Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2097/2004-6
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
MÚTUO
PENHORA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/18/2004
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Havendo conexão entre a compra e venda de um veículo automóvel e o mútuo a prestações, a reserva de propriedade pode ser convencionada a favor do mutuário.
A permanência da coisa vendida na propriedade do mutuante é incompatível com a sua execução pelo mesmo para pagamento do preço.
A nomeação à penhora do mesmo veículo pelo titular da reserva de propriedade não envolve a renúncia a esta.
Não tem cabimento, no caso, o recurso ao mecanismo previsto no artigo 119º CRP, por haver conhecimento exacto de quem é o proprietário.
Sendo a reserva de propriedade um direito real de gozo, a mesma não caduca com a venda judicial da coisa sobre que incide, por isso não podendo ser mandada cancelar pelo tribunal se esta for vendida.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
  1. Técnicrédito – Financiamento de Aquisições a Crédito, S. A. intentou, na 8ºJuízo Cível de Lisboa, 1ª Secção, acção executiva baseada em sentença declarativa de condenação para pagamento de quantia certa, com processo sumário, contra Casimiro ... e Manuel ..., a fim de haver deles os montantes correspondentes a capital, juros e imposto de selos sobre os juros, devidamente descriminados no título.
Na referida acção executiva, foi ordenada a penhora do veículo automóvel Renault, matrícula XN-58---, tendo o mesmo sido apreendido, pela PSP do Porto, no dia 28 de Julho de 2003, a solicitação do Tribunal.
Relativamente a este veículo constam as seguintes inscrições na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa:
Direito de propriedade a favor de Casimiro, a partir de 22/08/1997.
Reserva de propriedade a favor de do Banco Mais, S. A., a partir da mesma data (22/08/97).
Penhora, desde 29/08/2003, a favor de Banco Mais, S.A., para garantia de sete mil quinhentos e quarenta e seis euros e oitenta e seis cêntimos (7.546,86 €).Sujeito passivo Casimiro e sujeito activo o Banco Mais.
Aos 14/10/03, o Exc. mo Juiz proferiu o despacho de fls. 173, ordenando a notificação da exequente para, no prazo de dez dias, vir aos autos esclarecer se renunciou ou não ao direito inerente à referida reserva de propriedade e, em caso afirmativo, comprovar documentalmente nos autos a referida renúncia.
O exequente recusou.
Considerando, então, que sobre o veículo penhorado incide uma reserva de propriedade anterior a favor da exequente e por se entender que não é possível proceder à venda de um bem onerado com reserva (o que significa que o veículo pertence à exequente e não aos executados), o Exc. mo Juiz determinou que os autos aguardassem a junção de certidão do cancelamento de tal ónus, no que se refere ao veículo em questão.

  Inconformada, agravou a exequente, finalizando a alegação com as seguintes conclusões:
...
Os recorridos não contra – alegaram.
O Exc. mo Juiz sustentou o despacho recorrido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
2. Consideram-se relevantes para efeitos do recurso os factos que constam do relatório.
3. A questão essencial a decidir é a de saber se a acção executiva pode prosseguir para a fase da venda não obstante a exequente ser titular da reserva de propriedade sobre o veículo automóvel penhorado.
  4.
  4.1. A ora recorrente, tendo intentado contra os recorridos acção declarativa com processo sumário que foi julgada procedente e provada e não tendo os réus, na dita acção, pago à então autora, ora recorrente, as importâncias que pela sentença foram condenados a pagar-lhe, requereu aquela a competente execução de sentença.
  No requerimento inicial da execução, a exequente nomeou à penhora diversos bens, nomeadamente, o veículo automóvel, com a matrícula XN-58-....
  Pelo despacho de fls. foi ordenada a efectivação da penhora requerida, incidindo, assim, o despacho sobre aquele veículo automóvel, em relação ao qual se ignorava, porque a exequente não esclareceu, (como devia, em cumprimento do seu dever de cooperação), que tinha inscrita no registo, a seu favor, a reserva de propriedade (artigo 266º-A CPC).
