Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
364/13.6TCFUN-A.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: HABILITAÇÃO DOS SUCESSORES
REPÚDIO DA HERANÇA
ESTADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/18/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO PARCIAL
Sumário: INo incidente de habilitação dos sucessores da falecida executada, deduzido contra os demais executados, a filha desta e também, após despacho de convite ao aperfeiçoamento, contra o Estado Português, estando provado que aquela estava divorciada e deixou uma filha (ora demandada), a qual repudiou a herança e não tem descendentes, não se pode considerar que o Estado deve ser chamado à sucessão como herdeiro legítimo (que tenha direito a suceder), sendo sintomático disso o facto de não ter sido intentado o processo especial de liquidação da herança vaga em benefício do Estado (cf. artigos 2032.º, 2133.º e 2134.º do CC).

II O Estado Português, representado pelo Ministério Público, não pode ser considerado sucessor da falecida, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 351.º do CPC, havendo, ao invés, de ser realizada, conforme expressamente previsto no art. 355.º do CPC, (i) a habilitação dos sucessores incertos ou ii) a habilitação da herança jacente, que é um património autónomo com personalidade judiciária [cf. art. 12.º, al. a), do CPC e artigos 2046.º a 2049.º do CC].

IIIA primeira hipótese pressupõe a existência de outros sucessores da falecida executada, num cenário de incerteza carecido de averiguação; a segunda, de habilitação da herança jacente, faz-se com a alegação de facto da inexistência de quaisquer sucessores que tenham aceitado (expressa ou tacitamente) a herança, que não foi declarada vaga para o Estado.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados


IRELATÓRIO


O Ministério Público, em representação do Estado Português, interpôs o presente recurso de apelação da sentença que julgou o Estado Português, representado pelo Ministério Público, habilitado para, em substituição da falecida Executada (Fátima ….) prosseguir a ação executiva para pagamento de quantia certa que contra aquela (e outros Executados) foi instaurada pela Caixa Geral de Depósitos, S.A. [em 27-06-2013, mediante a apresentação de requerimento executivo, no qual é peticionado o pagamento da quantia exequenda, no valor de 32.442,73 €, relativa ao capital em dívida e respetivos juros do contrato de mútuo consubstanciado no documento particular que junta como título executivo (doc. 1)].

Em 05-01-2016, no processo executivo, foi proferido despacho que declarou suspensa a instância, em face do comprovado óbito daquela Executada.

Em 17-05-2017, teve início o presente incidente, a requerimento da Exequente, deduzido contra os Executados Hélder… e Ricardo…, bem como contra os sucessores incertos da falecida Executada.

Autuado por apenso, foi proferido despacho que determinou à Seção que realizasse pesquisa nas Bases de Dados em ordem à identificação de possíveis sucessores da falecida e, depois, face ao resultado das pesquisas, convidou-se a Exequente a apresentar novo requerimento, aperfeiçoado.

A Exequente veio então, em 08-06-2017, apresentar novo requerimento, identificando como Requeridos, além dos anteriores, Inês…, filha da falecida Executada.

Foi proferido despacho, datado de 21-06-2017, que indeferiu liminar e parcialmente este requerimento no tocante aos sucessores incertos.

Após várias diligências com vista à citação dos Requeridos, veio a ser apresentada, em 10-02-2021, Contestação por parte da Requerida Inês…, na qual pugnou pela improcedência da sua requerida habilitação, por ter repudiado a herança.

De seguida, a Exequente/Requerente, mediante requerimento apresentado em 30-03-2021, requereu que os autos prosseguissem contra os herdeiros incertos, representados pelo Ministério Público.

Foi proferido despacho em 03-05-2021, que considerou inviável o prosseguimento dos autos nos termos requeridos e determinou a notificação da Requerente para impulsionar a instância no sentido da habilitação do Estado Português.

A Requerente assim o fez, conforme requerimento de 04-05-2021, cujo teor é o seguinte: “Requerente nos autos acima identificados, tendo sido notificada do douto despacho de fls. [ref. 49931764], vem em conformidade com o mesmo, requerer a V. Exa. que se digne ordenar, nos termos do disposto no artigo 2133, n.º 1, al. e) do C.Civil, o prosseguimentos dos autos com vista à habilitação do Estado como sucessor da falecida Fátima….”

