Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5654/2005-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: AVAL
LIVRANÇA
PREENCHIMENTO ABUSIVO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/30/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I - A relação entre portador e avalista não é uma relação imediata mas sim uma relação mediata, pelo que não pode o avalista suscitar em sede de oposição à execução quaisquer excepções fundadas sobre as relações pessoais com o avalizado, a menos que o portador – o exequente -, ao adquirir a livrança tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor.
II - A relação entre portador e avalista não é uma relação imediata (a que se estabelece por efeitos de uma convenção executiva) mas sim uma relação mediata, pelo que é defeso ao avalista suscitar a excepção do preenchimento abusivo convencionado entre o portador e o subscritor da livrança.
III - Quem assina uma livrança em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher nos termos acordados. Quem dá o aval a uma livrança em branco fica, sem mais, vinculado ao acordo de preenchimento havido entre o portador e o subscritor.
IV - Litiga de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa


I - RELATÓRIO

José -- e Maria Guilhermina --- vieram deduzir oposição à execução que lhes move o Banco --, SA pedindo que a execução seja julgada improcedente, absolvendo-se os mesmos do pedido.

Em síntese, alegaram que desconheciam em absoluto e que nunca lhes foi explicado o negócio efectuado pelo co-executado Luís --- e bem assim o significado jurídico das assinaturas no verso da livrança, nem sequer tendo tomado conhecimento do contrato firmado pelo executado Luis --- com o banco, devendo considerar-se que as cláusulas do contrato firmado são inaplicáveis aos executados.
Que não se fazendo prova nos autos do documento escrito do negócio de empréstimo subjacente à emissão da letra que é dada a execução se deve concluir pela sua inexistência.
Que não conhecem qualquer acordo expresso ou tácito relativamente ao preenchimento da livrança, razão pela qual impugnam a forma como a mesma foi preenchida e como tal a validade da mesma como título de crédito.
A livrança foi entregue em branco e, ou foi acompanhada de um acordo de preenchimento, ou não existindo tal acordo já a mesma prescreveu. O exequente tem registada a seu favor uma hipoteca sobre um imóvel pertença do executado e, nos termos do artigo 835° do CPC, a penhora deveria ter começado por esse bem.

O exequente Banco --- contestou a oposição pedindo que a oposição seja julgada improcedente e os oponentes condenados como litigantes de má fé em multa e em indemnização nos termos do artigo 457° do CPC.
Em síntese alegaram que o avalista não pode defender-se com as excepções do avalizado, salvo no que concerne ao pagamento e que falece a razão aos oponentes quando imputam ao exequente a responsabilidade pelo desconhecimento da operação avalizada na medida em que o pacto de preenchimento foi assinado pelos oponentes.
A livrança foi preenchida em conformidade com o convencionado e que, de qualquer forma, a relação subjacente só pode ser invocada ante a pessoa afiançada, acrescentando, ainda, que os oponentes foram, inclusivamente, interpelados para pagar.
Mais alega que a hipoteca invocada pelos oponentes foi constituída para garantia de um crédito concedido para aquisição de habitação em data posterior à decorrente da obrigação avalizada e titulada pela livrança dada à execução.
 Conclui, por último, que os factos alegados pelos oponentes são falsos e que dos documentos que juntam decorre inequivocamente que os oponentes tiveram conhecimento do que alegam desconhecer, adoptando, pois, conduta, que deve ser sancionada nos termos da alínea b) do n.° 2 do artigo 456° do CPC.


Foi proferida sentença que julgou improcedentes as excepções invocadas, assim como julgou improcedente a oposição à penhora, tendo ainda condenado os embargantes como litigantes de má fé.

