Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2427/15.4T8LSB.L1-2
Relator: FARINHA ALVES
Descritores: RUÍDO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/03/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: Como observam Pires de Lima e Antunes Varela no seu Código Civil Anotado, III Vol., 2.ª edição, em anotação em anotação ao art. 1346.º, os ruídos desnecessários, que causem algum prejuízo aos vizinhos, são sempre ilícitos, traduzindo uso anormal do prédio, ou redundando em abuso do direito.
São ilícitos os ruídos produzidos pela Ré na sua residência, situada no 8.º andar de determinado edifício, ao fazer uso de calçado ruidoso entre as 7H00 e as 8H00 de cada dia, e ao fazer uso de aspirador ao fim de semana, antes das 8H00, sempre sem qualquer necessidade, sabendo que isso perturba muito o descanso ou a tranquilidade dos vizinhos.
Sendo fundamento de responsabilidade civil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

Mário e Maria, residentes na Rua (…), 8.º D.to, em Lisboa, intentaram contra N. Natividade, residente no 9.º D.to do mesmo prédio, a presente ação declarativa de condenação pedindo que a mesma fosse condenada a cessar imediatamente o ruído incomodativo produzido por si e pelo seu animal de companhia e a indemnizar os AA. no montante de € 15.000,00.

Alegaram, em síntese, que a Ré, entre as 07h e 08h da manhã, produz ruídos incomodativos e perturbadores propositadamente com o objetivo de perturbar a saúde física e mental dos AA, o que tem conseguido, causando danos manifestos na sua saúde e descanso, danos estes que merecem ser compensados patrimonialmente.
Situação que se mantém desde Novembro de 2012.

A Ré contestou, alegando que o barulho que faz entre as 07 e as 8 da manhã cinge-se ao normal e estritamente ao necessário a levantar-se, tomar banho, vestir-se e sair de casa por forma a ir trabalhar, não fazendo qualquer barulho de forma propositada ou com intenção de prejudicar os seus vizinhos.
E que também o seu cão, de raça pequena e já adulto, não faz barulhos desadequados.
Tendo concluído pela improcedência da ação.
E, alegando que a atuação dos AA. lhe tem causado danos, pediu, em reconvenção, que os mesmos fossem condenados a pagar-lhe a quantia de € 15.000,00, na proporção de 50% cada um.
Os Autores contestaram a reconvenção, defendendo a sua inadmissibilidade e, subsidiariamente, a sua improcedência.
Em audiência prévia, foi julgada improcedente a exceção de inadmissibilidade da reconvenção; foi fixado o valor da causa; foi identificado o objeto do litígio e foram enunciados os temas da prova; foram indicados os meios de prova e foi designada data para julgamento.
A final foi proferida sentença, com a seguinte decisão:
«Pelo exposto, julgando a acção improcedente por não provada e a reconvenção parcialmente procedente por provada, decide-se:
- Absolver a Ré N. Natividade do pedido contra si formulado pelos AA.
- Absolver a A. Maria do pedido reconvencional contra si formulado pela A.
- Condenar o A. Mário no pagamento à Ré N. Natividade da quantia de 6.250,00 € a título de danos não patrimoniais.
Custas por AA. e R. na proporção do decaimento.»

Inconformado, o autor Mário apelou do assim decidido, tendo apresentado alegações, rematadas por conclusões, onde impugna a decisão sobre matéria de facto e, consequentemente, a decisão de direito, defendendo a procedência da ação e a improcedência da reconvenção.
A apelada contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.

Sendo o objeto dos recursos delimitado, em regra, pelas respetivas conclusões, e não se suscitando a apreciação de qualquer questão que seja do conhecimento oficioso do tribunal, no presente recurso está em causa a alteração da decisão sobre matéria de facto, e a subsequente valoração da matéria de facto alterada.

Apreciando:

I – A impugnação da decisão sobre matéria de facto

O Apelante identifica como incorretamente julgados os factos julgados provados nos pontos n.ºs 13, 18, 19, 21, 22, 24, 27, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 37, 38, 39, 40, 43, 44, 45 e 46 do elenco da matéria de facto provada. E os julgados não provados nas alíneas a), b), c), d), f), g), h), i), j), m), n), o) e q), do elenco da matéria de facto não provada.
Ao primeiro grupo de factos impugnados deverá ser aditado o ponto 28, efetivamente impugnado, como se pode ver a fls. 17 das alegações.
Diversamente, não foi identificada impugnação em relação aos seguintes pontos de facto:
18. A Ré tem tijoleira no corredor e na sala, um dos quartos tem chão de cortiça e a outra alcatifa.
19. A tijoleira está na sua casa há mais de quinze anos.
22. O prédio onde vivem tem quarenta anos e não tem boa insonorização.
27. O cão habita com a A. já há cerca de seis anos.
29. Os AA. apesar da amizade que os ligava à Ré nunca falaram pessoalmente com ela.
31. Por chamarem a polícia municipal causaram à Ré atrasos na saída para o trabalho.
Assim, a impugnação da decisão sobre matéria de facto incide sobre os seguintes factos, julgados provados:
13. No dia 05/08/2014, por mão do Sr. Agente Principal Rui P., foi a R. notificada para fazer cessar o ruído produzido.
21. O que os AA. ouvem são os passos da Ré, o chuveiro, o levantar dos estores, e outros barulhos comuns ao acordar e à rotina diária.
24. Sai para a rua para passear o seu cão e depois vai para o ginásio onde pratica desporto.
28. O cão não ladra quando a dona sai, mas apenas quando pressente a presença de estranhos no patamar.
30. Os AA. passaram a esperar a Ré à porta do prédio e olhar-lhe para os sapatos.
32. A denúncia a Ré ao IASFA – entidade senhoria dos AA. e Ré podia terminar numa acção de despejo à Ré caso o IASFA se bastasse com a denúncia dos AA.
33. Quando a Ré sai de casa, o A. marido que se encontra à espera, segue-a batendo palmas.
34. O A. ronda a porta da Ré.
35. O A. já esperou a Ré no seu carro, e quando esta sai do prédio, arranca a alta velocidade, passando junto à Ré.
37. A ré sente-se controlada e vigiada pelo A. marido e receia pela sua segurança.
38. A Ré cada vez mais chega tarde a casa porque não se sente bem.
39. A Ré pediu ao seu filho mais novo para voltar a viver consigo por uns tempos pois receava ser abordada por agentes da PSP e PM, estando sozinha em casa.
40. O A. pressionava a Policia Municipal para que esta agisse mesmo quando lhe era dito que não havia motivos para tal ou quando os agentes constatavam que o barulho não se verificava.
43. O A. marido divulga pelos vizinhos que a Ré é barulhenta e ruidosa.
44. O A. faz declarações públicas dizendo que a Ré tem “transtorno da personalidade anti-social”, que é uma “prevaricadora” e que é “ruidosa e malformada” que é uma pessoa que produz barulho excessivo.
45. A Ré tem vergonha dos seus vizinhos e sente-se humilhada e ofendida pelo A.
46. Tendo tido igualmente necessidade de recorrer a um médico e de tomar medicação para controlo da ansiedade e tensão.

