Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2820/15.2T8LRS.L1-4
Relator: PAULA SANTOS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ACIDENTE DE TRABALHO
DEVER DE FORMAÇÃO
ENTIDADE PATRONAL
RESPONSABILIDADE AGRAVADA
INDEMNIZAÇÃO
DANO MORTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/26/2018
Votação: MAIORIA COM UM VOTO VENCIDO
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A SENTENÇA
Sumário: I– Cumpre rejeitar o recurso que incide sobre a matéria de facto, se a análise das conclusões não permite perceber que a Apelante pretende impugnar tal factualidade e, pretendendo, quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados. É o que decorre do disposto no artigo 640º nº1 a) do CPC.

II– Não tendo a Ré, empregadora, como lhe incumbia, providenciado mediante formação, para que o sinistrado conhecesse os procedimentos e os perigos que a sua actividade de inspecção de contentores, perto de uma zona de tensão, encerra, não estando o local de trabalho, como deveria, devidamente sinalizado sobre a proximidade de uma catenária, com aviso ou interdição de passagem, ou mesmo proibição de efectuar inspecções aos contentores, não está descaracterizado o acidente de trabalho que ocorreu quando o sinistrado estava sozinho a inspeccionar um contentor, fora da zona de descargas – que é uma zona pavimentada, fora do perigo de tensão – encontrando-se na zona de tensão, para onde foi porque o comboio que transportava os contentores não coube no limite da zona alcatroada do parque. Estava em cima do contentor para verificar o estado das escotilhas do mesmo e a catenária encontrava-se a 81 cm do topo do contentor, sendo o risco de contacto e electrocussão previsível e detectável pela empregadora. Foi sugado pela catenária, donde resultou a sua morte imediata, face às lesões que aquele facto lhe provocou.

III– Os mesmo factos referidos em II determinam a responsabilidade agravada da empregadora.

IV– É ajustada a indemnização de 80.000€ pelo dano morte de um jovem de 24 anos, saudável, feliz, alegre, comunicativo, com grande apego ao seu núcleo familiar, e as circunstâncias da sua morte, não resultando de culpa sua.

V– É ajustada a indemnização a título de danos não patrimoniais pelo desgosto sofrido, para a companheira e filho do sinistrado (este, na altura do falecimento, com 3 meses de idade), de, respectivamente, 40.000€ e 20.000€.

(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–Relatório:


AAA, por si e em representação do seu filho menor, BBB, instaurou a presente acção declarativa de condenação, a seguir a forma de processo especial, emergente de acidente de trabalho, pedindo a condenação solidária de: 1. CCC, SA., 2. DDD, S.A., 3. EEE, , 4. FFF, 5.GGG 6. HHH e 7. FUNDO DE ACIDENTES DE TRABALHO,
a pagar: 1) à Autora a pensão anual e vitalícia de € 4.890,16, com início em 19-02-2015, até perfazer 65 anos de idade, e a partir dessa idade a pensão de € 8.150,31, metade do subsídio por morte e uma indemnização por dano morte no valor de € 2 80000,00, bem como uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 100.000,00; 2) Ao menor BBB a pensão anual de € 3260,12 até perfazer 18, 22 ou 25 anos, metade do subsídio por morte e uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de cento e vinte mil euros.

