facto e da Motivação resulta, em síntese, que recorrente e recorrida são irmãs consanguíneas, que os pais da recorrente, casados com comunhão geral de bens, eram pessoas idosas e doentes        (ele de Parkinson e ela de Tremor Essencial), estavam impedidos de comer, fazer higiene pessoal, vestir-se, andar, escrever, assinar os nomes e praticar os actos da vida quotidiana, sem o auxílio de terceiros.

Mantiveram-se lúcidos e conscientes dos seus actos até à morte, sendo A pessoa autoritária e de ideias firmes, que continuava a tratar dos seus negócios, a partir de um escritório em casa, apesar das suas limitações físicas.

Foi a recorrente quem tratou e cuidou permanentemente dos pais até à morte deles, tendo a recorrida visto o pai A, apenas por duas vezes nos últimos 20 anos.

Por causa do agravar da doença dos país e por vontade expressa destes, a recorrida passou a integrar e movimentar as contas deles mais de um ano antes de falecerem, procedendo a pagamentos e recebimentos, sempre com as  instruções e conhecimento deles, especialmente do pai.

Os inventariados, cerca de um mês antes de falecerem, convocaram o gerente e a gestora de conta do Banco E para sua casa, dizendo-lhes expressamente que queriam dar o dinheiro da conta a prazo nesse banco (€2.131.040,58) à recorrida, devendo tratarem de tudo o que fosse necessário para o efeito.

Apenas porque os inventariados estavam impedidos de assinar e porque a filha H a movimentava o dinheiro deles, os funcionários do banco solicitaram à recorrida a simples assinatura no documento de transferência do dinheiro para a conta deles.

Documento esse preenchido pelos ditos funcionários e do qual fizeram expressa menção do ordenante como sendo A .

Em cumprimento da vontade expressa dos pais da recorrida, o Banco no próprio dia procedeu à transferência do dinheiro da conta dos inventariados para a conta da recorrida.

8.A Matéria de Facto provada configura uma doação de dinheiro, acompanhada (ou seguida) de tradição simbólica v.g. Ao. STJ de 19/04/2001, Ao. STJ de 25/03/2014; Menezes Cordeiro, A Posse, Almedina, pág. 107.

9. A recorrida movimentava as contas dos pais apenas enquanto mandatária deles, jamais se arrogando ou actuando como dona do dinheiro (ou de parte) cumprindo estritamente as orientações e indicações deles no que respeitava a essas movimentações.

Só depois de lhe ter sido dado pelos pais é que passou a considerar-se dona do direito doado.

10. Também não obsta à doação manual o facto da vontade dos pais ter sido concretizada algumas horas depois de a terem expressado (P.Lima e A. Varela in C.C. Anotado Vol.III, pág. 247 e A.Varela in R.L.J., 103º, pág. 89 e segs.)

11. Finalmente, a doação em causa  está  dispensada de colação (art. 2113, nº3 do C.Civil e Ac. TR Lx de 19.12/3007; Acs TRP de 22.04.2008; de 29.09.2011 e de 26.02.2013).

Em primeira instância foram considerados provados os seguintes factos:

1 - B faleceu no dia 14 de Agosto de 2011, com 87 anos, no estado de casada com A , sob o regime de comunhão geral de bens, em primeiras e únicas núpcias de ambos.

2 - A faleceu no dia 19 de Agosto de 2011, com 86 anos, no estado de viúvo de B

3 - C nasceu em 17/01/1970, sendo filha de A e de G.

4 - H  nasceu em 08/01/1952, sendo filha de A e de B..

5 - A verba n.° 1 da relação de bens está descrita da seguinte forma: 6 136.226,52 (provenientes das contas DO. ------------ da Caixa F e D.P. n° -----------------da Caixa I) utilizada para pagamentos e recebimentos da herança (cuja movimentação está explicada e justificada exaustivamente no Processo de Prestação de Contas n° ----------- TB----------).

6 - A verba n.° 2 da relação de bens está descrita da seguinte forma: " D. O. na Caixa I  n° ------------------------(no montante inicial de 6 122 351,37, dos quais foram transferidos 120.000,00 para a conta n° ---------------, relacionada como verba 1 da Caixa F aberta pela cabeça-de-casal para exclusiva administração da herança através de uma única conta) e cujo saldo, após essa transferência, ficou em €  2.431,03".

7 - Em 30/08/2013, a conta D.O. n.° ---------------- da Caixa F apresentava o saldo de 49 010,93 € e a conta D.P. ---------- apresentava o saldo de 323 497,12 €, apresentando a conta à ordem, em 30/08/2012, um crédito de 957 450,00 €, seguido de um débito de igual valor, e, no mesmo dia, um débito de 2.948,79 €.

8 - O prédio rústico sito à "P------------------- ou V", inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo --, Secção O, freguesia de --------, concelho de ----------, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de --------- sob o n.° ----------/São -------, estando, pela Ap. 4 de 24/04/1981, a respectiva propriedade inscrita a favor da Cabeça-de-Casal e do marido e foi adquirido por estes a M.