E sobre os seguintes factos, julgados não provados:
a) Desde há cerca de dois anos, que a R. se tem comportado de forma a prejudicar as boas relações de vizinhança, produzindo ruídos desnecessários e incomodativos.
b) Quase diariamente, de há dois anos a esta parte, a R. por volta das 07.00 horas, calça uns sapatos que sabe serem ruidosos, e que ecoam no chão de tijoleira, que entretanto colocou no apartamento, enquanto faz rotina matinal, até cerca das 08.00 horas.
c) A R. arrasta e bate com as portas dos roupeiros, fecha as gavetas com força, abre os estores com violência, arrasta objetos no chão ou deixa-os cair, tudo durante esse mesmo período e até sair de casa.
d) Aos fins-de-semana a R. a partir das 07.00 começa a fazer limpezas, com ou sem uso do aspirador, perturbando o repouso e a tranquilidade dos vizinhos.
e) O cão da R., normalmente por volta das 06.00 da manhã, começa em correrias incessantes.
f) As unhas do animal raspam no chão de tijoleira, durante todo o período em que está em casa, e até ir à rua, e após o seu regresso.
g) Logo que a R. sai de casa, o animal começa a ladrar freneticamente, e a latir ruidosamente, sendo que na maior parte das vezes, o fez por cerca de mais uma hora, depois de a dona sair, o que acontece por volta das 08.00 horas.
h) Os AA. são abruptamente acordados às 07.00 horas – e por vezes incomodados logo após as 06.00 horas – e pelo menos até às 09.00 horas, são perturbados com barulho excessivo proveniente da fração da R.
i) Os AA. não incomodam ninguém, e têm o máximo respeito pelos seus vizinhos, observando os períodos de descanso de cada um deles.
j) Os AA. tentaram diversas vezes chegar à fala com a R., por via telefónica e pessoalmente, sendo que esta sempre se esquivou a conversar sobre o assunto.
m) No dia 05/08/2014 o Sr. Agente Principal Rui P. presenciou barulhos efetuados pela Ré que eram excessivos.
n) A R. agrava o seu comportamento de cada vez que é interpelada.
o) Em consequência de tais factos, os AA. sofreram diversos desequilíbrios emocionais, angústia e dor, quer porque sofriam diretamente com o ruído produzido.
q) E descalça sistematicamente os sapatos ruidosos que usa na sua residência desde cerca das 07.00 até quando se ausenta, cerca das 08.00, saindo com sapatos de sola silenciosa.

Em relação ao ponto de facto n.º 13, apenas está em causa a correção, para o dia 01-07-2014, da data em que a Ré foi notificada nos termos que ali constam.
Confirmando-se, em face do documento invocado pelo Recorrente, que é essa a data correta, devendo-se a lapso a indicação divergente que consta nesse ponto de facto.
Havendo, pois, que corrigir esse lapso.
No mais, o Recorrente, valorando de forma diferente a prova produzida, em especial a testemunhal, defende a alteração do sentido das respostas dadas aos factos impugnados. Pretendendo ver julgados provados os factos que foram alegados para fundar a ação, e não provados os factos em que assentou a procedência da reconvenção.
O primeiro grupo de factos impugnados respeita aos ruídos produzidos na casa da Ré, pela própria e pelo seu cão, matéria em relação à qual a decisão recorrida julgou provado que:
21. O que os AA. ouvem são os passos da Ré, o chuveiro, o levantar dos estores, e outros barulhos comuns ao acordar e à rotina diária.
24. Sai (aos fins-de-semana) para a rua para passear o seu cão e depois vai para o ginásio onde pratica desporto.
28. O cão não ladra quando a dona sai, mas apenas quando pressente a presença de estranhos no patamar.
E julgou não provado que:
a) Desde há cerca de dois anos, que a R. se tem comportado de forma a prejudicar as boas relações de vizinhança, produzindo ruídos desnecessários e incomodativos.
b) Quase diariamente, de há dois anos a esta parte, a R. por volta das 07.00 horas, calça uns sapatos que sabe serem ruidosos, e que ecoam no chão de tijoleira, que entretanto colocou no apartamento, enquanto faz rotina matinal, até cerca das 08.00 horas.
c) A R. arrasta e bate com as portas dos roupeiros, fecha as gavetas com força, abre os estores com violência, arrasta objetos no chão ou deixa-os cair, tudo durante esse mesmo período e até sair de casa.
d) Aos fins-de-semana a R. a partir das 07.00 começa a fazer limpezas, com ou sem uso do aspirador, perturbando o repouso e a tranquilidade dos vizinhos.
e) O cão da R., normalmente por volta das 06.00 da manhã, começa em correrias incessantes.
f) As unhas do animal raspam no chão de tijoleira, durante todo o período em que está em casa, e até ir à rua, e após o seu regresso.
g) Logo que a R. sai de casa, o animal começa a ladrar freneticamente, e a latir ruidosamente, sendo que na maior parte das vezes, o fez por cerca de mais uma hora, depois de a dona sair, o que acontece por volta das 08.00 horas.
h) Os AA. são abruptamente acordados às 07.00 horas – e por vezes incomodados logo após as 06.00 horas – e pelo menos até às 09.00 horas, são perturbados com barulho excessivo proveniente da fração da R.
(…)
m) No dia 05/08/2014 o Sr. Agente Principal Rui presenciou barulhos efetuados pela Ré que eram excessivos.
n) A R. agrava o seu comportamento de cada vez que é interpelada.
(…)
q) E descalça sistematicamente os sapatos ruidosos que usa na sua residência desde cerca das 07.00 até quando se ausenta, cerca das 08.00, saindo com sapatos de sola silenciosa.

