Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4719/16.6T8SNT-C.L1-8
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: PROMITENTE COMPRADOR DE IMÓVEL
TRADIÇÃO DA COISA
DIREITO DE RETENÇÃO
SINAL EM DOBRO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE/ALTERADA A DECISÃO
Sumário: I. Conforme se decidiu no acórdão de uniformização de jurisprudência nº 4/2014, de 19/5/2014, o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no art. 755º, nº1 al. f), do Código Civil.

II. Uma vez devidamente individuaizada a parte sobre que incide - e pese embora a caducidade do registo da propriedade horizontal ao mesmo respeitante - goza o promitente-comprador do direito de retenção sobre o imóvel, objecto do contrato promessa consigo celebrado.

III. Sendo o regime constante do art. 106º, nº2, do CIRE apenas aplicável ao contrato promessa, com efeito meramente obrigacional, em que não tenha havido tradição ao promitente-comprador, ter-se-à de, considerando afastado esse regime, fazer equivaler o crédito ao dobro do sinal prestado, nos termos gerais do art. 442º, nº2, do C.Civil

SUMÁRIO: (elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:



1.  D… e  P... vieram propor, contra a massa insolvente de F... Lda, e outros, acção nos termos do art. 146º do CIRE, distribuída à comarca de Lisboa Oeste - Juízo de Comércio de Sintra, pedindo o reconhecimento de crédito sobre a insolvente, emergente de contrato promessa de compra e venda com aquela celebrado, bem como do direito de retenção sobre o imóvel que constituiu seu objecto.

Contestaram a massa insolvente e a credora P...SA, impugnando o invocado crédito - concluindo pela improcedência da acção.

Efectuado julgamento, foi proferida sentença, na qual, considerando-se a acção parcialmente procedente, se reconheceu aos AA. um crédito sobre a massa insolvente e o direito de retenção sobre o imóvel em causa.

Inconformada, veio a credora P... interpor o presente recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões :

Por sentença proferida pelo Tribunal a quo foi julgada parcialmente procedente a ação de verificação ulterior de créditos e, em consequência, reconhecido aos AA.: 1) o direito a um crédito no valor que resultar da soma do valor do sinal em singelo no montante de € 25.000, acrescido da diferença, se positiva, do valor objeto do contrato prometido e a outro equivalente ao montante do preço convencionado; 2) o direito de retenção sobre a parte relativa à moradia sita no condomínio urbano, em fase de construção, em regime de propriedade de horizontal, sito em ....
 O Tribunal a quo entendeu que, por aplicação do disposto no art. 106°, nº2, é aplicável ao caso em apreço o disposto no n°5 do art. 104° do ClRE, tendo os AA. o direito ao recebimento da diferença, se positiva, entre o montante das prestações previstas até ao final do contrato e o valor da coisa na data da recusa do cumprimento, acrescido do sinal prestado em singelo.
Por outro lado, o Tribunal a quo entendeu que o referido crédito encontra-se garantido por direito de retenção na esteira do acórdão uniformizador de jurisprudência 4/2014, uma vez que os AA. são promitentes compradores com a qualidade de consumidores.
  O Tribunal a quo deu como provados alguns dos factos alegados pelos credores D... e P..., nomeadamente quanto ao pagamento da quantia de € 25.000, a título de sinal (pontos 4, 10 e 11, da matéria de facto provada).
 Para o efeito, o Tribunal considerou a extensa documentação bancária constante dos autos que documenta o mútuo em quantia idêntica à do sinal e a declaração da sociedade insolvente inserta no contrato promessa de compra e venda com intervenção notarial.
 Nos termos do nº1 do art. 342° do C.Civil, compete ao autor fazer a prova dos factos constitutivos do direito por si alegado, os quais se reportam à existência do direito, nomeadamente do nascimento da relação - como tal, compete aos AA. fazer a prova do direito por si alegado, nomeadamente do sinal alegadamente prestado na quantia de € 25.000.
 Os AA. alegaram, e o Tribunal deu como provado, que para poderem pagar o sinal de € 25.000 tiveram de contrair um empréstimo bancário junto do B..., nesse mesmo valor de € 25.000.
  O art. 11430 do C.Civil dispõe que o contrato de mútuo de valor superior a € 25.000 só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado e o de valor superior a € 2.500 se o for por documento assinado pelo mutuário.
Os AA. não procederam à junção aos autos de qualquer contrato de mútuo celebrado com o B... e que tenha sido outorgado em data anterior ou simultânea à celebração do contrato promessa de compra e venda em 28/12/2009.
  Encontram-se juntos aos autos vários extratos do B..., dos quais é possível aferir os vários produtos ali titulados pelos credores D... e P... - um desses produtos, denominado de "Crédito Habitação", correspondente ao contrato nº 1051120246 com o capital inicial de € 25.000, e a data de inicio de 14/1/2010.
  O Tribunal a quo deu como provado que os AA. procederam ao pagamento do sinal de € 25.000, no ato da celebração do contrato promessa de compra e venda, ou seja, em 28/12/2009 (ponto 4. da matéria provada).
 Acontece que o empréstimo efetuado no B... foi concretizado em data posterior à celebração do contrato promessa, ou seja, em 14/1/2010.
 Os AA. nunca procederam à junção de cópia do referido contrato, a fim de aferir e demonstrar a respetiva finalidade, pois que o mesmo pode ter tido outro fim que não o pagamento do sinal.
  Os AA. provaram nos autos que têm um empréstimo, desde 14/01/2010, no valor de € 25.000, junto do B... - no entanto, não se pode considerar como provado que o referido empréstimo tenha sido utilizado para proceder ao pagamento do sinal de € 25.000, em data anterior, ou seja, em 28/12/2009.
  Se o contrato promessa de compra e venda é de 28/12/2009 e o contrato de empréstimo é de 14/1/2010, não se pode dar como provado que os AA. procederam ao pagamento do sinal de € 25.000, na data da celebração do contrato promessa.
 Resulta da sentença ora em crise que a administradora de insolvência não conseguiu contactar o gerente, nem conseguiu apreender a contabilidade da sociedade insolvente.
  Pelo exposto, o Tribunal não pode admitir automaticamente que a sociedade insolvente não tinha contabilidade organizada ou registo de causa ou ainda que o gerente da sociedade insolvente trabalhava preferencialmente com dinheiro - note-se que estamos perante a módica quantia de € 25.000, a qual certamente não terá sido paga em dinheiro.
 São os próprios AA. que admitem que procederam ao pagamento do sinal através de transferência bancária datada de 18/1/2010 à sociedade comercial C …, Lda, no valor de € 25.000.
 A alegada transferência bancária foi efetuada à sociedade comercial C... Lda, que é uma entidade totalmente estranha aos presentes autos e distinta da sociedade insolvente, enquanto promitente vendedora.
  Estamos em crer que não se encontra provada a entrega pelos AA., em 28/12/2009, da quantia de € 25.000, a título de sinal.
  Em consequência, deverão ser considerados como não provados os pontos 4, 10 e 11 da matéria de facto provada, uma vez que não foi produzida qualquer outra prova do crédito reconhecido a titulo de sinal.
A recorrente não pode deixar de manifestar a sua discordância com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, porquanto vai ao desencontro das disposições legalmente consagradas, bem como o entendimento jurisprudencial sufragado.
Em primeiro lugar, não se encontra provado nos autos o pagamento pelos AA., em 28/12/2009, da quantia de € 25.000, a título de sinal - com efeito, não se mostrando provado o crédito, não pode ser reconhecido aos AA. qualquer direito relativamente ao sinal não prestado de € 25.000, nem tão pouco qualquer indemnização em virtude da recusa do cumprimento do contrato promessa de compra e venda.
  Não se mostrando provado o pagamento do sinal de € 25.000, à data da outorga do contrato promessa de compra e venda, tem de se concluir forçosamente que os AA. incumpriram a sua prestação contratual, pelo que não lhes assiste qualquer direito em virtude do não cumprimento do contrato promessa imputável à sociedade insolvente.
 Ainda que se admita a prova dos pontos 4, 10 e 11 da matéria de facto provada, não podemos concordar com a conclusão do Tribunal a quo, nomeadamente quanto à atribuição da garantia de direito de retenção.
