Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3359/13.6TACSC.L1-5
Relator: RICARDO CARDOSO
Descritores: DIFAMAÇÃO
ACUSAÇÃO PARTICULAR
CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/17/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: -A responsabilidade exclusiva do cliente deve ser liminarmente excluída quando na peça processual elaborada por advogado seja relatado um facto ofensivo da honra de outrem, porque o advogado, profissional forense com a responsabilidade de conduzir técnica e processualmente a lide, em nome e em representação dos seus constituintes, está vinculado por um dever geral de urbanidade (art. 89.º do Estatuto da Ordem dos Advogados), devendo, no exercício da sua actividade, evitar a prolação de factos susceptíveis de ofender a honra e a consideração de outrem.
-Segundo as regras da experiência comum, não sendo, in casu, a arguida uma técnica de direito, esta, terá transmitido ao seu ilustre mandatário os factos que, na sua perspectiva das coisas, sucederam, e que poderiam ser pertinentes em relação à litigância em que se mostrava envolvida, sendo mais do que provável que desconheça as regras próprias da tramitação processual, dos seus limites e consequências específicas, bem assim como a possibilidade concreta de incorrer na responsabilidade criminal, que ora se lhe imputa.
-Se tais articulados se afiguravam ofensivos da honra do assistente, não tendo sido alegado, mesmo na peça acusatória, que o Exm.º Advogado agiu no convencimento de que os factos que lhe foram relatados pela cliente, ora arguida, correspondiam à verdade, a responsabilidade criminal será de imputar a ambos.
-No sistema processual penal português consagrou-se o chamado “princípio da indivisibilidade”, quando, no artº. 115º, n.º 3 do Código Penal, estipula que: “o não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa”.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acórdão os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.

1 - No processo n.º 3359/13.8TACSC da 2.ª Secção de Instrução Criminal (Juiz 1) da Instância Central de Cascais, Comarca de Lisboa Oeste, no qual é Assistente B. e arguida R., encerrado o debate intrutório a 20 de Abril de 2015, foi proferido o seguinte despacho:

"Declaro encerrada a instrução.

O Tribunal é competente.

Inexistem excepções, questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.

No final do inquérito, o assistente acusou a arguida da prática de um crime de difamação p.p. no artigo 180º, n.º1 do CP pelos factos ocorridos no âmbito do processo n.º 3256/12.2TACSC.

A arguida requereu a abertura de instrução, alegando, em síntese, que a acusação é nula uma vez que não contém o elemento subjectivo do tipo de crime de que o assistente acusa a arguida.

Termina pedindo que se reconheça verificada a nulidade da acusação particular deduzida, por absoluta falta de narração dos elementos subjectivos integradores do tipo e como tal a declare, determinando a final, por absoluta falta de objecto, o arquivamento do processo.

No inquérito foi produzida prova testemunhal e documental e na instrução não foi produzida qualquer prova.

Não se vislumbrando qualquer outro acto instrutório cuja prática revestisse interesse para a descoberta da verdade, efectuou-se o debate instrutório, nos termos dos arts. 298º, 301º e 302º, todos do Cód. Proc. Penal cumprindo agora, nos termos do artº 308º, do mesmo diploma legal, proferir decisão instrutória.

De acordo com o disposto no art. 286º/l do Cód. Proc. Penal, a instrução tem como finalidade a comprovação judicial da dedução de acusação ou do arquivamento do inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento.

Tem-se em vista, nesta fase processual, a formulação de um juízo seguro sobre a suficiência dos indícios recolhidos relativos à verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (artº 308º/1 do Cód. de Processo Penal), ou seja, de se ter verificado um crime imputável ao arguido.

Assim, concluindo se pela suficiência dos indícios recolhidos haverá que proferir despacho de pronúncia, caso contrário, o despacho será de não pronúncia.

Na base da não pronúncia do arguido, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade do arguido ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de acto processual.

Já no que toca ao despacho de pronúncia, a sustentação deverá buscar-se, como vimos, na suficiência de indícios, tidos estes como as causas ou consequências, morais ou materiais, recordações e sinais de um crime e/ou do seu agente que sejam captadas durante a investigação.

