Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1021/19.5T8CSC.L1-8
Relator: CRISTINA LOURENÇO
Descritores: HERANÇA INDIVISA
CABEÇA DE CASAL
BENS EM PODER DE HERDEIROS
PEDIDO DE RESTITUIÇÃO DE BENS
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. O art. 2088º do Código Civil confere ao cabeça de casal, no âmbito dos seus poderes de gestão e de administração, e relativamente a bens que integrem a massa hereditária que lhe cumpra administrar (arts. 2079º e 2087º do Código Civil), o direito de exigir dos herdeiros e de terceiros a entrega material de bens que estejam na sua posse desde que a entrega se revele necessária ao exercício de gestão, recaindo sobre os possuidores, quando pretendam obstar ao procedimento de tal pretensão, o ónus de alegarem e demonstrarem factos concretos suscetíveis de evidenciarem que tal pedido configura abuso de direito (arts. 334º e 342º, nº 1, do Código Civil).
2. A par do pedido de entrega do bem, e verificado prejuízo para a herança, pode o cabeça de casal, enquanto administrador da herança, exigir dos possuidores o pagamento de indemnização destinada a reparar prejuízos decorrentes da turbação da posse, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 1284º do Código Civil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
M.E.H.F.A., residente na Rua (…), veio propor a presente ação declarativa de condenação que segue a forma de processo comum contra:
1ª – S.F.A., residente no Largo (…), e
2º – B.M.A.D., residente na mesma morada, alegando, para tanto, que:
- No dia 23 de janeiro de 2018 faleceu A(…), no estado de casado com a Autora, em primeiras e únicas núpcias de ambos não tendo ainda sido partilhada a sua herança, desempenhando a autora a função de cabeça de casal;
- Sucederam-lhe, como herdeiros, para além da autora, duas filhas, entre elas, a 1ª Ré;
- O património hereditário é integrado, além do mais, por ½ indivisa da fração autónoma designada pela letra “J”, destinada a habitação, correspondente ao quarto andar esquerdo, no piso quatro, com um parqueamento localizado no piso -1 ou cave com o n.º2, do prédio urbano designado por lote 93, situado no Largo (…), com o valor patrimonial atual de € 97.580,00,
- Tal fração autónoma, incluindo o parqueamento, encontra-se a ser usada exclusivamente pelos Réus, que nela habitam sem pagarem renda ou outra compensação;
- Caso não estivesse a ser ocupada pelos Réus, a referida fração autónoma poderia ser dada de arrendamento, por renda mensal não inferior a € 1.000,00;
- Desse modo, a herança e a Autora, enquanto meeira da referida fração autónoma, veem-se impossibilitadas de retirar um rendimento correspondente ao respetivo valor locativo;
- A herança não gera rendimentos e tem avultadas despesas;
- Daí que se torne necessário que os Réus desabitem e desocupem a fração autónoma objeto dos presentes autos, para poder ser colocada no mercado de arrendamento;
- Os réus não têm título que legitime a ocupação e devem compensar a autora pela privação do rendimento do uso do imóvel.
Terminam, pedindo que a ação seja julgada procedente por provada e, em consequência, sejam os réus condenados nos seguintes termos:
a) reconhecer a Autora como herdeira e cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de A(…);
b) reconhecer que metade indivisa da fração autónoma designada pela letra “J”, correspondente ao quarto andar esquerdo, no piso quatro, com um parqueamento localizado no piso -1 ou cave com o n.º2, do prédio urbano designado por lote 93, situado em (…), concelho de Cascais, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de (…) sob o art. (…) e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º (…) da referida freguesia, integra o acervo hereditário de A(…);
c) reconhecer que a Autora é titular do direito à outra metade indivisa da referida fração;
d) entregar de imediato à Autora a mencionada fração autónoma, livre de pessoas e bens;
e) pagar a quantia mensal de € 1.000,00 (mil euros), por cada mês que decorrer desde a citação dos Réus até à efetiva entrega da fração autónoma à Autora;
e
f) bem assim, pagar os juros de mora vincendos à taxa legal de 4%/ano (ou outra que entretanto vigorar) desde a data do vencimento até integral pagamento da quantia global que vier a ser apurada.
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A ré S. (…) contestou a ação, alegando, em síntese, que a autora evidencia querer fazer a partilha dos bens, o que só em processo de inventário poderá ser alcançado; o imóvel em causa foi adquirido para sua habitação, apenas tendo sido o seu pai a formalizar a aquisição por razões fiscais, tendo-lhe entregue mensalmente prestações pecuniárias para pagamento do preço respetivo, até 2014, altura em que o deixou de fazer por motivo de doença, continuando a habitar o imóvel com o réu, tal como a autora, que habita imóvel pertencente à herança e sem pagar qualquer compensação.
Termina, pedindo:
A) Seja ordenada a suspensão da instância, por a decisão a proferir nestes autos estar dependente da decisão do processo de inventário já proposto pela A. e não se verificarem os condicionalismos previstos no nº 2 do art. 272º do CPC;
B) Que assim não se entendendo, seja julgada totalmente improcedente por não provada a presente ação e a Ré absolvida de todos os pedidos contra si formulados.
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O réu B. (…) aderiu à contestação apresentada pela Ré e concluiu nos mesmos termos daquela, nomeadamente, pela sua absolvição do pedido.
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Foi indeferido o pedido de suspensão da instância e dispensada a realização da audiência prévia, assim como a fixação do objeto do litígio e dos temas da prova.
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Realizado o julgamento, foi proferida a seguinte decisão:
“Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente a presente acção e, consequentemente, decide-se condenar os Réus:
a) A reconhecer a Autora como herdeira e cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de A. (…);
b) A entregar de imediato à Autora, livre de pessoas e bens, a fração autónoma designada pela letra “J”, destinada a habitação, correspondente ao quarto andar esquerdo, no piso quatro, com um parqueamento localizado no piso -1 ou cave com o n.º2, do prédio urbano designado por lote 93, situado no Largo (…), inscrito na matriz predial urbana sob o art. (…) da freguesia de (…), concelho de Cascais, e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º (…) da referida freguesia;
c) Absolvem-se os Réus do demais peticionado contra si nestes autos.
Custas a cargo da A. e dos RR., na proporção de 40% para a primeira e 60% para os segundos.
Registe e notifique.”
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A ré S. (…) não se conformou com a sentença e dela recorreu, tendo apresentado as seguintes conclusões:
“a) A matéria assente deverá ser alterada dando-se igualmente como assente “Que o imóvel onde habita a Autora possui um valor locativo superior ao da fracção onde reside a Ré.”
b)deverá ser aditado aos factos provados o ponto 9-A no seguinte teor:“9-A : Fazem parte do acervo hereditário saldos bancários de valor aproximado de 70 a 80 mil euros”;
c) Devendo ser aditar-se como assente no final do ponto 14:“...fracção essa que foi comprada pelo falecido Sr. (…) para habitação própria permanente da ré.”
d) Retirando-se do ponto 16º as expressões “renda”; “uso”; “ocupação que fazem”, e colocando-se “preço” passando a ter a seguinte redação: 16-Desde o falecimento do marido da A. os Réus não pagam qualquer compensação pelo preço do imóvel.”
e) o ponto 25, deve alterar-se para a seguinte redacção: “25-Entre 2006 a 2014 a Ré pagou mensalmente a seu pai quantias variáveis, em função do seu vencimento, por conta do preço da mencionada fracção autónoma.”
f) Deve alterar-se para provado o ponto C) aditando-se um ponto 25-A, com o seguinte teor: “Que ficou acordado que a Ré, em vez de pagar ao Banco, pagaria mensalmente o valor equivalente à prestação que seria devida se tivesse recorrido a financiamento bancário, diretamente ao seu pai; em valores médios de 200 a 300 euros”
g) Devendo ainda ser aditado à matéria provada : A ré possui uma incapacidade permanente física de 70%, de acordo com a TNI (Cfr parte final do art.º12º da contestação e o 5º quadro do doc n.º8 da contestação)
h) A ré nada pagava pela compra do imóvel desde o ano de 2017, de acordo com os seus pais, por se encontrar doente e impossibilitada de trabalhar.