  Tal despacho não se pode considerar, porém, de mero expediente nem proferido no uso legal de um poder discricionário (artigo 156º, n.º 4 CPC).
  É certo também que o referido despacho não foi objecto de adequada fundamentação, mas, na altura em que foi proferido, a questão da admissibilidade da penhora não era controvertida nem sobre ela se suscitava qualquer dúvida (artigo 158º, n.º 1 CPC).
  De qualquer modo, ainda que se entendesse que o aludido despacho estaria afectado de nulidade, esse vício não foi invocado pela agravante, razão por que estaria vedado, em sede de recurso, o seu conhecimento (artigos 666º, n.º 3 e 668º, n.ºs 1, al. b) e 3 CPC).
  Assim, proferido o despacho determinativo da penhora em causa, que foi efectivada e levada ao registo automóvel, esgotou-se o poder jurisdicional sobre a matéria daquela penhora (artigos 466º, n.º 1 e 666º, n.ºs 1 e 3 CPC).
  4.2. Nos termos da lei do processo, efectuada a penhora de um bem, ela irá, em princípio, subsistir até à venda.
  Consagra, porém, o artigo 820º a ampla possibilidade de o juiz rejeitar oficiosamente a execução instaurada, até ao momento da realização da venda ou das outras diligências destinadas ao pagamento, sempre que se aperceba da existência de questões que deveriam ter conduzido ao indeferimento liminar da execução.
  Os referidos fundamentos encontram-se previstos no artigo 811º-A do CPC.
  Como, in casu, se não verifica qualquer dos pressupostos enumerados nessa norma, não há fundamento para a rejeição da execução.
  Para além da referida hipótese, prevê ainda a lei que, efectuada a penhora de determinado bem, possa ocorrer o seu levantamento por ordem judicial, contanto que se verifique uma das seguintes causas[1]:
  Uma causa de extinção da acção executiva ou de anulação da venda em razão de acção de reivindicação (artigos 916º, n.ºs 1 e 4, 908º, 909º, n.º 1, al. b), 910º, 911º e 918º CPC);
  Procedência do recurso do despacho determinativo da penhora nos termos gerais;
  Protesto no acto de penhora (artigo 832º CPC);
  Incidentes de embargos de terceiro e de oposição à penhora (artigos 351º, n.º 1, 863-A e 863-B do CPC);
  Desistência da penhora (artigos 836º, n.º 2, alíneas b), c) e d) e 871º, n.º 3 CPC);
  Paragem da execução decorrente de inércia do exequente na promoção do seu andamento (artigo 847º CPC);
  Desaparecimento do bem penhorado no caso de não ocorrer direito a indemnização objecto de sub – rogação real (artigos 730º, al. c) e 823º CC).
  Assim, tendo o despacho que ordenou a penhora transitado em julgado, não estando em causa qualquer das referidas situações em que a lei excepcional e expressamente prevê a possibilidade de levantamento da penhora, estando esgotado o poder jurisdicional do juiz e existindo autoridade de caso julgado formal relativamente àquele despacho, é manifesto que não pode a penhora ordenada ser levantada, nem ser dada sem efeito (artigos 466º, 666º n.ºs 1 e 3, e 672º CPC).
  4.3. Não obstante, poder-se-á questionar se a penhora do veículo dos autos podia (ou não) prosseguir por existir sobre ele reserva de propriedade em nome da exequente.
  Vejamos:
  A regra de que a transferência da propriedade se opera por mero efeito da celebração do contrato de compra e venda encontra-se estabelecida no n.º 1 do artigo 408º CC. A possibilidade de diferir convencionalmente o efeito translativo, por via de um pacto de reserva de propriedade, é admitida como excepção àquela regra (artigo 408º, n.º 1, in fine), nos termos do n.º 1 do artigo 409º. “E é admitida de modo tão amplo, que se pode dizer que a regra é, afinal, a da colocação convencional do momento da transferência de propriedade”[2].