Ao exigir-se a possibilidade razoável de condenação e não uma possibilidade remota, visa-se, por um lado, não sujeitar o arguido a vexames e incómodos inúteis e, por outro lado, não sobrecarregar a máquina judiciária com tramitações inúteis” cfr. Tolda Pinto, “A Tramitação Processual Penal”, 2ª. ed., pág. 701.

Daí que no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deva estar presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, designadamente as salvaguardadas no art. 30.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós mereceram consagração constitucional art. 20.º da D.U.D.H. e art. 27.º da C.R. P. [Ac. da Relação do Porto de 20 de Outubro de 1993, C.J. Ano XVIII, Tomo IV, pág. 261].

Consequentemente, o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido [Germano Marques da Silva em Direito P.Penal. pág. 179].

A regra “in dubio pro reo”, enquanto manifestação do princípio da presunção da inocência – princípio estruturante do processo penal -, tem como momento mais relevante a apreciação da prova em julgamento, mas também se manifesta no momento do encerramento do inquérito, quando o Ministério Público, valorando as provas recolhidas, tem de tomar posição, arquivando-o ou formulando acusação. E, evidentemente, também se coloca ao juiz de instrução, após o debate instrutório, devendo, portanto, lavrar despacho de não pronúncia, imposto pela regra “in dubio pro reo”, no caso de se encontrar perante uma situação de dúvida inultrapassável quanto às provas produzidas.

Tendo em conta que, também a prova indiciária deve ser sujeita a uma análise racional e objectiva, de acordo com as regras da experiência, da lógica, da razão e dos conhecimentos científicos e técnicos necessários ao caso. Cumpre aqui esclarecer que, no caso e na apreciação deste Tribunal, não cuidamos de eventual responsabilidade civilística, mas tão-só de factualidade com a necessária dignidade penal.

Apreciando os factos em análise e a prova recolhida no inquérito e na instrução:

Factos indiciariamente apurados:

R. a, intentou no dia 12 de Julho de 2012 contra B., seu ex-marido, acção de suprimento do seu consentimento (proc.n.º3256/12.2 TACSC a correr termos nos serviços do MP do tribunal de família e menores de Cascais) com o fim de instruir o pedido de atribuição de nacionalidade portuguesa do menor, filho de ambos, M..
No processo, a arguida refere que o assistente não tem qualquer contacto com o seu filho menor e não presta qualquer auxílio financeiro para fazer face às necessidades do menor.
A arguida referiu a fls. 45 dos autos acima referidos que teme que qualquer familiar paterno leve o seu filho menor para a Arábia Saudita e que a nacionalidade portuguesa para o seu filho é uma forma de garantir a segurança para o seu filho, uma vez que ninguém da Arábia Saudita o pode cá vir buscar.

Factos não indiciariamente apurados:

A arguida referiu nesse mesmo processo que o assistente é portador de todo o fundamentalismo que caracteriza o reino da arábia saudita e os seus naturais, com todas as consequências que daí advêem e que são de todos conhecidas.
O arguido visita o seu filho menor em Amã, no reino hachemita da Jordânia, uma vez que não estando ainda regulado definitivamente o poder paternal do menor, encontra-se estabelecido por Tribunal da Jordânia no processo n.º 2010/1502 um regime de visitas semanais do assistente ao menor que tem sido escrupulosamente cumprido por este que visita o menor pelo menos 1 vez por mês.
Tem sido a arguida a entregar o menor num centro de visitas em Amã, para posteriormente o assistente o recolher nessas instalações ao início do período de visitas e aí o devolver quando este finda, para depois regressar a Riade, na Arábia Saudita.