i) A ré por doença e incapacidade de trabalhar carece de alimentos que lhes eram prestados pelos seus pais, permitindo-lhe habitar no apartamento de São Domingos de Rana sem pagar nada.
j) A obrigação de prestar alimentos à ré mantém-se e impende sobre a herança.
k) A herança possui rendimentos e valores depositados pelo que não necessita do imóvel habitado pela ré, sendo essa exigência abusiva.
l) A administração racional da herança, determina que deva ser feito o arrendamento da casa de morada de família da autora, de forma a reduzir os custos manifestamente desproporcionados da herança angariando rendimentos para a herança e permitido a obtenção de uma renda suficiente para custear a renda de um imóvel adequado às necessidades da cabeça de casal e ainda um rendimento extra.
m) Devendo assim ser revogada a sentença na parte que determinou a entrega do imóvel, por ser uma pretensão abusiva e atentatória da boa-fé e violando a obrigação de prestação de alimentos que impende sobre a herança a favor da ré, por via dos art.s 627.º, 631.º, 637.º, 638.º n.º1 e n.º7, 639.º, 640º n.º1, a), b) c) e n.º2 a) e art.º645.º n.º1 a) art.º647.º e 662º e 665º do Código de Processo Civil, art.º334, e 349 ,e art.º2009 do CC
Termos estes em que deverá ser deferido o recurso, revogando-se a sentença recorrida substituindo-se esta por acórdão que a dê sem efeito,
Assim decidindo será feita, mais uma vez, Venerandos/as Desembargadores/as, a V.ª costumada Justiça!”
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A autora respondeu ao recurso e interpôs recurso subordinado nos termos e ao abrigo do disposto no art. 633º, do Código de Processo Civil.
Apresentou as seguintes conclusões:
“1ª – A Autora não pode conformar-se com a decisão do Tribunal a quo de improcedência dos pedidos e) e f) por si formulados;
2ª – O Aresto invocado pelo Tribunal a quo para decidir pela improcedência desses pedidos não é aplicável à situação do caso dos autos;
3ª – Ao contrário do que foi decidido pelo Tribunal a quo, a cabeça de casal, ora Autora, não poderá incluir no âmbito de um eventual processo de prestação de contas, receitas que não foram por si recebidas;
4ª – A Autora só estará obrigada a incluir tais rendimentos na prestação de contas do seu cabeçalato após os Réus serem condenados a pagar uma compensação pelo uso da fração dos autos e procederem efetivamente ao seu pagamento;
5ª – O processo comum escolhido pela Autora é o adequado aos pedidos por si formulados;
6ª – O Tribunal deu por provado que o valor da renda mensal nunca seria inferior a 1.000,00 € e que entre 2006 e 2014 a Ré pagou mensalmente quantias variáveis por conta do uso da mencionada fração autónoma;
7ª – A Ré sempre reconheceu ser devida uma renda ou uma compensação pelo uso e ocupação da fração autónoma;
8ª – Atendendo à factualidade provada, os pedidos e) e f) formulados pela Autora deveriam ter sido julgados procedentes;
9ª – O Tribunal recorrido justificou também a improcedência dos pedidos com a hipótese de a Ré poder vir a adquirir a fração aquando da partilha dos bens;
10ª – Uma mera conjetura não pode sustentar qualquer decisão judicial;
11ª – Mesmo que a Ré viesse a adquirir a fração, sempre estaria obrigada a pagar uma compensação pelo respetivo uso, até que a mesma lhe fosse adjudicada;
12ª – A fração não é apenas usada e ocupada pela Ré, mas também pelo Réu;
13ª – O Tribunal a quo não deu por provado que o Réu viveria em união de facto com a Ré;
14ª – O Réu não tem qualquer título que legitime a sua ocupação, não havendo, assim, razão para que seja absolvido dos pedidos formulados pela Autora nas alíneas e) e f);
15ª – Decidindo como decidiu, o Tribunal recorrido violou designadamente o disposto nos arts. 193º nº 1, 278 nº 1 al. b), 576º nº 2 e 577º al. b) e 941º do CPC.
Termos em que, com os mais que resultarão do douto suprimento de V. Exas., deve o recurso interposto pela Ré/Recorrente ser julgado improcedente e, outrossim, julgado procedente o recurso subordinado ora interposto pela Autora, como é de Justiça.”
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Os réus não responderam ao recurso subordinado.
O recurso foi admitido.
Cumpridos os vistos legais, cabe apreciar e decidir.
II. Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. arts. 635º, nº 4, 639º, nº 1, e 662º, nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.º 5º, nº3 do mesmo Código).
No caso, as questões que importa apreciar são as seguintes:
a) Impugnação da decisão de facto;
b) Saber se a autora, na qualidade de cabeça de casal pode exigir dos réus a entrega de imóvel que habitam, para proceder à sua administração, e exigir dos mesmos réus o pagamento de indemnização correspondente ao valor da renda do imóvel no mercado de arrendamento.
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 Da impugnação da decisão de facto
A ré/apelante declarou interpor recurso versando sobre a matéria de facto e de direito, com reapreciação de prova gravada.
De acordo com o disposto no art. 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, “O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.”, explicando António Abrantes Geraldes[1] que esta norma tem cariz genérico, “de tal modo que tanto se reporta aos recursos em que sejam unicamente suscitadas  questões de direito, como àqueles que também envolvam a impugnação da decisão da matéria de facto. Em qualquer caso, cumpre ao recorrente enunciar os fundamentos da sua pretensão no sentido da alteração, anulação ou revogação da decisão, rematando com as conclusões que representarão a síntese das questões que integram o objeto do recurso” – sublinhado nosso
“Sendo as conclusões não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações stricto sensu, mas também e sobretudo as definidoras do objeto do recurso e balizadoras do âmbito do conhecimento do tribunal, no caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente indicar nelas, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença, aqueles cuja alteração pretende e o sentido e termos dessa alteração.
Por menor exigência formal que se adote relativamente ao cumprimento dos ónus do art. 640º do CPC e em especial dos estabelecidos nas suas alíneas a) e c) do nº 1, sempre se imporá que seja feito de forma a não obrigar o tribunal ad quem a substituir-se ao recorrente na concretização do objeto do recurso. (…)”[2].
Dispõe o art. 640º, do Código de Processo Civil:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a)Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
(…)”.
Relativamente ao recurso que envolva impugnação da decisão da matéria de facto, salienta, ainda, António Abrantes Geraldes:
“a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
d) (…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente. (…)”.[3]
“A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artºs. 635º,nº 4 e 641º, nº 2, al. b));
b) Falta de especificação, nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (artº 640º, nº 1, al. a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.)
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.
(…)
As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.”[4]
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Retomando o caso dos autos, a recorrente pugna na primeira alínea das suas conclusões pela alteração do quadro factual assente em 1ª instância, entendendo que deve ser dado igualmente como provado que:
- O imóvel onde habita a Autora possui um valor locativo superior ao da fração onde reside a Ré.
Na motivação do recurso e com referência ao valor locativo do imóvel que integra a herança e que a autora habita, a recorrente pugna pelo aditamento de um facto distinto daquele que acaba por indicar em sede de conclusões (cf. arts. 6º e 16º da motivação do recurso), sendo que só este pode ser objeto de apreciação e decisão, porquanto, e como vimos, o objeto do recurso é definido pelas conclusões e delas devem constar com exatidão as alterações factuais pretendidas.
O “facto” que a recorrente pretende seja considerado como provado foi dado como não provado sob a alínea i).