Com a seguinte fundamentação:
«Os depoimentos e declaração de parte de N. Natividade, Mário e Maria foram claramente antagónicos, pelo que teve o Tribunal de se socorrer dos demais elementos de prova para sustentar os respectivos depoimentos.
Todos os depoimentos testemunhais foram inequívocos e unânimes no sentido de que o prédio em questão, e onde AA. e R. são moradores, é antigo e têm uma péssima insonorização. Partindo deste pressuposto básico, tornou-se patente também dos depoimentos dos moradores que os sons decorrentes das actividades mais básicas e regulares da vivência diária ecoam e são perceptíveis pelos demais - testemunhos de Rui N., José., Bruno, André e Maria Isabel).
Para além dos AA., os testemunhos ouvidos que imputam à R. a realização de barulhos excessivos entre as 07h e as 08h da manhã, foram os de Rui N. e José, ora estes dois vizinhos têm litígios pessoais com a Ré, pondo em causa diretamente a sua isenção e credibilidade, tendo subscrito algumas das queixas efetuadas junto da Polícia Municipal.
Os depoimentos de Rui P. e Nelson, agentes da Policial Municipal que se deslocaram ao local, às horas pretendidas pelos AA., foram unânimes em referir que os barulhos ouvidos eram os habituais à vivência quotidiana (ouvem-se passos, barulho de água, armários a abrir e fechar). De forma inequívoca referiram que, em momento algum presenciaram a realização de barulhos que pudessem qualificar de propositados ou excessivos. O Agente Rui P. referiu concretamente que só levantou o auto de notícia por imposição do seu superior hierárquico A. Rodrigues. Já este referiu que o levantamento do auto de contra-ordenação à Ré foi apenas uma tentativa (injustificada) de cessar com as queixas permanentes do A. junto das autoridades e de resolver o problema de vizinhança existente.
Para além destes depoimentos dos agentes de autoridade (que referiram nada ter ouvido para lá do barulho normal da vida diária), também os depoimentos de Bruno, João, André e Maria Isabel foram inequívocos e estes sim, claros e credíveis, no sentido de que a Ré faz uma vida normal, e como trabalha, arranja-se diariamente para ir trabalhar entre as 07 e as 08 da manha, numa rotina normal de onde fazem parte certamente alguns ruídos mas que são os decorrentes das actividades que tem de fazer (tomar banho, puxar autoclismo, secar o cabelo, fazer o pequeno almoço). Bruno e Maria Isabel foram inequívocos em afirmar a vivência normal e quotidiana da R., com quem privam frequentemente, por serem filho e amiga respectivamente. João e André, vizinhos da Ré, referiram que se ouvem barulhos de todas as casas porque o prédio é efectivamente muito mal insonorizado. Quanto à Ré, os barulhos ouvidos são os normais de uma vivência normal (abrir e fechar a porta, andar)
No que se refere ao cão da Ré ressaltou ao Tribunal que a idade, o tamanho e peso do animal não são susceptíveis de criar os barulhos com a intensidade que os AA alegam ouvir (correrias, ladrar frenético e incessante). O depoimento de parte da Ré, corroborado ainda pelos depoimentos de Bruno, João e André e pelas regras de experiência comum de quem tem cães permitem constar que: Em primeiro lugar, um cão com seis anos não ladra freneticamente durante horas depois da dona sair, porque está habituado a essa rotina. Em segundo lugar, os agentes da Policia Municipal que se deslocaram ao local várias vezes nunca referiram a existência de barulhos provocados pelo cão, nem tal foi referido por qualquer das testemunhas ouvidas. Quanto ao barulho das patas na tijoleira afigura-se de um manifesto exagero o incómodo causado, visto que o animal pesa cerca de 2,5 kgs, e, como é natural tanto o cão como a dona têm de poder andar em casa.
Os factos não provados decorrem assim da conjugação dos depoimentos ouvidos que se afiguraram mais credíveis, nomeadamente dos agentes policiais que confirmaram que não ouviram qualquer barulho que não estivesse dentro da normalidade, dos vizinhos André e João, e mesmo do filho da Ré Bruno, que apesar da proximidade com a Ré relevou discernimento e isenção.
Os depoimentos de parte dos AA. (pelo interesse na causa), e os depoimentos de José e Rui N., pelos litígios já existentes com a Ré, suscitaram manifestas dúvidas ao Tribunal quer quanto à sua veracidade quer quanto ao grau/intensidade dos barulhos ouvidos.

Nos termos já referidos, o Apelante pretende ver alterado o sentido dessas respostas, o que justificam nos termos das seguintes conclusões:
2. Não poderá o Recorrente concordar com a não idoneidade dos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas, o Exmo. Senhor Rui N. e o Exmo. Senhor José, porquanto os mesmos depuseram no sentido de atestar a veracidade do ruído que é produzido pela Recorrida, encontrando-se a ultrapassar situação similar à do Recorrente – vide testemunhos de Rui N. e José
3 – Na verdade, o depoimento prestado por parte dos agentes de autoridade, atestou que foi possível confirmar-se a existência de ruído – vide o depoimento do Agente Rui P. – que, não obstante alegar que apenas procedeu ao levantamento do auto de notícia por ordens do superior hierárquico, o que se coaduna com a organização da entidade em questão.
Negligencia, pois, o Venerando Tribunal que o Agente da Autoridade atesta, também, que não procedeu ao levantamento do auto de notícia em momento anterior pelo facto de ter procedido à notificação da Recorrida aquando das outras deslocações.
4 – No que concerne ao depoimento prestado pelo Agente Nelson o mesmo apenas alega que nas deslocações realizadas a Recorrida não se encontrava em casa, motivo pelo qual não poderá ser este traduzido para a não verificação de ruído produzido pela Recorrida.
5 – O depoimento prestado pelo Exmo. Senhor Bruno – filho da Recorrida – relata apenas qual o quotidiano da Recorrida, sendo verdade que o mesmo não coabita com a sua mãe, pelo que não deverá ser tido em conta como prova.
6 – Ademais, denota, antes, uma falta de interesse quanto à situação que, alegadamente, a Recorrida relata em choro ao mesmo, afirmando, ainda, que a Recorrida é uma pessoa nervosa e ansiosa. Assim, apenas deveria o Tribunal ter decidido no sentido de atestar quanto à veracidade de que a Recorrida, possivelmente, já seria ansiosa e nervosa.

Respondendo a Apelada que a decisão sobre matéria de facto não merece censura.

Apreciando.

