Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3955/13.1TBVFX.L1-2
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: CULPA DO LESADO
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – Recaindo sobre o lesado o ónus da prova da culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa, dos factos provados não emerge uma actuação ilícita e culposa do condutor do veículo automóvel, não decorrendo daqueles factos, como alegado pelas AA., que o mesmo seguia a velocidade excessiva e desatento.
II – Tendo em conta o entendimento clássico da doutrina e da jurisprudência a responsabilidade pelo risco é excluída sempre que o acidente seja imputável ao próprio lesado, sendo que a expressão “imputável” não significará que seja exigível a culpa do lesado, abrangendo-se todos os casos em que o acidente é devido ao lesado.
III – Ultimamente tem vindo a ser defendida uma interpretação “actualista” das disposições conjugadas dos arts. 505 e 570 do CC, de modo a não implicar uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre a culpa do lesado e o risco do veículo interveniente no acidente, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura ,de modo a não excluir à partida que qualquer grau de culpa do lesado (nomeadamente o peão ou o ciclista) deva, sem mais, excluir automaticamente a responsabilidade decorrente daqueles riscos.
IV – No caso dos autos o atropelamento do peão deveu-se exclusivamente à conduta descuidada deste - que inesperadamente procedeu à travessia de uma via com trânsito intenso, de noite e em local pouco iluminado - não se verificando qualquer contribuição causalmente adequada proveniente dos riscos próprios do veículo.
V – O nº 2 do art. 11 do dl 291/2007, de 21-8, ao regular o âmbito material do seguro de responsabilidade civil automóvel não pretendeu criar um regime especial que abrangesse peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, dispondo sobre a responsabilidade pelos danos sofridos pelos mesmos de forma diferenciada; claramente é ali feita remessa para a lei aplicável à responsabilidade civil decorrente do acidente automóvel que determine o ressarcimento desses danos – nomeadamente as atinentes disposições do CC.
VI – Pelo TJUE tem sido entendido que as Directivas respeitantes ao seguro de responsabilidade civil automóvel devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I - HF... e SF... intentaram acção declarativa com processo ordinário contra «... Companhia de Seguros, S.A.».
Alegaram as AA., em resumo:
As AA. são, respectivamente, mulher e filha de BF.... No dia 10-3-2008, cerca das 20 h e 45 m, no IC2, ao Km 29,6, entre o Carregado e Vila Franca de Xira, ocorreu um acidente de viação que consistiu no atropelamento mortal daquele BF... por culpa exclusiva do condutor do veículo ligeiro de matrícula ...-...-DH, seguro na R.; se assim se não entendesse sempre haveria lugar à responsabilidade pelo risco. Do acidente resultaram para as AA. danos patrimoniais, uma vez que o falecido lhes enviava mensalmente cerca de 350,00 para o seu sustento, bem como danos não patrimoniais – quantificando estes em 225.000,00 €. Assiste-lhes, ainda, o direito a serem indemnizadas no montante de 100.000,00 € respeitante ao dano morte.
Pediram as AA. que a R. seja condenada a pagar:
A) O montante de 225.000,00€ de danos morais,
B) O montante de 100.000,00€ referente ao dano morte,
C) Alimentos devidos vencidos, calculados à data de 03-2008 (74 meses (64
meses + subs. Natal+ subs. férias): 350,00€ x 74 = 25.900,00€
D) Alimentos futuros até serem devidos no valor mensal (a pagar 14 vezes
por ano): 350,00€ x 14 = 4900€/ano
E) Acrescidos dos correspondentes juros de mora vincendos, calculados à
taxa legal, até efectivo e integral pagamento do devido,
F) bem como eventuais danos futuros materiais ou morais, nos quais as AA.
venham a incorrer, decorrentes do acidente objecto destes autos, nomeadamente
G) Condenação da R. a suportar todos os danos patrimoniais futuros decorrentes do mesmo, com actualização à taxa da subida do custo de vida e da expectativa de maior ganho de BF....
Requereram as AA. a intervenção principal do ISS e dos Hospitais para reclamarem os valores de que são credores face à R..
A R. contestou impugnando a factualidade alegada pela A., nomeadamente sustentando que o acidente se deu por culpa exclusiva do falecido BF.... Concluiu pela improcedência da acção e a sua absolvição do pedido.
O Instituto da Segurança Social IP deduziu pedido de reembolso de prestações contra a R. relativamente ao subsídio de morte e pensões de sobrevivência pagas à A. HF... no montante de 21.876,93 € acrescido das pensões que se vencerem e forem pagas na pendência da acção, até ao limite da indemnização a conceder, bem como de juros de mora desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.
A R. respondeu, impugnando os factos alegados pelo ISS.
O Instituto veio requerer a ampliação do pedido inicial contra a R. sucessivamente para os montantes de 22.901,27 €, 23.742,87 € e 25.087,47 €, o que foi deferido.
O processo prosseguiu vindo, a final a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a R. dos pedidos.
Apelaram as AA. concluindo nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso:
1. A divergência da A. refere-se num primeiro ponto à resposta dada aos quesitos e respectiva fundamentação;
2. De facto, a minutos 3.00 o condutor explicou como aconteceu o acidente e disse: “surgiu um peão inesperadamente e não sabe como”. A minutos : “4.10 “ afirma nem saber de onde veio o peão”, facto reiterado a minutos 14.15 do seu depoimento – “o condutor nem se lembra de onde veio o peão”.
3. Deste depoimento, conjugado com a prova documental conclui-se que o segurado na R. ia manifestamente desatento e em excesso de velocidade.
4. Roga-se ao Tribunal da Relação recorrido que oiça este depoimento na íntegra.
5. Atento o depoimento supra é importante modificar os factos acima indicados e dar resposta positiva aos seguintes quesitos:
14. O condutor não reduziu a velocidade de modo a deixar passar o peão.
15. Nem efectuou qualquer travagem para tentar evitar o atropelamento.
16. Não existem marcas de travagem no local do acidente.
18. O condutor não viu o peão, por conduzir de forma desatenta e desadequada as condições de visibilidade no local.
19. O condutor nem sequer tentou travar ou parar a sua viatura.
6. Deste depoimento, conjugado com a prova documental conclui-se que o condutor segurado na R ia manifestamente em excesso de velocidade.