Após, foi determinada a citação do Ministério Público, que veio apresentar, em 26-05-2021, requerimento com o seguinte teor:
«Salvo todo o devido respeito que é muito, para que o Ministério Público seja citado como herdeiro é necessário que a herança deixada aberta e vaga seja aceite mediante instauração de acção em Juízo, com processo especial previsto nos artigos 938.º e 939.º, n. º 1, do Código de Processo Civil, e também nos termos dos artigos 1039º e 1040.º do citado diploma legal, para a qual somente o Ministério Público tem legitimidade activa, em representação do Estado e, nunca na pendência deste incidente de habilitação de herdeiros.
Não tendo havido prévia aceitação da herança pelo Estado e como tal declarada judicialmente, o Ministério Público não representa a herança de particular nos termos do artigo 228.º do CPC, pelo que, deverá, sim, proceder-se à citação edital dos interessados incertos da falecida para deduzirem a sua habilitação, e a execução prosseguir contra a herança jacente, nomeando-se para tanto, defensor oficioso.
Nestes termos, o Ministério Público requer a V. Exa., se digne dar procedência a este requerimento dando sem efeito o douto despacho de citação em representação do Estado Português nos termos do disposto no artigo 2133.º, n.º 1, alínea e), do CC e 21.º do CPC.
*No sentido exposto, com a devida vénia, cita-se douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo nº 596/14.0TBPBL-D.C1, datado de 12-03-2019, Relator Exmo. Sr. Juiz Desembargador Barateiro Martins, disponível em www.dgsi.pt: (…)»

Em 22-06-2021, foi proferida a sentença (recorrida), cujo segmento decisório tem o seguinte teor:
“Face ao exposto, absolvo do pedido de habilitação Inês… e declaro habilitado o Estado Português, representado pelo Ministério Público, para prosseguir a acção executiva em substituição da executada falecida.
Sem custas (artigo 4.º n.º 1 a) do RCP).
Registe e notifique.”

Inconformado com esta decisão, veio o Ministério Público interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1–Em 25-05-2021, o Ministério Público foi citado em representação do Estado Português, para, no prazo de 10 dias, contestar, querendo, a habilitação de herdeiros, sob pena de não o fazendo, vir a ser julgado sucessor do falecido, para consigo prosseguir a causa principal (artigo 2133.ºdo CC).
2Salvo todo o devido respeito que é muito, para que o Ministério Público seja considerado habilitado como sucessor da executada falecida é necessário que a herança deixada aberta e vaga seja aceite mediante instauração de acção em Juízo, com processo especial previsto nos artigos 938.º e 939.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e também nos termos dos artigos 1039º e 1040.º do citado diploma legal;
3–Termos para a qual somente o Ministério Público tem legitimidade activa, em representação do Estado.
4–Por outro lado, em nosso modesto entender, mal se compreenderia que a filha da executada falecida repudiasse a herança e alegasse não haver quaisquer outros sucessores para que o Estado Português, de imediato, assumisse a posição de herdeiro/sucessor, com arrepio do procedimento legal imposto, com a prolação de sentença judicial a declarar a herança vaga aceite pelo Estado.
5–Nestes termos, requer-se a V. Exas., se dignem dar procedência ao presente recurso, por erro de direito da douta sentença, revogando-a e substituindo-a por outra, que não declare habilitado o Estado Português, representado pelo Ministério Público, por violação do preceituado nos artigos 2133.º, do CC, 938.º, 939.º, 1039.º e 1040.º do CPC.

Não foi apresentada alegação de resposta.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

***

IIFUNDAMENTAÇÃO

Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC).
A única questão a decidir é a de saber se o Estado Português, representado pelo Ministério Público, não devia ter sido habilitado, na posição da falecida Executada.

Factos provados

Na sentença recorrida, foram considerados provados os seguintes factos:
A)A Executada Fátima… faleceu no dia 20-12-2014, no estado de divorciada.
B)Inês… é filha (única) da Executada.
C)Por escritura pública de 30-07-2020, Inês… declarou repudiar «à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de sua mãe [...].»
D)Mais declarou «Que não tem descendência sucessível.»