Dispõe o art. 607º, do Código de Processo Civil:
“(…)
4- Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
Os “factos” que o juiz tem de descriminar são os acontecimentos concretos da vida que sendo suscetíveis de prova pode julgar nos termos ali referenciados, sendo tais acontecimentos que depois lhe permitirão extrair as conclusões necessárias à apreciação jurídica da causa. Não podem ser objeto de julgamento quaisquer juízos valorativos, ou jurídicos, que devem decorrer dos factos concretos submetidos a prova.
A situação fáctica que a recorrente pretende que conste da matéria de facto provada encerra um juízo de índole valorativa e estritamente conclusiva, que assim não poderia integrar o acervo factual, o que significa que improcede necessariamente a pretensão da recorrente (entende-se não ser de determinar a eliminação do rol dos factos não provados, por o mesmo ser inócuo à decisão).
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A ré/recorrente pugna, ainda, pelo aditamento dum facto com o seguinte teor:
“9-A : Fazem parte do acervo hereditário saldos bancários de valor aproximado de 70 a 80 mil euros”.
Funda a sua pretensão no depoimento da testemunha Ana (…), com referência a passagens do respetivo testemunho que indica com alguma imprecisão mas, que, ainda, assim, entendemos não ser motivo de rejeição do recurso, nessa parte, porquanto complementou a indicação com uma transcrição do testemunho (ainda que muito curta e descontextualizada do restante depoimento) que pretende seja considerado.
Em sede de contestação, no art. 22º, a ré tinha alegado que “(…) existem outros bens pertencentes ao acervo da herança (imóveis, viaturas e contas bancárias), dos quais a Autora usufrui sem prestar quaisquer contas à herança”.
Nunca identificou as contas bancárias nem os concretos valores pecuniários nelas depositados.
Sob os pontos 8, e 9, estão descritos os bens que integram a herança, inexistindo qualquer referência a valores pecuniários depositados em contas bancárias, constando da motivação da sentença que “Os factos provados descritos em 1º a 14º e 18º trata-se de factualidade aceite por todas as partes, e mostram-se comprovados pela prova documental junta pela A. na petição inicial, a saber (…)”.
Nos pontos das passagens referentes ao testemunho de Ana (…) e que foram indicadas pela recorrente inexiste qualquer referência à identificação de contas bancárias concretas e valores monetários precisos que nelas se encontrassem depositados, sendo que com referência à matéria em questão e dada a sua natureza, sempre seria imprescindível a apresentação de prova documental capaz de sustentar a existência de depósitos bancários, prova que no caso não foi feita.
Improcede, por conseguinte, a pretensão da ré/recorrente.
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A ré/recorrente pede que relativamente ao facto provado sob 14, seja aditado o seguinte: “...fracção essa que foi comprada pelo falecido Sr. (…) para habitação própria permanente da ré.”
Sob 14, foi dado como provado que “Atualmente a fração autónoma descrita em b) do facto 8 tem o valor patrimonial de € 97.580,00.” Na fundamentação da sentença assinalou-se a prova documental que permitiu ter como demonstrada a dita factualidade.
A matéria factual que a ré pretende seja aditada extravasa o âmbito do facto que está provado e que em concreto foi alegado sob o art. 17º da petição inicial e que assim foi sujeito a prova.
Acresce que no que tange a esta concreta impugnação, a recorrente não cumpre com rigor o ónus decorrente do supra citado art. 640º, nº 2, al. a), posto que não indica com exatidão as passagens da gravação (início e fim) do testemunho de Maria (…) nas quais funda a sobredita pretensão e a que alude, simplesmente, por via de discurso indireto no corpo das alegações, pelo que se impõe a rejeição do recurso quanto à impugnação do dito facto.
Quanto à impugnação atinente aos factos provados sob 16, e 25, ao que foi dado como não provado sob a alínea c), e ao aditamento do facto proposto sob 25-A, tratando-se de matéria factual conexa entre si, decidimos apreciar conjuntamente a impugnação apresentada pela recorrente, que concluiu nestes termos:
- Do facto 16 devem ser retiradas as expressões “renda”; “uso”; “ocupação que fazem”, e colocando-se “preço” passando a ter a seguinte redação: -Desde o falecimento do marido da A. os Réus não pagam qualquer compensação pelo preço do imóvel.
- Que o facto 25 passe a ter a seguinte redação: -Entre 2006 a 2014 a Ré pagou mensalmente a seu pai quantias variáveis, em função do seu vencimento, por conta do preço da mencionada fração autónoma.
- Seja alterado para provado o facto descrito sob a alínea C), aditando-se aos factos provados, sob 25-A, o seguinte: - Ficou acordado que a Ré, em vez de pagar ao Banco, pagaria mensalmente o valor equivalente à prestação que seria devida se tivesse recorrido a financiamento bancário, diretamente ao seu pai; em valores médios de 200 a 300 euros.
Não obstante estar garantido um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, não compete à Relação proceder a um segundo julgamento, competindo-lhe apenas reapreciar os pontos de facto que deverão ser enunciados pela(s) parte(s), mantendo-se também em vigor na instância de recurso o princípio da livre apreciação da prova previsto no art. 607º, nº 5, do Código de Processo Civil, cabendo aferir sobre a razoabilidade da convicção do juiz da 1ª instância, ou seja, averiguar e decidir se tal convicção foi formada segundo as regras da ciência, da lógica, da experiência comum e da normalidade da vida.
O Tribunal da Relação, no âmbito da reapreciação da matéria de facto deve socorrer-se de todos os meios probatórios constantes dos autos, e recorrer, se necessário, a presunções judiciais, e caso venha a proceder à alteração de qualquer facto terá de aferir sobre a necessidade de alterar outro ou outros factos concretos, que não obstante não tenham sido objeto de impugnação, exijam também alteração em consequência e por força das alterações introduzidas na matéria de facto que tinha sido objeto de impugnação.
Neste sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de janeiro de 2019 (proferido no processo 3696/16.8T8VIS.C1.S1, acessível no sítio da internet www.dgsi.pt), segundo o qual “A reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem de ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância pois só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição (…).
Com efeito, embora não se tratando de um segundo julgamento, mas antes de uma reponderação, até porque as circunstâncias não são as mesmas, nas respetivas instâncias, não basta que não se concorde com a decisão dada, antes se exige da parte que pretende usar desta faculdade a demonstração da existência de incongruências na apreciação do valor probatório dos meios de prova (…)”, o que, não obstante,  prossegue o dito acórdão, “(…) não limita o segundo grau de sobre tais desconformidades previamente apontadas pelas partes, se pronuncie, enunciando a sua própria convicção, não estando, de todo em todo, limitada por aquela primeira abordagem pois não podemos ignorar que no processo civil impera o principio da livre apreciação da prova (…)”.
Neste mesmo, sentido, veja-se ainda o acórdão do mesmo Tribunal, proferido no Processo n.º 959/09.2TVLSB.L1.S1 (igualmente acessível em www.dgsi.pt), cujo sumário sintetiza, assim, a questão:
“ 1.É hoje jurisprudência corrente, mormente do STJ, que a reapreciação, por parte do tribunal da 2.ª instância, da decisão de facto impugnada não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa.
2. No âmbito dessa apreciação, dispõe o Tribunal da Relação de margem suficiente para, com base na prova produzida, em função do que for alegado pelo impugnante e pela parte contrária, bem como da fundamentação do tribunal da 1.ª instância, ajustar o nível de argumentação probatória de modo a revelar os fatores decisivos da reapreciação empreendida.
3. Todavia, a análise crítica da prova a que se refere o n.º 4 do artigo 607.º do CPC, mormente por parte do Tribunal da Relação, não significa que tenham de ser versados ou rebatidos, ponto por ponto, todos os argumentos do impugnante nem que tenha de ser efetuada uma argumentação exaustiva ou de pormenor de todo o material probatório. Afigura-se bastar que dessa análise se destaquem ou especifiquem os fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção do tribunal.