O Tribunal a quo começa por analisar qual é o valor indemnizatório devido ao promitente comprador, rejeitando a aplicação ao caso em apreço das indemnizações contempladas no art. 442° do C.Civil, nomeadamente da restituição do sinal em dobro.
 Entende o Tribunal que o nº2 do art. 106°, previsto para os casos da promessa obrigacional de contrato, remete para a indemnização prevista no nº5 do art. 104º, para a venda com reserva de propriedade, a qual, por sua vez, remete para o n°3 do art. 102° do CIRE.
 Como tal, o Tribunal entende que o referido regime legal do contrato promessa de compra e venda, com eficácia obrigacional, afasta expressamente a aplicabilidade do art. 442° do C.Civil ao instituir a possibilidade de recusa do contrato.
 O Tribunal a quo afasta a indemnização prevista no art. 442° do C.Civil, nomeadamente, a restituição do sinal em dobro, no caso de incumprimento do contrato promessa de compra e venda com eficácia obrigacional por parte do promitente vendedor, ora insolvente.
  Afastando a aplicação da indemnização prevista no art. 442° do C.Civil, o Tribunal mandar aplicar o disposto no nº5 do art. 104° do ClRE por força do disposto no art. 106°, nº2, também do CIRE.
O nº2 do art. 106° do CIRE dispõe que "à recusa de cumprimento do contrato promessa de compra e venda pelo administrador de insolvência é aplicável o disposto no n°5 do art. 104°, com as necessárias adaptações, quer a insolvência respeita ao promitente comprador quer ao promitente vendedor".
Por sua vez, o nº5 do art. 104°, previsto para a venda com reserva de propriedade e operações semelhantes, remete para a indemnização prevista no n°3 do art. 102° do CIRE, ou seja, para a teoria da diferença.
  De acordo com as referidas normas, a outra parte do contrato incumprido tem o direito a exigir, como crédito sobre a insolvência, a diferença, se positiva, entre o montante das prestações previstas até ao final do contrato e o valor da coisa na data da recusa do cumprimento.
O Tribunal a quo entende que os AA. têm o direito à diferença - se positiva - entre o valor do objeto do contrato prometido e o montante do preço convencionado, acrescido do sinal em singelo.
Até aqui, a sentença ora em crise não merece qualquer censura, pois que somos do entendimento que não é aplicável ao caso em apreço a indemnização prevista no nº2 do art. 442º do C.Civil, nomeadamente da restituição do sinal em dobro.
No caso de insolvência do promitente vendedor, o CIRE expressamente consagra o regime jurídico aplicável para a indemnização do promitente comprador perante a recusa de cumprimento pelo administrador de insolvência de um contrato promessa de compra e venda com eficácia meramente obrigacional.
 No caso em apreço, estamos precisamente perante um contrato promessa de compra e venda com eficácia meramente obrigacional e uma recusa de cumprimento por parte do administrador de insolvência, pelo que é aplicável o disposto no nº2 do art. 106°, o qual remete para o n°5 do art. 104° e n°3 do art. 102° do CIRE.
 Deste modo, os AA.  têm direito a exigir, como crédito sobre a insolvência, a diferença entre o montante do preço convencionado de € 225.000 e o valor da coisa objeto do contrato promessa, à data da recusa, deduzido o valor pago de € 25.000.
O Tribunal a quo faz referência ao acórdão uniformizador de jurisprudência nº 4/2014, segundo o qual o n°2 do art. 106° do CIRE apenas se aplica às promessas não sinalizadas, enquanto às promessas sinalizadas se aplica o regime civilista previsto no n°2 do art. 442º do C.Civil.
O Tribunal a quo afasta-se do entendimento sufragado pelo referido acórdão, nomeadamente quanto à aplicação do art. 442°, nº2, do C.Civil às promessas sinalizadas - deste modo, da sentença ora em crise decorre que às promessas sinalizadas não é aplicável o disposto no art. 442°, nº2 do C.Civil, mas o nº2 do art. 106º do CIRE, afastando-se do AUJ.
Não obstante afastar a aplicação do regime constante do art. 442°, nº2 do C.Civil, o Tribunal a quo entende que o crédito titulado pelos AA., correspondente à indemnização calculada nos termos do n°2 do art. 106° do ClRE, goza de direito de retenção.
Com efeito, o Tribunal a quo recorre ao teor do AUJ 4/2014 para atribuir ao crédito titulados pelos AA. a garantia de direito de retenção, uma vez que os mesmos assumem a qualidade de consumidores.
  O direito de retenção constante do AUJ 4/2014, previsto no art. 755° f) do C.Civil, destina-se a garantir ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real, que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442° do CC.
O referido direito de retenção, contemplado no art. 755° f) do CC, somente garante o crédito resultante do art. 442° do CC, nomeadamente da restituição do sinal em dobro.
O AUJ 4/2014 aplica às promessas sinalizadas o regime constante do art. 442° do C.Civil e, como tal, o respetivo crédito encontra-se garantido por direito de retenção conforme dispõe a al. f) do art. 755° do C.Civil.
  O Tribunal a quo afastou a aplicação às promessas sinalizadas do regime constante do art. 442º do C.Civil, aplicando o disposto no nº2 do art. 106° do CIRE, ou seja, a indemnização proveniente da teoria da diferença.
O art. 755° f) do C.Civil apenas contempla a indemnização prevista no art. 442° do CC, cuja aplicação ao caso em apreço foi manifestamente rejeitada pelo Tribunal a quo.
  Como tal, somos do entendimento que o crédito reconhecido aos AA. não se encontra garantido pelo direito de retenção previsto no art. 755° f) do CC.
O Tribunal a quo não pode aplicar ao caso em apreço a interpretação constante do AUJ 4/2014, uma vez que o AUJ atribui direito de retenção ao crédito resultante do art. 442° do CC, cujo regime o Tribunal rejeita para o caso sub judice.
Com efeito, o crédito dos AA., resultante da aplicação do art. 106°, n°2, do CC, não se encontra garantido por direito de retenção, uma vez que tal solução contraria a disposição legal constante do art. 755º f) do CC.
Por todo o exposto, a sentença deve ser revogada na parte em que reconhece ao crédito dos AA. a garantia de direito de retenção sobre a moradia sita no condomínio urbano, em fase de construção, situado em ...
Conforme decorre da matéria de facto dada como provada, e não impugnada, a propriedade horizontal registada a 8/8/2012 sobre o prédio urbano descrito ... caducou, tendo deixado de existir a fração autónoma designada pela letra "B", objeto do contrato promessa de compra e venda.