  Segundo resulta da citada norma (n.º 1 do artigo 409º), a transmissão do direito de propriedade por via do contrato de compra e venda sob reserva de propriedade a favor do devedor fica suspensa até à verificação de um evento futuro e incerto, como é o caso do pagamento do preço ou de um evento futuro e certo, designadamente de um termo inicial.
  No que respeita à eficácia da reserva de propriedade, determina o n.º 2 do mesmo preceito que, tratando-se de coisa imóvel ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante de registo é oponível a terceiros.
  Embora a reserva de propriedade, tal como está prevista na lei, tenha sido pensada para contratos de compra e venda, o certo é que o artigo 409º, n.º 1 abrange, na sua letra e espírito, a hipótese de conexão entre o contrato de mútuo a prestações e o contrato de compra e venda do veículo automóvel por virtude do objecto mediato do primeiro constituir o elemento preço do segundo, situação que se configura como se o pagamento do preço relativo ao contrato de compra e venda do veículo automóvel fosse fraccionado no tempo[3].
  In casu, as partes optaram pela reserva de propriedade do veículo automóvel não a favor do vendedor, mas da mutuante, naturalmente por o primeiro haver recebido da segunda o respectivo preço.
  Assim, embora se trate de uma situação anómala de constituição da reserva de propriedade, não se altera o regime legal que decorre da lei. Os seus efeitos são idênticos àqueles que derivariam de ela haver sido constituída a favor do vendedor do veículo automóvel que foi penhorado.
  4.4. Embora não seja pacífico, cremos que há incompatibilidade entre a permanência da coisa vendida na propriedade do vendedor e a execução daquela pelo mesmo vendedor para pagamento do preço.
  Vejamos:
  Nos termos do artigo 29º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, ao registo de automóveis são adaptadamente aplicáveis as disposições relativas ao registo predial na medida indispensável ao suprimento das lacunas da regulamentação própria e compatível com a natureza de veículos automóveis e das disposições contidas na lei especial.
  Ora o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular, nos precisos termos em que o direito o define (artigo 7º CRP).
  Os factos comprovados pelo registo não podem ser impugnados em juízo sem que simultaneamente seja pedido o cancelamento do registo (artigo 8º, n.º 1 CRP).
  Perante a referida presunção não ilidida, não pode deixar de se concluir que a agravante é titular do direito de propriedade sobre o veículo automóvel que na acção executiva foi objecto de penhora.
  Ora, na execução para pagamento de quantia certa, o exequente, (credor), visa obter o cumprimento duma obrigação pecuniária através do património do executado (devedor). Apreendidos e vendidos bens deste património, procede-se, com o dinheiro realizado, ao pagamento do exequente, que obterá assim, por esta via, idêntico resultado ao da realização da prestação que lhe é devida, segundo o título executivo.
  Assim a nomeação à penhora pelo titular da reserva de propriedade sobre o bem concernente não é conforme a regra que resulta da lei, no sentido de que pelas dívidas do executado apenas os seus bens ou os de terceiro afectos ao cumprimento da obrigação respondem (artigos 601º CC e 821º CPC).
  4.5. Escudando-se no entendimento perfilhado por Vasco da Gama Lobo Xavier[4] e em algumas decisões jurisprudenciais, defende a recorrente ser-lhe lícito nomear à penhora o bem cuja propriedade ficou reservada a seu favor, invocando que, por esse facto, renunciou à vantagem derivada dessa cláusula.
  Mas sem razão[5].
“Se assim fosse, isto é, se se tratasse de renúncia tácita, não havia meio de se conseguir o seu cancelamento no registo automóvel por falta de título documental adequado”.
“Nesta lógica, ainda que o veículo automóvel fosse vendido no âmbito da acção executiva, porque a reserva de propriedade, ou seja, um direito real de gozo, está registada antes do acto da penhora, continuaria a afectar, não obstante a alienação, o veículo automóvel vendido” (cfr. artigo 824º, n.º 2 CC).
