Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
20/13.5SOLSB.L1-9
Relator: ANTERO LUÍS
Descritores: FURTO
DIREITO DE QUEIXA
ESTRANGEIRO
TRADUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/02/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Considera-se validamente apresentada a queixa por cidadão estrangeiro, mesmo que não domine a língua portuguesa e ao qual não foi nomeado intérprete nos termos do artigo 92º, nº 2 do CPP, desde que ao mesmo seja traduzido e explicado o conteúdo do auto em que se consagra desejar procedimento criminal
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Nos presentes autos de recurso acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I - Relatório

Na 3ª Secção do 5º Juízo Criminal da Comarca de Lisboa, por sentença de 19/03/2014, constante de fls. 391 a 397, foram cada um dos arguidos,

C...

V...e

M..., condenados,

a) pela prática, em co-autoria material,  de um crime de furto, p. e p. pelo art. 203º, nº1 do C. Penal, na pena de um (1) ano e seis (6) meses de prisão;

b) suspender a execução da pena de prisão pelo período de um (1) ano e seis (6) meses (art. 50º, nºs 1 e 5 do C. Penal).

***

Não se conformando, a arguida C... interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 428 a 431, com as seguintes conclusões:

1. A arguida foi acusada da prática, em co-autoria material, de um crime de furto qualificado p.p. pelos artigos 203º nº1 e 204º, nº1 al.b) do Código Penal;

2. Em audiência, o crime foi desqualificado e a arguida veio a ser condenada, em co-autoria material, pela prática de um crime de furto p.p. pelo artigo 203º nº1 do Código Penal;

3. O procedimento criminal por tal crime de furto depende de formalização de queixa por parte da vítima, conforme artigo 203º, nº 3 do Código Penal;

4. Sendo a vítima uma cidadã estrangeira, I..., e não tendo sido nomeado intérprete idóneo para as diligências desenvolvidas pelas autoridades policiais conforme impõe o artigo 92º, nº2 do Código de Processo Penal, constitui nulidade a não observância desta norma;

5. Assim se verificando a nulidade do artigo 120º nº 2 al. c) do CPP;

6. Ao não proceder a tal nomeação fica-se sem saber, com segurança, qual a vontade expressa da vítima, se pretende ou não procedimento criminal e se foi informada da natureza dos documentos que assinou, redigidos em português, entre os quais, aquele em que alegadamente formalizou o desejo de procedimento criminal;

7. Esta nulidade foi, desde logo, arguida em sede de julgamento pela arguida e dada a sentença proferia pelo tribunal “a quo” aqui se reitera tal requerimento, o qual deverá proceder.

***

A Exm.ª Magistrada do MP respondeu ao recurso nos termos de fls. 438 a 441, assim concluindo:
1.  A queixosa / ofendida nos autos é de nacionalidade sueca.
2. De facto, a queixosa / ofendida nos autos é de nacionalidade sueca. Todavia, em sede de Audiência de Julgamento foi referido pelo agente/testemunha que abordou a mesma, aquando da prática dos factos, que ambos falaram e que lhe explicou os procedimentos legais em inglês (língua essa perfeitamente perceptível pela ofendida), a qual tomou a decisão de apresentar a queixa que consta de fls. 10 dos autos com total consciência do acto que estava a realizar.
3. Ora, tendo a ofendida percebido perfeitamente o alcance da apresentação da queixa /denúncia que consta de fls. 10, não existe qualquer nulidade, designadamente a ora invocada pela arguida.
4. Termos em que deve ser mantida a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”.

Neste tribunal, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o parecer de fls. 450 e 451, em suma, subscrevendo a posição assumida pelo MP na 1ª instância e pronunciando-se pela improcedência do recurso.

Foi cumprido o disposto no artº417º, nº2 do C.P.P.

***

Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - Fundamentação


1. É pacífica a jurisprudência do STJ[1] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.

