Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7362/20.1T8LSB.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
PARTILHA DE BENS DE INSOLVENTE
LEGITIMIDADE
MASSA INSOLVENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: A massa insolvente e/ou o administrador de insolvência carecem de legitimidade para intentar processo de inventário para partilha de herança em que o insolvente seja interessado, e em substituição deste (art.º 1085º do CPC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
A A, representada pelo respetivo administrador, intentou, no cartório notarial da Srª Drª HA, em Lisboa, processo de inventário com vista à partilha da herança de JG, indicando como cabeça de casal B.
Juntou certidão do assento de óbito do falecido que atesta que o mesmo faleceu em 19-02-2017, bem como cópia da sentença que decretou a insolvência do referido PG, e nomeou a Sr.ª Dr.ª MG para exercer as funções de administradora da insolvência datada de 01-02-2013.
Mais tarde juntou ainda cópia de Modelo 1 do Imposto de Selo (comprovativo de participação transmissões gratuitas), onde consta como autor da herança JG; como cabeça de casal e beneficiária B, e como beneficiário PG.
Subsequentemente, invocando o disposto no art.º 12º, nº 2, al. b) do DL 117/2019, de 13-09, veio a requerente pugnar pela remessa do processo para o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Cível de Lisboa.
Citada a cabeça de casal, a mesma deduziu oposição, invocando a exceção de ilegitimidade ativa.[1]
Notificada, a requerente respondeu à exceção, pugnando pela improcedência da mesma.[2]
Seguidamente foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:[3]
“Face ao exposto, conclui-se que a requerente Massa Insolvente de PG é parte ilegítima para requerer o inventário por óbito do pai do insolvente e, nesta medida, absolve-se a requerida, cabeça de casal, B da instância.”
Inconformada, a requerente interpôs o presente recurso de apelação, cuja motivação sintetizou nas seguintes conclusões:
1. A sentença proferida pelo Tribunal a quo decidiu no sentido de que não assiste legitimidade à Massa Insolvente para requerer a instauração do presente processo de inventário.
2. Para o efeito, convocou a argumentação expendida em um acórdão isolado e minoritário que também decidiu no sentido da ilegitimidade da Massa Insolvente para requerer inventário judicial.
3. Fundamentação esta que frustra não somente um entendimento jurisprudencial estabilizado,
4. Como um abundante acervo legislativo existente em sentido contrário.
5. Condições que importam um ónus bastante acrescido caso o Tribunal a quo pretendesse uma alteração substancial no modo interpretativo e nos resultados alcançados nas últimas décadas quanto à matéria.
6. A Massa Insolvente de PG instaurou a presente ação judicial porque viu frustrada as tentativas extrajudiciais de alienação do quinhão hereditário da Insolvente que se encontra apreendido no âmbito do Processo de Insolvência com o n.º 3192/12.2YXLSB, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Cível de Lisboa - Juiz 14.
7. A Massa Insolvente requereu o processo de inventário com o intuito de fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha de bens.
8. Património que diz diretamente respeito à Massa Insolvente.
9. Isto porquanto o processo de inventário versa sobre a partilha de direitos de natureza patrimonial.
10. Direitos que integram a Massa Insolvente, por força do que está estatuído no artigo 46.º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE): "todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo”.
11. E que devem ser administrados pelo Administrador Judicial por imposição legal, nos termos do CIRE e do Estatuto do Administrador Judicial,
12. Pois incumbe ao Administrador Judicial a "gestão ou liquidação da massa insolvente no âmbito do processo de insolvência", conforme artigo 2.º, n.º 1 da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro.
13. No exercício das suas funções é conferido poder ao Administrador Judicial para "desistir, confessar ou transigir, mediante concordância da comissão de credores, em qualquer processo judicial em que o insolvente, ou a massa insolvente, sejam partes", nos termos do artigo 55.º, n.º 8 do CIRE.