Enquadramento jurídico

Na sentença recorrida consta a seguinte fundamentação de direito:
“Flui do artigo 2157.º do Código Civil que «São herdeiros legitimários o cônjuge, os descendentes e os ascendentes, pela ordem e segundo as regras estabelecidas para a sucessão legítima.»
Nos termos dos artigos 2133.º n.º 1 a) e 2134.º do Código Civil, o cônjuge e os descendentes são chamados à sucessão, integrando a primeira classe de sucessíveis e preferindo aos das classes imediatas.
Os chamados podem aceitar a herança ou repudiá-la (cf. artigos 2050.º e 2062º. do Código Civil).
No caso vertente, apurou-se que Inês…, única parente sucessível da executada falecida, repudiou validamente a herança.
Demais, Inês… não tem descendentes, pelo que resulta afastada a representação sucessória (artigo 2039.º do CC).
Flui do artigo 2133.º n.º 1 do Código Civil que: «A ordem por que são chamados os herdeiros, sem prejuízo do disposto no título de adopção, é a seguinte: a) Cônjuge e descendentes; b) Cônjuge e ascendentes; c) Irmãos e seus descendentes; d) Outros colaterais até ao quarto grau; e) Estado.»
Não existindo quaisquer herdeiros enquadráveis nas alíneas a) a d) do artigo 2133.º n.º 1 Código Civil, deverá ser chamado à sucessão o Estado Português.
Observe-se que apenas podem ser demandados os herdeiros incertos quando estes existam, mas não seja possível proceder à sua identificação.
A nosso ver, inexiste qualquer óbice à habilitação do Estado Português, não se subscrevendo a tese apresentada pelo Ministério Público.
Salvo o devido respeito por opinião diversa, não é possível confundir o processo especial previsto no artigo 938.º do CPC com o incidente de habilitação de herdeiros: o primeiro visa a liquidação de herança vaga; o segundo visa somente assegurar a legitimidade processual para uma determinada acção.
Por outras palavras: no incidente de habilitação de herdeiros, averigua-se apenas se o requerido/habilitado tem as condições legalmente exigidas para a substituição processual.
Esta questão foi apreciada pelo Tribunal da Relação do Porto de 24/01/2019, acessível em www.dgsi.pt: (…)”.

O Ministério Público discorda deste entendimento, argumentando, em síntese, que: para que o Ministério Público pudesse ser considerado habilitado como sucessor da executada falecida era necessário que a herança deixada aberta e vaga fosse aceite mediante instauração de ação com processo especial previsto nos artigos 938.º e 939.º, n.º 1, do CPC, para a qual somente o Ministério Público tem legitimidade ativa, tendo sido violado o preceituado nos artigos 2133.º, do CC, 938.º, 939.º, 1039.º e 1040.º do CPC.
Vejamos.
Estamos perante uma “habilitação-incidental”, nas palavras ainda atuais de Alberto dos Reis, ao diferenciá-la da “habilitação-ação” e da “habilitação-legitimidade” (que, na ação executiva, se encontra regulada no art. 54.º do CPC), quer quanto ao processo, que quanto ao alcance ou função - in“Código de Processo Civil Anotado”, Volume I, 3. edição, Coimbra Editora, págs. 573-575; veja-se também sobre esta distinção o acórdão da Relação de Lisboa de 17-11-2011, no processo n.º 102456/09.0YIPRT.L1-8, disponível em www.dgsi.pt.