Da leitura dessas conclusões afigura-se-nos que a única questão a apreciar no presente recurso, restringe-se à questão de saber se a queixa apresentada pela ofendida estrangeira e constante dos autos é válida, atenta a não nomeação de intérprete à mesma e se, em consequência, tal omissão constitui a nulidade contemplada no artigo 120º, nº2, al. c) do Código de Processo Penal.

Para uma correcta análise da questão e uma visão exacta do que está em causa, vejamos, em primeiro lugar, quais os factos que o Tribunal a quo deu como provados e não provados e qual a sua fundamentação.


2. O Tribunal “a quo”, no que respeita à arguida C..., ora recorrente, declarou provados, os seguintes factos (transcrição):

a) Os ora arguidos, mediante plano previamente delineado e em conjugação de esforços e vontades, decidiram apoderar-se de objectos com valor que os utentes do transporte púbico transportassem consigo.

b) Na concretização de tal plano os arguidos, no dia 01.03.2013, cerca das 11h15, dirigiram-se a uma paragem do eléctrico nº 28 da Carris,

c) Na paragem do Largo das Portas do Sol, em Lisboa, os arguidos avistaram a ofendida I....

d) O arguido M... colou-se à frente da ofendida e entrou no eléctrico, colocou-se junto à máquina de validação de bilhetes, de modo a impedir a passagem daquela.

e) De seguida, os arguidos C... e V... colocaram-se imediatamente atrás da ofendida, empurrando-a e rodeando-a, de forma a esta ficar sem possibilidade de se mover no interior do eléctrico em causa.

f) A arguida C..., mantendo-se junto à ofendida, desdobrou um mapa turístico, colocou-o sobre uma bolsa que a ofendida transportava a tiracolo e retirou do seu interior uma carteira, em pele, marca "Maldi”, contendo a quantia de € 35,00 (trinta e cinco Euros).

g) Nessa altura, o Agente da Polícia de Segurança Pública AD..., que circulava no interior do eléctrico em causa, visualizou o acimo descrito.

h) O Agente AD..., observou ainda o arguido V... na posse da carteira da ofendida, a retirar o dinheiro existente na mesma e a colocá-lo na sua própria carteira.

i) Momento em que o agente AD... abordou o condutor do eléctrico e lhe disse para imobilizar o mesmo.

j) O arguido V... apercebeu-se de tal e, de imediato, entregou a carteira à ofendida, mas já somente com a quantia de € 15,00 (quinze Euros) em moedas, tendo ficado com uma nota de € 20,00 (vinte Euros) na sua posse.

k) Após revista, foi localizada e apreendida ao arguido M... a quantia monetária de € 15,00 (quinze Euros) - três notas de cinco Euros,

l) Após revista foi localizado e apreendido à arguida C... um mapa turístico e a quantia monetária de € 20,00 (vinte Euros).

m) Ao arguido Vítor, após revista, foi localizado e apreendido a quantia monetária de € 40,00 (quarenta Euros) - uma nota de vinte Euros e duas notas de dez Euros.

n) Os arguidos, ao actuarem da forma descrita, fizeram-no de forma livre, voluntária e consciente, em comunhão de esforços e vontades, logrando fazer seus os objectos acima mencionados, integrando-os no seu património, não obstante saberem que os mesmos não lhes pertenciam e que agiam contra a vontade do proprietário dos mesmos.

o) Actuaram de forma livre, voluntária e consciente, não ignorando o carácter censurável das suas condutas.

p) A arguida C... encontra-se desempregada; vive em casa de uma irmã; tem dois filhos, de 21 e 13 anos de idade, sendo que o mais novo reside na sua companhia.

q) s) A arguida C... tem antecedentes criminais por crimes de furto e furto qualificado, mas por factos praticados há mais de 5 anos. (fim de transcrição).
3. Factos declarados não provados:

Com efectivo interesse para a decisão, não resultou provado que o valor da carteira fosse de 80€.
4. Em sede de motivação da decisão de facto, escreveu-se na decisão recorrida (transcrição):

O Tribunal formou a sua convicção com base no depoimento do Sr. Agente da P.S.P. AD..., o qual esclareceu que se encontrava de serviço, não fardado, e que, tendo-se apercebido da ocorrência (sendo que já conhecia os arguidos, referenciados na Polícia como carteiristas), observou a forma como estes desapossaram a ofendida dos seus bens, no famigerado eléctrico nº28 da Carris (e famigerado por nele ocorrerem, com diária frequência, furtos a incautos cidadãos estrangeiros), nos termos sobreditos. Mais esclareceu que foram encontradas as quantias monetárias referidas na posse dos arguidos, nos termos descritos nos factos provados. O Sr. Agente da P.S.P. AD... demonstrou ter uma memória clara de toda a ocorrência na qual foi chamado a intervir, e que descreveu de modo lógico, isento e absolutamente desapaixonado, tendo merecido todo o crédito ao Tribunal. Posteriormente, a ofendida dirigiu-se à Esquadra para se queixar, não tendo encontrado qualquer dificuldade em fazê-lo. Foi objectivo e isento.

           Bem como no teor do auto de denúncia de fls. 10, auto de apreensão de fls. 13 a 15 e termo de entrega de fls. 16, os quais corroboram e dão base de sustentação ao depoimento do Sr. Agente AD....

          Quanto aos factos, os arguidos silenciaram. Atendeu o Tribunal às suas declarações quanto às suas condições pessoais, familiares e profissionais.

           Antecedentes criminais: C.R.C de fls. 357 e ss., 364 e ss., 373 e ss..

           A ofendida I... não esteve presente em audiência, por indisponibilidade para se deslocar da Suécia a Portugal. O que o Tribunal tem de compreender, e compreende, não sendo censurável, nem sequer questionável, que quem passou por tão desagradável experiência quando, provavelmente, se encontraria tranquilamente em férias, não tenha vontade de regressar ao local onde tal lhe aconteceu.

           Este Tribunal, com todo o respeito por opinião diferente da nossa, analisando conjuntamente o contributo da testemunha e os elementos constantes dos autos, tudo conjugado com as regras da experiência comum e com o conhecimento do que acontece mormente no referido Eléctrico nº28, não ficou com qualquer dúvida de que os arguidos praticaram os factos pelos quais vêm acusados, não podendo – em consciência – deixar de os condenar pela prática dos mesmos.


5. Vejamos se assiste razão à recorrente.

Desde logo, convém referir que o tribunal “a quo”, apesar de não ter indeferido, expressamente, na decisão ora impugnada o requerimento efectuado pelo ilustre advogado da arguida em plena audiência, não pode deixar de se considerar como o tendo feito implicitamente em função da decisão que proferiu, ao desqualificar o crime de furto imputado aos arguidos e condenar os mesmos por um crime de furto simples. Este mesmo entendimento é aceite pela recorrente ao não invocar qualquer omissão de pronúncia mas, antes, a prolação de decisão por este tribunal que reconheça a nulidade invocada.

Feito este esclarecimento vejamos então se existe ou não a nulidade invocada.

O artigo 92º, nº 2 do Código de Processo Penal estatui que: “Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada”.

Da leitura do preceito em crise desde logo se coloca a questão de saber qual o significado de «houver de intervir no processo». Numa primeira e liminar abordagem diremos que a existência de processo é pressuposto da nomeação de intérprete tal como o preceito consagra. Se assim é, como nos parece, impõe-se saber se a apresentação de queixa já se pode considerar como «processo» para efeitos do preceito.

Vejamos a natureza do direito de queixa para podermos responder a esta questão.

