Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1690/12.7TBMTA.L1-1
Relator: PEDRO BRIGHTON
Descritores: COMPROPRIEDADE
USO DA COISA
PRIVAÇÃO DO USO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I-A compropriedade tem a natureza de um direito único com pluralidade de titulares, qualitativamente idêntico, mesmo quando quantitativamente distinto.
II-Na ausência de qualquer acordo, qualquer consorte pode utilizar a coisa, dentro dos fins a que se destina e sem privar os demais dessa utilização.
III-Tal utilização pode ser exercida quanto à totalidade da coisa, independentemente da dimensão que a quota traduz.
IV-A privação da utilização pelos demais consortes tem de ser apreciada em concreto e não em abstracto pela mera consideração da natureza ou fins a que a coisa se destina.
V-Cabe ao consorte não utilizador alegar e provar que o uso do bem pelo outro consorte o privou do uso concreto da coisa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA.


IRelatório:


1-G. de Jesus F. e Anabela Martins D. F. instauraram a presente acção declarativa de condenação, com a forma de processo sumário, contra T. Cristina D. M., pedindo que a R. seja condenada a pagar-lhes a quantia de 11.025 €, acrescida de juros vencidos e vincendos, contados desde a citação até integral pagamento, a título de indemnização devida pela privação do uso do imóvel sito na Avenida da..., lote ... (nº 60), ...º frente, BB..., acrescidos dos respectivos juros desde a data da citação até integral e efectivo pagamento, a que acrescem os danos causados pela privação do uso do imóvel, a quantificar em execução de sentença.

2-Regularmente citada, veio a R. contestar, defendendo-se por impugnação, negando os factos alegados pelos A.A. e concluindo pela improcedência do pedido.

3-Os A.A. apresentaram articulado de resposta.

4-Após os articulados teve lugar uma audiência preliminar onde foi elaborado o despacho saneador, e se seleccionou a matéria de facto considerada assente e a controvertida.

5-Seguiram os autos para julgamento, tendo-se procedido ao mesmo com observância das formalidades legais, tendo sido proferido despacho com a indicação da matéria de facto Provada.

6-Posteriormente, foi proferida Sentença que julgou a acção improcedente, constando da sua parcela decisória :
“Pelo exposto, julgo a acção improcedente por não provada e, em consequência, absolvo a Ré T. Cristina D. M. do pedido formulado pelos Autores G. de Jesus F. e Anabela Martins D. F..
Custas (solidariamente) pelos Autores, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
Registe e notifique”.

7-Desta decisão interpuseram os A.A. recurso de apelação, para tanto apresentando a sua alegação com as seguintes conclusões :

“1.Da fundamentação supra transcrita da douta sentença da MMª juiz do Tribunal Ad quo, não foi no entendimento dos Recorrentes correctamente valorada a prova produzida em audiência de julgamento e que entra claramente em contradição com a douta sentença proferida.
2.Todas as testemunhas prestaram as suas declarações de forma isenta e desprendida demonstrando de forma clara e inequívoca que a Ré não só não procedeu à entrega das chaves do imóvel aos autores, se recusa até à presente data a fazê-lo, privando-os de entrar num imóvel que é seu, e sem que a R. sequer se preocupe e proceder a qualquer compensação pelo facto de estar desde 2007 a ocupar um imóvel que embora também seja seu, bem sabe que é igualmente dos AA. e que estas apesar de pagarem todas as despesas e contribuições relativas ao imóvel nada têm usufruído do mesmo.
3.Recusando-se a adquirir o imóvel, ou pagar qualquer compensação aos AA. pelo facto destes se verem privados pelo uso do mesmo.
4.Quando os AA. têm exactamente os mesmos direitos que a R. Em proceder à sua utilização, mas que por imposição da R. se vêm privados da mesma.
5.Situação que se arrasta desde a morte do seu filho, comproprietário do imóvel, ocorrida em 2007.
6.Ficando, desta forma, os AA. privados da sua propriedade.
7.Sem serem, sequer, compensados por tal privação, uma vez que a R. Se tem recusado a oferecer qualquer compensação aos AA. pela ocupação da sua parte do imóvel.
8.Razão pela qual intentaram acção de divisão de coisa comum, junto do Tribunal Judicial da Comarca da Moita, em 06.07.2010, conforme ficou provado em audiência de julgamento.
9.A acção encontra-se, presentemente, na fase da venda, por negociação particular, do imóvel aqui em causa.
10.Sucede que ainda não foi possível proceder à venda do mesmo, não só devido à crise existente no sector imobiliário, como ao facto de a R. continuar a ocupar o imóvel, que dificulta a transacção do mesmo.
11.A R. com a sua conduta viola reiteradamente o artigo 1305º do Código Civil: “O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”.
12.Com a sua conduta, a R. privou os AA. do seu direito de usar, fruir e dispor da sua parte do imóvel, ou seja, privou os AA. do seu direito de propriedade sobre parte do imóvel, nos termos do aludido artigo.
13.Situação absolutamente incomportável para os AA. que têm já de viver com a dor de terem perdido o único filho capaz que tinham, uma vez que têm uma outra filha, mas que é inimputável, encontrando-se inclusivamente já interditada e nessa medida a cargo dos AA.
14.Encontrando-se os AA. a passar por uma situação de grave crise económica, estando, inclusivamente, os dois AA. numa situação de desemprego e sem fontes de rendimento.
15.Assim, a R., com a sua conduta, violou o direito de propriedade dos AA. sobre parte do imóvel, nos termos do artigo 1305º, n.º 1 do Código Civil, supra referido.