7. Atento os depoimentos supra é importante modificar os factos acima indicados e dar resposta aos mesmos nos seguintes termos considerando como provado:
14. O condutor não reduziu a velocidade de modo a deixar passar o peão.
15. Nem efectuou qualquer travagem para tentar evitar o atropelamento.
16. Não existem marcas de travagem no local do acidente.
18. O condutor não viu o peão, por conduzir de forma desatenta e desadequada as condições de visibilidade no local.
19. O condutor nem sequer tentou travar ou parar a sua viatura.
8. A sentença recorrida sustenta que foi o lesado quem deu causa ao acidente, por ter atravessado a via e por estar alcoolizado.
9. No entanto, não há qualquer ponto da matéria de facto provada que indique o falecido andava aos tombos ou se tenha atirado para debaixo do carro.
10. Ora, se ouvirmos os depoimentos das testemunhas e lermos os quesitos provados não se verifica qualquer situação de censura sobre a forma como o peão atravessou a via.
11. De facto, num local com trânsito intenso em ambos os sentidos como pode e deve um peão atravessar a estrada, quando os condutores estão tão desatentos, que nem sabem dizer se o peão vinha da direita ou da esquerda.
12. Mais uma vez roga-se a audição integral do depoimento isento do condutor….
13. O condutor não sabe explicar de onde, como e de que forma surge o peão…. logo podemos presumir que ia desatento e não teve em conta a situação de no local existir à data e existir ainda hoje uma paragem.
14. O Tribunal ignorou completamente esta realidade e o concurso do risco.
15. Há acórdãos de crianças de correm para debaixo de um carro e de ciclistas que vêm em contramão, mas o presente caso é de um peão que queria atravessar uma estrada
6. não havia no local nenhuma passadeira de peões.
17. O facto de o lesado ter atravessado a via, não é por si só bastante para o considerar o exclusivo responsável pela produção do sinistro, sendo que o facto de estar alcoolizado não afasta só por si a responsabilidade do condutor.
18. O Tribunal tenta fundamentar a culpa exclusiva do peão, mas não tem em conta que o condutor ia em excesso de velocidade e não afastou a presunção de comitente comissário.
19. Ficou provado o seguinte:
2. No acidente intervieram o veículo ligeiro de passageiros matrícula ...-...-DH, propriedade de AP... e conduzido por JP..., e o peão BF....
20. Daí que se tenha que insistir que a fundamentação da douta sentença é simplista inadequada.
21. Nota-se que um facto importante, diria mesmo essencial, tal como a velocidade máxima permitida no local não foi apurada.
22. Ou seja, após duas sessões de julgamento não foi possível apurar, qual a velocidade permitida no local.
23. Se é verdade que o lesado foi atropelado, também é verdade que no local não havia passadeiras, e que condutor ia a mais de 60 km/hora e não conseguiu imobilizar a sua viatura antes de embater no lesado.
24. Tem pois que se considerar que o condutor do veículo segurado na Ré, circulava desatento e que há um risco na circulação das viaturas a motor.
25. Perante todo o exposto deveria a douta sentença recorrida, ter optado por uma repartição de culpas, no mínimo na ordem dos 70% para cada a viatura e 30% para o peão.
26. É que, tendo em conta que o lesado ia a pé, tal situação não tem qualquer perigosidade.

Do Direito
27. Da responsabilidade pelo acidente
28. O condutor do veículo segurado pela R. violou os artigos 13º, 24º 148, alínea a) e i) do Código da Estrada.
29. Ora, vem a A. indicar que, na eventualidade de por falta de prova ser afastada a imputação com base na culpa, serão sempre os danos imputáveis à R no âmbito da responsabilidade pelo risco.
30. Na nossa modesta opinião vigora hoje em Portugal uma especial obrigação de indemnizar os danos sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas
31. Na nossa opinião, a própria Lei prevê a especial obrigação de indemnizar os danos sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas
32. Em virtude de uma interpretação generosa da Directiva n.º 2005/14/CE, do
Parlamento Europeu e do Conselho o seguro automóvel em Portugal desde o da DL 291/2007 passou na nossa modesta opinião e de acordo com uma leitura atenta do artigo 11º a o cobrir os danos dos peões com base na responsabilidade objectiva.
33. Como em muitas matérias referentes ao seguro automóvel a redacção da lei é complexa. É curioso como o legislador usa frequentemente formulações complicadas para dizer aquilo que é simples.
34. O nº 2 artigo 11 da DL 291/2007 é um desses casos. Citamos:
1 ‐ O seguro de responsabilidade civil previsto no artigo 4.º abrange:
a) Relativamente aos acidentes ocorridos no território de Portugal a obrigação de indemnizar estabelecida na lei civil;
b) Relativamente aos acidentes ocorridos nos demais territórios dos países cujos serviços nacionais de seguros tenham aderido ao Acordo entre os serviços nacionais de seguros, a obrigação de indemnizar estabelecida na lei aplicável ao acidente, a qual, nos acidentes ocorridos nos territórios onde seja aplicado o Acordo do Espaço Económico Europeu, é substituída pela lei portuguesa sempre que esta estabeleça uma cobertura superior;
c) Relativamente aos acidentes ocorridos no trajecto previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo anterior, apenas os danos de residentes em Estados membros e países cujos serviços nacionais de seguros tenham aderido ao Acordo entre os serviços nacionais de seguros e nos termos da lei portuguesa.
2 ‐ O seguro de responsabilidade civil previsto no artigo 4.º abrange os danos sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas quando e na medida em que a lei aplicável à responsabilidade civil decorrente do acidente automóvel determine o ressarcimento desses danos.
35. A lei no nº 1 define a cobertura do seguro em termos geográficos e no nº 2 estabelece um regime de acordo com os danos sofridos por determinado tipo de vítimas.
36. De facto, a Lei é clara e pretende criar um regime especial para este tipo de vítimas.
37. Na nossa opinião a Lei quis proteger os peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas que tenham danos. Não todos os danos, mas apenas os danos que a lei aplicável à responsabilidade civil decorrente do acidente automóvel determine serem ressarcíveis.
38. Poder-se-á argumentar que a Lei limita-se a remeter a definição do direito à
indemnização para a lei geral sobre responsabilidade civil, mas então porque apenas nos casos de indemnização devida a peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas?
39. Por que razão deveria fazê-lo apenas para estas vítimas? As outras vítimas
têm um regime diferente?
40. Interpretar desta forma o artigo seria retirar qualquer sentido útil ao preceito, pois tal como qualquer outro lesado, os peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas estão abrangidos pelo seguro, que indemniza nos termos gerais da responsabilidade civil.
41. De facto o legislador no nº 2 artigo 11º quis e veio dizer algo de novo, que consiste na nossa opinião em duas regras:
1 - O princípio geral de que o seguro automóvel abrange os danos sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, tal como acontece com os passageiros.