Acresce que “a reserva de propriedade tende a manter-se até efectivo pagamento do preço, certo que só esta circunstância desencadeia a transferência do direito de propriedade sobre a coisa vendida”, para além do “facto de a penhora em acção executiva não bastar à realização do direito de crédito do credor reservante do direito de propriedade”.
Por outro lado, atenta a fonte contratual de que a reserva de propriedade deriva, não é um direito a que o vendedor possa renunciar livremente, porque se traduz no diferimento contratual de um dos efeitos do contrato acordado por ambas as partes.
De contrário, estar-se-ia perante uma situação que significaria a extinção da expectativa do comprador de adquirir o direito de propriedade por sua exclusiva vontade, o que se revela contrário ao princípio do consenso contratual que decorre do artigo 406º, n.º 1 CC[6].
Assim, pese embora o facto de a recorrente haver nomeado à penhora o veículo automóvel sobre cujo direito de propriedade tinha reserva, não pode resultar que a ela haja renunciado tácita e eficazmente.
4.6. Defende, de seguida, a recorrente que, no caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, deve-se agir de acordo com o que se prescreve no artigo 832º CPC caso a penhora ainda não tenha sido efectuada ou esteja a sê-lo ou com o que se prescreve no artigo 119 CRP caso a penhora já tenha sido realizada e a dúvida surja por o bem não estar registado em nome do executado mas em nome de outrem e não ordenar oficiosamente sem efeito a penhora.

Relativamente a esta questão, ficou assente que a penhora, no momento em que foi proferido o despacho recorrido, já se encontrava realizada, não sendo, por isso, aplicável o disposto no artigo 832º CPC.
E porque, no caso presente, bem ou mal, não estamos perante um registo provisório mas perante um registo tendencialmente definitivo, o disposto no n.º 1 do artigo 119º CRP é igualmente inaplicável.
E também o não abrange por analogia, em razão da falta de similitude fáctica que justifica a aplicação analógica em geral (artigo 10º, n.º 2 CC).
Com efeito, a razão de ser do mencionado normativo visa solucionar a desactualização dos factos inscritos no registo para evitar o não prosseguimento das acções executivas por o bem penhorado estar indevidamente registado a favor de pessoa diversa do executado.
Com base no referido normativo, por via de uma simples notificação judicial ao titular inscrito e com base no seu silêncio, a execução deve prosseguir como se o bem penhorado se inscrevesse efectivamente na titularidade do executado.
Ora, no caso vertente, o interesse na remoção do obstáculo à prossecução da acção executiva na fase da venda do veículo automóvel penhorado é exclusivamente da recorrente.
E, como ficou demonstrado, há conhecimento exacto e sem controvérsia da titularidade do direito de propriedade sobre o veículo automóvel penhorado.
Donde a inexistência de fundamento legal, por absolutamente inútil, para que se ordenasse o cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 119 CRP.
4.7. Sustenta, por fim, a recorrente que o facto de a reserva de propriedade estar eventualmente registada não impede o prosseguimento da penhora, pois de acordo com o disposto no artigo 824º CC e 888º do CPC, aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos sobre tal bem.
  Cremos que as normas citadas não têm a virtualidade de fundar a pretensão da agravante.
  Com efeito, na venda em execução, os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros, independentemente de registo (artigo 824º, n.º 2 CC).
  Dispõe, por sua vez, o artigo 888º CPC, que, após o pagamento do preço e do imposto devido pela transmissão, são oficiosamente mandados cancelar os registos dos direitos reais que caducam, nos termos do n.º 2 do artigo 824º CC, entregando-se ao adquirente certidão do respectivo despacho.
  Ora, como a reserva de propriedade, direito real de gozo, sobre o veículo automóvel penhorado está inscrita no registo automóvel com anterioridade em relação ao acto de penhora, não podia caducar, por força do disposto no n.º 2 do artigo 824 CC, com o acto da venda do veículo.
  Em consequência, realizado o acto da venda do veículo automóvel penhorado, não podia o Tribunal ordenar o cancelamento da inscrição relativa à reserva de propriedade, com a consequência do adquirente ter de suportar aquele ónus na sua esfera jurídico – patrimonial.