16.Pelo que, desta forma, é responsável pelos prejuízos causados aos AA., pela privação do uso do imóvel, nos termos do disposto no artigo 483º do Código Civil. Da análise deste artigo resulta que a responsabilização nos seus termos depende da verificação cumulativa de cinco pressupostos:
a) o facto;
b) a ilicitude;
c) a culpa;
d) o dano;
e) o nexo de causalidade entre facto e danos.

17.Todos estes pressupostos encontram-se preenchidos, como se demonstrará infra.
18.O facto aqui em causa é a privação, pela R., do uso, fruição e disposição, por parte dos AA., da sua parte do imóvel.
19.O facto é ilícito, na modalidade de violação de direito de outrem, neste caso, o direito, absoluto, de propriedade dos AA. sobre parte do imóvel em causa (art. 1305º do Código Civil).
20.A R. agiu com culpa, entendida como “(...) o juízo de censura que recai sobre aquele cuja actuação é reprovada pelo Direito. É a noção de culpa em sentido amplo ou lato sensu.” (in Menezes Cordeiro, A., Tratado de Direito Civil Português II – Direito das Obrigações, Tomo III, Lisboa, Almedina, 2010, p. 471), uma vez que:
21.A R. ocupa o imóvel de forma gratuita, recusando-se a sair ou a adquirir a parte que pertence aos AA.
22.Não podendo os AA. sequer entrar no imóvel ou ter uma chave do mesmo, por imposição da R.
23.Sabendo a R. que os AA. são comproprietários do mesmo.
24.Acresce que o facto de a R. ocupar o imóvel tem dificultado a transacção do mesmo, no âmbito do processo de divisão de coisa comum, proposto pelos AA. contra a R., nos termos supra expostos.
25.Ou seja, a R. sabia que os AA. também são proprietários do prédio, pelo que poderia e deveria ter agido de outra forma.
26.A R. agiu livremente, sabendo que a sua conduta violava o direito de propriedade dos AA. sobre o imóvel.
27.Tendo a R. agido com dolo directo, ou seja, culposamente.
28.E, desta forma, causando danos patrimoniais para os AA., comproprietários do imóvel, por serem susceptíveis de avaliação pecuniária.
29.Danos patrimoniais estes na modalidade de lucros cessantes, que “abrange os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra: Coimbra Editora Limitada, 1987, p. 475).
30.Uma vez que, desde a ocupação, pela R., do imóvel impediu os AA. De disporem do mesmo, e auferirem, assim, os seus frutos, nomeadamente através do arrendamento do imóvel.
31.Sendo que o valor de mercado do imóvel, para efeitos de arrendamento, se cifra, actualmente, nos 290,00€ (duzentos e noventa euros), conforme resultou provado na matéria de facto assente pelo Tribunal Ad Quo.
32.Os AA. e a R., conforme amplamente referido, são comproprietários do referido imóvel.
33.Pelo que, o valor a contabilizar relativo a rendas não auferidas pelos mesmos deve ser dividido, na proporção das suas quotas.
34.Poderia igualmente o MMº Juiz do Tribunal Ad Quo fixar segundo juízos de equidade um valor mensal a pagar por parte da R. ao AA. pelo facto de estar na cómoda situação de habitar num imóvel que sabe que não é só seu e que tem privado os AA. de o utilizar, com os prejuízos daí decorrentes para estes.
35.Danos causados que deveriam ser contabilizados desde a data do falecimento do filho dos AA., Jorge Filipe D. F., no dia 12.07.2007 e que não o foram continuando a R. na posição cómoda, repita-se de habitar um imóvel que não é só seu, sem que nada faça para resolver a situação em crise designadamente que compre a parte dos AA., ou saia do imóvel a fim de possibilitar a sua venda ou o seu arrendamento, ou em última análise, compensar de alguma forma, por pouco que seja os AA. por esta situação.
36.Situação insustentável, que com a sentença proferida apenas fará com que perdure, até que seja possível que o imóvel seja vendido.