2- Os danos cobertos são aqueles que a lei aplicável à responsabilidade civil decorrente do acidente automóvel determine deverem ser ressarcíeis.
42. Ou seja, todos danos dos peões que a lei determina serem ressarcíveis estão cobertos e abrangidos pelo seguro automóvel.
43. Um exemplo prático de danos não ressarcíveis seria o caso de um peão apanhar um susto por o condutor ter buzinado e ter um eventual dano. Ora, este dano não será digno de ser ressarcível e por isso não está abrangido.
Será um mero incómodo eventualmente.
44. Dito de outra maneira, os danos dos peões estão sempre cobertos e abrangidos pelo seguro, desde que tais danos mereçam a tutela do direito.
45. Outra interpretação para o nº 2 seria de que os danos estão cobertos nos termos de pontos, propostas razoáveis e tudo mais previsto no DL 291/2007.
46. Por isso os danos estão cobertos, o que faz sentido para proteger a parte mais fraca de um acidente, ou seja passageiros e peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas numa tentativa de socializar o risco indo além das regras do CC e criando um regime próprio .
47. Gostávamos que o Tribunal da Relação de Lisboa se pronunciasse sobre esta matéria, que nos parece merecer alguma atenção.
Nestes termos e nos mais de Direito, deve a sentença ser revogada, devendo a R, ser condenada a pagar às AA os danos decorrentes da morte do peão na proporção de, no mínimo, 70% – 30%, ou mesmo de 100% atento o nº 2 do artigo 11 da DL 291/2007 a devendo o Tribunal da Primeira Instância definir quais os valores em concreto.
A R. contra alegou nos termos de fls. 352 e seguintes.
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II – 1 - O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. Em 10-03-2008, cerca das 20:45h, ocorreu um acidente de viação no IC2, ao Km 29,6, entre o Carregado e Vila Franca de Xira, distrito de Lisboa.
2. No acidente intervieram o veículo ligeiro de passageiros matrícula ...-...-DH, propriedade de AP... e conduzido por JP..., e o peão BF....
3. O local do acidente é um cruzamento que é antecedido no sentido de marcha do ...-...-DH por uma recta com boa visibilidade.
4. No local onde o peão atravessou a via não existia passadeira de peões.
5. O sinistrado procedia ao atravessamento da via.
6. E quando procedia ao atravessamento foi colhido pelo veículo segurado na R..
7. Vindo a imobilizar-se no solo onde ficou inanimado.
8. E onde permaneceu até à chegada dos Bombeiros.
9. O local em questão é pouco iluminado e no dia e hora do acidente, havia trânsito intenso em ambos os sentidos.
10. O veículo DH circulava a cerca de 50 Km/hora, quando surgiu inesperadamente na faixa de rodagem o peão.
11. O peão atravessou a via sem previamente ter demonstrado tal intenção.
12. O condutor do DH, face ao surgimento inesperado do peão, não conseguiu evitar o embate no peão com a parte frontal direita do seu veículo.
13. O condutor não viu o peão a apenas se apercebeu do mesmo quando do embate.
14. A vítima bateu no para-brisas do veículo e imobilizou-se na estrada junto ao local de embate.
15. O sinistrado foi transportado para o Hospital de Vila Franca de Xira, onde deu entrada em estado de coma profundo (doc. nº3 junto com a p.i.), tendo sido transferido depois para o Hospital de S. José.
16. Foi sujeito a várias cirurgias.
17. O sinistrado faleceu em 18-03-2008 (doc. 2 junto com a petição inicial - certidão de óbito).
18. O sinistrado sofreu designadamente as seguintes lesões em consequência do acidente: edema encefálico maligno, fractura do occipital, hematoma sub-dural na convexidade esquerda, focos de contusão hemorrágicos dispersos, focos de contusão dispersos por todo o encéfalo, lesões essas que acabaram por conduzir à sua morte. (doc.3 junto com a p.i. – relatório de autópsia).
19. O sinistrado nasceu em 28-05-1967 (doc.4 junto com a p.i. – passaporte do falecido).
20. Estava em Portugal desde 2001 (doc. de fls. 39).
21. Manteve dois empregos em simultâneo (doc. 5 junto com a p.i. – declaração de rendimento).
22. Tendo auferido 6.662,13 € no ano de 2007.
23. O falecido estava em Portugal a trabalhar para poder providenciar para a sua família.
24. A mulher e a filha do sinistrado viviam na Ucrânia, para onde o falecido enviava dinheiro para as ajudar.
25. Ao falecido sobrevivem a sua mulher e uma filha.
26. A filha, SF..., tinha 15 anos quando ficou órfã de pai, vitimado pelo acidente (doc.6 junto com a p.i. – certidão de nascimento).
27. A mulher, HF..., tinha 36 anos quando perdeu o marido.
28. A filha e a mulher do sinistrado sofreram e tiveram um choque com a morte deste.
29. A mulher do sinistrado ficou muito preocupada e nervosa com toda a situação do marido, vendo-se privada deste.
30. Desde que deixaram de receber os valores enviados pelo sinistrado, a sua mulher e filha têm pedido ajuda a outras pessoas na Ucrânia.
31. No processo de Inquérito que com o nº 1700/08.2 TDLSB correu termos pelo Ministério Público deste Tribunal foi proferido despacho de arquivamento (doc. nº 2 junto com a contestação).
32. Na unidade hospitalar foi recolhido sangue à vítima e efectuada a competente análise, resultando da mesma que tinha 389 mg/dl de etanol (a que corresponde a taxa de álcool de 3,89 g/l), a par de 211 ng/ml e 668.87 nmol/l de benzodiazepinas (doc. nº 3 junto com a contestação).
33. A par de tal resultado, foi verificado na admissão da vítima que a mesma se encontrava inconsciente, com hálito etanólico, tendo-lhe sido realizada drenagem franca de conteúdo gástrico, com cheiro a bebida alcoólica (doc. nº 3 junto com a contestação).
34. Com base no falecimento em 18.03.2008 do beneficiário nº 11.../00 BF... em consequência do acidente a que dizem respeito os autos, foram requeridas no ISS,IP/Centro Nacional de Pensões pela viúva HF... as respectivas prestações por morte. (doc. de fls. 144 - 146).
35. Em consequência, o ISS,IP/CNP pagou à viúva HF... subsídio por morte no valor de 5.695,20 € e pensões de sobrevivência no total de 19.392,27 € no período de 2008-04 a 2017-04 (doc.de fls.314), tudo ascendendo a 25.087,47 € (doc. de fls. 314).