4. Também nada obsta a que o tribunal de recurso secunde ou corrobore a fundamentação dada pela 1.ª instância, desde que esta se revele sólida ou convincente à luz da prova auditada e não se mostre fragilizada pela argumentação probatória do impugnante, sustentada em elementos concretos que defluam da prova produzida, em termos de caracterizar minimamente o erro de julgamento invocado ou que, como se refere no artigo 640.º, n.º 1, aliena b), do CPC, imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto diversa da recorrida.
5. O nosso regime de sindicância da decisão de facto pela 2.ª instância tem em vista não um segundo julgamento latitudinário da causa, mas sim a reapreciação dos juízos de facto parcelares impugnados, na perspetiva de erros de julgamento específicos, o que requer, por banda do impugnante, uma argumentação probatória que, no limite, os configure.”
Sob 16 foi dado como provada a seguinte factualidade:
“Desde o falecimento do marido da A. os Réus não pagam qualquer renda ou outra compensação pelo uso e ocupação que fazem do imóvel.”
Corresponde, no essencial, a facto alegado no art. 19º da petição inicial. 
Em sede de fundamentação a Mmª juíza do tribunal a quo deixou expresso que o sobredito facto foi confessado pelos réus, não tendo a recorrente alegado quaisquer circunstâncias suscetíveis de abalar a força probatória da confissão, que em face das contestações dos réus tem de considerar-se operante, sendo, pois, de indeferir, nesta parte, a pretensão da ré.
No que diz respeito ao facto provado sob o nº 25, a Mmª juíza do tribunal de 1ª instância fundamentou, assim, a sua decisão: “Quanto ao facto descrito em 25 relativo a pagamentos da Ré a seu pai, por conta do uso da fracção, o tribunal sopesou os documentos 5 a 42 da contestação, em conjugação com o depoimento de Telles (…), funcionário da barbearia do pai da Ré de 2008 a fevereiro de 2013, o qual esclareceu que o falecido anotava num livro as entradas e saídas de dinheiro do estabelecimento comercial, nomeadamente o seu vencimento e o da Ré, declarando que por inúmeras vezes assistiu ao pai da R. a entregar-lhe o vencimento, mencionando a quantia que retinha por conta do uso da casa, sendo quantias variáveis entre os 100,00 euros, 200,00 euros, 300,00 euros, consoante o vencimento do mês da Ré.”
Já quanto ao facto que resultou como não provado sob c), estritamente relacionado com o que resultou como não provado sob b) – mas que não foi objeto de impugnação pela ré -, a Mmª juiz deixou expresso que: “Relativamente aos factos não provados sob as alíneas b) e c), a partir dos quais a Ré defende ser a proprietária da fracção onde habita, apesar de adquirida e registada em nome do seu falecido pai, o tribunal escudou-se nos seguintes elementos probatórios:
No depoimento de Ana (…), filha da Autora e irmã da Ré, a qual prestou declarações de forma objectiva, séria e com conhecimento directo da matéria.
Sobre a factualidade descrita em b) e c), a testemunha esclareceu que acompanhou os pais na escritura de compra e venda do imóvel, e residindo com estes, à data, acompanhou as conversas dos pais sobre a aquisição da fracção, a qual pretendiam arrendar quando se reformassem, sendo um complemento dos seus rendimentos, já que as reformas que iriam receber seriam de valor reduzido. Confirmou que o imóvel foi adquirido pelo seu falecido pai com o dinheiro que obteve da venda de um outro imóvel de sua propriedade, e que à data pelo facto da sua irmã e aqui Ré, que vivia com os pais, pretender ir residir com o namorado (aqui Réu), foi acordado entre os pais e a Ré que esta poderia ir morar na referida fracção, mediante o pagamento de uma mensalidade cujo valor concreto não ficou sequer definido, pagando a Ré valores variáveis entre os 100,00 euros, 150,00 euros, 200,00 euros, consoante o seu vencimento que lhe era pago pelo falecido pai, já que a irmã trabalhava com este no cabeleireiro de sua propriedade.
Mais esclareceu que os pais, ou o falecido pai nunca afirmou ou pretendeu que a referida fracção passasse a ser da propriedade da Ré.
Em acareação com a testemunha (da Ré) Cláudia (…), que declarou ter ouvido os pais da Ré afirmarem que a casa era para a Ré S., a depoente esclareceu que o seu falecido pai e a mãe aqui Autora afirmaram de facto varias vezes, e em diversas ocasiões, que “a casa era para a S.”, querendo com isso dizerem que a casa era para a S. ir para lá morar, e não que a casa fosse da propriedade da Ré, ou fosse para ser colocada posteriormente em nome desta.
O depoimento da testemunha Ana (…) foi prestado com seriedade, de forma objectiva, e com conhecimento directo da matéria, o qual mereceu inteira credibilidade, entendendo o tribunal que o mesmo não foi abalado pelo depoimento da testemunha Cláudia (…) porquanto esta, no essencial, quanto a esta questão, se limitou a dizer ter ouvido os pais da Ré dizerem que a casa era para a S., mediante o pagamento, por esta, de uma prestação mensal cujo valor não sabe, nem se foi paga, remetendo-se quanto ao pagamento da prestação àquilo que a própria Ré lhe transmitiu.
No depoimento da testemunha Jorge (…), amigo de longa data da A. e do seu falecido marido, o qual os acompanhou na visita do imóvel antes da compra, afirmando que o A. (…), no local, lhe transmitiu que comprava o referido imóvel para o arrendar quando chegasse à idade da reforma, para ter um complemento de rendimento.
No depoimento da testemunha Manuel (…), padrinho da irmã da Ré, o qual declarou que o falecido A. lhe transmitiu diversas vezes que havia comprado a referida fracção para ter um complemento de rendimento, já que a sua reforma e a da esposa eram de baixo valor.
No depoimento da testemunha Maria (…), mulher da testemunha Manuel (…), a qual, no essencial, prestou depoimento similar a este ultimo.
No depoimento da testemunha M.A.M.C., amigo de longa data da A. e seu falecido marido, o qual se deslocou ao imóvel com a A. e marido, aquando da compra, altura em que estes lhe transmitiram que o apartamento seria para arrendar quando se reformassem, como complemento das suas reformas, por estas serem reduzidas.
O depoimento das testemunhas Jorge (…), Manuel (…) e mulher, e M.A.M.C., foi prestado com seriedade, genuinidade, conhecimento directo e imparcialidade, não tendo nenhuma das testemunhas qualquer interesse na causa, motivo pelo qual se conferiu inteira credibilidade aos seus depoimentos.
Por outro lado, o depoimento das testemunhas dos Réus não se mostraram idóneos a pôr em causa as declarações daqueles.
Na verdade, e quanto à testemunha Cláudia (…), remete-se para o supra consignado a propósito do confronto desta testemunha com a testemunha Ana (…).
Para além daquela testemunha, Rui (…) viu apenas uma vez o pai da Ré no prédio, alegando que este lhe afirmou ser ele o proprietário da fracção mas que “a casa era para a filha”; o funcionário do cabeleireiro do pai da Ré, Telles (…), que depôs essencialmente quanto ao pagamento de valores parciais e variáveis que a Ré fazia a seu pai, mensalmente, referindo que era esta ultima que fixava o valor a entregar por conta da casa, afirmou quanto à sua propriedade que o falecido A. (…) declarou, a este propósito, que havia comprado o apartamento para a filha S., e que quer os pais desta, quer amigos, diziam que “iam à casa da S.”; e a testemunha Hugo (…) limitou-se a afirmar que enquanto administrador do prédio consultou um documento particular da gestão do condomínio onde constava que a proprietária da fracção era a Ré, não tendo ido confirmar tal situação.