Em relação à matéria da primeira conclusão, acompanha-se a argumentação do Apelante, expressa nos seguintes termos:
Verifica-se pela Leitura da Sentença proferida pelo Tribunal a quo que não foram tidos em conta dos depoimentos prestados pelas Testemunhas arroladas, o Exmo. Senhor Rui N. e o Exmo. Senhor José, alegando que os mesmos haviam subscrito as queixas efetuadas junto da Policia Municipal. Sucede, porém, que é explanado por ambas as testemunhas que não foi por uma questão de amizade, nem pelo facto de terem subscrito ou não a queixa apresentada pelo A., mas antes pela situação com a qual são obrigados a conviver, visto serem ambos residentes em frações cujas paredes são meias com as da fração da Ré.
Ademais, compreender-se-ia que tal fosse o entendimento do Tribunal a quo se a postura mantida quer com a Ré nos momentos que haviam vivenciado com a mesma, quer em sede de audiência final, tivesse sido a de proceder à confusão das situações existentes. Porém, tal não ocorreu. Na verdade, o depoimento prestado por ambas as partes, apenas demonstra que o comportamento que é mantido por parte da Ré é reiterado e perturba não só os AA. mas também os restantes vizinhos, por perturbar o seu descanso diário.
 (…)
Ora, verifica-se que, na verdade e salvo o devido respeito, o depoimento prestado por ambas as testemunhas apenas se limita a relatar a situação que foi ocorrida com as testemunhas em si por forma a completar a factualidade constante dos presentes autos, porquanto estranho pareceria se um dos vizinhos se queixasse do ruído produzido por parte de um vizinho e não existissem outros que ouvissem ou se sentissem perturbados com o ruído produzido. Motivo pelo qual, não poderá o Recorrente concordar com a desconsideração do depoimento prestado por parte das testemunhas acima indicadas, visto não se coadunar com qualquer situação em que seja demonstrado rancor, mas antes e talvez empatia e rigidez que advém da profissão que ambas as testemunhas exerciam, cuja disciplina e calma se encontram aliadas.
Ademais, é comprovável – não apenas pelos depoimentos acima transcritos – que o ruído de que as Testemunhas depuseram em sede de Audiência Final retratam as experiências que os mesmos vivenciaram, igualmente, porquanto se denota que, na verdade, o ruído produzido por parte da Ré é capaz de perturbar a vivência quotidiana e o descanso dos restantes dos vizinhos.
Estranho parece que tenha o Tribunal decidido pela não idoneidade das testemunhas pelo facto de terem, encontrando-se em situação similar à do Recorrente, apresentado e/ou subscrito queixas contra a Ré pelo ruído produzido junto das autoridades competentes, quando, e salvo o devido respeito, tal seria compreensível se apenas ora, aquando da instauração da presente ação tivessem os mesmos decidido apresentar reclamação pela atuação da Ré.
Afigurando-se-nos que o facto de estas duas testemunhas se terem sentido incomodadas com os ruídos procedentes da residência da Ré, produzidos por esta e pelo seu cachorro, e de, inclusivamente terem subscrito participações por esses factos, endereçadas à Polícia Municipal, não permite, sem mais, concluir pela falta de isenção dos respetivos depoimentos. Não se reconhecendo ainda razão à Apelada quando invoca, em oposição a esses depoimentos, o facto de estas testemunhas serem sargentos e de o Autor ser capitão-de-mar-e-guerra.
Sobretudo quando esses depoimentos são corroborados, ou se ajustam, à valoração que fazemos do conjunto da restante prova produzida.
Que começa pela imensidão de diligências que o Autor desenvolveu por causa desses ruídos, produzidos pelas Ré e pelo seu cachorro, documentadas com a petição inicial e parcialmente fixadas na matéria de facto.
Nessas diligências, o A. começou por se dirigir à Ré, o que fez por email remetido a 15-03-2012, documentado a fls. 24, pedindo-lhe o grande favor de evitar calçar os sapatos ao levantar-se da cama, pois havia várias semanas que acordava diariamente muito cedo e sem querer, com o ruído dos saltos ao caminhar na tijoleira.
E a Ré respondeu a esse pedido no mesmo dia, dizendo em síntese: «Sobre “barulhos” dos vizinhos, tenho-me informado a nível da legislação, tanto de inquilinos, como de obras, dos horários referentes ao assunto.
Não sei se sabe que, das sete às onze da noite, fazemos a nossa vida normal quanto a “ruídos”, sem que ninguém nos possa acusar.
Eu, antes das sete da manhã até às onze da noite, tenho o melhor cuidado possível, sem exceções de dias, sejam eles festivos ou não.
(…)
Eu tenho por hábito usar sapatos “london” ou tipo ténis, que não fazem ruídos; mas realmente tenho umas botas que também uso para variar. Ora, eu só os calço quando estou para sair, por volta das 8h00, porque de resto ando sempre de chinelos de borracha desde que me levanto, todos os dias, e quando chego a casa.
Mas por ser o Mário, que tenho muita estima e consideração, assim como a Teresa, os rapazes, quando usar esses abotinados, vou tentar calçá-los à porta de casa.
(…)»
Ou seja, a Ré começou por invocar a lei em vigor, afirmando que a mesma lhe permitia agir como agia, entre as sete e as vinte e três horas de cada dia, e que, no período restante, tinha todo o cuidado para não produzir ruído.
E, pronunciando-se sobre o uso de sapatos em casa, afirmou que só os usava para variar, que só os calçava quando estava para sair, e que, de futuro, ia tentar calçá-los à porta de casa.
Mas o comportamento da Ré não se alterou posteriormente.
E, já no dia 31-05-2013, o Autor optou por se dirigir ao filho mais velho da Ré, relatando-lhe todas as suas razões de queixa que tinha em relação àquela, nos termos documentados 26 a 29.
E aquele filho da Ré, ouvido como testemunha, acusou o recebimento da mensagem, mas não voltou a comunicar com o Autor.
E, depois destes insucessos, seguiram-se as participações às mais diversas entidades, referidas nos pontos 9 a 11 do elenco da matéria de facto provada e documentadas com os articulados.
Ora este conjunto de diligências, que o Autor promoveu junto da Ré, do filho desta e das mais diversas entidades, aponta, manifestamente, no sentido da realidade dos factos, muito concretos e circunstanciados, ali denunciados.
Anotando-se que o filho da Ré, ouvido como testemunha, declarou que tem uma consideração muito grande pelo ora Apelante.
O que não sucederia se o mesmo considerasse infundadas as queixas do ora Apelante em relação à sua mãe. Ou se levasse a sério as queixas da sua mãe em relação a esse vizinho.
E esses factos também foram, em parte, admitidos na resposta da Ré, que reconheceu o uso, em casa, de sapatos abotinados, e até se comprometeu a calçá-los apenas à saída para a rua.
Mas não cumpriu.
Como é evidenciado pelas subsequentes participações do Autor e pelos depoimentos das referidas duas testemunhas, em particular a primeira, que vive no 10.º piso, por cima da casa da Ré, e que usa tampões nos ouvidos para dormir. E que ouviu os passos ruidosos da Autora nos dias anteriores a ter prestado o seu depoimento.
E também é corroborado pelo relatório policial documentado a fls. 73/74, onde se dá notícia de duas intervenções de uma brigada da Polícia Municipal no caso.
Na primeira intervenção, a brigada esteve em casa do Autor desde as 07H10, tendo verificado o ruído de passos da Ré, deslocando-se pela casa num vai-e-vem. Pelas 8H00, a brigada dirigiu-se à casa da Ré, onde verificou que a mesma estava a fazer uso de botas de sola, e que o pavimento da habitação era em cerâmica, o que provocava um impacto mais sonante. Por isso sugeriram à Ré o uso, dentro de casa, de calçado tipo chinelos/pantufas, tendo esta respondido que em casa andava como queria e que estava a preparar-se para ir trabalhar.
E algum tempo depois, a mesma brigada viu a Ré sair de casa com calçado em piso de borracha, tendo sido questionada sobre isso, e ficado sem palavras.
Na outra situação, a Ré saiu para a Rua com o mesmo calçado com que foi encontrada a andar dentro de casa.
É certo que a testemunha Rui Pedro, que participou na diligência e elaborou esse relatório, declarou que não enquadrava os ruídos que ouviu na lei do ruído, e que só efetuou a notificação para cessação do ruído e o subsequente auto de notícia por indicação de um superior.
Mas, não tendo sido efetuada qualquer medição do ruído produzido, julga-se que o depoimento em causa nem sequer permite julgar provado que o ruído produzido pelos passos da Ré não excedia o limiar do ruído permitido pela lei.
O que, de resto, é matéria conclusiva, que não pode ser diretamente fixada em sede de matéria de facto. A matéria de facto relevante seria o resultado da medição de ruído, se tivesse sido feita.
Posteriormente, aquando da realização da audiência prévia, a Ré voltou a comprometer-se a fazer uso de chinelos/pantufas em casa, e obrigou-se a colocar tapetes no pavimento.
O que deu origem a uma suspensão da instância, com a perspetiva da sua posterior extinção, caso o compromisso fosse respeitado.
E começou por cumprir, tendo colocado tapetes e cessado o uso de calçado ruidoso.
Como resulta dos documentos juntos pela Ré já na fase do julgamento, a fls. 280 e seguintes dos autos.
Mas, dando razão ao Autor na desconfiança que o mesmo manifesta a fls. 280 v.º, os passos ruidosos voltaram, e o julgamento teve de ser efetuado.
E neste, as testemunhas Rui Neto e José Jorge confirmaram, no essencial, que a Ré, desde as sete da manhã até sair de casa, por volta das 8H00, faz uso de calçado ruidoso, sabendo que isso perturba o descanso dos vizinhos, em particular dos Autores.
E que, depois de assim usar sapatos ruidosos, sai para a rua com outros sapatos menos ruidosos, com sola de borracha.
E que aos Sábados faz limpezas nesse mesmo horário, inclusive fazendo uso frequente de um aspirador, equipamento reconhecidamente ruidoso.
Dos mesmos depoimentos resulta que a Ré batia com as portas de um roupeiro com muita força, causando sobressalto, situação que, entretanto, melhorou.
E que a Ré não produz esses ruídos quando tem em alguém em casa.
Resultou ainda do depoimento da primeira testemunha que o cão da Ré, estando no prédio desde finais do ano de 2012, quando ainda era pequeno ladrava e gania intensamente no período em que a Ré estava ausente de casa, o que sucedeu durante o período de um ano/ ano e meio. O que, de resto, também corresponde às regras da experiência comum.
Está, finalmente provado que todo este ruído, sistemático e com hora marcada, foi causa de grande perturbação na vida dos Autores, bem expressa nas diligências que o Autor empreendeu para os fazer cessar.
E que até agora não tiveram êxito.
Contra isto, nada de relevante foi afirmado pelo filho da Ré, pelos irmãos Santos, ou pela testemunha Maria Isabel, que, no essencial, e em relação a estes factos, apenas relataram queixas que ouviram da Ré, ou informações dela recebidas, não tendo conhecimento direto de qualquer facto.
Também disseram que a Ré se sentia perseguida e ameaçada pelo Autor, e que se preocupava muito em não fazer ruído, tendo até medo de abrir uma torneira ou de tirar um café. Mas isso não se ajusta minimamente ao comportamento evidenciado pela Ré, nas respostas que deu ao Autor, às testemunhas Rui N. e José, e ao Agente Policial Rui P., quando, por todos eles foi pedido para evitar fazer determinados ruídos, em espacial fazer cessar o uso de calçado ruidoso no pavimento de tijoleira da sua casa. E, sobretudo não se ajusta ao facto de a Ré ter mantido, naquele horário, o uso de calçado ruidoso, incomparavelmente mais incomodativo do que uma torneira aberta, ou o ato de tirar um café.
Não merecendo qualquer crédito a afirmação de que a Ré passou a ter medo de abrir uma torneira em sua casa, ou de tirar um café.
E o próprio filho da Ré não atribuiu crédito às queixas da mãe, posto que nada fez em relação a elas, e continua a ter uma consideração muito grande pelo Autor.
Assim, vistos os pontos de facto ora em apreciação, julga-se que:
O enunciado sob a al. a) é eminentemente conclusivo, sendo insuscetível de ser respondido em sede de matéria de facto. Os factos relevantes são os das alíneas seguintes.
A matéria da alínea b) está provada.
Da matéria da al. c) está provado que a Ré batia as portas dos roupeiros com violência;
Da matéria da al. d) está provado que a Ré, aos fins de semana, começa a fazer limpezas a partir das sete, fazendo uso do aspirador antes das oito horas.
Em relação às al.s e) f) e g), julga-se provado que o cão da Ré, estando no prédio desde finais do ano de 2012, quando ainda era pequeno ladrava e gania intensamente no período em que a Ré estava ausente de casa, o que sucedeu durante o período de um ano/ano e meio.
Em relação à alínea h) julga-se provado que todos os ruídos já referidos são muito perturbadores do descanso dos AA..
Em relação à alínea m), julga-se que é conclusivo, e insuscetível de resposta em sede de matéria de facto saber se os ruídos que foram ouvidos pelo Sr. Agente eram excessivos.
Julga-se que não ficou provado que o comportamento da Ré se tivesse agravado ao longo do tempo. Em relação ao bater das portas do roupeiro até melhorou e os ruídos produzidos pelo cão também foram significativamente reduzidos.
Em relação à alínea q), julga-se provado que, por vezes, a Ré descalça os sapatos ruidosos que usa na sua residência desde cerca das 7H00 até quando se ausenta, cerca das 8H00, saindo com sapatos de sola mais silenciosa.
Consequentemente:
A matéria do ponto 21, deve ser eliminada. Cedendo perante as respostas acima alteradas. Para além de que, porventura com exceção dos ruídos produzidos pelo cão, os ruídos assim julgados provados não podem ser considerados “comuns ao acordar e à rotina diária”.
A matéria do ponto 24 deve ser julgada não provada, atento o que se julgou provado em relação à al. d).
A matéria do art. 28.º pode ser julgada provada, mas reportada ao período subsequente ao primeiro ano e meio de permanência do cão na companhia da Ré.
Tendo em consideração as alterações assim introduzidas, importa fazer ajustamento nos pontos 15 e 23, no que respeita ao horário a que a Ré se levanta.
Devendo ser julgado provado que a Ré se levanta sempre antes das sete horas.
E, quanto ao ponto 20, onde vem provado que a Ré usa tendencialmente sapatos desportivos e de sola em cunha, deve entender-se que, a tratar-se de calçado não ruidoso, essa utilização tendencial não abrange o uso de calçado dentro de casa.