37.E que conforme resultou igualmente provado, não foi possível até à presente vender devido à grave crise que o mercado mobiliário atravessa.
38.Por fim, encontra-se, também, preenchido o pressuposto do nexo de causalidade entre o facto e o dano, nos termos do artigo 563º do Código Civil, onde é regulado.
39.Ora, o facto de a R. ter privado os AA. do uso, fruição e disposição, por parte dos AA., da sua parte do imóvel, fazia prever, com elevado grau de probabilidade, e de acordo com a experiência comum, a existência de danos para os AA., verificando-se, desta forma, o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
40.Pelo que a R. é responsável pelos danos causados aos AA. por violação do seu direito de propriedade sobre o imóvel, conforme supra exposto, nos termos do artigo 483º, nº 1 do Código Civil.
41.Assim, e conforme alegado na petição inicial a R. deveria ser condenada a pagar aos AA. metade do valor admitido como sendo o valor devido a título de renda pela imóvel, que segundo o Sr. Perito seria de 290,00 €, ou seja de 145,00 € desde Julho de 2007.
42.Pelo que deveria a R. ser condenada a indemnizar os AA. pelos danos patrimoniais a estes causados, pela privação do uso do imóvel, danos esses que ascendem, na presente data, a 12.470,00€ (doze mil quatrocentos e setenta euros).
43.No entanto, a R. foi absolvida, in tottum, do peticionado, motivo pelo qual os AA. apresentam o presente recurso.
44.Neste sentido, argumentou o Acórdão do STJ de 05.07.2007 de 29.11.2005, de 28.09.2006, de 05.07.2007 (07B1849), de 04.10.2007 (07B3012), de 24.01.2008, de 12.03.2009 e de 08.10.2009, da Rel. do Porto de 07.07.2007, de 04.11.2008, de 29.01.2009, de 19.03.2009, de 20.04.2009, de 25.06.2009, de 13.10.2009 (3570/05), de 13.10.2009 (6020/07) e da Rel. de Lisboa de 27.11.2008, de 12.03.2009 e de 28.05.2009.
45.Igualmente no mesmo sentido seguiu o Tribunal da Relação de Guimarães que Ac T R G, proc. n.º 8860/06.5TBBRG.G1 , de 11 de Novembro de 2009. Que conclui inclusivamente que: o proprietário de um veículo tem o direito de usar, fruir e dispor da coisa, pelo que a privação desses direitos constitui um dano que tem de ser reparado , já que, durante um determinado período de tempo, o proprietário do veículo fica impossibilitado de retirar deste os seus benefícios e utilidades.
Assim, neste circunstancialismo, o dano consiste exactamente na perda das utilidades que o veículo proporcionava ao seu proprietário. Para este tribunal, a quantificação do dano compreende o lapso de tempo entre a data em que se deu o acidente – data em que o proprietário ficou privado do uso da coisa - e a data em que este voltou a usufruir das utilidades proporcionadas por um novo veículo – data da reparação do mesmo ou da aquisição de novo veículo por parte do lesado. A equidade é o critério que preside à valoração dos prejuízos, isto é, uma ponderação de razoabilidade com recurso ao senso comum dos homens e justa medida das coisas.
46.Decisão que poderia ter sido julgada no limite segundo Juízos de Equidade pelo MMº Juiz do Tribunal Ad Quo, mas que não o foi, situação que motivou igualmente a interposição do presente recurso.
Termos em que, no mui douto suprimento de V. Exªs, Venerando Desembargadores, deve o presente recurso ter total provimento, revogando-se a mui douta sentença recorrida e substituída por outra que condene a R. ao pagamento de uma indemnização pela privação de uso do imóvel, compropriedade dos AA., com as legais consequências para a R.
Deste modo farão V. Exª a costumada Justiça”.
8-Não foram apresentadas contra-alegações.
*  *  *