Ora, a afirmação de que “a casa era para a filha”, que a “casa era para a S.”, e que “vamos a casa da S.”, no contexto em que a Ré ficou a habitar na fracção com o acordo dos pais, mediante o pagamento de um valor mensal que nem sequer era fixo, mas variável, em função das possibilidades da Ré, só pode ser entendido, face à conjugação da prova testemunhal da A., que tais afirmações se reportavam ao facto de a Ré estar a habitar na fracção, não se podendo extrair das mesmas que o falecido pai da Ré pretendia doar ou vender a esta a fracção em questão.
Aliás, é de salientar a este propósito que a própria Ré, na sua contestação, começa por invocar que o pai lhe ofereceu a casa, sendo por isso uma doação, para depois invocar que o pai lhe venderia a casa quando esta liquidasse o preço pago através de uma prestação mensal, prestação cujo valor não foi sequer fixado, e os pagamentos feitos pela R. por conta do uso da fracção eram de valores variáveis na ordem dos cem a trezentos euros mensais, para por fim, invocar, no artigo 15 que “Assim nunca esteve a Ré a utilizar a fração sem proceder ao pagamento que havia acordado com o pai//titular inscrito( só não tendo pago quando de todo não podia trabalhar, mas sempre com o acordo do seu pai) e desde a morte deste, que a utiliza como titular/proprietária que é, em comum e sem determinação de parte ou direito, com os restantes herdeiros/proprietários.
Ou seja, é a própria Ré que confessa habitar no imóvel na qualidade de herdeira, e que o faz “em comum e sem determinação de parte ou direito, com os restantes herdeiros/proprietários.”, afastando por isso qualquer direito de propriedade plena sobre a fracção.
Em face da conjugação e análise critica dos elementos probatórios mencionados, entende este tribunal não estar provado o vertido nas alíneas b) e c) dos factos não provados.”
Da análise desta fundamentação salientamos, desde logo, a preocupação do tribunal a quo em fundamentar com detalhe a sua convicção quanto à matéria factual em apreço, e que é evidenciada pelo exame analítico, valorativo, e crítico dos meios de prova concretamente indicados, nomeadamente, aqueles que a recorrente invoca para impugnar a decisão. A Mmª juiz de 1ª instância referiu as razões da formação da sua convicção e fê-lo de forma objetiva, coerente e sólida, com apelo à razão, expondo de forma detalhada e explicativa as razões do seu convencimento, dele decorrendo o motivo pelo qual os testemunhos ora concretamente indicados pelo recorrente não conduziram a entendimento diferente, e por isso temos de sufragar tal fundamentação, cabalmente motivadora do juízo final quanto à apreensão da realidade factual em causa, e que não logramos como sindicar segundo as regras da lógica, da ciência e da experiência, restando concluir pela inexistência de erro de julgamento.
Improcede, assim, a pretensão da recorrente.
*
Finalmente, pugna a recorrente pelo aditamento à matéria de facto provada do seguinte facto: “A ré possui uma incapacidade permanente física de 70%, de acordo com a TNI”, referindo que a mesma é sustentada pelo 5º quadro do documento nº 8 apresentado com a contestação.
No corpo das suas alegações, a recorrente não suscita qualquer discussão sobre a sobredita matéria, que só traz à colação em sede de conclusões. Ora, traduzindo estas um resumo sintetizado das alegações – como referido anteriormente -, não podem comportar matéria nova, não incluída nas alegações, pelo que resta concluir, sem necessidade de fundamentação acrescida, pela rejeição do recurso nesta parte.
III. Fundamentação de Facto
Decidida a impugnação sobre a decisão de facto, tem-se como fixado o seguinte quadro factual:
Factos Provados
1-No dia 23 de janeiro de 2018 faleceu A. (…), no estado de casado com a Autora, em primeiras e únicas núpcias de ambos.
2-A. (…) e a Autora contraíram casamento católico em 2 de fevereiro de 1975, segundo o regime da comunhão de adquiridos.
3-Durante a vigência do casamento A. (…) e a Autora adquiriram diverso património, fruto do trabalho, empenho e esforço de ambos.
4-O acervo hereditário de A. (…) ainda não foi partilhado, permanecendo indiviso, correndo processo de inventário no Cartório Notarial da Dr.ª (…), sob o n.º (…).
5-A. (…) deixou como herdeiros: o cônjuge sobrevivo M. (…) aqui Autora; A filha Ana (…), casada com Diogo (…), no regime da comunhão geral de bens; A filha S. (…), aqui 1ª Ré.
6-A. (…) não fez testamento nem deixou qualquer disposição de última vontade.
7-A Autora foi designada como cabeça-de-casal e exerce as inerentes funções.
8-Do património hereditário fazem parte os seguintes bens imóveis:
a) ½ indivisa do prédio urbano, composto de moradia unifamiliar, destinado a habitação sito na Rua (…), Bicesse, 2645-567 Alcabideche, inscrito na matriz sob o art. (…) da freguesia de Alcabideche, concelho de Cascais;
b) ½ indivisa da fração autónoma designada pela letra “J”, destinada a habitação, correspondente ao quarto andar esquerdo, no piso quatro, com um parqueamento localizado no piso -1 ou cave com o n.º2, do prédio urbano designado por lote 93, situado no Largo (…), S. Domingos de Rana, inscrito na matriz predial urbana sob o art. (…) da freguesia de S. Domingos de Rana, concelho de Cascais, e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º (…) da referida freguesia;
c) ½ indivisa do prédio urbano, composto inicialmente de casa com 1 andar, pateo coberto e quintal, atualmente em ruína, sito em (…), Seixo da Beira, inscrito na matriz sob o artigo (…) da freguesia de Seixo da Beira, concelho de Oliveira do Hospital;
d) ½ indivisa da fração autónoma designada pelas letras “AB”, correspondente ao 7º A, do prédio urbano sito na Rua (…) Amora, inscrito na matriz predial urbana da freguesia da Amora, concelho do Seixal.
9-Fazem ainda parte do acervo hereditário os seguintes veículos automóveis:
a) ½ indivisa do Citroen Xsara com a matrícula (…);
b) ½ indivisa do Citroen C4 com a matrícula (…); e
c) ½ indivisa da Roulote/Reboque/Campismo da marca Vimara Sport 340 com a matrícula (…).
10-A moradia unifamiliar descrita em a) do facto 8 é habitada pela Autora e constituía a casa de morada da família do casal à data do óbito do seu falecido marido.
11-A fração autónoma descrita em b) do facto 8 foi adquirida, por compra, pelo seu falecido marido A. (…), na constância do casamento, por escritura pública celebrada no dia 6 de janeiro de 2006, no 12º Cartório Notarial de Lisboa.
12-A referida fração autónoma destina-se a habitação, com tipologia T2, sendo composta por hall/vestíbulo, sala comum, 2 quartos (um em suíte) corredor e uma casa de banho, com aquecimento central, música ambiente e vidros duplos, fazendo ainda parte do imóvel um parqueamento.
13-O alvará de autorização de utilização foi atribuído ao prédio de que a fração faz parte, em 10 de agosto de 2005.
14-Atualmente a fração autónoma descrita em b) do facto 8 tem o valor patrimonial de € 97.580,00.
15-A dita fração autónoma, incluindo o parqueamento, encontra-se a ser usada exclusivamente pelos Réus, que nela habitam.
16-Desde o falecimento do marido da A. os Réus não pagam qualquer renda ou outra compensação pelo uso e ocupação que fazem do imóvel.
17-Caso não estivesse a ser ocupada pelos Réus, a referida fração autónoma poderia ser dada de arrendamento, por renda mensal de valor não inferior a 1.000,00 euros.
18-A Autora tem atualmente 66 anos de idade, tendo nascido em 17 de janeiro de 1953.