O incidente de habilitação encontra-se regulado nos artigos 351.º a 355.º do CPC, relativamente aos quais merecem destaque as explicações de Salvador da Costa, in “Incidentes da Instância”, 11.ª edição, Almedina, págs. 190-231, designadamente quando refere que a expressão sucessores da parte falecida tem “um significado mais amplo do que o conceito de herdeiros a que alude o artigo 2133º do CC, em termos de abranger todos os que segundo o direito substantivo sucederam ao falecido na titularidade do direito ou das obrigações objeto da ação ou do procedimento em causa.” (cf. pág. 195). Também esclarece, a propósito do art. 355.º, que “São incertos os interessados não conhecidos ou indeterminados, ou seja, aqueles cuja identificação se revele impossível.
Reporta-se ao caso de falecida uma das partes e suspensa a instância, a outra, efetivamente desconhecedora de quem são os seus herdeiros ou sucessores, pretende o prosseguimento da demanda, situação essa diversa da prevista nos artigos 22º n.ºs 1 e 2, e 225º, nº 6.
Essa citação edital dos herdeiros ou sucessores da parte vencida como incertos só se justifica quando a parte requerente não tenha possibilidade de os determinar e identificar, não bastando para o efeito a mera dificuldade da sua identificação, porque pode tentar superá-la por via do exercício da faculdade prevista no artigo 7º, nº 4.
Deve por isso justificar em juízo as diligências que realizou com vista à identificação dos herdeiros ou sucessores da parte falecida para obstar além do mais à inconveniência de a citação operar por via edital, não bastando a mera alegação de desconhecimento sobre se o falecido deixou sucessores e de relegação para o tribunal a prévia realização de diligências com vista à sua identificação.
Verificada a efetiva situação de incerteza dos herdeiros ou sucessores da parte falecida, a parte que visa a habilitação deve requerer a título complementar a citação dos habilitandos incertos para, no prazo fixado no edital e no anúncio, a contar da data da publicação do último, requererem a sua habilitação, sob pena de não o fazendo a causa principal seguir com o Ministério Público ou com o defensor oficioso.” Portanto, neste caso, a causa segue nos termos aplicáveis do art. 22.º do CPC, atinente à representação dos incertos. Explica ainda que: “Prevê o n.º 4 a situação em que a herança tem personalidade judiciária, e estatui ser lícito aos interessados requererem a respetiva habilitação.
Nos termos do artigo 2046.º do CC, é jacente a herança aberta ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado, e por força do disposto no art. 12º, alínea a), tem personalidade judiciária.
Durante o tempo de jacência da herança – não aceite nem declarada vaga para o Estado – há sucessíveis e não propriamente sucessores, assumindo a herança provisoriamente a posição do de cujus, encabeçando a titularidade dos direitos e obrigações que se lhe reportavam.
Assim, no caso de se tratar de herança jacente, em vez de se requerer a habilitação dos sucessores incertos, a lei permite que se requeira a habilitação da própria herança como universalidade jurídica representada pelo cabeça-de-casal, pelo curador ou por algum sucessível, para com ela prosseguirem os termos da demanda – artigos 2047º, 2048º e 2079º do CC.
Se algum dos sucessores do falecido, como representante da herança, requerer a habilitação dela, o incidente deve seguir os termos gerais acima referidos, em conformidade com o disposto no artigo 353.º ou no artigo 354.º, conforme os casos.” (cf. págs. 217-220).

A respeito da habilitação de sucessores incertos, no mesmo sentido dos ensinamentos de Salvador da Costa, veja-se o acórdão da Relação de Coimbra de 27-12-2016, no processo n.º 919/04.0TBCNT-C.C1, e o acórdão da Relação de Lisboa de 19-03-2013, no processo n.º 9446/02.9TJLSB-A.L1-7, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

Na decisão recorrida cita-se, para estribar a posição que foi adotada, o acórdão da Relação do Porto de 24-01-2019, no processo n.º 818/12.1TVPRT-A.P1, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se refere que:
“I- O incidente judicial de habilitação de herdeiros não se pode confundir com o processo especial previsto no art.º938º do Código de Processo Civil.
II- Assim, o Estado como sucessor legítimo só é chamado à sucessão na falta ou repúdio de todos os outros sucessores legais previstos na lei e na falta ou repúdio de sucessores testamentários ou contratuais, cujas designações prevalecem sobre a do Estado, dado que este não é sucessor legitimário.
III- Já o incidente de habilitação tem por objecto determinar quem tem a qualidade que o legitime para substituir a parte falecida.
IV- Assim, por este processo incidental apenas se trata de averiguar se o habilitado tem as condições legalmente exigidas para a substituição, não se apreciando no mesmo a sua legitimidade senão como substituto da parte falecida.
V- Na hipótese dos autos e como se verifica não estamos perante a uma hipótese subsumível no art.º938º do CPC revisto, a qual e como já se viu, se destina de uma forma mais ampla e mais genérica, à liquidação da herança declarada vaga para o Estado.
VI- Estamos sim, perante uma situação em que se visa apenas assegurar a legitimidade para a acção, fazendo intervir, em substituição da parte falecida, as pessoas que, no momento em que o incidente é decidido, devam considerar-se herdeiras, tudo como resulta do disposto no nº2 do art.º354º do Código de Processo Civil.”