36. A responsabilidade civil por danos causados a terceiros resultantes de acidentes de viação decorrentes da circulação do veículo de matrícula 16-...-... havia sido transferida para a R. mediante contrato de seguro titulado por apólice nº 003... válida à data do acidente.
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II – 2 - O Tribunal de 1ª instância não considerou provada a matéria de facto alegada nos arts. 14º, 15º ,16º, 18º, 19º, 28º, 30º, 35º, 36º, 49º a 54º, 56º e 58º a 66º, 68 e 72º a 78º da petição inicial. Bem como considerou que «Não se provaram outros factos com interesse para a decisão, não tendo sido considerada a matéria conclusiva alegada por ambas as partes».
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III – São as conclusões da alegação de recurso, no seu confronto com a decisão recorrida, que determinam o âmbito da apelação, salvo quanto a questões de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo. Face ao teor das conclusões de recurso das apelantes temos como questões que se colocam nestes autos: se é de alterar a decisão sobre a matéria de facto nos termos propostos pela apelante; se é de considerar como causal – ou concausal - do acidente que determinou a morte do peão a actuação culposa do condutor do veículo; de qualquer modo se sempre haverá de ter em conta a responsabilidade pelo risco por parte daquele condutor, ainda que concorrente com a culpa do peão.
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IV – 1 - Pretendem as apelantes que sejam julgados provados os seguintes factos:
- O condutor não reduziu a velocidade de modo a deixar passar o peão.
- Nem efectuou qualquer travagem para tentar evitar o atropelamento.
- Não existem marcas de travagem no local do acidente.
- O condutor não viu o peão, por conduzir de forma desatenta e desadequada as condições de visibilidade no local.
- O condutor nem sequer tentou travar ou parar a sua viatura.
Referiu a propósito destes factos o Tribunal de 1ª instância quando fundamentou a sua decisão sobre a matéria de facto:
«Arts. 14º a 16º, 18º e 19º da petição inicial: dos depoimentos das testemunhas JP..., JM... e ES... não resultou demonstrada a realidade da versão do acidente alegada pelas AA.. Ao invés, dos referidos depoimentos extraiu-se que o condutor do veículo da R., que circulava com trânsito intenso a uma velocidade moderada de cerca de 50 km/h, foi surpreendido pelo surgimento inesperado da vítima, que obstruiu a marcha desse veículo, sem previamente ter assinalado a sua intenção de atravessar a via, pelo que não foi possível ao condutor reagir travando ou desviando-se, de forma a tentar evitar o embate. Assim, o alegado pelas AA. nos referidos artigos da petição inicial, foi infirmado pela factualidade provada sob os nºs 10 a 13».
Ouvimos integralmente o depoimento prestado por JP..., condutor do veículo atropelante. Disse que seguia pela via, no sentido Carregado/Castanheira, seguia numa fila porque havia muito trânsito, circulando a cerca de 50 k/hora, quando inesperadamente surgiu um peão à sua frente e não teve tempo de reagir, não se apercebeu dele, nem se apercebeu de onde veio, viu-o no momento do embate, só o viu à sua frente; o local não estava iluminado e não havia passadeira de peões no local.
Ouvimos, também, o depoimento da testemunha JM... que seguia como passageira no veículo atropelante, sendo então namorada do condutor. Disse que havia trânsito em ambos os sentidos e que seguiam em marcha lenta; não viu surgir o peão que bateu no vidro da frente vindo a cair do lado direito da estrada onde ficou imobilizado, a visibilidade era pouca, estava escuro e chuviscava; só viu o peão já em cima do carro, ainda hoje está para perceber como é que aquilo aconteceu.
Bem como ouvimos a testemunha ES... que disse que sendo ela a condutora seguia de automóvel com a mãe no sentido Castanheira/Carregado (sentido oposto ao do veículo atropelante). Referiu que estava escuro e chuvoso, o trânsito estava lento, não andavam a mais de 50 km/hora. Pensa que se o peão estava a atravessar a estrada o fazia do lado das Quintas para o lado em que seguia a testemunha.
Conjugando o teor destes depoimentos com os documentos juntos aos autos (cópias da participação de acidente e elementos do inquérito), concluímos justificar-se a decisão proferida sobre a matéria de facto.
Efectivamente, provou-se que:
- O veículo DH circulava a cerca de 50 Km/hora, quando surgiu inesperadamente na faixa de rodagem o peão.
- O peão atravessou a via sem previamente ter demonstrado tal intenção.
- O condutor do DH, face ao surgimento inesperado do peão, não conseguiu evitar o embate no peão com a parte frontal direita do seu veículo.
- O condutor não viu o peão a apenas se apercebeu do mesmo quando do embate.
- A vítima bateu no para-brisas do veículo e imobilizou-se na estrada junto ao local de embate.
Provou-se, pois, que o condutor não viu o peão – deste modo, não faz sentido dar como provado que o condutor não reduziu a velocidade de modo a deixar passar o peão, nem efectuou travagem para tentar evitar o atropelamento: a redução da velocidade de modo a deixar passar o peão e a travagem para evitar o atropelamento pressuporiam que o tivesse visto, o que não sucedeu. O mesmo se diga quanto ao condutor não ter tentado travar ou parar a sua viatura. Por outro lado, neste contexto a inexistência de marcas de travagem é inócua.
Mais pretendem as apelantes que se dê como provado que «o condutor não viu o peão, por conduzir de forma desatenta e desadequada às condições de visibilidade no local».
A desadequação às condições de visibilidade no local corresponde a uma conclusão que não é só de facto, pelo que não poderia ser considerada provada. Quanto à circunstância de o condutor do veículo atropelante estar desatento (ou distraído) tal não ficou demonstrado: sabemos, sim, que estava escuro e chuviscava, o local não era iluminado, havia bastante trânsito seguindo o condutor a cerca de 50 Km/hora, quando o peão surgiu inesperadamente na faixa de rodagem apenas dele se apercebendo o condutor quando do embate e que face ao surgimento inesperado do peão, não conseguiu evitar o referido embate com a parte frontal direita do seu veículo.
Mantém-se, assim, nos seus precisos termos a matéria de facto provada e não provada, não sendo de inferir, face à prova produzida, que «o segurado da R. ia manifestamente desatento e em excesso de velocidade».
Dizem-nos as apelantes que um facto tão importante tal como a velocidade máxima permitida no local não foi apurada. Sucede que as apelantes – a quem cumpriria invocar os factos em que fundavam os direitos de que se arrogam – na sua petição não fizeram referência a tal matéria - dizendo, por exemplo, que ali existia algum sinal proibitivo de circulação acima de determinada velocidade.