14. Além disto, o CIRE estabelece que o Administrador substitui o Insolvente em todas as ações pendentes (segundo o artigo 85.º, n.º 3) e assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência (de acordo com o artigo 81.º, n.º 3).
15. A qualidade de substituto processual do Administrador Judicial (em representação da Massa Insolvente) só é limitada em ações de natureza pessoal.
16. Esta limitação, para além de juridicamente devida, é óbvia segundo a sua própria natureza.
17. O Insolvente não deixa de poder exercer os seus direitos e assumir as suas responsabilidades enquanto ser-pessoa.
18. Por este motivo, em ações de investigação de paternidade e divórcio, por exemplo, o Insolvente não pode ser substituído pela Massa Insolvente.
19. O caso dos autos, no entanto, é completamente diferente. 
20. O inventário versa sobre direitos patrimoniais. 
21. Direitos que após a declaração de insolvência são privados ao devedor insolvente e passam a ser administrados pelo Administrador Judicial. 
22. Neste sentido, por todos, lê-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 21.09.2006, no âmbito do Proc. n.º 0634600, rel. Gonçalo Silvano , que o Administrador da Insolvência é a entidade diretamente interessada no âmbito do processo de inventário: “Quanto a esses bens a partilhar em inventário judicial (e no caso sabe-se já que o quinhão do falido está apreendido) o cabeça de casal tem uma posição de sujeito activo como herdeiro e daí que não possa deixar de ser entendido como um acto em que diz também respeito à massa insolvente, onde o cabeça de casal é o devedor (destaques nossos).
23. A questão da legitimidade da Massa Insolvente para requerer inventário judicial deve ser examinada necessariamente à luz do conceito de legitimidade processual.
24. Ora, segundo o artigo 30.º, n.º 1) do Código de Processo Civil o "autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar".
25. O n.º 2 do mesmo artigo aduz que o "interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação".
26. Por fim, o n.º 3 deste artigo prevê que na "falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor". 
27. Em suma, legitimidade é utilidade. “O interesse [direto] significa a utilidade para o autor” (Jorge Augusto PAIS DE AMARAL, Direito Processual Civil, 9.º ed., p. 102).
28. E não há dúvida de que não somente existe utilidade para a Massa Insolvente requerer a partilha do património autónomo do Insolvente,
29. Como, mais seriamente ainda, há uma concreta necessidade de partilha,
30. Haja vista a frustração da alienação extrajudicial do quinhão hereditário do Insolvente. 
31. Este direito patrimonial do Insolvente se encontra apreendido no âmbito do processo de insolvência e deve ser liquidado pela Administradora Judicial. 
32. Ou seja, além da legitimidade da Massa Insolvente, também se verifica o interesse processual desta, tendo em conta a sua necessidade de tutela jurídica.
33. Tendo em conta a necessidade de a Massa Insolvente alcançar a satisfação dos seus legítimos interesses, o cerceamento da possibilidade de agir violará o direito constitucional a uma tutela jurisdicional efetiva.
34. Salienta-se que a legitimidade de os Administradores de Insolvência requererem inventário é uma prática jurisprudencial estabilizada e legislativamente reconhecida. 
35. E a as alterações operadas pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro (Regime do Inventário Notarial - que também procedeu a alterações no Código de Processo Civil) não provocaram nenhuma alteração no âmbito dos titulares do direito de ação.
36. O "novo processo de inventário" não alterou nem suprimiu o conceito de interessado direto na partilha.
37. Conceito que já vigora há pelos menos três décadas.
38. Não existindo, portanto, razão legislativa ou interpretativa suficiente para que se opere agora uma mudança radical quanto à legitimidade da Massa Insolvente.
39. Aliás, mesmo perante a égide do novo regime, a doutrina mantém-se afirmando a legitimidade da Massa Insolvente sempre que o herdeiro seja declarado insolvente.