Da motivação:

Os factos indiciariamente apurados resultam essencialmente dos documentos juntos aos autos e que os comprovam.
Quanto aos factos não indiciariamente apurados resultam basicamente de a esse respeito não ter sido feita prova, até porque os documentos escritos em que algumas testemunhas do assistente se pronunciam sobre diversos aspectos não tem qualquer valor testemunhal à luz da nossa lei.
Acresce que, no que diz respeito ao suposto fundamentalismo do assistente, tais declarações não foram produzidas pela arguida quando foi ouvida em declarações, mas sim escritas num articulado pela sua advogada, desconhecendo-se em que medida é que a arguida influenciou ou não a advogada na escrita do articulado.

Do direito:

Nos termos do disposto no Artigo 180º, do Código Penal, quem dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.

2-A conduta não é punível quando:
a)A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b)O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.

3-Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do nº 2 do artigo 31º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.
4-A boa fé referida na alínea b) do nº 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.
Nos termos do disposto no artigo 182º, do mesmo diploma, à difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão.

Estabelece o artigo 183º que se no caso dos crimes previstos nos artigos 180º, 181º e 182º:

a)A ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; ou,
b)Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação; as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.

2-Se o crime for cometido através de meio de comunicação social, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias.

A difamação define-se doutrinariamente como a atribuição a alguém de facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerrem em si uma reprovação ético-social, isto é, que sejam ofensivos da reputação do visado.

Os modos de execução do crime de difamação poderão consistir na imputação de facto ofensivo, na formulação de juízo de desvalor e na reprodução de uma imputação ou juízo.

Dirigindo-se o agente a terceiro(s), imputando a outrem facto ofensivo da honra e consideração de alguém, preenche o tipo legal do crime de difamação. Na qualificação de uma conduta, como difamatória ou não, devem valorar-se os factos segundo critérios de normalidade, definidos em função da experiência, do senso comum da generalidade dos indivíduos que integram a sociedade num dado momento. Para se averiguar se a imputação é ofensiva da honra e consideração da pessoa visada, há que apurar se, no caso concreto, o brio, o amor-próprio e a sensibilidade pessoal foram afectados ou a reputação molestada (Acórdão da Relação de Lisboa, de 12.01.96, relatado pelo Senhor Desembargador Henrique Eiras, acessível na Internet em www.dgsi.pt).

Quanto ao elemento subjectivo do crime de difamação, com a entrada em vigor do CP de 1982, deixou de exigir-se dolo específico, o "animus difamandi", bastando para o preenchimento do seu elemento subjectivo o dolo genérico, em qualquer das suas formas e que se consubstanciará na consciência do agente de que a imputação do facto ou o juízo formulado são ofensivos da honra ou da consideração do visado tal como a reprodução da imputação ou do juízo - e na vontade de imputar o facto ou formular o juízo, ou de reproduzir a imputação ou juízo, sabendo que a sua conduta é proibida por lei.

No caso dos autos, não se apurou que a arguida tenha proferido qualquer expressão objectivamente injuriosa do assistente, a não ser que se pudesse considerar que o facto de dizer que o assistente não contribuiu para o sustento do menor possa ser considerado difamatório e até certo ponto pode sê-lo.

No entanto, também não ficou indiciariamente apurado nos autos que efectivamente o assistente contribui para o sustento do menor, porquanto a esse respeito temos apenas declarações escritas, nem sequer assinadas de pessoas que se desconhecem e essas declarações não têm qualquer valor probatório à luz do nosso direito processual penal.

Acresce que o assistente nem tão pouco descreveu na sua acusação o elemento subjectivo do tipo de crime de que acusa a arguida.

Embora não me pareça que a falta de alegação do elemento subjectivo gere, à luz do artigo 283º, n.º3, alínea b) do CPP, a nulidade da acusação, a verdade é que em julgamento a falta do elemento subjectivo apenas poderia ser colmatada com uma alteração substancial dos factos que, provavelmente, não seria aceite pela arguida e ordenaria a remessa dos autos para inquérito.

Em qualquer caso, não foi feita prova de que a arguida produziu todas as expressões que o assistente lhe imputa e ademais as que produziu inseriram-se apenas no contexto de defesa dos direitos do seu filho, desconhecendo-se, em face da prova produzida, até que ponto serão as imputações verdadeiras.