O segundo grupo de factos impugnados respeita aos fundamentos do pedido reconvencional, incluindo os danos alegados pela Reconvinte.
Estão em causa os seguintes factos, julgados provados:
30. Os AA. passaram a esperar a Ré à porta do prédio e olhar-lhe para os sapatos.
32. A denúncia a Ré ao IASFA – entidade senhoria dos AA. e Ré podia terminar numa acção de despejo à Ré caso o IASFA se bastasse com a denúncia dos AA.
33. Quando a Ré sai de casa, o A. marido que se encontra à espera, segue-a batendo palmas.
34. O A. ronda a porta da Ré.
35. O A. já esperou a Ré no seu carro, e quando esta sai do prédio, arranca a alta velocidade, passando junto à Ré.
37. A ré sente-se controlada e vigiada pelo A. marido e receia pela sua segurança.
38. A Ré cada vez mais chega tarde a casa porque não se sente bem.
39. A Ré pediu ao seu filho mais novo para voltar a viver consigo por uns tempos pois receava ser abordada por agentes da PSP e PM, estando sozinha em casa.
40. O A. pressionava a Policia Municipal para que esta agisse mesmo quando lhe era dito que não havia motivos para tal ou quando os agentes constatavam que o barulho não se verificava.
43. O A. marido divulga pelos vizinhos que a Ré é barulhenta e ruidosa.
44. O A. faz declarações públicas dizendo que a Ré tem “transtorno da personalidade anti-social”, que é uma “prevaricadora” e que é “ruidosa e malformada” que é uma pessoa que produz barulho excessivo.
45. A Ré tem vergonha dos seus vizinhos e sente-se humilhada e ofendida pelo A.
46. Tendo tido igualmente necessidade de recorrer a um médico e de tomar medicação para controlo da ansiedade e tensão.