Saliente-se que não resulta do depoimento das testemunhas – designadamente das testemunhas JM... e ES... que ao tempo do acidente a via fosse ladeada de lojas e armazéns.
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IV – 2 - Aplicando o direito aos factos considerou o Tribunal de 1ª instância:
- «que o peão agiu com grave imprudência, sem se certificar de que podia efectuar o atravessamento em segurança e tendo violado o disposto no art. 101º nº1 do Código da Estrada, pelo que com a sua conduta negligente deu causa ao acidente, nada de irregular havendo a assinalar relativamente ao condutor do veículo seguro na R.»;
- que a direcção efectiva do veículo seguro na R. pertencia ao seu condutor no momento do acidente e que ele estava a utilizá-lo no seu interesse;
- sobre a questão da concorrência entre risco e culpa do lesado «o acidente foi inteiramente imputável à vítima, não sendo de assinalar qualquer circunstância que tenha acentuado o factor risco apenas pelo facto de se tratar de um acidente verificado entre um peão e um veículo motorizado»;
- «não há lugar ao ressarcimento dos danos invocados pelas AA., não recaindo por isso sobre a R. - seguradora a obrigação de pagamento das quantias peticionadas, quer com base na responsabilidade baseada na culpa, quer no risco».
Nos termos do nº 1 do art. 483 do CC, aquele que «com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
Sustentam as apelantes, desde logo, que o condutor do veículo segurado na R. violou os arts. 13, 24, 148-a) e i) do Código da Estrada, violando ilícita e culposamente normas do Código da Estrada destinadas a proteger os interesses de terceiros.
Há que considerar as disposições do Código da Estrada, na versão então em vigor, decorrente das alterações introduzidas pelo dl 44/2005, de 23-2 – não se encontrando relevância, para o efeito, nos indicados arts. 13 e 148-a) e i).
Dispunha o art. 24 daquele Código que o «condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente».
Determinando o art. 25 do mesmo diploma que sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade, nomeadamente, à aproximação de passagens assinaladas na faixa de rodagem para a travessia de peões, nas localidades ou vias marginadas por edificações, bem como nos cruzamentos ou entroncamentos.
Ao tempo, nas vias públicas em geral, a velocidade máxima permitida aos automóveis ligeiros era a de 90 km/hora – art. 27 do Código da Estrada.
Ora, não resulta dos autos que o condutor do veículo segurado na R. estivesse a transitar numa localidade ou em via marginada por edificações, nem mesmo que se aproximava de uma passagem assinalada na faixa de rodagem para a travessia de peões.
Provou-se que o local do acidente é um cruzamento que é antecedido no sentido de marcha do veículo segurado pela R. - de matrícula ...-...-DH - por uma recta com boa visibilidade, que o local é pouco iluminado e na ocasião do acidente havia trânsito intenso em ambos os sentidos e que o veículo DH circulava a cerca de 50 Km/hora, quando surgiu inesperadamente na faixa de rodagem o peão que procedia ao atravessamento da via, sendo que o condutor do DH, face ao surgimento inesperado do peão, não conseguiu evitar o embate com a parte frontal direita do seu veículo, não o tendo visto e apenas se apercebendo dele quando do embate.
É certo, como vimos, que o condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
Pese embora a intensidade do tráfego, o DH circulava a cerca de 50 Km/hora numa recta com boa visibilidade junto ao cruzamento para Quintas ([1]). O acidente ocorreu em 10 de Março, cerca das 20 h e 45m, quando necessariamente já era noite, sendo o local pouco iluminado. Sucede que não era expectável, não era previsível, mesmo para um condutor prudente que circulasse pelo IC2 - não se havendo provado, repete-se, que no perímetro de uma localidade ou, mesmo, de uma estrada ladeada por edificações - que surgisse inopinadamente um peão na faixa de rodagem por onde circulava, atravessando-a. A travessia iniciada pelo malogrado peão, atentos os factos provados, surge-nos como uma atitude imprevisível para o homem médio colocado na posição do condutor do DH.
Não esqueçamos que nos termos do nº 1 do art. 101 do Código da Estrada, os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente.
Com esta norma pretende-se, precisamente, evitar atropelamentos como o sucedido no caso dos autos – certificando-se previamente o peão de que pode atravessar a via sem perigo de acidente atenta a distância que o separa dos veículos que ali circulam e a velocidade a que se deslocam.
Temos, pois, que dos factos provados não se retira que o condutor do veículo segurado na R. seguia a velocidade excessiva; tal como não se apurou que o mesmo seguia desatento. Não esqueçamos que atento o disposto no nº 1 do art. 487 do CC recai sobre o lesado o ónus da prova da culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.
Ora, na nossa perspectiva, as AA. não lograram demonstrar a verificação de uma actuação culposa do condutor do veículo de matrícula ...-...-DH.
Referem as apelantes que não foi afastada «a presunção de comitente comissário» ([2]). Eventualmente, poderão estar a referir-se à presunção de culpa constante do nº 3 do art. 503 do CC que estabelece que «aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; se, porém, o conduzir fora do exercício das suas funções de comissário, responde nos termos do nº 1». A primeira parte desta disposição legal estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem, pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele como lesante e o titular do direito de indemnização ([3]).
Todavia, da factualidade apurada não se podem extrair quaisquer elementos que permitam concluir que o condutor do veículo ...-...-DH conduzia aquele veículo «por conta de outrem». A culpa do condutor só se presume quando ele conduza por conta de outrem e não quando apenas conduza um veículo alheio ([4]). Pelo que, desde logo, a aludida presunção de culpa não funcionaria.
                                               *
IV – 3 - O nº 2 do art. 483 ressalva a obrigação de indemnizar, independentemente de culpa, nos casos especificados na lei.
Somos, assim, remetidos para a responsabilidade objectiva, pelo risco.
Nos termos do art. 503, nº 1, do CC aquele que tiver a direcção efectiva de veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesses (ainda que por intermédio de comissário) responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo.
Temos, pois, uma responsabilidade objectiva do utilizador do veículo automóvel, sendo que na expressão “riscos próprios do veículo” são compreendidos tanto os riscos da máquina como os riscos do meio em que ela circula e os relacionados com o respectivo condutor. Terão a direcção efectiva do veículo não apenas os detentores legítimos – proprietário, usufrutuário, locatário, comodatário – mas, também, os detentores ilegítimos como é o caso do ladrão ([5]) ([6]).
Sucede que de acordo com o art. 505 do CC, «sem prejuízo do disposto no artigo 570º, a responsabilidade fixada pelo nº 1 do art. 503º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo».