  Concluindo:
  Estamos perante uma situação em que a penhora tem de manter-se mas, com base nela, não pode seguir-se para a fase da venda.
  A agravante, para poder fazer prosseguir a acção executiva para a fase da venda do veículo penhorado tem, prévia e necessariamente, de diligenciar no sentido do cancelamento da inscrição registral da reserva de propriedade em causa.
  Perante a anomalia de haver sido ordenada e realizada a penhora de um veículo automóvel em relação ao qual a exequente é titular do direito de propriedade e não qualquer dos executados, a solução não pode deixar de ser no sentido da suspensão da acção executiva em relação à referida penhora até que a agravante demonstre em juízo o cancelamento do registo da reserva de propriedade em causa (artigos 276º, n.º 1, al. c), 279º, n.º 1 e 466º, n.º 1 CPC).
  Improcede, por isso, o recurso.

  Vencida no recurso, é a agravante responsável pelo pagamento de custas respectivas (artigo 446º, n.ºs 1 e 2 CPC).
  4. Termos em que, negando provimento ao agravo, se decide confirmar a decisão recorrida.
  Custas pela agravante.

  Lisboa, 18 de Março de 2004

  Granja da Fonseca
  Alvito de Sousa
  Pereira Rodrigues (vencido, conforme declaração de voto em anexo).
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[1] Lebre de Freitas, in A Acção Executiva à Luz do Código Revisto, 2ª ed. pp. 220 e 221Ac. RL, de 5 de Março de 1997, CL, Ano XXII, Tomo 2, pág. 79.
[2] Luís Lima Pinheiro, in A Cláusula de Reserva de Propriedade pág. 21.
[3] Luís Lima Pinheiro, obra citada, pp. 33 e 34 e Ac. RL, de 11.12.97, CJ, Ano XXII, Tomo 5, p. 120.
“Venda a prestações. algumas notas sobre os artigos 934º e 935º do Código Civil”, Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXI, 1974, pp. 216 a 219.
[5] Ac. RL, de 21.2.2002, Processo 789/2002, 6ª Secção
[6] Raul Ventura, O Contrato de Compra e Venda no Código Civil, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 43, 1983, pág. 614, Ana Maria Peralta, A Posição Jurídica do Comprador na Compra e Venda com Reserva de Propriedade, pp. 90 a 97.
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Declaração de Voto
Concederia provimento ao agravo, por ter vindo a defender em situações semelhantes solução oposta à que, aliás de modo brilhante, é defendido pelo Exmo Colega Relator, solução aquela que, no essencial, é no sentido de acolher o entendimento pelo qual se bate a Agravante.
Na verdade, tendo a Agravante nomeado à penhora um veículo automóvel que se encontra com reserva de propriedade registada em seu nome, mas informando, todavia, que ele pertencia ao executado, fora, e bem, ordenada a penhora do veículo. E, uma vez efectuada, era de ordenar o prosseguimento da execução, pois que sendo o registo ilidível por prova em contrário, tal prova no caso se bastava com a declaração da exequente de o veículo lhe não pertencer e ser, antes, pertença do executado.
É certo que a lei prevê que a execução apenas pode recair sobre os bens do devedor (art. 821° do C PC), a fim de que os bens de terceiros não sejam chamados a responder por dívidas de que os seus titulares não sejam responsáveis. Sucede é que, se o titular inscrito no registo declara não ser proprietário do bem registado e que este pertence antes ao executado e pede a penhora sobre o mesmo, a fim de se fazer pagar coercivamente de um crédito que detém sobre o executado, é de considerar feita a prova de que o bem lhe não pertence, pois que tal declaração não pode deixar de consubstanciar um renúncia sobre qualquer direito que detivesse sobre o bem registado. De resto, que prova de maior valia poderia na situação ser produzida?
No caso, a Agravante alega que tinha registada a seu favor a reserva de propriedade, mas que tendo optado pelo pagamento coercivo da dívida em detrimento da resolução do contrato e do funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre a qual a mesma incide, o que era legítimo fazer e tendo renunciado ao "domínio" sobre o bem, pois desde o início afirmou que o mesmo pertencia ao recorrido, deveria ser ordenada a penhora do veículo e o prosseguimento da execução.