IIFundamentação:
a) A matéria de facto dada como provada em primeira instância foi a seguinte :

1-Em 13/7/2005 foi celebrado, por escritura pública, um contrato de compra e venda do prédio urbano sito na Avenida da Liberdade, lote 23 (nº 60), 1º frente, 2835-023, Baixa da Banheira, freguesia da Baixa da Banheira e concelho da Moita, descrito na Conservatória do Registo Predial da Moita sob o número 00310/090186 e inscrito na matriz predial urbana sob o nº 02566, fracção “F”, entre Jorge Filipe D. F. e a R. (adquirentes) e Lino Nunes Lourenço.
2-Para tal, os adquirentes contraíram um empréstimo hipotecário de 62.500 € junto da Caixa Geral de Depósitos, por escritura de 13/7/2005.
3-A R. e Jorge Filipe D. F. tornaram-se proprietários do referido prédio, em regime de compropriedade.
4-Os A.A., pais de Jorge Filipe D. F., casados no regime de comunhão de adquiridos, intervieram no processo como fiadores, garantindo a hipoteca.
5-Em 12/7/2007, Jorge Filipe D. F. faleceu, em Fuente Alamo de Murcia, Espanha, na sequência de um acidente de trabalho.
6-Uma vez que não fez testamento ou qualquer outra disposição de sua vontade, sucederam-lhe, como herdeiros, os seus pais, conforme escritura de habilitação de herdeiros exarada por Ardechir Cae-Cobade Rostom, Notário, no dia 20/9/2007, no Primeiro Cartório Notarial de Competência Especializada de Lisboa, tendo ficado como cabeça de casal da herança o A..
7-Os A.A. herdaram a quota ideal de ½ relativamente ao prédio em causa, por óbito do comproprietário, o seu filho, Jorge Filipe D. F..
8-O falecido Jorge Filipe D. F. vivia em união de facto com a R..
9-Sendo a R. proprietária de ½ do mesmo prédio.
10-Em virtude do falecimento do filho dos A.A., Jorge Filipe D. F., o empréstimo contraído para a aquisição do imóvel ficou totalmente liquidado.
11-A R. não propôs ao A.A. a aquisição da sua parte no imóvel descrito em 1..
12-Os A.A. intentaram acção de divisão de coisa comum junto do Tribunal Judicial da Moita, em 6/7/2010.
13-Os A.A., aquando da acção de divisão de coisa comum enunciada em 12., não licitaram o imóvel, tendo ficado acordado entre A.A. e R. proceder-se à venda do mesmo por negociação particular.
14-A acção encontra-se na fase da venda, por negociação particular, do imóvel referido em 1..
15-Não tendo sido possível proceder ainda à venda do mesmo, devido à crise existente no sector imobiliário.
16-A única proposta que se verificou para compra do mesmo não foi aceite pelos A.A. e pela R..
17-A R. não deixa os A.A. entrarem no imóvel referido em 1..
18-Recusando-se a dar-lhes uma chave.
19-O valor de mercado do imóvel enunciado em 1., para efeitos de arrendamento, cifra-se nos 290 € mensais.

b)Como resulta do disposto nos artºs. 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.

Assim, perante as conclusões da alegação dos recorrentes as questões em recurso são :
-Saber se existem motivos para alterar a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal de 1ª instância.
-Saber se existem razões para a acção proceder.

c)Vejamos, então, se existem razões para alterar a matéria de facto considerada como provada pelo Tribunal “a quo”.

De acordo com o disposto no artº 640º nº 1 do Código de Processo Civil, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente, sob pena de rejeição do recurso, especificar :
-Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
-Quais os concretos meios de probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
Há que realçar que as alterações introduzidas no Código de Processo Civil com o Decreto-Lei nº 39/95, de 15/2, com o aditamento do artº 690º-A (depois artº 685º-B e actualmente artº 640º) quiseram garantir no sistema processual civil português, um duplo grau de jurisdição.
Procedemos à audição da gravação da prova produzida em audiência de julgamento, bem como à análise dos documentos juntos aos autos, pelo que passaremos a analisar as questões suscitadas.

d)Ora, em primeiro lugar, vêm os apelantes referir, depois de transcreverem uma parte do depoimento de parte da recorrida, que “do depoimento de parte da Ré resultou provado de forma clara e inequívoca que esta não deixou os Autores entrarem no imóvel dos quais também são proprietários, negando-lhes inclusivamente a entrega das chaves, tal como se encontra transcrito na respectiva acta de julgamento”.
Esta alegação é, a nosso ver, ininteligível, pois o Tribunal “a quo” deu como provado que a apelada não deixa os A.A. entrarem no imóvel descrito nos autos (Facto 17., supra), recusando-se a dar-lhes uma chave (Facto 18., supra).
Assim, os factos que os apelantes pretendem que sejam dados como provados… foram-no efectivamente.
Por tal motivo, não se vê que lhes assista razão nesta parcela do recurso.

e)Em segundo lugar, os apelantes fazem a transcrição de partes dos depoimentos das testemunhas Paula C., Ana P.F. e Rui C..., para concluírem que “todas as testemunhas prestaram as suas declarações de forma isenta e desprendida demonstrando de forma clara e inequívoca que a Ré não só não procedeu à entrega das chaves do imóvel aos autores, se recusa até à presente data a fazê-lo, privando-os de entrar num imóvel que é seu (…)”.
Ora, mais uma vez não se vislumbra o alcance desta alegação, pois o Tribunal deu como provados os factos referidos e que correspondiam aos artigos 2º e 3º da Base Instrutória (vertidos nos Factos 17. e 18., supra).
Assim sendo, não se vê que a utilidade do recurso nesta parte, pelo que não haverá que o julgar procedente.

f)Deste modo, não vislumbramos motivos para alterar a decisão sobre a matéria de facto, pelo que, nesta parte, improcede o recurso.

g)É, pois, com base na factualidade fixada pelo Tribunal “a quo” que importa doravante trabalhar no âmbito da análise das restantes questões trazidas em sede de recurso.