Assim, uma das duas únicas causas de exclusão da responsabilidade pelo risco fixada pelo nº 1 do art. 503 reconduzir-se-ia a ser devido ou atribuível o acidente a facto do lesado ou de terceiro.
Ensinava Antunes Varela ([7]) que o facto de «os veículos serem portadores de perigos especiais obriga a determinados cuidados ou prevenções, não só parte de quem os possui ou os conduz, mas por parte de todos em geral, principalmente quando se transita a pé nas vias públicas. Se o desastre…se verifica porque o lesado ou terceiro não observaram as regras de prudência exigíveis em face do perigo normal do veículo … cessa a responsabilidade do detentor, porque não obstante o risco da coisa, os danos provêm do facto de outrem». Para, mais adiante, acrescentar, que quando se alude a acidente imputável ao lesado, quer-se dizer, antes de mais nada, acidente devido a facto culposo do lesado, acidente causado pela conduta censurável do próprio lesado: «É o peão que inadvertidamente atravessa a rua fora da faixa destinada à sua passagem, ou que atravessa distraidamente a faixa numa altura em que os sinais luminosos indicavam a passagem livre para os automobilistas, dando lugar com a sua imprudência ao acidente que o condutor já não pode evitar». Embora o facto do lesado seja em regra um facto censurável deste, a lei abrange todos os casos em que o acidente é devido ao lesado (mesmo que sem culpa deste).
Também Menezes Leitão ([8]) refere que a responsabilidade pelo risco é excluída sempre que o acidente seja imputável ao próprio lesado, sendo que a expressão “imputável” não significará que seja exigível a culpa do lesado, sendo, porém, necessário que a sua conduta tenha sido a única causa do dano. Acrescenta que se «o lesado tiver actuado sem culpa, parece que a responsabilidade pelo risco (ou culpa) do condutor do veículo não é excluída. Se se verificasse a culpa concorrente do lesado com a culpa do condutor aplicar-se-ia o regime do art. 570º. A questão principal reside, porém, na hipótese de não se demonstrando a culpa do condutor, a culpa do lesado concorrer com o risco próprio do veículo, parece que nesse caso, será excluída a responsabilidade do condutor do veículo, não só porque aponta nesse sentido a redacção abrangente do art. 505º, mas também porque em face do art. 570, nº 2, a culpa do lesado exclui o dever de indemnizar em caso de culpa presumida, pelo que não faria sentido que tal não sucedesse perante a responsabilidade pelo risco».
Porém, tem vindo a ser posta em crise a solução acima mencionada relativa à incompatibilidade da culpa e do risco.
Explanou o STJ no seu acórdão de 01-06-2017 ([9]): «Segundo a tese que podemos qualificar de “clássica”, assumida pela doutrina e jurisprudência maioritárias, o art. 505º do CC coloca um mero problema de causalidade.
Tendo como pano de fundo situações de responsabilidade objectiva inerente à direcção efectiva de veículos automóveis, nos termos do nº 1 do art. 503º do CC, resulta da letra daquele normativo que essa responsabilidade é afastada sempre que o acidente seja “imputável” (no sentido de “devido”) ao próprio lesado ou a terceiro ou a caso de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
Conforme aquela tese, basta que seja quebrado o nexo de causalidade entre o sinistro e os riscos próprios do veículo por qualquer comportamento (ainda que não culposo) do lesado ou de terceiro, ou devido a caso de força maior, para que fique liminarmente afastada a responsabilidade objectiva do proprietário do veículo eventualmente transferida para a Seguradora.
Trata-se da solução que obtém uma impressiva adesão na jurisprudência deste Supremo, bastando referir, a título meramente exemplificativo e com prevalência de arestos mais recentes, os Acs. do STJ, de 21-1-06 (Revista nº 3941/05 - AFONSO CORREIA), de 31-1-06 (www.dgsi.pt - AZEVEDO RAMOS), de 18-4-06 (www.dgsi.pt - SEBASTIÃO PÓVOAS), de 6-11-08 (www.dgsi.pt - SALVADOR da COSTA) ou de 25-11-10 (Revista nº 12175/09 - GONÇALO SILVANO)
(...)
Esta solução tem sido posta em crise por uma parte da doutrina mais recente.

Com argumentação diversa, passou a defender-se uma solução alternativa que se traduz na admissibilidade daquela concorrência, desde que o sinistro ainda tenha uma conexão relevante com os riscos próprios do veículo, isto é, desde que o acidente não seja de imputar exclusivamente a factores externos integrados na órbita do lesado, de terceiro ou de casos de força maior estranhos ao veículo.
Entre os defensores desta tese destacam-se BRANDÃO PROENÇA, em A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, págs. 814 e segs., e CALVÃO da SILVA, RLJ 134º, págs. 115 e segs.
Para o efeito, defendem a extracção do art. 505º do CC de um sentido que o torne compatível com o art. 570º, com o argumento de que só assim fará sentido a alusão que naquele preceito é feita ao disposto no nº 1 do art. 503º, norma que regula inequivocamente uma situação de responsabilidade objectiva do proprietário do veículo.
É também feito apelo à necessidade de ajustamento das soluções legais às circunstâncias actuais, designadamente ao risco rodoviário, bem diverso daquele que era perceptível aquando da aprovação do Código Civil, de modo a implicar a concessão de maior protecção aos lesados que se encontrem em situação de maior vulnerabilidade, como ocorre com os peões ou com os ciclistas.
Ajustamento que também decorreria do facto de se ter generalizado o sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel que vem assumindo cada vez mais uma função ressarcitiva de danos, com subvalorização de outros aspectos em que inclui a contribuição do lesado ou de terceiros para a sua ocorrência.
Pressupõe-se ainda que o direito interno deve ser interpretado por forma a não colocar em causa o regime que dimana das Directivas Europeias sobre Seguro Automóvel, considerando que estas implicam uma efectiva tutela dos interessados em situação mais desprotegida, o que colidiria com uma interpretação do regime da responsabilidade civil que desconsidere os riscos próprios do veículo que também tenham interferido na ocorrência do sinistro».
Acrescentando, adiante que uma terceira via pressupunha «a existência de normas da União Europeia que directamente se sobrepusessem ao direito interno (emergente de Regulamento ou impostas por efeito directo de Directivas) ou que determinassem uma interpretação conforme com solução ditada pelo direito comunitário, o que não ocorre com a questão sub judice.