Com a seguinte fundamentação:
«Os depoimentos de parte dos AA. (pelo interesse na causa), e os depoimentos de José e Rui N., pelos litígios já existentes com a Ré, suscitaram manifestas dúvidas ao Tribunal quer quanto à sua veracidade quer quanto ao grau/intensidade dos barulhos ouvidos. A dúvida criada, juntamente com o depoimento claro isento e credível de Maria Isabel, que presenciou o facto descrito no ponto 35, e o desespero da Ré relatados ao Tribunal pelas testemunhas João e Bruno, motivaram o Tribunal a dar como assestes os factos vertidos na reconvenção, nomeadamente a atitude persecutória e manifestamente invasiva da privacidade da Ré praticada pelo A. marido.
Episódios como o bater de palmas nos patamares da escada à saída da Ré, fazer esperas para ver o que a Ré trazia calçado, passar com o carro rente à Ré como forma de lhe incutir medo, denotam uma actuação desconforme com a legalidade e manifestamente perigosa e atemorizadora, e foram atestados por Maria Rodrigues. Os documentos juntos a fls. 132 e 282 a 285 elaborados pelo A. são reveladores do intuito persecutório do Autor, da actividade de controle exacerbada e até doentia que o A. faz à Ré (veja-se linguagem utilizada “cascos” e o pormenor de apontar os minutos), e do intuito difamatório e lesivo da honra da Ré (veja-se as expressões utilizadas alegando que a Ré tem “transtorno da personalidade anti-social”, que é uma “prevaricadora”, que é “ruidosa e civicamente mal formada”.
No que respeita aos danos invocados pela Ré, nomeadamente as consequências na sua saúde física e psíquica da actuação do Autor marido teve o Tribunal por base as regras da experiência comum, sendo por todos reconhecido, que uma actuação como a do A., para além da humilhação e vergonha causada, gera insegurança. Esta insegurança verifica-se não só na rua quando se está na presença de vizinhos ou conhecidos, mas também dentro da própria casa fazendo com que a Ré se sinta vigiada.
Estes sentimentos da Ré foram confirmados por Bruno, Maria Isabel e Maria Rodrigues uma vez que com ela privam, fazendo-o de forma credível e desinteressada.»

Defendendo o Apelante que não foi feita prova de qualquer destes factos.

Apreciando:

Na sequência do que acima se concluiu em relação aos factos da ação, mantém-se que, com exceção de um pequeno episódio relatado pela testemunha Maria Ribeiro, as testemunhas arroladas se limitaram a relatar as queixas que tinham ouvido da Ré.
Queixas que, nos termos também já referidos não merecem crédito.
E a testemunha Maria Ribeiro apenas deu conta de que, em data que não precisou, estando a conversar com a sua amiga N. Natividade na rua, a testemunha na faixa de rodagem e a amiga no passeio, o Autor passou muito próximo da testemunha, com o seu carro em velocidade que lhe chamou a atenção. E que a amiga lhe disse que aquilo era com ela e que já tinha acontecido mais vezes.
Mas a testemunha também afirmou que a rua onde isso aconteceu é estreita, sem maior concretização. E, supostamente, é a única via de acesso automóvel ao prédio onde o Autor e a Ré vivem. A perceção da testemunha sobre a velocidade imprimida ao veículo é falível, e nada permite concluir que a eventual maior velocidade a que, na altura o veículo circulasse se destinava a impressionar/assustar a Ré.
Que estava postada no passeio.
E também nada permite afirmar que, nessa situação, a única que a testemunha presenciou, o Autor tivesse estado à espera, no seu veículo, que a Ré aparecesse para arrancar. E, de todo o modo, o veículo apenas passou perto da testemunha, também não se sabe quanto, nem qual era o espaço disponível para circular, e não junto da Ré.
Assim o facto em causa não pode ser julgado provado.
No mais, já acima se deixou expressa a convicção de que a Ré nunca receou o Autor, tanto que, com exceção de um determinado período posterior à audiência prévia, manteve, persistentemente, o uso de calçado ruidoso, que sabia ser muito incomodativo dos vizinhos, e também fazia uso do aspirador antes das 8h00 da manhã.
Assim, de toda esta factualidade apenas se julga provado, porque o Autor o admitiu no seu depoimento, que uma vez, vendo a Ré sair de casa, o Autor lhe bateu palmas e disse “muito bem”.
Julgando-se não provados os demais factos.