Na situação apreciada nesse acórdão foram requeridas, no mesmo processo incidental, sucessivas habilitações dos herdeiros legítimos, tendo todos eles (filhos, mãe, irmãos, sobrinhos, tia e primos) repudiado a herança do falecido, ou seja, eram conhecidos todos os sucessíveis familiares do falecido réu, mais se sabendo que todos eles tinham renunciado à herança; admitiu-se assim que o Estado Português era o herdeiro a habilitar.

Num caso próximo, apreciado no acórdão de 12-03-2019, no processo n.º 596/14.0TBPBL-D.C1 (disponível em www.dgsi.pt), citado pelo Ministério Público, a Relação de Coimbra enveredou por um caminho diferente, que nos parece preferível, como se alcança do respetivo sumário, com o seguinte teor:
1–A aquisição sucessória depende da aceitação da herança; mantendo-se jacente a herança que ainda não foi aceite (por algum sucessível) e que ainda não foi declarada vaga para o Estado.
2– Prevê a lei, no art. 1039.º e 1040.º do CPC e no art. 938.º e ss do CPC, providências que ponham termo a tal situação, indesejável, de jacência, ou seja, que conduzam ou à sua aceitação ou à sua vacância para o Estado.
3– É apenas pelo processo especial do art. 938.º do CPC – após o juiz o declarar nos termos do art. 939.º/1 do CPC – que o Estado passa a ser herdeiro e adquire a herança.
4– Assim, tendo falecido os executados e tendo os seus filhos e netos repudiado as heranças, não se pode, com fundamento em não serem conhecidos quaisquer outros sucessores/herdeiros, requerer a habilitação do Estado para prosseguir nos autos, no lugar dos executados/falecidos.
5– E, tendo sido requerida uma tal habilitação, não pode a mesma ser convertida no processo especial do art. 938.º e ss. do CPC, uma vez que a legitimidade activa para tal meio processual é exclusiva do Ministério Público.
6– Em tal hipótese – tendo falecido os executados, tendo os herdeiros legitimários repudiado as heranças, não sendo conhecidos do exequente quaisquer outros sucessores/herdeiros e não tendo o Ministério Público intentado o processo especial do art. 938.º do CPC – deve a execução continuar contras as heranças jacentes dos executados/falecidos, sendo, na habilitação a intentar, citados os interessados incertos para deduzir a sua habilitação, após o que, não aparecendo ninguém a habilitar-se, serão as heranças jacentes habilitadas, nomeando-se depois, no processo principal, oficiosamente, quem represente as heranças jacentes em tribunal.”

De salientar que este último acórdão versou sobre um caso em que o exequente, perante o óbito dos executados/mutuários e o facto de os herdeiros legitimários terem repudiado as heranças e não se conhecer a existência de quaisquer outros herdeiros, ter vindo requerer a habilitação do Estado. Nesse processo, cumprido o art. 3.º, n.º 3 do CPC, foi proferido despacho determinando que o incidente seguisse os termos do processo especial de liquidação da herança vaga em benefício do Estado, corrigindo-se a distribuição e a autuação, o que foi apreciado no recurso; a Relação de Coimbra considerou que, tendo os herdeiros legitimários repudiado as heranças (dispensando assim o uso do meio processual do art. 1039.º do CPC), não sendo conhecidos quaisquer outros sucessores/herdeiros e não tendo ainda o Ministério Público intentado o processo do art. 938.º do CPC, as heranças continuam jacentes, pelo que, tendo as heranças jacentes personalidade judiciária [cf. art. 12.º, al. a) do CPC)], a habilitação devia ser deduzida contra as próprias heranças jacentes dos executados/falecidos, sendo citados, no incidente de habilitação, os herdeiros/interessados incertos para poderem deduzir a sua habilitação, após o que, não aparecendo ninguém (interessados incertos) a habilitar-se, seriam habilitadas as heranças jacentes dos executados/falecidos; daí que se tenha decidido, nesse acórdão, revogar a decisão recorrida e determinar que, em sua substituição, fosse proferido despacho a convidar o aí requerente a aperfeiçoar, nos termos expostos, o requerimento inicial da habilitação.