Por conseguinte, posto que de lege ferenda se possa justificar uma solução que amplie a protecção conferida aos lesados em situação de maior vulnerabilidade (à semelhança do que já se operou noutros ordenamentos jurídicos), o certo é que, no plano do direito constituído, não se mostra viável uma solução que admita a concorrência entre a responsabilidade objectiva do proprietário do veículo (e respectiva seguradora) e a contribuição exclusiva do lesado para a ocorrência do dano».
Concluindo o referido acórdão: «No nosso entendimento, o regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505º e 570º do CC deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura – o que nos afasta do resultado que decorreria de uma estrita aplicação da denominada tese tradicional: ou seja, não pode, neste entendimento, excluir-se à partida que qualquer grau de culpa do lesado (nomeadamente do utente das vias públicas mais vulnerável) no despoletar do acidente, independentemente da gravidade do facto culposo e do grau da sua efectiva contribuição para o sinistro, deva, sem mais, excluir automaticamente a responsabilidade decorrente, no plano objectivo, dos riscos próprios da circulação do veículo, independentemente da intensidade destes e do grau em que contribuíram causalmente, na peculiaridade do caso concreto, para o resultado danoso.
Esta conclusão é, em última análise, imposta pelo princípio fundamental da adequação e da proporcionalidade – que naturalmente tenderá a inviabilizar a total e sistemática desresponsabilização do detentor do veículo causador do acidente, nos casos em que foi muito intensa a contribuição para o resultado danoso de riscos agravados da circulação do veículo e diminuta a relevância da falta imputável ao lesado, cometida com culpa leve ou com escassa relevância causal para a produção ou agravamento das lesões por ele próprio sofridas.
E, por outro lado, afigura-se que esta posição é a que melhor se adequa à jurisprudência definida pelo TJUE, na sequência dos pedidos de reenvio atrás referidos, ao permitir que o regime de Direito interno em vigor suportasse o confronto com as normas e princípios de Direito Comunitário, por entender que a legislação em vigor não tem por efeito, no caso de a vítima ter contribuído para o seu próprio dano, excluir automaticamente ou limitar de modo desproporcionado o seu direito.
É, pois, este juízo de adequação e proporcionalidade que os Tribunais devem formular, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável a comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um relevante risco da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente…»
Este entendimento teve a adesão do STJ no seu acórdão de 11-1-2018 ([10]), ali se dizendo:
«... verifica-se que, tendo sido provado que o acidente foi causado pela conduta gravemente culposa do A. lesado – pessoa maior e imputável, com a qualidade de peão –, o juízo de adequação e proporcionalidade leva a excluir a responsabilidade do detentor efectivo do veículo pelos riscos próprios do mesmo; e portanto, a excluir a responsabilidade da R. seguradora para quem tal responsabilidade foi transferida.
Sem prejuízo de, de iure constituendo, ser admissível que o regime do art. 505º do Código Civil venha a ser alterado, no sentido de se atribuir relevância à causação dos danos em lugar da causação do acidente, assim como sem prejuízo de poderem vir a ser introduzidas no nosso ordenamento jurídico soluções que protejam de forma plena e automática as vítimas estradais tidas como especialmente vulneráveis em função da idade e da situação de incapacidade (cfr., a este respeito, a síntese da relatora do presente acórdão em “Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade por acidente de viação”, in Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo Lobo Xavier, Vol. II, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, págs. 485 e segs.), entende-se que, no plano do direito constituído, que este Tribunal deve aplicar:
(i) Se impõe, em tese geral, a admissibilidade da concorrência entre a responsabilidade pelos riscos próprios do veículo e a culpa do lesado (ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado) pelas razões expostas no ponto anterior do presente acórdão;
(ii) Porém, tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efectivo do veículo (e respectiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado;
(iii) Implica sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa;
(iv) Num caso como o dos autos em que ficou provado que o acidente foi causado pela conduta gravemente culposa do A. lesado, pessoa maior e imputável, a indemnização deve ser totalmente excluída».
Vejamos.
Temos, no caso dos autos, uma conduta culposa do malogrado BF... que quando já era noite, numa via com pouca iluminação, sendo o trânsito intenso procedeu ao atravessamento da faixa de rodagem inesperadamente, sem previamente ter demonstrado tal intenção, embatendo no para-brisas do DH.
Consoante dispunha o art. 99 do Código da Estrada os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas, sem prejuízo de poderem transitar pela faixa de rodagem «com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos», designadamente quando efectuem o seu atravessamento. Determinando o já aludido nº 1 do art. 101 do mesmo Código que os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente. Cuidados a que o sinistrado não se deu, tendo em conta as acima referidas circunstâncias e a de o condutor do DH circular pelo IC2 a cerca de 50 km/hora. O que se encaixa no contexto de o sinistrado, conforme análise que veio a ser realizada, ter uma taxa de álcool de 3,89 g/l a par de 211 ng/ml e 668.87 nmol/l de benzodiazepinas.
Aplicando a supra denominada “tese clássica” diríamos, sem dúvida, que foi a imprudência, a falta de cuidado do peão que esteve na origem do acidente, quebrando o nexo de causalidade entre quaisquer riscos próprios do veículo e os danos - a descrita actuação culposa do mesmo levaria à exclusão da responsabilidade pelo risco do condutor do veículo automóvel.
Admitamos, todavia, em abstracto, em tese geral, a admissibilidade de concorrência entre a imputação do acidente ao lesado e a responsabilidade pelos riscos próprios do veículo, nos termos supra aludidos.
O atropelamento de BF... deveu-se à forma descuidada e imprudente com que procedeu à travessia de uma via de trânsito – um IC – com trânsito intenso, inesperadamente, sem previamente ter demonstrado tal intenção, isto de noite e em local pouco iluminado. Como vimos, não se apurou uma violação culposa de qualquer regra estradal por parte do condutor do veículo ...-...-DH como causa (ou concausa) do acidente – designadamente que circulasse em excesso de velocidade – nem que o mesmo seguisse desatento à condução.
Ora, afigura-se-nos que o atropelamento do sinistrado mais do que dever-se à sua conduta, deveu-se exclusivamente a essa sua conduta, não se verificando aqui qualquer contribuição causalmente adequada proveniente dos riscos próprios do veículo. O embate entre o veículo e o sinistrado é de imputar exclusivamente ao comportamento imprevisível do peão, sem qualquer interferência para o mesmo dos riscos próprios do veículo, não havendo que atribuir automaticamente um nexo de causalidade entre o acidente e a perigosidade de um veículo (tendo em conta as suas dimensões, peso e velocidade).