  Com efeito, a fração autónoma designada pela letra "B" sobre a qual incide o alegado direito de retenção deixou de ter configuração jurídica e, como tal, os AA. não podem ter a posse de um imóvel que não existe juridicamente :
 "1- Não existe direito de retenção sobre um andar entregue ao promitente - comprador sem estar constituída a propriedade horizontal do respectivo edifício. II - O promitente - comprador de um andar, que sinalizou o respectivo contrato e obteve a entrega daquele andar, não pode deduzir, com fundamento nesse direito pessoal de gozo, embargos de terceiro contra a penhora requerida pelo credor do promitente-vendedor, nem com fundamento no direito de retenção, que é um direito real de garantia, pelo crédito resultante do incumprimento" - ac. Rel. Porto, de 29/5/95.

O contrato promessa de compra e venda celebrado em 28/12/2009 teve por objeto a fração autónoma designada pela letra "B" do prédio urbano em regime de propriedade horizontal descrito na CRP sob o nº ....
Tendo caducado a propriedade horizontal que incidia sobre o referido bem imóvel, e inexistindo uma fração autónoma com a letra "B", não é possível qualificar e quantificar a parte sobre que há-de recair o alegado direito de retenção.
  O Tribunal a quo não pode atribuir o direito de retenção sobre "a parte relativa à moradia sita no condomínio urbano", quando o referido condomínio urbano é composto por 10 moradias - é caso para nos questionar sobre qual das 10 moradias têm os AA. direito de retenção, considerando que inexiste propriedade horizontal do bem imóvel.
  Pelo exposto, na esteira do referido acórdão, não existe direito de retenção sobre um andar entregue ao promitente - comprador sem estar constituída a propriedade horizontal do respetivo edifício - como tal, também por esta via a sentença deverá ser revogada na parte em que atribui ao crédito dos AA. direito de retenção sobre a moradia sita no condomínio urbano.
  Caso venha a ser atribuído o direito de retenção previsto no art. 755º f) do CC, aos AA. deve de ser reconhecido um crédito nos termos do disposto no art. 442°, nº2, do C.Civil, ou seja, um direito à restituição do sinal em dobro.
  O crédito calculado nos termos do disposto nos arts. 106°, nº2, 104°, nº5 e 102°, nº3, todos do CIRE, tendo por base uma promessa sinalizada, não se encontra garantido pelo direito de retenção previsto no art. 755° f) do CC.
  Na esteira do AUJ nº4/2014 às promessas sinalizadas aplica-se o regime previsto no art. 442º, n°2, do C.Civil, o qual, verificando-se os pressupostos constantes do art. 755° f), encontra-se garantido por direito de retenção -   como tal, a ser reconhecido algum crédito garantido por direito de retenção, este deverá ser calculado nos termos do art. 442°, nº2, do CC e não do 106°, nº2, do CIRE.
Nesse caso, os AA. seriam titulares de um crédito correspondente ao sinal em dobro, o qual corresponde, no caso de se provar o pagamento do sinal de € 25.000, à quantia global de € 50.000.
Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a sentença que reconheceu aos AA. um direito de crédito calculado nos termos dos arts. 106°, nº2, 104°, nº5 e 102°, nº3, do CIRE, garantido por direito de retenção.