h)Vejamos, então, se existem motivos para julgar a acção procedente.
Estipula o artº 483º do Código Civil que “aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Da leitura deste preceito verifica-se a existência de vários pressupostos que condicionam a responsabilidade civil por factos ilícitos (ou extra-contratual).
É necessário, desde logo, que haja um facto voluntário do agente (não um mero facto natural causador de danos), pois só o homem, como destinatário dos comandos emanados da lei, é capaz de violar direitos alheios ou de agir contra disposições legais.
Este facto consiste em regra numa acção, ou seja, num facto positivo – apropriação ou destruição de coisa alheia – que importa a violação de um dever geral de abstenção, do dever de não ingerência na esfera de acção do titular do direito absoluto ;  mas pode também traduzir-se num facto negativo, numa abstenção, numa omissão, entendendo-se que a omissão é causa do dano, sempre que haja o dever jurídico de praticar um acto que, seguramente ou muito provavelmente, teria impedido a consumação desse dano.
Por isso, facto voluntário significa apenas facto objectivamente controlável ou dominável pela vontade.
Para fundamentar a responsabilidade civil basta a possibilidade de controlar o acto ou a omissão ;  não é necessária uma conduta predeterminada, uma acção ou omissão orientada para certo fim.
Fora do domínio da responsabilidade civil ficam apenas os danos causados por causas de força maior ou pela actuação irresistível de circunstâncias fortuitas.

Em segundo lugar, é necessário que o facto do agente seja ilícito :  Violação de um direito de outrem (os direitos absolutos, nomeadamente os direitos sobre as coisas ou direitos reais, os direitos da personalidade, os direitos familiares e a propriedade intelectual) e violação da lei que protege interesses alheios (infracção de leis que, embora protejam interesses particulares, não conferem aos respectivos titulares um direito subjectivo a essa tutela, e de leis que, tendo também ou até principalmente em vista a protecção de interesse colectivos, não deixam de atender aos interesses particulares subjacentes, de indivíduos ou grupo de pessoas).

Em terceiro lugar, tem que haver um nexo de imputação do facto ao lesante (culpa) ;  o agente tem que ser imputável (pessoa com capacidade natural para prever os efeitos e medir o valor dos seus actos e para se determinar de harmonia com o juízo que faça acerca destes, ou seja, discernimento e capacidade de determinação) e é necessário que tenha agido com culpa.
A culpa exprime um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente e pode revestir duas formas distintas, o dolo e a negligência ou mera culpa.

Em quarto lugar, tem que haver dano, para haver obrigação de indemnizar é condição essencial que o facto ilícito culposo tenha causado prejuízo a alguém.
Os danos podem ser patrimoniais ou não patrimoniais (danos morais).
E, por fim, tem que haver um nexo causal entre o facto e o dano, ou seja, um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima, de modo a poder afirmar-se, à luz do direito, que o dano é resultante da violação, pois só quanto a esse a lei manda indemnizar o lesado (cf. Antunes Varela in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, pgs. 445 e ss.).
A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artº 487º nº 2 do Código Civil).

i)Importa, por isso, determinar se existe algum facto ilícito praticado pela recorrida.
Está em causa nos autos a eventual violação do direito de compropriedade dos apelantes.
Segundo dispõe o artº 1403º nº 1 do Código Civil, “existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa”.
A compropriedade existe, pois, quando uma coisa pertence a duas ou mais pessoas.
O direito de cada proprietário incide não sobre uma parte específica, mas sim sobre uma quota ideal da coisa comum e cada comproprietário poderá servir-se da coisa comum, desde que não a empregue para fim diferente daquela a que ela se destina nem prive os restantes do uso a que também têm direito.
Por isso, a artº 1406º nº 1 do Código Civil estipula que “na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que (…) não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito”.
Ora, apurou-se que recorrentes e recorrida são comproprietários do imóvel em causa em partes iguais.
Apenas a apelada habita a fracção, sendo que o faz com fundamento no direito de compropriedade, já que outro título não invoca.
Tendo em atenção os factos apurados, dos quais se pode concluir pela existência de um clima de alguma animosidade entre as partes e a ausência de acordo dos consortes nesse sentido, é óbvio que está excluída a possibilidade de utilização simultânea da fracção.
A esta situação se referem os Professores Pires de Lima e Antunes Varela (in “Código Civil Anotado”, Vol. III, 1987, pg. 357), quando mencionam as “dificuldades práticas e teóricas quanto ao uso directo promíscuo de prédios urbanos que não se prestem a divisão” mais referindo que “o único recurso a adoptar, na falta de acordo, será o do gozo indirecto, que consistirá em regra na locação da coisa, com a consequente repartição dos proventos dela entre os consortes”.
Do que resulta que a utilização que a recorrida faz da fracção em causa desde a morte do seu companheiro, filho dos recorrentes, se inscreve no exercício do seu direito de comproprietária.  Embora tal utilização valha apenas “como princípio supletivo” (cf. autor, obra e local citados) para o caso de outra utilização não estar estabelecida, como por exemplo, o uso por turnos.
Não foi alegado nem provado nos autos que estivesse estabelecido qualquer acordo quanto à utilização da fracção, pelo que é lícita a sua utilização por qualquer dos comproprietários.
Há que saber se a alegada licitude de utilização deve considerar-se apenas na medida da quota ou pode ser exercida quanto à totalidade da coisa.
O que convoca a questão da natureza da compropriedade.
Segundo Carvalho Fernandes (in “Lições de Direitos reais”, 2ª ed., 1997, pgs. 322 e 323), e Luís Menezes Leitão (in “Direitos Reais”, 3ª ed., 2012, pgs. 213 e ss.), tal natureza pode ser vista como a de um direito sobre quotas, de uma pluralidade de direitos sobre a mesma coisa, de um direito único com pluralidade de titulares ou de pessoa colectiva.
Como o referem ambos os autores citados, a tese da personalidade colectiva não encontra qualquer acolhimento no regime jurídico português e a do direito sobre uma quota afasta-se da estrutura do direito real.  “Não se nos afigura possível partilhar esta tese, por ela envolver, nomeadamente, uma concepção bem difícil de ajustar à estrutura típica dos direitos reais.  Na verdade, estes são direitos sobre coisas, pelo que só no caso de se não vislumbrar outra forma de configurar o instituto ela deveria ser tomada em consideração (…).  Para além do mais, esta tese deixa sem explicação a incidência imediata de certos poderes dos comproprietários sobre a própria coisa, no seu todo, e não sobre quotas, meramente ideais ou intelectuais, como acontece no significativo poder de uso” (cf. Carvalho Fernandes, in “Lições de Direitos reais”, 2ª ed., 1997, pgs. 322 e 323).
Por outro lado, a estatuição do artº 1403º nº 2 do Código Civil, referindo os direitos dos consortes como qualitativamente iguais, pese embora a diferença quantitativa, afasta a ideia de uma unidade do direito, com pluralidade de titulares.
Em consequência, deve entender-se a faculdade de uso da coisa por cada consorte como referindo-se à coisa em si mesma, na sua totalidade, independentemente da dimensão quantitativa que a quota traduz.