Não se conformando com a sentença, dela recorreram os oponentes, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
1ª - Os recorrentes não tiveram cabal conhecimento do teor do contrato firmado entre o Banco e o Luís ---;
2ª - O Banco --- deveria ter informado "de modo adequado", por forma a que seja possível o "conhecimento completo e efectivo" das respectivas cláusulas (cfr. art°s 4°, 5° e 6° do D-L n° 446 /85, de 15/10);
3ª - Nunca o Banco chamou os recorrentes para os elucidar sobre os termos do contrato ou o seu clausulado, sendo certo que lhe pertencia tal encargo e lhe compete o respectivo ónus da prova (vd. art° 5°, n° 3 do mesmo diploma);
4ª - Os recorrentes são pessoas humildes e com baixa escolaridade;
5ª - Desconhecendo todas as cláusulas do contrato firmado, devem todas elas ser consideradas inaplicáveis aos ora recorrentes (cfr. art° 8° al. a) do citado diploma);
6ª - A execução não poderá assim avançar contra os recorrentes já que, na realidade, desconheciam os mesmos os exactos termos de um negócio em que "assinaram de cruz";
7ª - A condenação como litigantes de má fé foi sustentada pela Mª Juiz "a quo" pelo facto dos ora recorrentes terem invocado o desconhecimento de um pacto de preenchimento que conheciam;
8ª - E que terão agido com dolo porque "construíram toda a sua defesa com base na invocação do desconhecimento do teor do pacto de preenchimento";
9ª - Contudo, não foram os recorrentes que afirmaram desconhecer a existência de um pacto de preenchimento. Em bom rigor, quem o fez foram os seus mandatários;
10ª - Os recorrentes sabiam apenas que tinham assinado uns papéis do Banco, desconhecendo em absoluto que um deles se denominava de "pacto de preenchimento";
11ª - Assim como desconheciam que um desses "papéis" autorizava o Banco a preencher livremente uma livrança;
12ª - É neste contexto que na Oposição se refere que se desconhece a existência de um pacto de preenchimento;
13ª - Se os recorrentes soubessem da existência de tal documento, saberiam que, com toda a certeza, o mesmo estaria na posse do Banco e, como tal, poderia aquele juntá-lo aos autos a todo o momento;
14ª - É do domínio público que quem se desloca a um Banco para pedir um empréstimo tem que se sujeitar às condições que essas instituições estabelecem;
15ª - É dado a assinar às pessoas uma quantidade de documentos sem explicar as implicações que dali resultam;
16ª - Por seu lado, estas, sem compreender verdadeiramente o significado daquilo que é assinado, assinam confiando que o Banco é uma pessoa de bem;
17ª - Foi isto que sucedeu no caso dos autos e, como tal, não tinham os recorrentes conhecimento do pacto de preenchimento;
18ª - Refere ainda a Mª Juiz "a quo" que toda a sua defesa foi construída com base no alegado desconhecimento do pacto de preenchimento, o que, na verdade, não é correcto;
19ª - A não existir tal documento, como se admitiu essa possibilidade, as questões enunciadas nos referidos pontos II, III e IV teriam fundamento;
20ª - Já as questões enunciadas sob os pontos I e V não tinham nada a ver com o pacto de preenchimento, pelo que não verdade que toda a defesa assentava nessa questão;
21ª - Em suma, no cumprimento do seu dever de patrocínio, não podiam os mandatários deixar de focar essas questões face ao desconhecimento que tinham quanto à existência do pacto de preenchimento;
22ª - Razão pela qual não assistia qualquer razão à Mª Juiz "a quo" para condenar os ora recorrentes como litigantes de má fé.

Pedem que seja revogada a decisão recorrida quanto à condenação no pedido e na litigância de má fé.
A parte contrária pugna pela manutenção da decisão.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A- Fundamentação de facto

Considera-se assente a seguinte matéria de facto:
1º - O exequente deu à execução uma livrança no valor de 18.704,92 euros na qual se encontra aposta no lugar destinado à assinatura do subscritor a assinatura de Luís --- e no verso da livrança a assinatura dos oponentes.
2º - Os oponentes apuseram no documento junto a fls. 53 com o seguinte conteúdo: em garantia do cumprimento das obrigações por mim/ nós assumidas perante esse banco, provenientes de todas e quaisquer operações bancárias em direito permitidas, designadamente de abertura de crédito, mútuos, empréstimos, descobertos em conta, operações de desconto, avales ou fianças, prestação de garantias, confirmação de créditos documentários, até ao limite de 3.750.000$00, correspondentes juro e encargos, junto enviamos 1 livrança por mim sacada (-) avalizada por José --- e Maria ---, com o montante e data de vencimento em branco, ficando esse banco autorizado a acabar de a preencher, fixando-lhe o vencimento e indicando, como montante, tudo quanto constitua crédito do banco, logo que eu (nós) deixe (mos) de cumprir alguma obrigação caucionada. (..) O(s) outros) intervenientes do título de caução dá(ão) o seu acordo às estipulações da presente carta, pelo que, em confirmação, assinam a seguir, a sua assinatura.

B- Fundamentação de direito

Nos termos do último parágrafo do artº 77º da LULL, aplicam-se às livranças as disposições relativas ao aval, quanto às letras.
No caso dos autos o aval foi manifestado pelas assinaturas dos apelantes, seguidas de contrato de preenchimento de fls. 53, onde constam as respectivas assinaturas que não foram impugnadas.

 Quem assina uma livrança em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher nos termos acordados. Quem dá o aval a uma livrança em branco fica, sem mais, vinculado ao acordo de preenchimento havido entre o portador e o subscritor.
No regime legal o aval funciona como uma obrigação autónoma. Não se confunde com a fiança, já que a obrigação do aval não obedece à regra acessorium sequitor principal e mantém-se mesmo no caso de a obrigação garantida ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.
A relação entre portador e avalista não é uma relação imediata (a que se estabelece por efeitos de uma convenção executiva) mas sim uma relação mediata, pelo que é defeso ao avalista suscitar a excepção do preenchimento abusivo convencionado entre o portador e o subscritor da livrança.
E, seria iníqua a exigência da concordância do avalista com esse contrato de preenchimento.
Sendo assim, importa saber se os apelantes podem opor ao exequente as excepções fundadas sobre as relações extra-cartulares.

A douta sentença recorrida acertadamente entendeu que não, invocando o disposto no artigo 17º da LULL.
A exequente é dona e legítima portadora de uma livrança subscrita pelo executado Luis ... e avalizada pelos apelantes.