40. Neste sentido, Domingos Silva Carvalho Sá (Do Inventário - Descrever, Avaliar e Partir, 8.ª ed., 2021, p. 44).
41. Interpretação que vem sendo habitualmente aceite no plano jurisprudencial, conforme se vê, por todos, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15.04.2010, no âmbito do Proc. n.º 144/09.3TBPNF.P1, rel. Amaral Ferreira: “Estando os bens que integram o património a partilhar em processo de inventário incluídos na massa falida, tem o respectivo administrador legitimidade, enquanto representante do interessado falido, para requerer processo de inventário”.
42. Outrossim, a legitimidade da Massa Insolvente não é conferida apenas para intervir em inventários pendentes,
43. Tal resultado interpretativo não se coaduna com os fins dos processos de inventário e de insolvência e com a própria sistematização do ordenamento jurídico em vigor. 
44. Caso prospere, criará uma incongruente, injusta e contraditória regra de intervenção processual em que a Massa Insolvente não pode requerer inventário, mas poderá - se a partilha for requerida por outro (também) interessado - intervir na qualidade de requerida. 
45. Ora, se o quinhão hereditário ainda não está preenchido antes do início do inventário - e por isto a massa insolvente não tem legitimidade para requerer - como poderá a Massa Insolvente substituir o insolvente caso o processo já esteja em curso se antes da partilha o quinhão também ainda não está preenchido? 
46. Tal conclusão é claramente injustificável. Razão pela qual a dualidade de entendimento não deve prosperar.
47. Em suma, a legitimidade processual para requerer inventário é conferida, inter alia, aos "interessados diretos na partilha", conforme dispõe a alínea a) do n.º 1 do artigo 1085.º do Código de Processo Civil.
48. Foi o próprio legislador que estabeleceu, dentro de um só conceito, um leque mais alargado de sujeitos admitidos a requerer a partilha.
49. Para o efeito não atribuiu legitimidade apenas aos herdeiros, legatários, sucessores, credores, Ministério Público, cônjuge ou outro sujeito mais definido ou indefinido.
50. Quis, assumidamente, admitir e promover um conceito mais amplo, não redutor.
51. A Massa Insolvente tem legitimidade para que se proceda a inventário tanto por ser a natural substituta processual do Insolvente (herdeiro legitimário),
52. Como por representar os legítimos interesses e direitos dos credores do Insolvente no plano da liquidação dos seus ativos, buscando - conforme legalmente estabelecido - satisfazer os créditos que lhe são devidos em decorrência das dívidas assumidas pelo Insolvente.
53. Não existindo nenhuma alteração legislativa que importe a modificação da legitimidade, não se justifica a repentina alteração do seu entendimento.
54. E caso não assista legitimidade à Massa Insolvente, os processos de insolvência não poderão ser concluídos, pois os ativos nunca serão liquidados,
55. E todos os valores inerentes aos quinhões hereditários (direitos patrimoniais) dos insolventes jamais poderão ser objeto de liquidação judicial,
56. Beneficiando todos os insolventes que tenham valores a receber de herança,
57. E prejudicando os legítimos e legalmente reconhecidos interesses dos credores. 
58. Neste sentido, deve o artigo 1085.º do Código de Processo Civil ser interpretado no sentido de atribuir legitimidade à Administração Judicial, enquanto representante da Massa Insolvente – composta pelo conjunto dos bens e direitos apreensíveis ao devedor insolvente – para requerer abertura de inventário para fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à consequente partilha de bens.
59. Motivos pelos quais, a fim de evitar graves prejuízos e de modo a reestabelecer a Justiça, não poderá prosperar o entendimento vertido na Sentença, devendo esta ser revogada, dando-se prosseguimento aos termos normais do processo.
A apelada não apresentou contra-alegações.
Admitido o recurso, e recebido o processo neste Tribunal da Relação, foram colhidos os vistos.
 2. Questões a decidir
Conforme resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[4]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art.º 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, excetuadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[5].
No caso em apreço, nenhuma das partes impugnou o despacho recorrido, na parte em que julgou improcedente a exceção de falta de personalidade judiciária da autora.