Assim, entendo não estarem preenchidos nem os elementos subjectivos nem objectivos do tipo de crime de que o assistente acusa a arguida.

Em face do exposto, decide-se não pronunciar a arguida pela prática de um crime de difamação ou por qualquer outro.
Custas pelo assistente que se fixam em 5 UCS.
Registe e notifique.”

2.Não se conformando com tal decisão veio o Assistente interpor recurso no qual formula as seguintes conclusões:

“1.O presente recurso vem interposto da decisão instrutória através da qual foi decidido não pronunciar a arguida pela prática do crime de difamação ou de qualquer outra.
2.A decisão impugnada foi proferida na sequência de acusação particular, na qual se imputava à arguida a prática do crime de difamação, p. e p. pelo artº 180º nº 1 do Código Penal.
3.Consubstanciada no facto de ter dito, relativamente ao recorrente, ser este “portador de todo o fundamentalismo que caracteriza o Reino da Arábia Saudita e os seus naturais, com todas as consequências que daí advém e que são de todos conhecidas”, cfr. artº 5º do articulado junto a fls. 322, que remete para a peça processual onde estas frases foram acolhidas.
4.E igualmente consubstanciada, no facto de a recorrente ter afirmado, que o Assistente “não tem qualquer contacto com o seu filho menor e não presta qualquer auxílio financeiro para fazer face às necessidades do menor.”
5.O menor é filho do recorrente e da recorrida.
6.No que refere à expressão transcrita na conclusão terceira, segundo a qual o recorrente é “portador de todo o fundamentalismo que caracteriza o Reino da Arábia Saudita e os seus naturais, com todas as consequências que daí advém e que são de todos conhecidas”, o tribunal a quo considerou que, constando a mesma de um articulado, assinado por ilustre advogada, não se poderia atribuir a respectiva autoria à arguida.
7.Por essa razão entendeu este facto como não indiciado, por não se saber se, a autoria respectiva, pertencia à recorrida ou à sua mandatária. Trata-se, salvo o devido respeito, de uma decisão errada.

Na verdade:

8.Como decorre da jurisprudência, a que se alude no ponto 2 da motivação, a responsabilidade pelas afirmações deduzidas nos articulados, ainda que assinadas por mandatário judicial, é sempre do mandante.
9.Pelo que o mandante, neste caso a recorrida, se constitui como a autora dessas expressões, nos termos e para os efeitos do artº 26º do Código Penal. Isto mesmo que se considerasse existir, igualmente, responsabilidade daandatáris, o que não foi invocado, nem tinha de o ser.
10.Ao considerar que as expressões em causa não são atribuíveis à recorrida, a decisão impugnada violou o disposto no artº 26º do CP, 1161º nº 1 alínea a) do Código Civil, artº 46º do Código de Processo Civil, artº 62º do Estatuto da Ordem dos Advogados e o artº 2º da Lei nº 49/2004, de 24 de Agosto.
11.Por isso deverá considerar-se, ao contrário do fez a decisão impugnada, que está claramente indiciado que a recorrida disse, referindo-se ao recorrente, que ele é “portador de todo o fundamentalismo que caracteriza o Reino da Arábia Saudita e os seus naturais, com todas as consequências que daí advém e que são de todos conhecidas”.
12.Ao considerar que não estava indiciada a utilização, por parte da recorrida, da expressão indicada, o tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova. Artº 410 nº 2 al. c) do CPP.
13.Devendo ser revogado este entendimento e em consequência, ser a expressão dada como provada, sendo atribuída à recorrida, por não restarem dúvidas que foi proferida e escrita e que a autoria da mesma é imputável, precisamente, à recorrida.
14.Nem sequer se afigura necessário invocar o patamar indiciário em que nos encontramos, nos termos dos artºs 283º nº 1 e 308º nº 1 do CPP.
Isto porque a indiciação, nos termos pretendidos, é clara, insofismável e evidente.
15.A expressão em causa tem caracter claramente difamatório, visando denegrir a honra e reputação do recorrente, e visando também lograr, por essa via, benefícios na acção judicial onde foi utilizada.
16.Isso mesmo se procura explicitar no ponto 3.3 da Motivação, em termos que aqui se dão por reproduzidos.
17.Como se detalha nesse trecho da motivação a expressão tem caracter difamatório em si mesma.
18.Como têm caracter difamatório as expressões atribuídas à recorrida, de acordo com as quais o recorrente não presta auxílio ao seu filho menor, não contribui para o seu sustento e não tem qualquer contacto com ele.
19.A este respeito convoca-se o Ac. da Relação de Coimbra, de 22 de maio de 2013, que foi indicado na motivação.
20.Improcede a argumentação expendida na decisão recorrida quando após alguma tangiversação e uma evidente contradição, conforme ponto 3.4 da motivação, entende que a expressão perde a tipicidade porque o recorrente não demonstrou o contrário do que se afirma.
21.O despacho impugnando violou o disposto no artº 180º nº 2 al. b) do CP, o qual determina a não punibilidade no caso de prova da verdade da imputação, ao contrário do rumo tomado na decisão recorrida.
22.Acresce que ao não aceitar, como prova documental indiciária os documentos juntos pelo recorrente com a sua participação criminal, onde diversas pessoas, devidamente identificadas, atestam a conduta daquele na relação com o filho, de forma clara e abundante que a decisão instrutória violou o disposto no artº 164º nº 1 do CPP.
23.Ao contrário do que se decisiu a acusação particular descreve o elemento subjectivo.
24.A recorrida proferiu aquelas expressões de forma livre e consciente, visando ofender o recorrente, imputando-lhe o fundamentalismo daninho como característica e a falta de interesse pelo seu filho como comportamento.
25.Como se detalha no ponto 4 da Motivação, a acusação particular refere a intencionalidade da recorrida sob a forma de dolo directo, e a consciência do caracter ilícito e danoso da conduta.
26.O que resulta de toda a sequência do texto da acusação particular e mais expressamente dos seus artigos 3, 4, 11 e 20.
27.Não houve falta da invocação e de alegação do elemento subjectivo do crime.
28.Não sendo aplicável no caso vertente o Acórdão de Fixação de jurisprudência nº 1/2015, seja por razões formais seja por razões substanciais, tal como se detalha na motivação.
Termos em que deve ser revogada a decisão recorrida substituindo-se por uma outra que determine a pronúncia da recorrida.”

3.1.-Respondeu o MºPº pugnando pela improcedência do recurso formulando as seguintes conclusões:

“1–A arguida R. não foi pronunciada pela prática do crime de difamação;
2–Tal decisão sustentou-se na ausência de indícios suficientes da verificação do referido crime;
3–Com efeito, não se apurou que a arguida tenha proferido qualquer expressão objetivamente injuriosa contra o assistente;
4–Por outro lado, a acusação não contém o elemento subjetivo do tipo;
5–Pelo exposto e salvo melhor opinião, entende-se que o recurso não merece provimento, devendo manter-se o douto despacho de não pronúncia recorrido.”

3.2.-Respondeu a arguida, ora recorrida, pugnando pela improcedência do recurso e formulando as seguintes conclusões:

“1.O despacho de não pronúncia posto em crise pelo recorrente não enferma dos vícios que o mesmo lhe imputa. Na verdade demonstram os autos.
2.Que as expressões tidas pelo recorrente como ofensivas da sua honra e consideração se mostram vertidas em peça processual assinada pela então mandatária da arguida, aqui recorrida.
3.Não integrando o tipo de ilícito em questão pois cabem dentro o de um direito de acção necessário, à luz daquilo que se pode chamar de risco permitido e movem-se dentro dos limites que a nossa sociedade tolera como válido. Ainda que assim se não entenda, demonstram os autos.
4.Que o libelo acusatório, ao contrário do entendimento do recorrente, não descreve os elementos subjectivos do tipo. Bem como que.
5.Ao não apresentar atempadamente queixa e acusação particular contra todos os comparticipantes, in casu a então mandatária da arguida, tal como tem sido entendido de forma constante e reiterada pela jurisprudência das Relações, implica, nos termos conjugados dos artºs 116º nº 1 e 117º do Código Penal, a desistência de queixa contra a arguida.
6.Não se mostrando assim verificada a condição de procedibilidade fixada no artº 50º nº 1 do CPP.
Termos que determinam a improcedência do recurso e a manutenção do decidido.”