Em contra-alegações, pronunciaram-se os apelados pela confirmação do julgado.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2. Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual :
1. No dia 28/12/2009, os AA. e a sociedade insolvente outorgaram um contrato-promessa de compra e venda de um bem imóvel a que corresponde a moradia sita no condomínio urbano, em fase de construção, em regime de propriedade horizontal, sito em ..., inscrito na respectiva matriz urbana daquela freguesia sob o artigo ..., descrito na Conservatória de Registo Predial ..., sob a ficha nº ..., actualmente com a morada no Condomínio ..., conforme contrato promessa junto (doc. 1) cujo teor se dá por reproduzido.
2. No âmbito deste contrato os AA. prometeram comprar e a sociedade F... Lda, prometeu vender o imóvel acima identificado pelo valor de € 225.000.
3. A F... Lda, declarou ter recebido, à data da celebração do contrato-promessa de compra e venda, a quantia de € 25.000, a título de sinal e princípio de pagamento.
4. Os AA. entregaram à sociedade F… Lda, no acto de celebração do contrato-promessa de compra e venda a quantia de € 25.000, a título de sinal e princípio de pagamento.
5. O remanescente, no valor de € 200.000, ficou acordado que seria entregue à promitente-vendedora, no momento da realização da escritura de compra e venda, a ser realizada até 30/6/2010.
6. Em momento não concretamente apurado do ano de 2011, o promitente-vendedor entregou a chave da fracção aos AA. para aí residirem.
7.  Os AA. passaram a viver no imóvel, dele fazendo a sua residência permanente.
8. No dia 25/6/2012 os AA. notificaram a sociedade F... Lda, para proceder à realização do contrato compra e venda, indicando-lhe a hora e local agendado para a realização da escritura.
9.  Nenhum representante da sociedade F... Lda, compareceu.
10. Os requerentes para poderem pagar à sociedade comercial insolvente o valor de € 25.000, a título de sinal, tiveram de solicitar junto da entidade bancária Banco ... valor de empréstimo, nesse valor.
11. Nessa sequência, os requerentes tiveram de passar a pagar a essa entidade bancária, diversos valores, a título de: hipoteca, no total de € 4.500,63 - pagamento, no total de € 5.686,46 - seguros, no total de € 555,70. E fizeram-no mensalmente, no total de € 10.742,79.
12. Os AA. pagaram a quantia de € 1.000, emergente de dívidas da sociedade insolvente relativas a água e luz.
13. Por Ap. 974 de 2012/08/08 11:58:59 UTC foi registada a constituição da propriedade horizontal, provisória por natureza nos termos do art. 9º, nº1 al. b).
14. Por Ap. 1255 de 2017/08/01 11:46:31 UTC foi recusada a renovação da Ap. 974 de 2012/08/08, caducando o registo relativo à constituição da propriedade horizontal.
15. Por decisão de 7/7/2016 foi declarada a insolvência da sociedade Famsor, Lda.