Assim, as questões a apreciar e decidir reside em apreciar se se verifica a exceção de ilegitimidade ativa e, em caso afirmativo, quais as consequências da revogação da decisão apelada.
3. Fundamentação
3.1. Os factos
Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede.
3.2. Os factos e o Direito
3.2.1. Da exceção de ilegitimidade ativa
3.2.1.2. Considerações gerais
Como já se referiu, as questões a apreciar neste recurso, residem em aferir se se verifica a exceção de ilegitimidade ativa e, em caso afirmativo, quais as consequências da revogação da decisão apelada.
Vejamos então.
Embora sem definir cabalmente o conceito de legitimidade processual, o art.º 30º do CPC reporta-o ao interesse em demandar ou contradizer.
E, no nº 2 do mesmo preceito esclarece-se que o interesse em demandar se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação, enquanto que o interesse em contradizer se exprime pelo prejuízo que dela advenha.
Estas regras aplicam-se quer às situações de legitimidade singular, quer às situações de legitimidade plural, ou seja, aos casos de litisconsórcio e coligação (vd. art.ºs 32º a 36º do CPC).
Finalmente, e de acordo com o nº 3 do mesmo art.º 30º do CPC, o critério supletivo para aferição da titularidade do interesse relevante para o efeito da legitimidade é o da titularidade da relação material controvertida tal como o autor a configura.
Mantém-se por isso atual a definição doutrinária de legitimidade processual proposta por CASTRO MENDES[6]: “A legitimidade é uma posição de autor e réu, em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objecto do processo.”
Em sentido semelhante sustenta PAULO PIMENTA[7] que “a legitimidade consiste numa relação concreta da parte perante uma causa. Por isso a legitimidade não é uma qualidade pessoal, antes uma qualidade posicional da parte face à ação, ao litígio que aí se discute”.
Do mesmo modo, dizem RITA LOBO XAVIER, INÊS FOLHADELA, E GONÇALO ANDRADE E CASTRO[8] que “ser parte legítima é ter uma relação direta com o objeto do litígio”.
Finalmente, esclarecem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[9] que “o autor é parte legítima se, atenta a relação jurídica que invoca, surgir nela como sujeito suscetível de beneficiar diretamente do efeito jurídico pretendido; já o réu terá legitimidade passiva ser for diretamente prejudicado com a procedência da ação. A exigência de um “interesse” emergente da pronúncia judicial, reconduz-nos a um interesse direto e indica que é irrelevante para o efeito um mero interesse indireto, reflexo, ou mediato, ou ainda um interesse diletante ou de ordem moral ou académica”.
Não obstante, os mesmos autores advertem para a circunstância de que “casos há (…) em que é a própria lei que identifica o detentor da legitimidade ativa ou passiva, prevalecendo tal indicação sobre a eventual alegação do autor em sentido inverso (…)”.
Por outro lado, e como sublinham CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[10], haverá que distinguir os casos de legitimidade direta dos casos de legitimidade indireta.
Para estes autores, a legitimidade direta pressupõe não só “o interesse em demandar em contradizer, ou seja, o interesse da parte na obtenção de uma tutela favorável de uma decisão de procedência ou de improcedência”, mas também “o poder de produção dos efeitos que podem decorrer da decisão de procedência ou improcedência da ação.”
Já a legitimidade indireta ou substituição processual, “assenta sempre na lei ou num negócio jurídico.”
3.2.1.2. O caso dos autos
No caso em apreço, discute-se a legitimidade da massa insolvente, representada pela respetiva administradora, para intentar ação de inventário à qual concorre o insolvente, na sua qualidade de herdeiro do autor da herança.