Aqui chegados, a matéria de facto a considerar é a seguinte:

1. Os AA. residem na Rua (….), 8.º direito, em Lisboa, desde 01/09/1989, data em que tomaram a referida fracção de arrendamento.
2. Na fracção imediatamente por cima, correspondente ao 9.º dtº, passaram a residir em 01/10/1989 a R., e seu agregado familiar, na altura constituído por si, pelo seu marido, e dois filhos.
3. Os filhos da R. vieram a constituir família e a sair de casa, e o marido da R. veio a falecer, em 19 de Novembro de 2008, vivendo a R. sozinha desde essa altura, na companhia de um canídeo, de raça tipo “Spitz Alemão Anão”.
4. Os vizinhos eram muito amigos, tendo um relacionamento saudável de vizinhança.
5. Desde finais do ano de 2012, quase diariamente, a R., por volta das 07.00 horas, calça uns sapatos que sabe serem ruidosos, e que ecoam no chão de tijoleira, que entretanto colocou no apartamento, enquanto faz rotina matinal, até cerca das 08.00 horas.
6. Por vezes, antes de se ausentar a Ré descalça esses sapatos ruidosos, saindo com sapatos de sola mais silenciosa.
7. A Ré batia as portas dos roupeiros com violência;
8 - Aos fins de semana, a Ré começa a fazer limpezas a partir das sete, fazendo uso do aspirador antes das oito horas.
9 – O cão da Ré, estando no prédio desde finais do ano de 2012, quando ainda era pequeno ladrava e chorava intensamente no período em que a Ré estava ausente de casa, o que sucedeu durante o período de um ano/ano e meio.
10 – A partir daí o referido cão ladra quando pressente a presença de estranhos no patamar.
11 - Todos os ruídos referidos nos anteriores pontos 5 a 9 são muito perturbadores do descanso dos AA.
12. O A., remeteu à R., em 15/03/2013 um email pedindo-lhe para evitar calçar os sapatos ruidosos quando se levantava de manhã.
13. A R. respondeu, na mesma data, dizendo “…eu tenho por hábito usar sapatos London ou tipo ténis, que não fazem ruídos, mas realmente tenho umas botas que também uso para variar. Hora, eu só os calço quando estou para sair, por volta das 8.00. Mas por ser o Mário, que tenho muita estima e consideração assim como a Teresa e os rapazes, quando usar esses abotinados, vou tentar calça-los à porta de casa (…)”.
14. O A. remeteu em 31/05/2013 um e-mail a um dos filhos da R., junto a fls. 26.
15. A A., em 02/07/2013, remeteu à Ré uma mensagem por telemóvel: “Olá N., Hoje senti durante 1hora os saltos dos seus sapatos. Verdadeira tortura chinesa. Até quando usará esses sapatos? Estou doente e o barulho não me deixa descansar no período das 0650 às 8 horas. Agradeço compreensão. Maria”.
16. Em 10/07/2013 o A. apresentou queixa na PSP por ruído de vizinhança e em 16/07/2013 e remeteu um segundo email, à R..
17. O A. foi apresentando queixas junto das entidades que considerava competentes o IASFA, a APAV, o Julgado de Paz, a PSP, a Câmara Municipal, a Consulmed, a Polícia Municipal, o Provedor de Justiça.
18. Algumas das diligências, junto do IASFA e da PSP foram efetuadas conjuntamente com outros residentes queixosos, do 9º Esq. do Corpo A e do 10.º Dto. do Corpo B do mesmo imóvel.
19. Em 08/04/2014 o A. remeteu mais um e-mail à R. junto a fls. 56.
20. No dia 05/08/2014, por mão do Sr. Agente Principal Rui P., foi a R. notificada para fazer cessar o ruído produzido.
21. A A. padecia de um linfoma, estando muito debilitada na decorrência dos tratamentos de quimioterapia e radioterapia.
22. A Ré tem a profissão de (…), levantando-se antes das 7H00 e saindo por volta das 8h15m.
23. Levando, no entretanto, o seu cão à rua.
24. Às quintas-feiras, por inerência das suas funções, a Ré levanta-se às 6h30, saindo mais cedo de casa.
25. A Ré tem tijoleira no corredor e na sala, um dos quartos tem chão de cortiça e a outra alcatifa.
26. A tijoleira está na sua casa há mais de quinze anos.
27. A Ré usa tendencialmente sapatos desportivos e de sola em cunha.
28. O prédio onde vivem tem quarenta anos e não tem boa insonorização.
29. Aos fins-de-semana a A. levanta-se antes das 7H00.
30. O cão da Ré é um cão de raça de pequeno porte, pesa 2,5Kg e tem patas pequenas.
31. O cão dorme no seu quarto.
32. O cão habita com a A. já há cerca de seis anos.
33. Os AA., apesar da amizade que os ligava à Ré, nunca falaram pessoalmente com ela.
34. Por chamarem a polícia municipal causaram à Ré atrasos na saída para o trabalho.
33. Uma vez o Autor, vendo a Ré sair de casa, bateu palmas e disse “muito bem”.
33. O A. fez juntar às queixas efetuadas junto da CML um papel por si elaborado, junto a fls. 132, com o seguinte teor:
“11 ABR 2014
0622 Levantou-se
0655 foi à rua com o cão
0705-regressou
Esteve no quarto
Cascos no quarto só média intensidade
0712 desliguei telefone para PM. Vão enviar brigada
0720 + cascos quarto
0728 arrasta caixa e porta roupeiro
0730 arrasta caixa + cascos
0733 martelando(…)com cascos no quarto indecente. Continua no quarto com cascos.
0737 no quarto a bater c/ calcanhares no chão
0740 na cozinha. Volta pela casa, de novo a bater com os cascos.
Mais volta pela casa. Mais volta pela casa. Mais coz. Mais cascos no mesmo spot (sentada) só 746 + cascos no quarto a martelar e volta de novo na coz. A bater c/ tacões no chão ritmadamente
749 continua andar pela casa (e quarto) c/ cascos
753 ´´
755 Telefone estavam à porta”
42. A Polícia Municipal denunciou a atuação do A. ao Ministério Público, dando origem ao processo-crime NUIPC 0618/14.4PLLSB.