Como considerado no acórdão do STJ de 17-5-2012 ([11]) o «mero facto naturalístico de o acidente ter envolvido um veículo automóvel, como corpo em movimento, com determinado peso e dimensões, dotado de inércia, não pode ser considerado determinante de um risco causalmente adequado ao acidente, perdendo todo o relevo, quer em termos absolutos, quer em termos relativos».
No âmbito do processo causal o acidente resultou de uma conduta culposa do sinistrado, sendo unicamente devido a tal e sem qualquer contribuição relevante dos riscos próprios do veículo.
                                                *
IV – 4 - Nos termos do nº 2 do art. 11 do dl 291/2007, de 21-8, «O seguro de responsabilidade civil previsto no artigo 4.º abrange os danos sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas quando e na medida em que a lei aplicável à responsabilidade civil decorrente do acidente automóvel determine o ressarcimento desses danos».
Consoante resulta do preâmbulo do dl 291/2007, a transposição da Directiva nº 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho «constitui ensejo para proceder à actualização e substituição codificadora do diploma relativo ao sistema de protecção dos lesados por acidentes de viação baseado nesse seguro [seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis] que se justifica desde há muito».
Especificando o art. 1 do dl 291/2007 que o mesmo aprova o regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e transpõe parcialmente para a ordem jurídica interna aquela Directiva.
Defendem as apelantes que a lei, através daquele nº 2 do art. 11, quis criar um regime especial para este tipo de vítimas, querendo proteger peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados.
Não nos parece, todavia, que a lei ao regular o âmbito material do seguro de responsabilidade civil automóvel haja pretendido criar um regime especial que abrangesse peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, dispondo sobre a responsabilidade pelos danos sofridos pelos mesmos de forma diferenciada.
Aliás, claramente é ali feita remessa para a lei aplicável à responsabilidade civil decorrente do acidente automóvel que determine o ressarcimento desses danos. Ora essa lei é a acima considerada – nomeadamente as atinentes disposições do CC supra citadas.
Debrucemo-nos um pouco mais detalhadamente sobre este aspecto da questão na sua relação com as atinentes Directivas europeias - embora a mesma já haja sido acima aludida.
A propósito de caso similar ao dos presentes autos foi referido no acórdão da Relação de Guimarães de 10-11-2016 ([12]): «A tese sustentada pela apelante de que existirá um regime próprio para os peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, em que é possível a concorrência da culpa exclusiva do peão com o risco inerente à circulação de um veículo, foi já objeto de pedido de reenvio prejudicial junto do TJE, efetuado por este Tribunal da Relação de Guimarães no processo n.º 113/07.8TBMLG.G1, relatado pelo Desembargador António Sobrinho, na sequência do qual foi proferida a seguinte decisão no processo C-486/11, de 21.03.2013:
“A Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e a Terceira Diretiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito de a vítima de um acidente exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano”».
Referindo-se no já acima citado acórdão do STJ de 17-5-2012: «O Tribunal de Justiça, no âmbito do “Proc. C-409/09”, proferiu o Acórdão datado de 9-6-11, no qual concluiu que as Directivas respeitantes ao seguro de responsabilidade civil automóvel “devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano” (http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ).
Para chegar a uma tal conclusão asseverou que “a legislação nacional (portuguesa) aplicável no âmbito do litígio no processo principal só afasta a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo envolvido no acidente, num contexto como o do presente processo (morte de um menor de tenra idade que tripulava uma bicicleta e que circulava em contramão, tendo embatido num veículo automóvel sem qualquer culpa do respectivo condutor), quando a responsabilidade pelo acidente for exclusivamente imputável à vítima”.
Ou seja, partindo do pressuposto de que o direito nacional contém uma solução que admite a concorrência entre a culpa do lesado e o risco do condutor (solução que, como se disse, apenas é sustentada ao abrigo da segunda tese anteriormente enunciada), o Tribunal de Justiça afirmou ser compatível com o Direito Comunitário uma solução em que a responsabilidade da seguradora seja excluída quando o sinistro seja exclusivamente imputável à vítima, o que, como já dissemos, se verifica no caso presente.
Na verdade, embora o art. 1º-A da 4ª Directiva sobre seguro de responsabilidade civil automóvel imponha a adopção de legislação que, no âmbito do seguro obrigatório, assegure “a cobertura dos danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas que, em consequência de um acidente em que esteja envolvido um veículo a motor”, acrescenta que a regulação do direito de indemnização é feita “de acordo com o direito civil nacional ”.
Por outro lado, não foi reflectida na redacção final da Directiva Europeia uma proposta mais arrojada que existia no sentido da defesa dos indivíduos mais vulneráveis, como os peões e ciclistas, que implicava a cobertura do seguro obrigatório dos respectivos danos não patrimoniais suportados por esses lesados independentemente da responsabilidade do condutor do veículo».
Neste contexto e face às razões constantes dos textos que acabámos de transcrever não tem qualquer êxito a argumentação das apelantes relativa à interpretação por elas dada ao nº 2 do art. 11 do dl 291/2007, mesmo tendo em conta a Directiva Europeia a cuja transposição parcial este diploma procedeu.
Não está, assim, a R. seguradora, por via do contrato de seguro titulado pela apólice nº 003..., obrigada a pagar às AA. as quantias peticionadas.
                                                *
V – Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelas apelantes.
                                               *
Lisboa, 25 de Outubro de 2018

Maria José Mouro
     
Jorge Vilaça          
                                              
Vaz Gomes

[1] Refira-se que a supra referida moderação de velocidade junto aos cruzamentos tem em vista os cuidados relativos ao cruzamento com veículos e não ao atravessamento de peões.
[2] Conclusão 18.
[3] Ver o Assento nº 1/83, publicado no DR I série de 28-5-1983.
[4] Ver, a propósito, Menezes Cordeiro, «Tratado de Direito Civil Português», II, Direito das Obrigações, tomo III», Almedina, 2010, pag. 671.
[5] A referência à “utilização no próprio interesse” justifica-se para evitar a imputação ao comissário.
[6] Referindo Menezes Cordeiro, na obra citada, pag. 674, que na presença de um acidente de viação inexplicado funciona a imputação pelo risco do nº 1 do art. 503 do CC.
[7] «Das Obrigações em Geral», Almedina, vol. I, 4ª edição, pags. 597 a 599.
[8] Em «Direito das Obrigações», vol. I, Almedina, 5ª edição, pag. 370.
[9] Ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt processo 1112/15.1T8VCT.G1.S1.
[10] Ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt, processo 5705/12.0TBMTS.P1.S1.
[11] Ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt, processo 1272/04.7TBGDM.P1.S1.
[12] Ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt, processo 2749/14.1T8BRG.G1.