A queixa, tal como consagrada no artigo 49º do Código de Processo Penal, tem sido considerada, pela doutrina e jurisprudência, como uma manifestação de vontade do ofendido, titular desse direito de queixa de perseguir os autores do facto ilícito. A este propósito escreve o Prof. Figueiredo Dias a fls 675 do Direito Penal Português, «… no que à forma da queixa tanto o CP como o CPP são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto…Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substracto fáctico que descreve ou menciona».

Neste mesmo sentido pode ler-se no sumário do acórdão do STJ de 30/10/02 do Proc. 1862/02.3 «No instituto do direito de queixa ressaltam sempre duas componentes: A transmissão da notícia de um crime (…) e o desejo de instaurar contra o agente ou agentes, ainda que desconhecidos, o respectivo procedimento criminal. Esta manifestação de vontade espontânea e inequívoca, de instaurar procedimento criminal perante a autoridade ligada à repressão da criminalidade, é que constitui a pedra cujo toque põe em movimento a máquina judicial» cfr CPP Anotado de Simas Santos, pág. 359.

A queixa é pois entendida como uma manifestação inequívoca de vontade do titular do direito de perseguir os eventuais responsáveis pelo facto naturalístico ilícito, sendo, neste sentido, uma verdadeira condição objectiva de procedibilidade de natureza processual «que põe em movimento a máquina judicial» na feliz expressão do STJ.

Sendo esta a natureza do direito de queixa entendemos que situações como a dos autos, não é necessária a nomeação de intérprete ao ofendido/queixoso.

O que é necessário é que o titular do direito perceba qual o seu direito e o exerça, se desejar, o que, no caso dos autos, fez ao assinar o auto de fls 10 no qual se diz expressamente desejar procedimento criminal. Este mesmo facto é reconhecido pela ofendida na carta que remeteu ao processo e constante de fls 338 na qual diz expressamente: - “The report was in portuguese, but the policemen translated it for me”. A ofendida declara nesta pequena passagem que - “o auto estava em português mas o polícia traduziu-o para mim”.

Ora, tendo sido traduzido para a ofendida o auto de fls 10, no qual se declara que a mesma deseja procedimento criminal, entendemos que a manifestação de vontade da mesma foi inequívoca e consequentemente válida a queixa apresentada. Não temos pois quaisquer dúvidas, contrariamente ao que alega a recorrente, sobre a vontade expressa pela vítima em relação ao exercício do seu direito de queixa

A defender-se a tese da recorrente, em relação à aplicabilidade do artigo 92º às situações do exercício do direito de queixa, estava aberta a porta para a impunidade da grande maioria dos crimes em que são vítimas estrangeiros em férias no País ou, em alternativa, ter junto de cada esquadra ou posto policial um intérprete o que acarretaria custos elevados para o Estado.

A recorrente, para sustentar o seu recurso, invoca um acórdão do Tribunal da Relação de Évora (Proc. Nº 128/12.4GTABF.E1 de 08.01.2013) e um outro do Tribunal da Relação de Guimarães (Proc. Nº 936/13.9PBBRG.G1). Com o devido respeito, os doutos arestos reportam-se a situações diversas da dos presentes autos, porquanto reportam-se à nomeação de intérprete ao arguido em processo criminal e não a qualquer situação como a dos autos.

Em resumo, entendemos validamente apresentada a queixa por cidadão estrangeiro, mesmo que não domine a língua portuguesa, desde que ao mesmo seja traduzido e explicado o conteúdo do auto em que se consagra desejar o mesmo procedimento criminal.

Não se verifica assim a nulidade invocada pela recorrente, improcedendo o respectivo recurso.

III - Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pela arguida, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC’s - artigo 513.º, n.º 1, do CPP.

Notifique nos termos legais.

(o presente acórdão, integrado por oito páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal)

Lisboa, 2 de Outubro de 2014

Antero Luís

João Abrunhosa

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[1] Neste sentido e por todo, ac. do STJ de 20/09/2006 Proferido no Proc. Nº O6P2267.