No caso do processo de inventário, a legitimidade ativa é objeto de disposição especial, a saber o art.º 1085º do CPC, que tem o seguinte teor:
“Artigo 1085.º
Legitimidade
1 - Têm legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervirem, como partes principais, em todos os atos e termos do processo:
a) Os interessados diretos na partilha e o cônjuge meeiro ou, no caso da alínea b) do artigo 1082.º, os interessados na elaboração da relação dos bens;
b) O Ministério Público, quando a herança seja deferida a menores, maiores acompanhados ou ausentes em parte incerta.
2 - Podem intervir num processo de inventário pendente:
a) Quando haja herdeiros legitimários, os legatários e os donatários, nos atos, termos e diligências suscetíveis de influir no cálculo ou determinação da legítima e de implicar eventual redução das respetivas liberalidades;
b) Os credores da herança e os legatários, nas questões relativas à verificação e satisfação dos seus direitos;
c) O Ministério Público, para o exercício das competências que lhe estão atribuídas na lei.”
Como ressalta da leitura deste preceito, o nº 1 regula a legitimidade processual, ou seja, define quem pode ser parte principal no processo, enquanto que o nº 2 define quem pode intervir em determinados atos e/ou para determinados efeitos.
De acordo com o estipulado em tal norma, podem intervir como partes principais os herdeiros e o cônjuge meeiro.
Como bem sintetiza o ac. - RL 24-09-2020 (Nelson Borges Carneiro), p. 31/20.4T8MTA.L1-2, “A figura jurídica do interessado direto na partilha pressupõe que o legislador admitiu que outros sujeitos, que não apenas os herdeiros do de cujus possam ter legitimidade para requerer e intervir no inventário como parte principal. Os interessados diretos na partilha serão, deste modo, os sujeitos que, sendo ou não herdeiros do de cujus, veem a sua esfera jurídica ser atingida, de forma imediata e necessária, pelo modo como se organiza e concretiza a partilha do acervo hereditário […].
A legitimidade para requerer processo de inventário sucessório e para nele intervir como parte principal é atribuída a quem tenha a qualidade de interessado direto, isto é, os herdeiros que são diretamente beneficiados pela partilha (art.º 2101º, nº 1, do CC) […].
O critério legal de distinção entre herdeiro e legatário assenta na determinação (legatário) ou indeterminação (herdeiro) […].
O herdeiro é a pessoa que é chamada a ocupar a posição jurídica do de cujus no que respeita ao conjunto das suas relações jurídicas […].
De maneira que subsistirá ilegitimidade, conducente à absolvição da instância, sempre que o inventário venha a ser requerido por quem não seja interessado na respetiva partilha […].”
Aqui chegados, cumpre apreciar se em caso de insolvência de um dos interessados diretos na partilha, a legitimidade ativa deve considerar-se atribuída ao insolvente, à massa insolvente, ou ao/à administrador/a da insolvência, por si mesmos ou em representação do interessado insolvente.
Na dilucidação de tal questão, seguindo largamente o entendimento manifestado por TEIXEIRA DE SOUSA, LOPES DO REGO, ABRANTES GERALDES, e PINHEIRO TORRES[11] referiu o já citado acórdão:
«A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo – art.º 46º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Em termos de âmbito, esta abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que este adquira na pendência do processo. Em termos de função, esta destina-se primordialmente à satisfação das dívidas da própria massa insolvente e apenas depois dos créditos sobre a insolvência. Esta destinação da massa insolvente ao pagamento das suas dívidas e dos créditos sobre a insolvência implica a sua qualificação como um património de afetação […].
Em relação aos bens e direitos que compõem a massa insolvente, estes correspondem em princípio à totalidade do património do devedor à data da declaração de insolvência […].
(…)
O que está integrado na massa insolvente é o quinhão hereditário que a insolvente possui na herança do falecido, e não a sua qualidade sucessória em relação à mesma.
Interessada direta na partilha da herança do falecido seria a insolvente, por ser herdeira, e não a massa insolvente, pois, além de não ser sucessora do de cujus, não é diretamente beneficiada pela partilha (não é um interessado direto).