4.Admitido o recurso com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo, e subidos os autos a este tribunal, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu visto.

6.Realizou-se a competente conferência.

7.O objecto do recurso versa a apreciação dos requisitos objectivos da pedida pronúncia da arguida, pelo crime de difamação, pelo conteúdo de expressões utilizadas por advogado mandatário, em articulado por este escrito e assinado.

8.Apreciação.

A questão em apreciação decorre da verificação de um facto que não é controvertido, pelo que por tal se tem de ter por pacificamente assente:
-As expressões em que se funda o procedimento criminal, intentado nos presentes autos, foram produzidas em articulado processual apresentado a 12 de Julho de 2012, conforme fls 135, em acção de suprimento de consentimento do ora assistente, com o fim de instruir o pedido de atribuição de nacionalidade portuguesa do menor B.B.M.Bakheet, filho do assistente e da arguida, sendo tal peça constante de folha timbrada subscrita pelo ilustre advogado da arguida, actuando na qualidade de mandatário constituído.

O tribunal a quo entendeu na decisão recorrida que a recorrida não era autora das expressões contidas naquele documento, nem penalmente responsável pelo conteúdo das mesmas, o que o recorrente impugnou com invocação de errada apreciação da prova e de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
As questões que se suscitam a partir do facto assente, por demonstrado, radicam sobre o direito aplicável e a responsabilidade penal das expressões utilizadas, mas não sobre a apreciação da matéria de facto.
A questão em apreço radica na questão de saber se a recorrida é responsável pelo conteúdo das expressões produzidas em articulado processual pelo seu Ilustre Mandatário, sendo uma questão de direito.

Ora qualquer afirmação em articulado processual ou é da autoria exclusiva do advogado, ou deste e do mandante, ou apenas do mandante, o que pressupõe, necessariamente, a articulação de factos donde resulte a responsabilidade exclusiva de um deles e as causas de exclusão do outro, caso seja intentada acção crime apenas contra um deles, como o pretendido pelo assistente.

Ora, na verdade, nenhuma prova, nem sequer alegação, foi feita nos autos, no sentido de se concluir que a arguida R. relatou factos, que sabia não serem verdadeiros, para que o advogado os vertesse para o articulado, no convencimento de que correspondiam à verdade, caso em que o procedimento criminal deveria ter sido intentado contra ambos. Estaríamos, assim, neste âmbito, perante um caso de comparticipação, ou seja, duma acção conjunta do mandante e mandatário na realização de um tipo legal de crime, de acordo com Maia Gonçalves, (anotações aos artigos 115.º a 117.º do Código Penal Anotado e Comentado, Almedina, 13.ª Ed., 2001, pp. 390 e ss.), onde afirma: “consagrou-se e generalizou-se o princípio da indivisibilidade das consequências do não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes do crime. Em matéria criminal não se pode escolher quem deve ser perseguido no caso de comparticipação; o que está em causa é o crime”.

No mesmo sentido pronunciam-se Manuel de Oliveira Leal Henriques e Manuel José Carrilho de Simas Santos – Código Penal Anotado, Vol. I, Editora Rei dos Livros, 1996, 2.ª Ed., pp. 812 e ss.

Assim sendo, a renúncia de queixa e a falta de acusação contra o advogado subscritor da peça processual implica, nos termos das disposições legais citadas, dos arts. 115.º a 117.º do Cód. Penal, a desistência da queixa contra a arguida AP....