Uma corrente da jurisprudência, que é a que perfilho, - ao contrário de outra - tem-se pronunciado, na realidade, no sentido de que o exequente pode nomear à penhora o bem vendido ao executado, com reserva de propriedade nos termos do art. 409º do CC, uma vez que nesta espécie de contrato pode o vendedor optar pela resolução do contrato ou pela exigência do pagamento da parte do preço em dívida, entendendo-se, nesta última situação, que renunciou à resolução do contrato e, consequentemente, também ao “domínio" sobre o bem. vd. Ac. da RE de 16.2.84 (in CJ, 1984, 1,293).
No mesmo sentido se tem pronunciado a doutrina, adrede, citada pela Agravante. Para o Prof. Dr. Vasco da Gama Lobo Xavier a renúncia tácita ao domínio do bem sobre o qual exista reserva de propriedade "pode razoavelmente inferir-se, ou da nomeação à penhora da coisa vendida, por iniciativa, do próprio exequente, nos casos em que esta lhe caiba, ou da circunstância de aquele não se opor à mesma nomeação, quando feita pelo executado, como o é, em regra, no processo executivo ordinário e sumário. In Rev. de Direito e de Estudos Sociais, ano XXI, pg. 216 e ss.
Este entendimento parece ser de sufragar, sem desconfiança. Isto porque, como bem defende Luís Lima Pinheiro, "o pacto de reserva de propriedade, enquanto cláusula socialmente típica com a configuração normativa Que lhe cabe no ordenamento português, é uma convenção de garantia acessória do contrato de compra e venda, convenção esta que reserva a faculdade de resolver o contrato, mas que se socorre instrumentalmente de uma condição suspensiva do efeito translativo, para alcançar o seu efeito característico: a oponibilidade erga omnes da resolução.
O pacto de reserva de propriedade exerce ainda, complementarmente, a sua função de garantia em situações de falência ou insolvência do comprador, ou de penhora da coisa por credor do comprador. In A Cláusula de Reserva de Propriedade, 1988, pg. 115.
Do que fica relatado se conclui que se o exequente nomear à penhora um veículo automóvel, cuja propriedade, ou reserva de propriedade, se encontre registada em seu nome, informando que o mesmo pertence ao executado, é de concluir que renunciou a qualquer direito sobre o veículo, a não ser o que lhe advenha da penhora a realizar, pelo que esta é de ordenar. E até sem hesitação se o próprio executado reivindicar a pertença do veículo, invocando tê-lo adquirido. Em tal situação resulta ilidida a presunção que decorre do registo, nada obstando a que a execução prossiga os seus termos com a penhora e venda do veículo.
E como salienta a Agravante, o facto de a reserva de propriedade estar registada a seu favor não impede a penhora e o prosseguimento da execução, pois de acordo de harmonia com o disposto no artigo 824° do Código Civil e 888° do Código de Processo Civil, aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam. É que a reserva da propriedade é um direito real de garantia que, no caso de venda do bem em execução, nos termos do art. 824°/2 do CC, deve ser cancelada no registo, por o bem dever ser transmitido "livre dos direitos de garantia que o oneram". Sendo que em tal situação nem o tribunal, a quem compete indicar, em concreto, quais os ónus e encargos a cancelar no registo, pode ter dúvidas em ordenar o cancelamento da reserva da propriedade, uma vez que tem a prova nos autos de que o seu titular a ela renunciou.
Assim, o douto entendimento que obteve vencimento, de se dever suspender a execução até que a Agravante diligencie pelo cancelamento da reserva da propriedade não parece, salvo o devido respeito, acolher uma solução que seja expedita processualmente, sendo que, por outro lado, não parece que se justifique como necessária ao bom termo da execução.
Pelas expostas razões concederia provimento ao Agravo.
Lisboa, 18-3-04.
Pereira Rodrigues