Ora, como a massa insolvente de ZC… não é interessada direta na partilha por óbito de AA…, pai da insolvente, não pode requerer a abertura do respetivo processo de inventário, pois não tem legitimidade para ser parte principal.
(…)
E, a interessada direta insolvente terá legitimidade processual para requerer a abertura do processo de inventário da herança por óbito de AA…, seu pai?
A declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência – art.º 81º, nº 1, do CIRE.
O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência – art.º 81º, nº 4, do CIRE.
Pode suceder que um dos interessados diretos tenha sido declarado insolvente. Nesta situação o interessado direto não tem legitimidade para requerer ou ser requerido no inventário, dado que o insolvente perde os poderes de administração e de disposição do quinhão hereditário e são inoponíveis à massa insolvente quaisquer atos praticados pelo insolvente sobre esse quinhão […].
O devedor fica privado dos poderes de administração e disposição. Os poderes de que o devedor fica privado são atribuídos ao administrador da insolvência […].
Disto decorre que o insolvente não tem legitimidade para ser parte no processo de inventário […].
Temos, pois, que a insolvente ao perder os poderes de administração e de disposição do quinhão hereditário e sendo inoponíveis à massa insolvente quaisquer atos praticados pela insolvente sobre esse quinhão, não tem, por tal facto, legitimidade para ser parte no processo de inventário.
(…).
Como o insolvente não tem legitimidade para ser parte no processo de inventário, o administrador é o substituto processual do interessado insolvente (art.º 81º, nº 4, do CIRE). Este preceito refere-se, de modo equívoco, a uma função de representação do insolvente: a verdade é que o administrador atua em juízo como parte, e não como representante do insolvente (que seria então a parte interessada). Isto significa que o administrador da insolvência vai atuar no processo de inventário como substituto processual do interessado insolvente […].
Pode perguntar-se se a legitimidade que é reconhecida ao administrador da insolvência, na qualidade de substituto processual do insolvente, lhe permite requerer o inventário para partilha da universalidade comum […].
A resposta tem que ser negativa, dado que os direitos da massa insolvente recaem sobre o quinhão hereditário, e não sobre o preenchimento desse quinhão com determinados bens […].
Antes da partilha existe apenas comunhão, pois a herança indivisa constitui uma universalidade de direito, com conteúdo próprio, sendo os herdeiros apenas titulares de um direito indivisível, enquanto não se fizer a partilha […].
Enquanto a herança não estiver partilhada, nenhum dos herdeiros tem direitos sobre bens certos e determinados, nem um direito real sobre os bens em concreto, nem sequer sobre uma quota parte em cada um deles. Só depois da realização da partilha é que o herdeiro poderá ficar a ser proprietário ou comproprietário de determinado bem da herança […].
Disto decorre que o administrador da insolvência não tem legitimidade para requerer o inventário da herança, mas tem legitimidade para neste processo ser requerido em substituição do interessado direto insolvente […].
Temos, pois, que recaindo os direitos da massa insolvente sobre o quinhão hereditário, e não sobre o preenchimento desse quinhão com determinados bens, seja a apelante Massa Insolvente, seja o administrador dessa massa insolvente, não têm legitimidade para requerer o inventário da herança “para apurar quais os bens que especificamente cabem à insolvente”.»
O mesmo entendimento tem sido seguido em vários outros arestos, nomeadamente os seguintes:
- RC 09-11-2021 (Freitas Neto), p. 94/21.5T8OHP.C1;
- RG 24-03-2022 (Raquel Baptista Tavares), p. 215/20.5T8MNC.G1;
- RL 28-04-2022 (António Moreira), p. 5879/20.7T8ALM.L1-2;
- RC 10-05-2022 (Pires Robalo), p. 775/22.6T8LRA.C1;
- RL 28-05-2022 (António Moreira), p. 5879/20.7T8ALM.L1-2
A esta corrente jurisprudencial se opõe uma outra, que conclui em sentido inverso, considerando a massa insolvente de interessado direito na partilha tem legitimidade para intentar processo de inventário com vista à partilha dos bens do de cuius.