Neste sentido, Ac. Tribunal da Relação de Coimbra, de 1 de Março de 1989, onde se afirma que “a afirmação em articulado processual ou é da autoria exclusiva do advogado ou deste e do mandante; se for exercido o respectivo procedimento criminal apenas contra o mandante, dado o disposto no n.º 3 do art.º 114.º do Cód. Penal de 1982 – actualmente n.º 2 do art.º 115.º – é de concluir pela desistência da queixa se excedido o prazo da queixa contra o mandatário” – publicado in CJ, Ano XIV, tomo II, pp. 76.
É esta a situação dos presentes autos, em que o assistente B. apenas apresentou queixa contra a mandante, cliente, a arguida, ora recorrida R., e não, também, contra o advogado, mandatário, sendo que está, em muito, precludido o prazo para apresentar a respectiva queixa.

A este respeito, e como se refere no Acórdão proferido neste TRL a 24 de Setembro de 2006, (pelos mesmos juízes que subscrevem o presente acórdão) é possível configurar três situações distintas:
-Uma em que o advogado transfere para a peça processual aquilo que o cliente lhe disse depois de o advertir expressamente das consequências que daí poderão advir;
-Outra em que o autor do escrito é apenas o advogado, sem qualquer interferência do cliente, que, inclusive, é surpreendido por aquilo que é vertido na peça processual;
-Finalmente, aquela em que o cliente relata factos que sabe não serem verdadeiros, com o propósito de que o advogado os verta para o articulado, no convencimento de que correspondem à verdade.

Nesta última hipótese, ao agir no convencimento de que os factos que lhe foram relatados pelo cliente correspondem à verdade, o advogado não tem a intenção, e nem sequer configura a possibilidade, de preencher o tipo de ilícito do art. 180.º do Cód. Penal, faltando-lhe, pelo exposto, o dolo deste tipo legal. O cliente será, então, autor mediato do crime de difamação (art. 26.º do Cód. Penal) e o advogado um seu instrumento.

Unicamente nesta hipótese, se admite a possibilidade de o cliente/mandante ser o único agente do ilícito.

Com efeito, mesmo na primeira hipótese, está-se perante um caso de comparticipação criminosa – verbi gratia o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido a 17 de Janeiro de 1996, in http//www.dgsi.ptl/.

E, na segunda, perante um ilícito cometido apenas pelo advogado.

Assim, a responsabilidade exclusiva do cliente deve, pois, ser liminarmente excluída quando na peça processual elaborada por advogado seja relatado um facto ofensivo da honra de outrem, porque o advogado, profissional forense com a responsabilidade de conduzir técnica e processualmente a lide, em nome e em representação dos seus constituintes, está vinculado por um dever geral de urbanidade (art. 89.º do Estatuto da Ordem dos Advogados), devendo, no exercício da sua actividade, evitar a pR.ção de factos susceptíveis de ofender a honra e a consideração de outrem.

Ora e admitindo que os factos referidos na acusação particular são ofensivos da honra dos assistentes, nenhuma prova, nem sequer alegação, foi feita nos autos, no sentido de se concluir que a arguida R. relatou factos que sabia não serem verdadeiros, para que o advogado os vertesse para o articulado, actuando o mandatário no convencimento de que correspondiam à verdade.

E, por outro lado, nem sequer tal consta da dita acusação particular, - como deveria necessária e obrigatoriamente constar, - por forma a afastar a responsabilidade do Ilustre Mandatário, o que vale por dizer que os factos da acusação, tal como dela constam, são de imputar à arguida e ao seu Ilustre advogado mandatário.

Consequentemente, estamos perante um caso de comparticipação criminosa.

Na realidade, o art. 26.º do Cód. Penal, sob a epígrafe de autoria, estatui que:

“É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.
Este normativo engloba, indubitavelmente, a figura da comparticipação criminosa.
A este propósito, escreveu Faria Costa, que “para definir uma decisão conjunta parece bastar a existência da consciência e vontade de colaboração de várias pessoas na realização de um tipo legal de crime juntamente com outro ou outros. É evidente que na sua forma mais nítida tem de existir um verdadeiro acordo prévio, podendo mesmo ser tácito, que tem igualmente de se traduzir numa contribuição objectiva conjunta para a realização típica. Do mesmo modo que, em princípio, cada co-autor é responsável como se fosse autor singular da respectiva realização típica” – Formas do Crime, Jornadas de Direito Criminal, Centro de Estudos Judiciários, Livraria Almedina, pp. 169 e ss.