9 - O prédio rústico sito à "L", inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ---.°, Secção U, freguesia de ----------, concelho de ------------------, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ------------sob o n.° 3020/São Miguel, estando pela Ap. 3 de 07/12/1978, a respectiva propriedade inscrita a favor da Cabeça-de-Casal e do marido e foi adquirido por estes a N, O  e Q.

10 -No dia 25 de Julho de 2011, foi transferido para a conta n.° 396083617710, do BANIF, de que a Cabeça-de-Casal é titular, o montante de 2 131 040, 58 €, que se encontrava depositado na conta do Banco E com o n.° 750379113010, tendo a ordem de transferência sido assinada pela Cabeça-de-Casal e constando da mesma como ordenante o Inventariado A.

11 - A verba n.° 4 da relação de bens está descrita da seguinte forma: Conta DO. n --------------- no Banco E de -------------, no montante de 610 155,62 (à qual foram abatidos  € 1 111,60 relativos à Execução Fiscal Processo ---------------------, Ponta Delgada ".

12 - A Cabeça-de-Casal assinou um cheque sobre a conta da Caixa I  n.° ------------------(identificada na verba n.° 2), no valor de 50 000,00€, datado de 24/06/2011.

13 - O montante referido em 12) foi depositado, em 24/06/2011, na conta do Banco E com o n.° ---------------------------, titulada pelo Inventariado A.

14 - A Cabeça-de-Casal, em 25/07/2011, levantou em numerário o valor de 10 000,00 € da conta referida em 12).

15 - O montante referido em 14) foi depositado pela Cabeça-de-Casal, em 25/07/2011, na conta da Caixa F com o n.° ------------------, titulada pelo inventariado A.

16— A Cabeça-de-Casal, em 11/07/2011, levantou em numerário o valor de 15 000,00 € da conta referida em 12).

17 - Do montante referido em 16), a Cabeça-de-Casal depositou 11 000,00 €, em 11/07/2011, na conta referida em 15).

18 - Até à data das respectivas mortes, os Inventariados mantiveram-se conscientes dos seus actos.

19 - À data das respectivas mortes, os Inventariados padeciam de patologias crónicas, sofrendo o Inventariado A de doença de Parkinson.

20 - Ambos os Inventariados tinham grande dificuldade em comer com talheres, fazer a sua higiene pessoal, vestir-se, anda, escrever e assinar os respectivos nomes e praticar os demais actos normais da vida quotidiana.

21 - A situação descrita em 19) e 20) agravou-se no último ano de vida dos Inventariados, com especial incidência nos três meses que antecederam os óbitos.

22 - Nesses três meses, ambos os Inventariados deixaram de poder comer, fazer a higiene pessoal, vestir-se, andar, escrever e assinar os nomes e praticar os actos normais da vida quotidiana, sem o auxilio de terceiros.

23 - Mercê do descrito em 18) a 22), a Cabeça-de-Casal cuidou dos Inventariados, da casa onde viviam, das suas roupas, alimentação e vida diária dos mesmos.

24 - Mercê do descrito em 18) a 22), a Cabeça-de-Casal passou a integrar as contas bancárias dos mesmos, por vontade expressa destes, mais de um ano antes de falecerem, para proceder a pagamentos, recebimentos e movimentar o dinheiro dos pais, sempre de acordo com as instruções e com o conhecimento destes, especialmente do Inventariado A

25 - O Inventariado A, apesar de fisicamente diminuído pela doença de Parkinson, quase não saindo de casa e movendo-se com o apoio de terceiros e com andarilho, era pessoa autoritária e de ideias firmes, que continuava a tratar dos negócios, recebendo na sua casa as pessoas com quem tinha de lidar ou conviver, por negócios ou amizade.

26 - O Inventariado A, apesar de ter ficado impossibilitado de escrever e assinar, recebia amigos de longa data, com os quais convivia, recebia pessoas com quem negociava a venda de gado, funcionários da Associação Agrícola, os empregados da sua lavoura, o gerente do Banco E e a respectiva gestora de conta, o gerente da Caixa F e o gestor de conta da Caixa I, corri os quais tratava dos negócios, sempre com o apoio da Cabeça-de-Casal, que passou a assinar os documentos dos pais.

27 - O Inventariado A, através da Cabeça-de-Casal, solicitou ao gerente e à gestora de conta do Banco E que fossem à sua casa e de sua esposa, a Inventariada B, porque queriam dar à Cabeça-de-Casal o dinheiro que tinham na conta de depósito a prazo que tinham no Banco E.

28 - No dia 25/07/2011, tendo-se os ditos funcionários deslocado à residência dos Inventariados, o Inventariado A, na presença da mulher e da filha, disse-lhes que queriam dar o dinheiro da conta a prazo deles, no BANIF, à Cabeça-de-Casal e disse-lhes para tratarem de tudo o que fosse preciso para ela ficar com o dinheiro.

29 - Como os Inventariados não assinavam, os funcionários do Banco E solicitaram à Cabeça-deCasal, que era co-titular e podia movimentar a conta, a assinatura do documento de transferência do dinheiro dos Inventariados para a conta da Cabeça-de-Casal.

30 - O Banco executou, no próprio dia, a ordem dos inventariados.