Neste sentido se pronunciaram os seguintes acórdãos:
- RP 21-09-2006 (Gonçalo Silvano), p. 0634600;
- RP 15-04-2010 (Amaral Ferreira), p. 144/09.3TBPNF.P1;
- RE 07-04-2022 (Rui Moura), p. 2374/21.0T8ENT.E1;
- RC 12-07-2022 (Paulo Correia), p. 40/21.6T8TBV.C1.
No campo da doutrina, DOMINGOS CARVALHO DE SÁ[12] parece admitir a legitimidade ativa do administrador da insolvência de interessado direto na partilha.[13]
Por particularmente ilustrativo dos argumentos em que assenta esta tese, permitimo-nos citar o último aresto referenciado:
“O Código Civil consagra no art.º  2101.º, n.º 1 o direito potestativo de qualquer herdeiro a poder requerer a partilha dos bens, e encontrando-se o próprio, a partir do momento da declaração de insolvência, impedido de dispor do quinhão hereditário integrante da massa insolvente, esse direito apenas pode ser exercido através do seu representante, que é precisamente o administrador da insolvência.
Prova demais o argumento usado para excluir a legitimidade em agir assente no pressuposto de que os direitos da massa insolvente recaem sobre o quinhão hereditário e não sobre o preenchimento desse quinhão com determinados bens.
É que, sendo certo que tais direitos recaem sobre o quinhão hereditário, isso ocorre relativamente a todos os herdeiros e o administrador da herança não sendo herdeiro é o seu representante.
A circunstância de a apreensão incidir sobre o quinhão hereditário não exclui nem a possibilidade nem o interesse efetivo na concretização desse quinhão, não tendo o legislador negado ao administrador a possibilidade de, para benefício da massa, atuar em representação do devedor para esse efeito com conteúdo exclusivamente patrimonial.
Vedar ao insolvente o direito de requerer a partilha (o que a lei faz) e, ao mesmo tempo, cobrir sobre o manto da ilegitimidade ativa a ação do administrador nesse sentido, constituiria uma insuportável denegação de justiça, deixando o tempo da partilha exclusivamente na vontade dos demais interessados, com consequências prejudiciais óbvias para os credores e manietando o legítimo exercício dos poderes adjetivos e substantivos conferidos ao administrador da massa insolvente.
Depois, não cabe numa lógica de justiça efetiva o exercício teórico que concede ao administrador da insolvência a possibilidade de, em representação do insolvente, intervir, como parte principal, num processo de inventário pendente, e negar-lhe a possibilidade de ser ele a tomar a iniciativa processual (!).
Acrescenta-se ainda na tese que sustenta a ilegitimidade ativa do administrador para requerer o inventário que “não é essencial à satisfação dos credores da insolvência a concretização do quinhão hereditário do herdeiro insolvente em bens determinados através da partilha” e de serem diferentes os interesses da massa e os do herdeiro (cfr. citado acórdão do TRC de 09.11.2021).
Ora, com a devida vénia, tendo o processo de insolvência como finalidade a satisfação dos credores (feita através da liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores - art.º 1.º, n.º 1 do CIRE), a concretização dos bens que integram a quota hereditária mostra-se, em geral, essencial para a satisfação dos credores, não competindo ao tribunal do inventário sindicar essa essencialidade, sendo que os únicos interesses que a lei quis proteger foram os credores e não já os pessoais do devedor/herdeiro.
Aferir a medida da quota da herança e a concretização dessa quota, só alcançáveis através do processo de inventário, traduzem-se, em si mesmos, em mecanismos próprios de defesa do património da massa e, consequentemente, deverem considerar-se dentro das competências atribuídas ao administrador em representação do insolvente.
Do exposto se conclui que nem a letra da lei nem a sua ratio normativa negam legitimidade ao administrador da insolvência para, em representação do herdeiro, requerer inventário, antes a mesma resulta inequívoca face ao estatuído nos art.ºs 81.º, n.º 4 do CIRE e 1085.º, n.º 1, a) do Código Civil, o que determina a revogação da decisão recorrida.”