3.  Nos termos dos arts. 635º, nº4, e 639º, nº1, do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente. 

A questão a decidir centra-se, pois, na apreciação do crédito dos AA., ora apelados, emergente do contrato promessa celebrado com a insolvente, e do invocado direito de retenção sobre o imóvel seu objecto.

Impugna, desde logo, a apelante a matéria dada como assente, sustentando dever dar-se como não provada a constante dos pontos 4.,10. e 11.

A tal respeito, entende-se, como decidido que, resultando do teor do próprio contrato (doc. fls. 25 e 26) que a promitente vendedora declarou tê-la recebido, se impõe - independentemente da demais documentação constante dos autos - dar como assente a entrega, pelos apelados, promitentes compradores, da quantia (€ 25.000) corres- pondente ao sinal.

E, assim sendo, se mantém inalterada a matéria de facto na qual se fundou a sentença recorrida.

Conforme se decidiu no citado acórdão de uniformização de jurisprudência nº 4/2014, de 19/5/2014, no âmbito da graduação de créditos em insolvência, o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no art. 755º, nº1 al. f), do Código Civil.

Em face da factualidade dada como assente, forçoso se torna, pois, concluir que, uma vez devidamente indivi- duaizada a parte sobre que incide - e pese embora a caducidade do registo da propriedade horizontal ao mesmo respeitante - gozam os apelados do direito de retenção sobre o imóvel, objecto do contrato promessa consigo celebrado.

Como no supra referido acórdão, entende-se, todavia que, nada apontando no sentido de, com a entrada em vigor do CIRE, ter havido intuito de modificar as consequências do seu incumprimento, o regime constante do respectivo art. 106º, nº2, será apenas aplicável ao contrato promessa, com efeito meramente obrigacional, em que não tenha havido tradição ao promitente-comprador.

Pelo que, ao invés do decidido, se terá de, considerando, no caso, afastado esse regime, fazer equivaler o crédito dos apelados ao dobro do sinal por si prestado, nos termos gerais do art. 442º, nº2, do C.Civil - procedendo, nessa medida, as alegações da apelante.

4. Pelo acima exposto, se acorda em, concedendo parcial provimento ao recurso, alterar a decisão recorrida, reconhecendo-se aos AA. apelados um crédito, sobre a massa insolvente, correspondente ao dobro do sinal prestado - mantendo-se, no mais, o decidido.
Custas, em ambas as instâncias, na proporção de 1/3, pelos apelados, e 2/3, pela apelante.



Lisboa,22.3.2018

Ferreira de Almeida - relator
Catarina Manso - 1ª adjunta
Alexandrina Branquinho - 2ª adjunta