19-A Autora tem atualmente, como rendimentos, uma pensão de reforma do seu falecido marido no valor de cerca de 150,00 euros mensais; a sua pensão no valor de 330,00 euros, e trabalha parcialmente como empregada de limpeza, auferindo rendimento variável.
20-O imóvel descrito em 8. d) encontra-se atualmente arrendado pelo valor mensal de 570,00 euros.
21-A herança gera despesas, nomeadamente:
- IMI relativo aos 4 prédios que fazem parte do acervo hereditário, no valor anual de € 1.886,24;
- Condomínio do prédio que faz parte do acervo hereditário sito na Amora/Seixal, no valor anual de € 288,00 euros;
- Despesas de manutenção dos 3 veículos automóveis pertencentes à herança, incluindo seguros, no valor anual de 200,00 euros e de 170,00 euros, inspeção, e IUC nos valores anuais de 140,00 euros e 20,30 euros.
22-A Autora enviou à Ré uma carta registada solicitando a entrega da referida fração autónoma, carta que, porém, veio devolvida por não reclamada.
23-A Ré habita a fração autónoma descrita em b) do facto 8 desde finais de 2005.
24-Os contratos de água, gás e luz da fração autónoma descrita em b) do facto 8 ficaram em nome da Ré, e o condomínio foi sempre pago por esta, até ao falecimento de seu pai.
25-Entre 2006 a 2014 a Ré pagou mensalmente a seu pai quantias variáveis, em função do seu vencimento, por conta do uso da mencionada fração autónoma.
26-A Ré sempre trabalhou no Cabeleireiro/Barbearia de seu pai, e onde este também exercia a sua atividade profissional.
27-A partir de 2014 os problemas de saúde da Ré, doente renal, agravaram-se, impedindo-a de trabalhar durantes alguns períodos, fazendo hemodialise e transplantes renais, tendo em 2017 sido retransplantada, ano em que não trabalhou.
28-Nos períodos em que a Ré não trabalhou, não entregou ao seu falecido pai qualquer valor pelo uso da fração, com o acordo deste.
29-A Ré não paga renda ou qualquer outra compensação, desde a morte do seu pai, pelo uso que faz da fração onde habita.
30-O Réu vive com a Ré na mencionada fração, desde data não concretamente apurada.
Factos Não Provados
a) Que a fração onde residem os RR se encontra em bom estado de conservação;
b) Que a fração autónoma descrita em b) do facto 8 tenha sido adquirida pelo pai da Ré para habitação desta, só não tendo sido adquirida diretamente por esta, com recurso a crédito bancário, por o seu pai ter considerado que era preferível ser o próprio a adquiri-la, pois tinha vendido uma outra casa e se reinvestisse o valor da venda, teria o benefício fiscal de as mais valias não serem tributadas;
c) Que ficou acordado que a Ré, em vez de pagar ao Banco, pagaria mensalmente o valor equivalente à prestação que seria devida se tivesse recorrido a financiamento bancário, diretamente ao seu pai;
d) Que a referida fração só não ficou no nome da Ré, por esta ser doente renal, e por esse motivo não conseguir obter financiamento bancário;
e) Que o pai da Ré disse ao Réu que quando a referida fração estivesse paga pela Ré, passaria a casa para o seu nome;
f) Que foi celebrado entre a Ré e os seus pais um contrato promessa de compra e venda da fração,verbal;
g) Que o pai da Ré decidiu que esta, por ser doente renal e padecer de incapacidade permanente, deixasse de pagar qualquer quantia pelo uso da fração;
h) Que após o falecimento do pai da Ré, esta, a A. sua mãe e a irmã acordaram que a Ré continuasse a viver na fração com o Réu, pagando apenas o IMI, não o tendo pago pelo facto da A. não ter facultado a referência para o efeito;
i) Que o imóvel onde habita a Autora possui um valor locativo superior ao da fração onde reside a Ré.
IV. Fundamentação de Direito
No plano jurídico, a ré/recorrente insurge-se contra a decisão, concluindo em síntese, que:
1º- Os factos provados revelam que a ré nada pagava pela compra do imóvel desde o ano de 2017, de acordo com os seus pais, uma vez que por se encontrar doente e impossibilitada de trabalhar, carecia de alimentos que assim lhe eram prestados pelos seus pais; recaindo, agora, sobre a herança, a obrigação de lhe prestar alimentos;
2º - A herança possui rendimentos e valores depositados, sendo abusiva a exigência da entrega do imóvel habitado pela ré;
3º - A administração racional da herança, determina que deva ser feito o arrendamento da casa de morada de família da autora, de forma a reduzir os custos manifestamente desproporcionados da herança angariando rendimentos para a herança e permitido a obtenção de uma renda suficiente para custear a renda de um imóvel adequado às necessidades da cabeça de casal, bem como um rendimento extra.
Os recursos visam apenas a reapreciação do que foi efetivamente decidido, não podendo o Tribunal de recurso conhecer de questões novas.
 “A questão nova não é susceptível de vir a obter um novo enquadramento jurídico, em sede de recurso, mas antes uma primeira e definitiva abordagem, pelo que, a menos que se reconduza a uma hipótese de conhecimento oficioso, está vedado, até com base no princípio da estabilidade da instância, ao Tribunal Superior a sua apreciação, que não pode conhecer e decidir o que, anteriormente, o não foi, por falta de atempada invocação”.[5]
“(i) Os recursos são meios a usar para obter a reapreciação de uma decisão mas não para obter decisões de questões novas, isto é, de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes perante o tribunal recorrido.
(ii) - As questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos: destinam-se a reapreciar questões e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprir um ou mais graus de jurisdição, prejudicando a parte que ficasse vencida.”[6]
A questão da necessidade de alimentos por parte da ré e bem assim a obrigação de lhe serem prestados pelos seus progenitores, e ora pela herança, em consequência do decesso do seu pai não foi sujeita a discussão nos autos nem objeto de decisão final.
Trata-se de questão nova, que pelas razões acima referenciadas, não pode ser conhecida por este tribunal.
No demais, a Ré qualifica como abusiva a pretensão da autora e questiona a racionalidade da administração dos bens da herança.
A. (….) e a Autora (…), foram casados no regime da comunhão geral de adquiridos, e por óbito do primeiro, sucederam-lhe como herdeiros, além do cônjuge sobrevivo, as filhas de ambos, Ana (…) e S. (…), aqui Ré.
Integram a herança as situações jurídicas que se encontravam na titularidade do de cujus e que pela sua natureza não devam extinguir-se por efeito da morte; por força da lei; ou por efeito de renúncia de direito a que o mesmo tenha validamente renunciado (cf. arts. 2024º e 2025º, do Código Civil)[7],[8].
De acordo com o acervo factual apurado, a fação imobiliária identifica sob 8, al. b), foi adquirida por A. (…) na pendência do seu casamento com a ora Autora, tratando-se, pois, dum bem comum (art. 1724º, al. b), do Código Civil) que após a morte daquele passou a integrar o seu acervo hereditário.
A herança é um património autónomo.
Os herdeiros não têm direito a quaisquer bens individualizados da herança, sendo apenas titulares de um direito sobre a herança, de um direito a uma parte ideal da mesma, e não de determinada parte sobre cada um dos bens/direitos que a compõem.
É através da partilha – que pode ser feita judicial ou extrajudicialmente – que são adjudicados os bens a cada um dos herdeiros, que assim verão preenchida a sua quota na herança, sendo que só depois dessa adjudicação poderá cada um deles reclamar aquilo que lhe foi concretamente atribuído (cf. arts. 2119º e 2120º, nº 1, do Código Civil).
“Nos casos em que haja lugar à partilha da herança, segundo a opinião dominante, o domínio e posse sobre os bens em concreto da herança só se efectivam após a partilha, uma vez que até aí a herança constitui um património autónomo nada mais tendo os herdeiros do que o direito a uma quota parte do património hereditário»[9].