Transpondo estas considerações para o presente processo, é fácil concluir que o convite ao aperfeiçoamento do requerimento inicial, nos termos em que foi formulado, levou a que fosse indevidamente requerida a habilitação do Estado Português, que não pode ser considerado sucessor da falecida, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 351.º do CPC.

Isto pese embora, ao contrário do que parece ser referido pelo Ministério Público, não se possa dizer que a herança da falecida teria de ser “aceite pelo Estado” mediante instauração de processo especial. Na verdade, quando o Estado é chamado à sucessão a título de herdeiro legítimo (e não testamentário), está desprovido da capacidade de aceitar ou repudiar a herança, preceituando o art 2154.º do CC, sob a epígrafe, “Desnecessidade de aceitação e impossibilidade de repúdio”, que: “A aquisição da herança pelo Estado, como sucessor legítimo, opera-se de direito, sem necessidade de aceitação, não podendo o Estado repudiá-la.

No caso dos autos, contrariamente ao que se afirma na sentença recorrida, não está provado, nem resulta da tramitação dos autos, que a Executada faleceu intestada e sem deixar, além da filha, outros familiares sucessíveis - isto é, ascendentes, irmãos e seus descendentes, outros colaterais até ao 4.º grau, muito menos que estes outros familiares também tivessem repudiado a herança – cf. artigos 2032.º, 2133.º e 2134.º do CC.

Ora, não se sabendo sequer se (não) existem outros sucessíveis, nem se, a existirem, repudiaram a herança da falecida Executada, não se pode considerar que o Estado Português deve ser chamado à sucessão como herdeiro legítimo (que tenha direito a suceder), sendo sintomático disso o facto de não ter sido intentado o processo especial de liquidação da herança vaga em benefício do Estado, não tendo, pois, nenhum cabimento a sua habilitação, nem sequer à luz do acórdão citado na decisão recorrida.

Claro que, a ser intentado um tal processo especial (sobre este processo, veja-se o artigo de João Alves, publicado na Revista do Ministério Público 145, Janeiro - Março de 2016, págs. 9-39), poderá aí acontecer a satisfação do passivo (incluindo da quantia cujo pagamento é peticionado na ação executiva principal). Mas isso não significa que não tenha de ser já encontrada uma solução para fazer cessar a suspensão da instância executiva por falecimento da Executada (cf. artigos 270.º e 276.º do CPC).

Na verdade, conforme expressamente previsto no art. 355.º do CPC, o caso dos autos resolve-se com (i) a habilitação dos sucessores incertos ou ii) a habilitação da herança jacente; a primeira hipótese, pressupondo a existência de outros sucessores da falecida, num cenário de incerteza a “investigar” nos moldes acima referidos; a segunda, de habilitação da herança jacente, que se trata, como é sabido, de um património autónomo com personalidade judiciária [cf. art. 12.º, al. a), do CPC e artigos 2046.º a 2049.º do CC], com a alegação de facto da inexistência de quaisquer sucessores que tenham aceitado (expressa ou tacitamente) a herança, que não foi declarada vaga para o Estado.
Assim, sem necessidade de mais considerações, impõe-se concluir que procedem as conclusões da alegação de recurso, o qual merece provimento.

Vencida a Requerente e Apelada Caixa Geral de Depósitos, S.A., é responsável pelo pagamento das custas processuais em ambas as instâncias (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).

***

IIIDECISÃO

Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar (parcialmente) a sentença recorrida, na parte em que declarou habilitado o Estado Português, representado pelo Ministério Público, para prosseguir a ação executiva em substituição da Executada falecida, que se substitui pela decisão de indeferimento do pedido de habilitação do Estado Português, representado pelo Ministério Público.
Mais se decide condenar a Exequente/Requerente/Apelada no pagamento das custas deste incidente de habilitação e do presente recurso.

D.N.



Lisboa, 18-11-2021



Laurinda Gemas
Arlindo Crua
António Moreira

(Acórdão assinado eletronicamente)