O aval reconduz-se a uma relação de garantia que está na base do artigo 32º da LULL – “ o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada” -, permitindo compreender que a responsabilidade do avalista não possa exceder a do avalizado.
A obrigação do avalista mantém-se mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.
A relação subjacente ao aval só pode ser invocada nas relações entre avalista e avalizado.
A relação entre portador e avalista não é uma relação imediata mas sim uma relação mediata, pelo que não pode o avalista suscitar em sede de oposição à execução quaisquer excepções fundadas sobre as relações pessoais com o avalizado, a menos que o portadora – o exequente -, ao adquirir a livrança tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor.
E mesmo que o exequente, portador mediata da livrança, no momento da sua aquisição, tivesse conhecimento das excepções que os avalistas poderiam opor ao subscritor da livrança, isso não bastava para caracterizar “ procedimento consciente me detrimento do devedor” para efeitos daquele artº 17º, tornando-se ainda necessário articular e provar factos que denunciem um comportamento consciente desse detrimento.
E tal alegação pertencia aos apelantes e estes não a fizeram no momento próprio, ou seja, em sede de petição de oposição à execução.
Por essa razão, não é de aceitar o argumento deduzido pelos apelantes relativamente ao desconhecimento das cláusulas do contrato.
Também improcede o argumento dos apelantes de que desconheciam o teor do pacto de preenchimento da livrança que havia sido assinada em branco; na verdade, resultou provado tal acordo de preenchimento do título, conforme ressalta do nº 2 da fundamentação de facto e melhor ainda de fls. 53 dos autos, onde constam as assinaturas dos apelantes que não foram impugnadas.

Resta-nos analisar a condenação dos oponentes como litigantes de má fé.
Os apelantes alegaram na oposição à execução que desconheciam a existência do pacto de preenchimento da livrança.
A douta sentença recorrida entendeu que os mesmos agiram com dolo.
Agora vêm os apelantes referir um argumento novo mas igualmente inconsistente, qual seja o de que não foram os recorrentes que afirmaram desconhecer a existência de um pacto de preenchimento. Em bom rigor, quem o fez foram os seus mandatários.
Ora esta alegação vem completamente ao arrepio do artigo 38º do Código de Processo Civil, segundo o qual as afirmações de factos feitas pelo mandatário nos articulados vinculam a parte, sendo certo que as mesmas não foram rectificadas ou retiradas.

Note-se, antes de mais, que com a entrada em vigor da reforma do Código de Processo Civil, com a nova filosofia de colaboração que pretende trazer ínsita, se consagrou “expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos"[1].
Ela consiste, assim, na "utilização maliciosa e abusiva do processo"[2], importando concretizar os seus traços fundamentais, tarefa que é facilitada pelo artº 456º, nº 2, CPC, do qual resultam as quatro situações que a integram : - ter deduzido pretensão/oposição, cuja falta de fundamento a parte não ignore; - ter a parte, conscientemente, alterado a verdade dos factos ou omitido factos essenciais ; - ter praticado omissão grave do dever de cooperação ; - ter usado o processo, ou os meios que este lhe coloca à disposição, de forma manifestamente reprovável, de modo a conseguir um objectivo ilegal, entorpecer a acção da justiça, impedir a descoberta da verdade, ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Para melhor concretização ainda, diga-se que importará complementar este normativo com o do art. 266º, CPC, que se refere ao "Princípio da Cooperação" [3]
Ora, com este enquadramento, não é possível deixar de fazer-se um sério reparo à conduta dos apelantes que vieram a juízo alegar factos que sabiam não corresponderem à verdade e que sabiam - por serem pessoais - serem certos (cfr., o facto provado sob o nº 2), assim se procurando prevalecer de inverdades, para obterem um ganho: é lamentável e tem de ser sancionado .
 Estamos pois, diante de uma situação claramente enquadrável na figura da litigância de má fé, dada a clara e ostensiva ultrapassagem dos limites de uma litigiosidade séria  por parte dos oponentes à execução.
 Impunha-se, em face do exposto, a condenação dos oponentes numa multa e indemnização, tal como consta da sentença recorrida, que usou o seu prudente arbítrio na fixação da multa e na condenação em indemnização, sem ser de forma caprichosa ou atrabiliária[4].
Improcedem, deste modo, todos argumentos deduzidos pelos apelantes nas suas conclusões, sendo de confirmar a douta sentença recorrida.

III - DECISÃO
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a douta sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
Lisboa, 30 de Junho de 2005

Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Pires do Rio 

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[1] Relatório do DL 329-A/95 de 12 de Dezembro ; cfr. arts. 266º - Princípio da Cooperação ; 266ºA - Dever de Boa Fé Processual ; 456º - Responsabilidade no caso de má fé- Noção de má fé, todos do CPC revisto).
[2] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 356.
[3] Cfr. Pereira Baptista, Reforma do Processo Civil- Princípios Fundamentais, LEX, 1997, págs. 70 a 77; Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil - Conceito e Princípios Gerais, Coimbra Editora, 1996, págs. 149 a 153) .
[4] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra Editora, 1982, págs. 268.