j)Porém, tal direito, tem a limitação legal de não privação do uso pelo outro consorte.
Deve entender-se que esta privação do uso tem carácter abstracto, decorrendo da consideração da própria natureza da coisa em conjunção com a utilização a que se destina ?
Ou que tem carácter concreto, decorrendo de uma impossibilidade de utilização efectiva e concretamente pretendida pelo outro consorte?
Isto é, deve considerar-se que, na falta de acordo, a utilização por um consorte de uma coisa que não permite a utilização simultânea pelos demais implica a privação do uso por estes?
Ou, pelo contrário, mesmo neste caso, só se verificará a privação se em concreto o consorte não utilizador pretender utilizar, vendo-se impedido de o fazer, pela utilização dada pelo consorte utilizador?
A primeira solução, implicaria a derrogação do regime do artº 1406º do Código Civil, quanto às coisas que apenas permitissem o uso exclusivo por um dos consortes, instituindo a obrigação do gozo indirecto e impossibilitando o gozo directo.
É essa a solução quando haja desacordo, mas não parece que seja quando o acordo falte no sentido de nada ter sido estabelecido.
O acórdão do S.T.J. de 15/2/2007 (consultado na “internet” em www.dgsi.pt), embora possa inculcar a defesa de posição diversa da defendida na decisão sob recurso, fá-lo fundando-se numa situação de colisão de direitos nos termos do artº 335º do Código Civil, de que o artº 1406º nº 1 do Código Civil, é exemplo.
Porém, a colisão de direitos tem de ver-se não em abstracto, mas na dinâmica concreta do seu exercício (cf. Acórdão da Relação de Lisboa de 16/5/2013 e Acórdão do S.T.J. de 28/10/2010, ambos consultados na “internet” em www.dgsi.pt).
É nesta concretização da faculdade de usar que se afigura que os Professores Pires de Lima e Antunes Varela (in “Código Civil Anotado”, Vol. III, 1987, pg. 359), exprimem a diferença entre os regimes português e italiano :  “o segundo limite do uso da coisa pelo comproprietário é ditado pela necessidade de facultar aos outros consortes a possibilidade de igualmente se serviram dela.
(…)

A restrição só funciona, porém, em relação às utilizações da coisa que os outros comproprietários possam fazer ou tenham necessidade de fazer.
(…)