Deste excurso resulta desde logo que a afirmação expressa pela apelante no sentido de que a decisão apelada se fundou num “acórdão isolado e minoritário”[14], carece em absoluto de fundamento, na medida em que o que se verifica é uma clara cisão na jurisprudência, sendo certo que a sentença apelada até seguiu a corrente jurisprudencial maioritária.
Com efeito, como se expôs, a jurisprudência encontra-se dividida, mas a maioria dos acórdãos proferidos na vigência da atual lei falimentar e do Código de Processual Civil em vigor pende claramente para a solução consagrada na sentença apelada.
Não obstante, é inequívoco que a questão é controversa, e que para a mesma têm sido propostas duas soluções distintas, com resultados opostos.
Nesta conformidade, expostas as duas teses em confronto, cumpre optar por uma delas.
E fazendo-o, aderimos resolutamente à tese maioritária, por nos convencerem plenamente os argumentos que a sustentam.
Concluímos, pois, como fez o Tribunal a quo, que a requerente é parte ilegítima.
Sendo a ilegitimidade singular uma exceção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, que dá lugar à absolvição do réu ou requerido da instância (art.ºs 278º, nº 1l., al. d); 576º, nºs 1 e 2, 577º, al. e); e 578º, todos do CPC), bem andou o Tribunal a quo ao decidir nesse mesmo sentido.
Termos em que se conclui pela total improcedência da presente apelação.
3.2.2. Das custas
Nos termos do disposto no art.º 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
A interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático da interpretação.
Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito.
No sentido amplo, as custas tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. art.ºs 529º, nº1, do CPC e 3º, nº1, do RCP).
sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (art.ºs 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP).
O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. art.ºs 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ.
Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os art.ºs 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (art.ºs 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (art.ºs 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
Tecidas estas considerações, resta aplicar o preceito supracitado ao caso em apreço.
E fazendo-o diremos que tendo a apelante decaído totalmente, deverá suportar as custas inerentes ao presente recurso, sendo certo que tendo a taxa de justiça sido oportunamente paga e não havendo encargos, estariam apenas em causa custas de parte que, no caso vertente, também não se descortinam, na medida em que a apelada não contra-alegou.
Donde se conclui que, liquidada a taxa de justiça, relativamente ao presente recurso não são devidas mais custas.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação improcedente, confirmando integralmente a sentença apelada.
Não são devidas mais custas.

Lisboa, 22 de novembro de 2022
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa
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[1] Refª 30689953/40309646, de 29-10-2021.
[2] Refª 30787244/40413107, de 10-11-2021.
[3] Refª 411804087, de 25-01-2022.
[4] Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117.
[5] Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 119.
[6] “Direito processual civil”, II vol., AAFDL, 1987, p. 187.
[7] “Processo Civil declarativo”, 2ª ed., Almedina, 2018, p. 75.
[8] “Elementos de direito processual civil – Teoria geral – Princípios - Pressupostos”, Universidade Católica Portuguesa Editora – Porto, 2014, p. 164
[9] “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, Almedina, 2018, p. 59.
[10] “Manual de Processo Civil”, Vol. I, AAFDL, 2022, pp. 340-345.
[11] ”O novo regime do processo de inventário e outras alterações na legislação processual civil”, Almedina, 2020.
[12] “Do inventário: Descrever, avaliar, partir”, 8ª ed., Almedina, 2020, p. 44.
[13] Retiramos esta conclusão da leitura do seguinte trecho:
“A declaração de insolvência priva o insolvente da administração e do poder de disposição dos seus bens, presentes ou futuros, sendo que a necessidade da sua intervenção na partilha de uma herança pode originar a necessidade de inventário requerido pelo Ministério Público, em caso de inação por parte do administrador da insolvência.”
[14] Conclusões 2. a 5.