31 - Os Inventariados tinham: 2 ternos de sala, 1 estante, q banca de TV, 1 TV, 2 quartos de cama de casal, 1 guarda-fatos, 1 aparador, mesa e 6 cadeiras, 4 quadros, 1 secretária e cadeira, 8 taças, talheres, pratos, copos, 1 serviços de chá. 1 serviço de café, 3 tapetes, 1 fogão, 1 microondas, 4 panelas, 2 tachos, 2 frigideiras, 2 baús, 3 lustres, 1 redoma, 2 camas articuladas (de hospital), 1 cadeira articulada (de hospital), 1 bengala, 1 andarilho e 1 cadeira de rodas).

32 - À data da morte do Inventariado José Altino de Meio, existiam 230 cabeças de gado na sua lavoura.

Não foram considerados provados os seguintes factos:

1 - A venda do prédio identificado em 7) dos Factos Provados foi feita por escritura de compra e venda de 20 de Março de 1981, lavrada a fls. 7-v do Livro 335-A do Cartório Notarial de --------.

2 - A venda do prédio identificado em 8) dos Factos Provados foi feita por escritura de compra e venda de 15 de Maio de 1978, lavrada a fls. 15-v do Livro 613-D do 1.° Cartório Notarial de -----------.

3 - A Cabeça-de-Casal fez sua a quantia de 4 000,00 € resultante da diferença do levantamento referido em 15) dos Factos Provados e o depósito referido em 16) dos Factos Provados.

4 - A execução da ordem referida em 29) dos Factos Provados ocorreu em casa dos doadores e na presença destes.

Cumpre decidir

Na decisão recorrida determinou que fosse relacionado como dinheiro doado pelos inventariados à cabeça-de-casal, com dispensa  de colação o montante de € 2.131.040,5.

O art. 947, nº2, do C.Civil “a doação de coisas  móveis não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada da tradição da coisa doada; não sendo acompanhada da tradição da coisa, só pode ser por escrito.

A exigência da tradição da coisa funda-e na circunstância da doação verbal poder ser imponderada se não houver um facto que chame especialmente a atenção das partes para a gravidade do acto (Vaz Serra, RLJ, nº110, pág.212.

A doação de coisa móvel, como doação de determinados montantes em dinheiro, não sendo acompanhada de tradição de tais montantes da esfera patrimonial do doador para a do donatário, só pode ser feita por escrito.

A tradição dos valores objecto da doação não tem necessariamente de ser material – pela entrega da própria coisa- podendo ocorrer a tradição ficta que consiste na entrega de documentos ou na prática de actos que possam pôr a coisa na disponibilidade do donatário (Menezes Cordeiro, Direitos Reais, pág. 524, 1979, Lex)

Como ficou provado, os titulares da conta, os inventariados, a quem pertenciam os montantes depositados  na conta, manifestaram a vontade perante o Banco de que pretendiam transferir para a conta da Recorrida o montante da conta bancária. Tal comportamento configura um acto de entrega porquanto a transferência, logo que concluída,põe na disponibilidade do  donatário a coisa objecto do contrato..

Acontece que também resulta dos factos provados que a donatária era também titular da conta e era quem vinha assinando toda a documentação referente à mesma, dado que fisicamente os inventariados não estavam em condições de o fazer, embora tomassem todas as decisões quanto aos montantes depositados na conta, sua movimentação e destino.

Dos autos resulta que apenas os inventariados eram donos dos montantes depositados na conta.

Ficou ainda provado que foi solicitado à Recorrida que assinasse os documentos de transferência, como vinha fazendo relativamente a todos os documentos relativos à movimentação da conta, dada a condição física dos inventariados não lho permitir.

Tal acto foi praticado pela Recorrida segundo as instruções dos inventariados, configurando simultaneamente a aceitaçao da doação por permitr a transferência para a sua conta, ficando o dinheiro na sua disponibilidade.

A doação assim efectuada configura-se como doação manual, acto pelo qual o tradens, com animus donandi, entrega bem móvel, no caso determinada quantia em dinheiro ao accipiens que revela com a sua actuação aceitá-la- arts 940, nº1, 945, nº1, 947, nº2, do C.Civil.

Nos termos do art. 2113, nº3, do C.Civil a colação presume-se dispensada nas doações manuais e nas doações remuneratórias.

Verificando-se esta presunção a favor da dispensa de colação, competia à parte interessada demonstrar que a colação não tinha sido dispensada, o que não aconteceu.

Deve assim ser mantida a decisão recorrida.

Conclusões:

- A doação de coisas móveis, não depende de qualquer formalidade externa, quando acompanhada da coisa doada (art. 947 do C.Civil)

- A assinatura pela donatária, a pedido dos doadores e de acordo com as suas instruções, dos documentos de transferência de uma conta bancária destes para conta daquela, configura doação manual e simultaneamente aceitação da doação.

- Nos termos do art. 2113, nº3, do C.Civil a colação presume-se dispensada nas doações manuais.

Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida

Custas pela Recorrente

Lisboa, 28/05/2015

Octávia Viegas

Rui da Ponte Gomes

Luís Correia de Mendonça