II – O Direito

Nesta sede, está fundamentalmente em causa saber se estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil em relação a qualquer das partes.
Pressupostos que, na decisão ora recorrida, foram julgados verificados em relação ao ora Apelante, que foi condenado a indemnizar a Reconvinte, e não verificados em relação à Ré, que foi absolvida dos pedidos.
Tendo em consideração as alterações, introduzidas na decisão sobre matéria de facto, julga-se, antecipando a conclusão, que a decisão de direito também tem de ser substancialmente alterada.
Começando pelo fim, não ficaram, em geral, provados os factos em que assentou o pedido reconvencional. Apenas está provado o facto, acima enunciado sob o n.º 33, relativo ao registo, feito pelo autor e por ele apresentado à Polícia Municipal, dos ruídos produzidos pela Ré no dia 11-04-2014, entre as 06H22 e as 7H55.
Defendendo a Ré que, ao utilizar ali a palavra “cascos”, o Autor lhe estava a chamar cabra, pois as cabras é que têm cascos.
Entendimento que foi aceite na decisão recorrida.
Mas que, com o devido respeito, se julga não ser forçoso.
Na circunstância, o Autor estava a registar os ruídos que eram produzidos pela Ré. E a palavra “cascos” traduz, de uma forma analógica de síntese, o ruído que o Autor ouvia quando a Ré andava de um lado para o outro, na sua residência, fazendo uso de calçado ruidoso sobre pavimento de tijoleira.
Ou seja, era uma forma de descrever o ruído sentido. Não significando, ao menos de forma inequívoca, que o Autor estava a referir-se à Ré, chamando-a de cabra, ou de qualquer outro animal com cascos.
E, assim sendo, o pedido reconvencional deve ser julgado improcedente.
Diversamente, julga-se que estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil da Ré em relação aos Autores. Estando, agora, apenas em causa o direito de indemnização do Autor, uma vez que só ele interpôs recurso e, sendo a relação entre os Autores de litisconsórcio voluntário, não ocorre no caso qualquer das situações previstas no art. 634.º, n.º n.º 2 do CPC, em que o recurso interposto por uma das partes aproveita a outra parte não recorrente.
Nos termos do art.º 1346.º do mesmo Código, o proprietário de um imóvel pode opor-se, designadamente, à emissão de ruídos provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam.
Direito que, pela finalidade que visa, tem de ser reconhecido a quem, como o arrendatário, foi cedido o gozo temporário do imóvel, uma vez que é o gozo do imóvel que a norma visa proteger.
No caso dos autos, estão em causa os ruídos produzidos pela Ré na sua casa de habitação, entre as sete e as oito de cada dia, especialmente ao andar com calçado ruidoso em pavimento de tijoleira e ao fazer, esporadicamente, uso do aspirador.
Sabendo que isso incomoda os vizinhos, em particular os AA., porque a insonorização do prédio é má e porque lhe foi evidenciado pelos AA., que esses ruídos eram muito perturbadores do seu descanso. O Autor cansou-se de lutar contra esses ruídos, e a Autora, menos interveniente, remeteu à Ré, no dia 02/07/2013, a mensagem por telemóvel referida no ponto 15 da matéria de facto, onde, muito sugestivamente, qualificava o ruído produzido pela Ré a andar na sua casa como “verdadeira tortura chinesa”.
Resultando também da prova produzida que a Ré tinha conhecimento de que a Autora padecia de doença do foro oncológico, e, nesse período, fez tratamentos, pelo menos de quimioterapia.
E o ruído do aspirador era perfeitamente evitável naquela hora, deixando para mais tarde a tarefa de aspirar. E os ruídos dos passos podem ser substancialmente atenuados, fazendo uso de calçado não ruidoso e colocando tapetes/passadeiras nas zonas de circulação.
Como, de resto a Ré se obrigou a fazer na audiência prévia, e até cumpriu temporariamente.
Para além de que a Ré também não faz ruído relevante antes das 7H00, nem quando tem visitas em casa.
Assim, a Ré, entre as 7H00 e as 8H00 de cada dia utiliza na sua residência, calçado ruidoso, e ao fim de semana, também antes das 8H00, faz uso de aspirador, em qualquer dos casos, sem qualquer necessidade, e sabendo que isso perturba muito o descanso ou a tranquilidade dos vizinhos.
Ora, nos termos do art. art.483.º do C. Civil, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
No caso, a Ré permite-se produzir ruídos, inteiramente evitáveis, ao menos naquela hora, sabendo que, com isso está a perturbar o descanso dos AA..
Ou seja, aqueles ruídos são produzidos pela Ré de forma consciente e voluntária, e sem causa justificativa, sabendo a Ré que, com eles está a lesar a tranquilidade dos AA, nos termos bem evidenciados nas diligências que estes realizaram para tentarem fazê-los cessar.
Ora, como observam Pires de Lima e Antunes Varela no seu Código Civil Anotado, III Vol., 2.ª edição, em anotação em anotação ao art. 1346.º, os ruídos desnecessários, que causem algum prejuízo aos vizinhos, são sempre ilícitos, traduzindo uso anormal do prédio, ou redundando em abuso do direito.
Assim a produção daqueles ruídos, procedendo de ato voluntário da Ré, é ilícita.
No mesmo sentido se pronunciou, entre outros o acórdão do STJ invocado pelo Recorrente, proferido no processo n.º 161/05.2TBVLG.S1, disponível em www.dgsi.pt, , em cujo sumário se pode ler:

«6. O ruído, afectando a saúde, constitui não só uma violação do direito à integridade física, como do direito ao repouso e à qualidade de vida. Direitos que, no seu cotejo com o de exercício de uma actividade comercial ou industrial se lhe sobrepõem e prevalecem, de acordo com o artigo 335.º do Código Civil.

7. A emissão de ruídos, desde que perturbadores, incómodos e causadores de má qualidade de vida, e ainda que não excedam os limites legais, autorizam o proprietário do imóvel que os sofre a lançar mão do disposto no artigo 1346.º do Código Civil, que só deve suportar os que não vão para além das consequências de normais relações de vizinhança.

8. A apreciação da normalidade deve ser casuística, tendo como medida o uso normal do prédio nas circunstâncias de fruição de um cidadão comum e razoavelmente inserido no núcleo social.

9. Sendo ilícita a emissão de ruídos recai sobre o poluidor sonoro o dever de indemnizar nos termos dos artigos 483.º e 487.º do Código Civil.»

Mostrando-se, pois, justificado o pedido dos AA. no sentido de a Ré ser condenada a cessar imediatamente a produção desses ruídos.
E, uma vez que os ruídos já produzidos já perturbaram, desde finais do ano de 2012, o descanso dos AA, nos termos evidenciados pelas diligências que estas fizeram para os fazer cessar, está provada a existência de danos resultantes desse ilícito, danos que pela sua gravidade e reiteração merecem a tutela do direito.
Não sendo questionável a existência de adequado nexo causalidade entre os factos da Ré e esses danos.
A esse título, os AA. peticionaram, para os dois, o pagamento da quantia de € 15.000,00, não tendo discriminado a parcela do pedido respeitante a cada um deles.
Tentando valorar o sofrimento dos AA. ao longo de todo este período, que já remonta a finais do ano de 2012, e tendo em consideração que os danos foram, consciente e voluntariamente produzidos pela Ré, julga-se que o montante peticionado era inteiramente justificado.
No entanto, agora apenas pode ser atendido o pedido deduzido pelo Apelante, uma vez que o recurso interposto não aproveita à Autora que não recorreu.
Como já se referiu, os Autores peticionaram, conjuntamente, o pagamento de € 15.000,00, não tendo discriminado a parte devida a cada um. Assim sendo, e na falta de elementos que permitam suprir a falta dessa indicação, deve presumir-se que o pedido deduzido é feito na proporção de metade para cada um dos autores.
Estando, por isso, o pedido do Apelante limitado ao montante de € 7.500,00.
Julgando-se que deve proceder nessa medida.

Termos em que acordam em julgar parcialmente procedente a apelação, alterando a decisão recorrida no sentido de:
Julgar a ação parcialmente procedente condenando a Ré a cessar imediatamente o ruído incomodativo produzido por si nos termos acima julgados e, ainda, a pagar ao Autor, ora Apelante, a título de indemnização, aquantia de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros).
Julgar improcedente a reconvenção, dela absolvendo os Reconvindos.
Custas, em ambas as instâncias, na proporção do decaimento.

Lisboa, 03-05-2018

Farinha Alves
Tibério Silva
Maria José Mouro