Evidenciam os autos que a ré habita na sobredita fração imobiliária que ora integra a herança do seu pai, desde finais do ano de 2005, sendo que os contratos de água, gás e luz ficaram em seu nome e o condomínio foi sempre pago por esta, até ao falecimento de seu pai.
Entre 2006 a 2014 a Ré pagou mensalmente ao seu pai quantias variáveis, em função do seu rendimento laboral, por conta do uso da mencionada fração autónoma. A partir de 2014, por razões de saúde, a Ré esteve períodos temporais sem trabalhar, nomeadamente, ao longo de todo o ano de 2017.
Durante o período temporal que não trabalhou, e com o acordo do seu falecido pai, não pagou qualquer quantia pelo uso da fração.
A partir da morte do pai deixou de pagar renda ou qualquer outra compensação pelo uso que faz da fração onde habita.
Os factos apurados não permitem evidenciar a que título a Ré ocupa o imóvel, sendo que a mesma não logrou demonstrar a versão factual que trouxe à discussão através da contestação, designadamente, que a fração imobiliária em causa teria sido adquirida por si própria, mas por intermédio do pai, a quem pagaria valores mensais correspondentes à prestação que teria de pagar a instituição bancária para liquidar o preço respetivo.
A sobredita facticidade também não permite concluir pela celebração de contrato de arrendamento entre a Ré e o seu progenitor, ou progenitores, na medida em que não foi feita prova de que como contrapartida do uso do imóvel se obrigou ao pagamento de uma quantia certa, de uma renda (quando efetuou pagamentos, entregava ao progenitor quantias variáveis); como não evidencia o direito de ocupação do imóvel com base em qualquer base negocial.
Inexiste prova que a Ré disponha de um direito real sobre o imóvel.
Desde a morte do progenitor que a Ré não paga qualquer compensação pelo seu uso.
A administração dos bens hereditários -bens próprios do falecido e no caso deste ter sido casado em regime de comunhão, os bens comuns do casal -  pertence ao cabeça de casal (cf. art. 2087º, do Código Civil). 
M. (…), meeira e herdeira como a Ré, exerce o cargo de cabeça de casal dos bens que integram o acervo hereditário do falecido, entre os quais se encontra o imóvel que se encontra a ser fruído pela Ré.
No âmbito dos seus poderes de administração, e nos termos previstos no nº 1, do art. 2088º, daquele mesmo Código, “O cabeça de casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de ações possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído”, esclarecendo a este propósito Pires de Lima e Antunes Varela[10], “(…) que o termo entrega é a designação genérica que cobre toda a acção executiva destinada a obter que alguém coloque ao alcance do autor a coisa que o demandado tem em seu poder, qualquer que seja a natureza (real ou obrigacional) ou a duração (temporária ou definitiva) do direito em que o requerente funda a sua pretensão.
Não surpreende assim, dado o carácter instrumental do poder que o artigo 2088º confere ao cabeça de casal, que a pretensão formal deste se dirija tanto a terceiros, que tenham em seu poder bens pertencentes ao complexo hereditário, como aos próprios herdeiros, cujo direito sobre a coisa que esteja em seu poder, por mais incontestável que seja, não pode deixar de ceder perante a tarefa temporária e acidental do cabecelato.
Essencial é que, como aliás se depreende do próprio texto da norma, a entrega material dos bens seja realmente necessária ao exercício de gestão que os artigos 2079º e 2087º confiam ao cabeça de casal como administrador da herança.
Tão necessária, no interesse geral do de cuis, pode realmente ser a operação de detenção material dos bens hereditários para o cabeça-de-casal proceder à liquidação e à partilha da herança, que a disposição legal não hesitou em atribuir ao cabeça-de-casal legitimidade para recorrer às acções possessórias, não só contra terceiros (…), mas também contra os próprios herdeiros. E aqui – neste ponto – é que a solução mais facilmente poderia já chocar (…), porque o herdeiro pode ser verdadeiro possuidor dos bens hereditários que estejam em seu poder, enquanto cabeça de casal, como tal, verdadeiro possuidor não é.
É que as funções específicas do cabeçalato interessam de tal modo aos participantes na herança e aos próprios credores dela, que a lei (art. 2088º), à imagem e semelhança do que fez no artigo 1037º, nº 2, não duvidou em facultar ao cabeça de casal, apesar de não o considerar como possuidor, o recurso às acções possessórias (arts. 1276º e segs.), para defender o seu poder, contra os próprios herdeiros que tenham posse sobre os bens cuja entrega lhes é pedida”. – sublinhados nossos.
Não obstante a Autora ter intentado a ação por si própria – face à identificação feita no introito da petição inicial – tendo em consideração o alegado e os fundamentos da ação, cumpre considerar, à semelhança do que se verificou em 1ª instância que litiga enquanto cabeça de casal da herança aberta por óbito do cônjuge.
A autora, na qualidade de cabeça de casal, é responsável pela conservação do imóvel e pela sua frutificação.
A herança não usufrui de rendimentos do imóvel e como se provou, caso não estivesse a ser ocupado pelos Réus, poderia ser dado de arrendamento, por renda mensal de valor não inferior a 1.000,00 euros.
A falta de rentabilização do imóvel causa assim prejuízo à herança, e consequentemente aos herdeiros que não usam o imóvel, face ao disposto no art. 2092º, do Código Civil.
A autora, na qualidade de cabeça de casal, pode celebrar contrato de arrendamento referente a imóveis que integrem a herança, desde que o contrato seja por prazo não superior a seis anos, como decorre das disposições conjugadas dos arts. 1024º, nº 1 (o nº 2 deste preceito refere-se à compropriedade e não aos patrimónios comuns, como o é a herança), 2079º, 2087º, nº 1, e 2091º, nº 1, do Código Civil, sendo que, pretendendo, fazê-lo no âmbito dos seus direitos/deveres de gestão -, é essencial que o imóvel se encontre na disposição da herança.
A Ré também não logrou demonstrar factos suscetíveis de evidenciar que a Autora não pretende colocar o imóvel no mercado de arrendamento.
Deste modo, contrapondo o interesse legítimo da cabeça de casal em reaver o imóvel para a esfera da herança, com vista à sua frutificação - no interesse da herança –; ao interesse da Ré, na manutenção da habitação do imóvel, e não descurando, que o direito à habitação tem de ser objeto de particular proteção, certo é que a superioridade do interesse da ré teria de se afirmar no âmbito do contexto factual apurado, o que no caso não se afigura viável, dada a escassez de factos, sendo que lhe caberia ter alegado e demonstrado à luz do art. 334º do Código Civil, factos suscetíveis de excecionar o direito aqui exercido pela Autora, na qualidade de cabeça de casal, designadamente, que a entrega do imóvel redundaria num prejuízo desproporcional para a Ré quando comparado com o benefício que desse entrega resultaria para a herança, a tudo acrescendo que esta não é a sede própria para a Ré discutir a administração da cabeça de casal (a falta de prudência ou zelo no exercício da administração constitui fundamento de remoção do cabeça de casal – cf. 2086º, nº 1, al. b), do Código de Processo Civil), não relevando, por isso, a demais argumentação da recorrente.
Concluindo, mantém-se a decisão recorrida.
Improcede, assim, a apelação.
*
Do recurso subordinado apresentado pela autora
A autora veio manifestar a sua discordância quanto à decisão proferida em 1ª instância na parte em que absolveu os réus dos pedidos formulados sob as alíneas e), e f), da petição inicial, designadamente, no pedido de condenação dos réus a pagarem-lhe a quantia mensal de € 1.000,00, por cada mês que decorra desde a citação dos Réus até à efetiva entrega da fração autónoma à Autora, bem como no pagamento de juros de mora vincendos à taxa legal de 4%/ano (ou outra que entretanto vigorar) desde a data do vencimento até integral pagamento da quantia global que vier a ser apurada.