Neste aspecto afigura-se mais feliz a fórmula do Código português, falando no uso a que os outros consortes têm direito (sendo certo que a existência do direito pressuporá, neste caso, a existência da necessidade correspondente), do que a do artigo 1102º do Código italiano, que alude à necessidade de o uso feito por um dos consortes não impedir os outros participantes de usarem igualmente a coisa”.
Daqui decorre a licitude da utilização exclusiva da coisa em compropriedade por um dos consortes, mesmo quando a coisa não seja susceptível de utilização simultânea por todos.
Aliás, tal ocorrerá, na generalidade dos casos, quando apenas um consorte estiver interessado no gozo directo e nenhum dos outros esteja interessado num gozo indirecto a que aquele obste, sem que nada tenha sido em concreto estipulado.
Refere a esse respeito o Professor Carvalho Fernandes (in “Lições de Direitos reais”, 2ª ed., 1997, pg. 328) :  “Como é evidente, os problemas surgem, quanto a este limite, nos casos em que não se mostre praticável um fraccionamento do uso.  Suponha-se uma situação de compropriedade que tenha por objecto uma fracção autónoma e esta não permita o uso simultâneo de todos os comproprietários.  Na falta de acordo, as alternativas são as de não permitir o uso de qualquer dos comproprietários e a de encontrar uma solução sucedânea da prevista na lei.  Poderia ela ser a de o comproprietário, que venha a ter o uso exclusivo, compensar os demais pelo valor do uso que exceda a sua quota.  Do ponto de vista económico-social, afigura-se-nos ser esta uma solução acertada”.
Nessa situação, embora o gozo pelos demais consortes não seja materialmente possível, os mesmos não estão dele privados porque não o pretendem em concreto exercer e enquanto tal se verificar.  Caso o pretendam, podem fazer cessar de imediato a utilização exclusiva, pela declaração dessa pretensão.  Quando a mesma não seja acatada, cessa a licitude da utilização, na medida em que passa a ocorrer privação do gozo pelo consorte em violação do disposto no artº 1406º nº 1 do Código Civil.
Voltando ao caso dos autos, a licitude da utilização da fracção pela recorrida apenas poderia cessar pela pretensão dos apelantes utilizarem a fracção, quer directamente, nela habitando, quer indirectamente, locando-a, por exemplo, ou de outro modo usufruindo dela.
Sucede que, se é certo que os recorrentes não exprimiram a sua oposição a que a apelada use a fracção, o certo é que esta os tem impedido de entrar no imóvel e recusa-se a dar-lhes uma chave.
Ora, a melhor interpretação do artº 1406º nº 1 do Código Civil implica que a utilização exclusiva apenas esteja vedada quando, em concreto, o uso por um comproprietário prive o outro de usar a coisa numa concreta utilização pretendida.
Caso contrário, a mera falta de estipulação consensual poderia privar todos os consortes do uso da coisa em benefício de nenhum deles, pois até o uso indirecto poderia estar vedado.  O que, do ponto de vista sócio-económico seria absurdo, podendo até constituir abuso de direito.
No caso concreto, os recorrentes alegaram e provaram que a apelada os está a privar de uma possível utilização ou mesmo de uma simples inspecção ou visita ao local.
Assim, se bem que a recorrida tenha o direito de habitar o imóvel (e isso nem é posto em causa nos autos), a ilicitude da sua conduta, sonegando aos outros comproprietários o mero acesso ao bem, configura uma situação de responsabilidade extracontratual, geradora da obrigação de indemnizar os apelantes.

k)Sendo devida uma indemnização e verificando-se que no caso não se pode averiguar o valor exacto do prejuízo a ressarcir, haverá que lançar mão a juízos de equidade, como resulta do artº 566º nº 3 do Código Civil.
Deste modo, afigura-se-nos equilibrado atribuir aos apelantes uma indemnização, a pagar pela apelada, que corresponderá a metade do valor da renda mensal que os recorrentes poderiam auferir (145 €, ou seja, 290/2), pelo período de tempo que abaixo determinaremos.