No caso vertente, dúvidas não há de que os articulados em referência, foram elaborados pelo Ex.mº Mandatário da ora arguida R. sendo o respectivo teor resultado da laboração intelectual do Ilustre Advogado.

Como se sabe, o advogado é, sempre, livre de discernir, de acordo com as instruções que tem e o objectivo conferido através do mandato, quais os factos relevantes para a procedência da sua pretensão processual, carreando para os autos, por seu mote próprio e pesoalíssima interpretação, o que o mesmo considera relevante para o bom exercício da defesa do respectivo constituinte.

Segundo as regras da experiência comum, não sendo, in casu, a arguida uma técnica de direito, esta, terá transmitido ao seu ilustre mandatário os factos que, na sua perspectiva das coisas, sucederam, e que poderiam ser pertinentes em relação à litigância em que se mostrava envolvida, sendo mais do que provável que desconheça as regras próprias da tramitação processual, dos seus limites e consequências específicas, bem assim como a possibilidade concreta de incorrer na responsabilidade criminal, que ora se lhe imputa.

Sucede que, se tais articulados se afiguravam ofensivos da honra do assistente, não tendo sido alegado, mesmo na peça acusatória, que o Exm.º Advogado agiu no convencimento de que os factos que lhe foram relatados pela cliente, ora arguida, correspondiam à verdade, a responsabilidade criminal será de imputar a ambos.

No plano das regras do mandato judicial e da experiência comum, presumindo-se que, entre Mandatário e Mandante, existe uma relação de lealdade, e afirmando-se que o teor dos articulados em apreço, assim como as imputações que neles se fazem, são falsos e ofensivos da honra e consideração do assistente, a arguida assim o teria comunicado àquele.

E, se assim não era, tal deveria constar da acusação particular, o que verificadamente se observa não ter sido cumprido.

Estamos, pois, in casu, perante uma situação de comparticipação criminosa.

Como se infere da interpretação conjugada dos artigos 180.º e 188.º, n.º 1, ambos do Cód. Penal, o crime de difamação é de natureza particular, o que vale por dizer que, para instauração do procedimento criminal, é necessária a apresentação de queixa, e, posteriormente, a dedução de acusação particular – cfr. Art.º 50.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

A queixa deveria, assim, ter sido apresentada contra todos os comparticipantes.

No sistema processual penal português consagrou-se o chamado “princípio da indivisibilidade”, quando, no artº. 115º, n.º 3 do Código Penal, estipula que: “o não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa”.

Assim como a queixa, também a acusação particular, foi deduzida apenas contra a arguida, R., olvidando-se, sempre, o seu Ilustre Mandatário.

Assim sendo, exactamente porque, o assistente B. não apresentou queixa, nem deduziu acusação particular contra ambos os participantes, verifica-se nos autos a falta uma condição legal de procedibilidade, imposta pelos arts. 115.º, n.º 3 e 117.º, ambos do Código Penal, o que importa a, consequente e necessária, declaração de extinção do procedimento criminal.

Ponderados todos estes elementos e considerandos de facto e de direito, cremos ter deixado demonstrado que in caso não poderia ter tido lugar a pretendida pronúncia da arguida, R., termos que ditam a consequente improcedência do recurso.

9.Decisão:

Em conformidade com o exposto acordam os juízes da ...ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso e confirmar a não pronúncia da recorrida R., por falta de queixa e acusação contra o Advogado, seu mandatário, condição legal de procedibilidade, imposta pelos arts. 115.º, n.º 3 e 117.º, ambos do Código Penal, o que consequente e necessáriamente importa a declaração de extinção do procedimento criminal contra a arguida.
Custas pelo recorrente, em 3 (três) Ucs.

(Texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pelo relator)



Lisboa, 17 de Maio de 2016

               
Ricardo Manuel Chrystello e Oliveira de Figueiredo Cardoso
Filipa Maria de Frias Macedo Branco