Como fundamento do assim peticionado, diz, a autora, na petição inicial, que lhe assiste o direito a reclamar compensação pelo uso e pela ocupação que os Réus fazem, em exclusivo, da fração autónoma que integra o acervo hereditário do falecido, e que por isso, nos termos previstos no art. 1284º, do Código Civil, pode exigir-lhes uma indemnização pelos prejuízos sofridos decorrentes da ocupação até se concretizar a restituição, correspondente à quantia mensal equivalente à renda que a fração poderia gerar desde a data da citação até à sua entrega efetiva.
Os pedidos assim formulados foram julgados improcedentes, por não provados, com os seguintes fundamentos:
“A Autora veio requerer que sejam os réus condenados a pagar a quantia mensal de € 1.000,00 (mil euros), por cada mês que decorrer desde a citação até à efetiva entrega da fração autónoma à Autora, porquanto este imóvel tem o valor locativo de renda mensal não inferior a 1.000,00 euros, valor que resultou assente.
Não se pode dissociar deste pedido, todavia, que o mesmo tem por fundamento o dever de administração dos bens da herança que cabe à cabeça de casal aqui A., no caso dos autos, o dever de gerir e administrar a fracção autónoma onde residem os Réus.
Não tendo a lei definido o conteúdo concreto dessa administração, é claro que o percebimento de frutos e os rendimentos dos bens da herança cabe no âmbito da administração do acervo hereditário, o que, necessariamente, terá que ser apreciado em sede de processo especial de prestação de contas – vide, no mesmo sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11-07-2002, processo n.º 0021756, disponível em www.dgsi.pt.
Ou seja, os actos da administração do acervo hereditário, onde se inclui o pedido de condenação dos Réus supra referido, levados a cabo pela cabeça de casal, só pode ser apreciado em sede do processo especial de prestação de contas, do que resulta a sua improcedência nestes autos de processo comum.
Ademais, é igualmente de levar em consideração que a Ré é também herdeira da herança que cabe à A. administrar, e pese embora não detenha titulo que legitime a ocupação que faz da fracção em causa, devendo restituir o bem à herança, não podemos descurar que apesar de ser titular duma quota ideal do acervo hereditário a Ré pode vir a adquirir a fracção aquando da partilha dos bens, e nesse caso será considerada sucessora única do referido imóvel, desde a data da abertura da herança, sendo-lhe por isso inexigível, neste quadro, o pagamento de uma “renda” pelo uso do bem.
Improcede, assim, este pedido da A..”.
Neste tocante, não podemos sufragar a decisão recorrida.
Na sequência do que anteriormente se deixou referido, a presente ação apresenta-se como uma ação possessória – ação de restituição de posse de bem à herança -, pelo que, tendo sido pedida a restituição do bem, é-lhe aplicável o regime jurídico decorrente dos art. 1284º, nº 1, do Código Civil, de acordo com o qual, “O possuidor mantido ou restituído tem direito a ser indemnizado do prejuízo que haja sofrido em consequência da turbação ou do esbulho”.
Ponderado o quadro factual apurado, é inequívoco que até à citação dos réus para os termos da presente ação, a posse dum e doutro relativamente ao imóvel, onde habitam, foi tolerada pelos herdeiros, nomeadamente por parte da Autora, na qualidade de cabeça de casal, posto que inexiste evidência de ter sido deduzida oposição a tal posse.
Tal tolerância cessou, porém, no momento em através da presente ação lhes foi pedida a restituição do bem à herança a fim de o mesmo ser gerido pela cabeça de casal. Logo, a partir da citação, os Réus tomaram conhecimento de que a posse de ambos passou a contar com a oposição da cabeça de casal – administradora da herança - e que, por isso, a manter-se, como sucedeu, passou a ser ilícita, na medida em que não provaram a existência de título que justificasse a posse.
O uso do prédio, pelos réus, nas descritas circunstâncias passou então a acarretar um prejuízo na esfera da herança, porque dele desbulhada, e por isso privada de obter frutos/rendimentos, equivalentes à renda mensal que o mesmo podia gerar no mercado de arrendamento habitacional, tendo resultado precisamente como demonstrado que caso não estivesse a ser ocupada pelos Réus, a referida fração autónoma poderia ser dada de arrendamento, por renda mensal de valor não inferior a €1.000,00.
Tais prejuízos manter-se-ão na esfera da herança até ao momento em que o bem lhe seja entregue ou até à sua partilha.
E esta é a ação adequada para a autora, na qualidade de cabeça-de-casal, pedir indemnização a ambos os réus (já que o réu – que não tem a qualidade de herdeiro do sobredito falecido - também ocupa a casa sem qualquer título que legitime a ocupação), sem prejuízo, obviamente, do dever que sobre si recairá de  prestar contas aos herdeiros, nos termos previstos no art. 2093º, nº 1, do Código Civil, ou de lhe ser exigido por qualquer dos herdeiros que as preste, caso não o faça, como está obrigada (por via do recurso ao procedimento previsto pelos arts. 941º, a 947º, do Código de Processo Civil), sendo que a prestação de contas pressupõe o recebimento de receitas por parte da herança e a contabilização de despesas, em ordem a ser determinada a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.
Deste modo, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 1284º, 562º, 563º, e 564º, do Código Civil, impõe-se revogar a sentença recorrida, na parte em que absolveu os réus daqueles pedidos, e determinar a condenação destes no pagamento, à Autora, enquanto cabeça de casal, da quantia mensal de € 1.000,00, desde a citação até à restituição do imóvel ou à sua partilha, a que acrescerão juros de mora, à taxa legal (cf. arts. 804º, 805º, nº 1, e 806º, nºs 1, e 2, do Código Civil), mas apenas desde o vencimento de cada prestação mensal até integral pagamento.

V. Decisão
Na sequência do que se deixou exposto e no âmbito do enquadramento jurídico que aqui se deixou traçado, acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente por não provada a apelação; e em julgar procedente, por provado, o recurso subordinado interposto pela apelada, e em consequência, revogar a decisão proferida em 1ª instância, na parte em que absolveu os réus do pagamento de indemnização, substituindo-a pela seguinte decisão: julgar parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização, condenando-se os réus, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 1284º, 562º, 563º, e 564º, do Código Civil a pagar à Autora, na qualidade de cabeça de casal e administradora da herança indivisa de Amadeu ……, a quantia mensal de € 1.000,00, desde a citação até à restituição do imóvel ou à sua partilha, a que acrescerão juros de mora, à taxa legal (cf. arts. 804º, 805º, nº 1, e 806º, nºs 1, e 2, do Código Civil), mas apenas desde o vencimento de cada prestação mensal até integral pagamento.
Custas pela apelante (art. 527º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Notifique.

Lisboa, 15-09-2022
CRISTINA PIRES LOURENÇO
CARLA SOUSA OLIVEIRA
ANA PAULA OLIVENÇA
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[1] “Recursos em Processo Civil”. 6ª Edição, pág. 181.
[2] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/05/2018, proferido no processo nº 2833/16.7T8VFX.L1.S1, www.dgs.pt.
[3] Obra citada, págs. 196-197.
[4] António Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 199-200.
[5] Acórdão do STJ de 2/6/2015, proferido no Proc. nº 505/07.2TVLSB.L1.S1, acessível no sítio da internet www.dgsi.pt
[6] Sumário do Acórdão do STJ, de 8/10/2020, concernente ao processo nº 4261/12.4TBBRG-A.G1.S1.
[7] José de Oliveira Ascensão – Direito Civil – Sucessões – Coimbra Editora, 1987, pág. 36.
[8] João António Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. I, Livraria Almedina, 1990, págs. 9-10.
[9] Rabindranath Capelo de Sousa, “Lições de Direito das sucessões, pag. 185).
[10] Código Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1998, pág. 148.