l)Pretendem os recorrentes que o valor indemnizatório é devido desde a data da morte do seu filho, anterior comproprietário do imóvel.
Entendemos que a questão merece diferenciado tratamento temporal.
Com efeito, dispunha o artº 4º nº 1 da Lei 7/2001 de 11/5 que “em caso de morte do membro da união de facto proprietário da casa de morada comum, o membro sobrevivo tem direito real de habitação, pelo prazo de cinco anos, sobre a mesma, e, no mesmo prazo, direito de preferência na sua venda” (este preceito foi posteriormente alterado pela Lei 23/2010, de 30/8, e pela Lei 2/2016 de 29/2.  Porém, nos termos do artº 12º do Código Civil, é aqui aplicável - cf. Ac. do S.T.J. de 13/9/2011, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
É sabido que uma das mais relevantes medidas de protecção da união de facto foi conceder uma protecção temporária ao sobrevivente da união para evitar uma ruptura brusca na sua vida, com o consequente reconhecimento, “intuitu personae”, ao membro sobrevivo do direito real de habitação pelo prazo de cinco anos, e temos por óbvio que se o legislador lho confere quando a casa seja propriedade exclusiva do membro falecido por maioria de razão lhe confere esse mesmo direito quando ele seja seu comproprietário, por a casa ser pertença dos dois, como é o caso (neste sentido cf. Acórdão do S.T.J. de 14/1/2014, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
Ao atribuir um direito real de habitação ao membro sobrevivo, o legislador concedeu-lhe um direito de uso da casa de morada disciplinado pelo artº 1484º nº 2 do Código Civil.
Daí decorre que tenha o “usus” e o “fructus” da coisa, mas apenas na medida das necessidades pessoais do seu titular e da família, como direito real que é, diminutivo do direito do usufruto cuja conexão o legislador revela no artº 1490º do Código Civil, e não conforme direito pessoal.
Sabendo-se que o direito de habitação é regulado pelo seu título constitutivo (artº 1485º do Código Civil), o presente direito real de habitação não deriva de um negócio jurídico, antes se constituiu por via de disposição legal, uma das várias permitidas (cf. artº 1485º do Código Civil), na qual não se impõe ao beneficiário alguma limitação ou obrigação, nomeadamente alguma contraprestação monetária de carácter compensatório ou retributivo, para além das insertas nos artºs. 1488º e 1489º do Código Civil (ao passo que, por exemplo, o arrendamento se estabelece exclusivamente pela via do contrato, que tem como um dos seus elementos essenciais a obrigação do locatário de pagar uma renda – cf. artºs. 1022º e 1038º al a) do Código Civil).
Assim, o legislador não atribuiu ao membro sobrevivo da união de facto um direito a contratar um arrendamento nos cinco anos subsequentes ao decesso.  Também não entendeu reconhecer-lhe a faculdade de constranger o sucessor do companheiro falecido na titularidade do direito de propriedade à celebração de um contrato de constituição onerosa de um direito real de habitação.
Contrariamente, o legislador reconheceu ao membro sobrevivo da união de facto o direito real de habitação por cinco anos.  Esta natureza real estabelece uma ligação entre o titular do direito e a coisa de tal modo que o direito real representa a afectação, realizada em certos termos, duma coisa aos fins de um sujeito.
Seria, assim, injusto impor à comproprietária residente a obrigação de pagar à outra um montante quando é certo que tem ela legalmente a seu exclusivo cargo as reparações ordinárias, as despesas de administração e os impostos (artº 1489º nº 1 do Código Civil).
Portanto, no período compreendido entre 12/07/2007 (data da morte do comproprietário Jorge Filipe D. F.) e até 12/07/2012, tendo a recorrida estado na fracção como titular do direito real de habitação conferido pelo artº 4º nº 1 da Lei nº 7/2001 de 11/5, não é devida qualquer contrapartida financeira.

m)Situação diversa ocorre depois de 12/7/2012.
Com efeito, o referido direito real de habitação extinguiu-se pelo decurso do respectivo prazo de 5 anos, assumindo a recorrida a partir dessa mesma data o exercício dos poderes de fruição inerentes à sua qualidade de comproprietária.
E é só a partir desse momento que a fracção passou a ser ocupada “à revelia” dos recorrentes, que se veêm impedidos de lá entrar e nem sequer têm acesso à chave da mesma.
Está assim verificada desde Julho de 2012 a utilização ilícita da fracção, que permite julgar configurada uma situação de responsabilidade extracontratual fundada na ilicitude da conduta.
Assim sendo, a supracitada indemnização de 145 € mensais será devida desde Julho de 2012 até ao presente e nos valores que se liquidarem até ao termo desta situação (quer pela permissão de acesso ao imóvel, quer pela divisão do mesmo).

n)Entendemos, por isso, que há que julgar o recurso parcialmente procedente (e não totalmente, pois é pedida uma indemnização de 145 € mensais desde 2007) e condenar a recorrida no pagamento da quantia de 6.670 € (6 meses de 2012 = 870 € + 12 meses de 2013 = 1.740 € + 12 meses de 2014 = 1.740 € + 12 meses de 2015 = 1.740 € + 4 meses de 2016 = 580 €).

o)Sumário :

I-A compropriedade tem a natureza de um direito único com pluralidade de titulares, qualitativamente idêntico, mesmo quando quantitativamente distinto.
II-Na ausência de qualquer acordo, qualquer consorte pode utilizar a coisa, dentro dos fins a que se destina e sem privar os demais dessa utilização.
III-Tal utilização pode ser exercida quanto à totalidade da coisa, independentemente da dimensão que a quota traduz.
IV-A privação da utilização pelos demais consortes tem de ser apreciada em concreto e não em abstracto pela mera consideração da natureza ou fins a que a coisa se destina.
V-Cabe ao consorte não utilizador alegar e provar que o uso do bem pelo outro consorte o privação do uso concreto da coisa.
*  *  *

IIIDecisão:

Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência:
-Julga-se a presente acção instaurada por G. de Jesus F. e Anabela Martins D. F. contra T. Cristina D. M. parcialmente procedente por provada e, consequentemente, condena-se a R. a pagar aos A.A. a quantia total de 6.670 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a data da citação e vincendos até integral pagamento, a que acresce o valor de 145 € mensais desde Maio de 2016 até que os A.A. tenham acesso efectivo ao imóvel.
Custas :  Por A.A. e R., na proporção dos respectivos decaimentos (artº 527º do Código de Processo Civil).

Processado em computador e revisto pelo relator


Lisboa, 12 de Abril de 2016


(Pedro Brighton)
(Teresa Sousa Henriques)
(Isabel Fonseca)