Alegam, em síntese, que
- no dia 18-02-2015, XXX com quem a 1ª Autora vivia como se marido e mulher se tratassem, sofreu um acidente de trabalho, em consequência do qual veio a falecer, deixando-a a si e ao filho menor de ambos, BBB;
- o acidente ocorreu quando o referido XXX procedia à inspecção de um contentor, tendo sido sugado por uma cantenária;
- em resultado do acidente advieram para o sinistrado lesões
corporais que lhe determinaram a morte;
- este acidente resultou da falta de observação das regras sobre a segurança e saúde no trabalho por parte da 1ª Ré, entidade empregadora;
- na data do acidente a responsabilidade civil da 1ª Ré encontrava-se transferida para a 2ª Ré
- a 3ª Ré era proprietária do local onde ocorreu o acidente, tendo celebrado com a  1ª Ré um contrato de concessão;
- os 4º, 5º e 6º Réus são administradores da 1ª Ré, pelo que são solidariamente responsáveis;
-desconhecem os Autores qual é a capacidade económico-financeira dos Réus, daí que a acção também tenha sido proposta contra o 7ª Réu.
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Foi julgado procedente o incidente de fixação de pensão provisória para ambos os Autores com a inerente condenação da 2ª Ré nesse pagamento.
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Foi proferido despacho que indeferiu liminarmente a p.i. quanto aos 3º, 4º, 5º, 6º e 7º Réus.
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A 1ª Ré contestou, impugnando que o acidente tenha resultado da falta de observância , por si, de regras de segurança.
Pugna pela improcedência da acção com a sua absolvição do pedido.
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A 2ª Ré contestou, não aceitando a responsabilidade decorrente do acidente, argumentando que este deveu-se à violação das normas de segurança pela entidade empregadora.
Conclui pela sua absolvição do pedido.
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Foi realizada audiência prévia, não sendo possível a conciliação das partes.
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Foi proferido despacho saneador, o qual conheceu da validade e regularidade da instância.
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Foram fixados os factos assentes e elaborada a base instrutória.
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Foi realizado julgamento com observância do legal formalismo.
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A sentença julgou “procedente a presente acção especial emergente de acidente de trabalho intentada pelos Autores/Beneficiários AAA, por si e em representação do seu filho menor BBB, contra a Ré DDD, SA (Seguradora) e contra a Ré CCC (Entidade Empregadora) e, consequentemente, decide-se:
A)condenar a Ré Seguradora, sem prejuízo do direito de regresso contra a 1.ª Ré e da dedução dos valores entregues a título de pensão provisória, os quais deverão ser comprovados nos autos,
1)- a pagar a AAA: a pensão anual e vitalícia, actualizável, desde 19-02-2015, no valor de € 2445,09 (dois mil quatrocentos e quarenta e cinco euros e nove cêntimos) até à idade de reforma por velhice e € 3260,12, a partir daquela idade, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ou a outra que vier a ser legalmente fixada, desde 19-02-2015, até integral e efectivo pagamento e € 2766,85 a título de subsídio por morte;
2)- a pagar ao beneficiário BBB: a quantia de € 1630,06, enquanto este se mantiver na situação descrita no art. 60.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro e € 2766,85 a título de subsídio por morte;
B)condenar a Ré CCC:
1)- a pagar à Autora AAA:
- a pensão anual e vitalícia, actualizável, desde 19-02-2015, no valor de € 2445,09 (dois mil quatrocentos e quarenta e cinco euros e nove cêntimos) até à idade de reforma por velhice e a partir daquela idade €3260,12, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ou a outra que vier a ser legalmente fixada, desde 19-02-2015, até integral e efectivo pagamento;
- €20000,00 (vinte mil euros) a título de danos não patrimoniais e
- € 30000,00 (trinta mil euros) pelo dano morte.
2)a pagar ao beneficiário BBB:
-a quantia de € 1630,06 (mil seiscentos e trinta euros e seis cêntimos), enquanto este se mantiver na situação descrita no art. 60.º da lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, sendo que quando o filho deixar de receber a pensão deverá a autora passar a receber a mesma por inteiro, nos termos do art. 18.º, n.º 4 alínea a) e 6 do DL 98/2009, de 4 de Setembro;
- €20000,00 (vinte mil euros) a título de danos não patrimoniais e
- € 30000,00 (trinta mil euros) pelo dano morte.
C)No mais, absolvo os RR do peticionado.
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Inconformados, os Autores interpuseram recurso, concluindo nas suas alegações que
1ª –O tribunal “a quo” ao condenar a R. CCC, S.A. apenas ao pagamento de €30.000,00 a cada um dos autores, a título de indemnização por dano pela perda do direito à vida e €20.000,00 a cada um dos mesmos, a título de indemnização por danos não patrimoniais, decidiu mal, no sentido em que decidiu aquém dos valores que deveria decidir. Pois que,
2ª –Como é consabido e no que diz respeito à indemnização por danos não patrimoniais; tal indemnização e decorrente fixação da mesma não deve ser apenas simbólica, miserabilista, ou arbitrária, mas nortear-se por critérios de equidade. Ora,
“In casu” os ora recorrentes, decorrente do falecimento do sinistrado e respectivas circunstâncias do dito falecimento, sofreram danos (não patrimoniais) eternos. Com efeito,
4ª –Atenta a matéria dada por provada, nomeadamente: 27; 28.; 29; 31. e 32., dos factos provados, óbvio é que um filho de 15 meses que jamais terá o carinho, orientação e figura tutelar do seu pai é um dano eterno. Outrossim relativamente à recorrente mãe AAA que se viu subitamente com um filho de 15 meses nos braços sem saber como teria meios para o alimentar ( na altura estava desempregada); causou-lhe ainda outro dano (eterno) a partir do falecimento do sinistrado “ficou gaga” (vide 32. dos factos provados). Ora,
5ª –Atento o susodito circunstancialismo afigura-se-nos que a R. CCC, S. A., deverá ser condenada a pagar indemnização a título de danos não patrimoniais ao recorrente BBB no valor de €120.000,00 e à recorrente AAA, €100.000,00, o que se requer.
6ª –Relativamente à indemnização arbitrada pelo Tribunal “a quo”, a título de dano morte, afigura-se-nos que a mesma está aquém dos valores recentemente atribuídos por situações análogas. É assim que,
7ª –A R. CCC, S.A. deverá ser condenada a pagar aos aqui recorrentes, a título de indemnização por dano pela perda do direito à vida, a quantia de €80.000,00, ou seja, €40.000,00, para cada um dos A. A. aqui recorrentes, o que se requer. Donde,
8ª –O Venerando Tribunal da Relação de Lisboa devera proferir douto Acórdão, o que se requer, que:
- Condene a R. CCC, S.A. a pagar ao A. BBB, indemnização a título de danos não patrimoniais, no valor de €120.000,00;
- Condene a R. CCC, S.A. a pagar à A., indemnização a titulo de danos não patrimoniais, no valor de €100.000,00;
- Condene a R. CCC, S.A. a pagar aos A. A. a titulo de indemnização por dano pela perda do direito à vida, a quantia de €80.000,00, ou seja, €40.000,00 para cada um dos A. A. (neste sentido vide Acórdão do STJ de 18/06/2015, Proc. 2567/09.9TBABF.E1.S1, 7ª Secção).
ASSIM SE FARÁ, SÃ, SERENA E OBJECTIVA JUSTIÇA.”
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Também a 1ª Ré recorreu, concluindo nas suas alegações que.
1.O acidente ocorreu fora do parque de contentores concessionado à Ré CCC e numa zona pertencente à EEE, actual …;
2.Não existem catenárias na parcela de terreno concessionada à Ré CCC, designada por “parque de contentores”;
3.É assim nulo o risco de eletrocussão na zona onde se fazem as descargas e as inspeções dos contentores, como aliás também o é em toda a área do parque de contentores;
4.A Ré CCC, no que respeita à inspeção de contentores, adotou um conjunto de regras internas de organização e segurança dos seus trabalhadores, incluindo o aqui sinistrado XXX
5.Aquelas regras internas de inspeção de contentores determinavam que:
- Na inspeção de contentores no comboio, o inspetor deve garantir que os mesmos se encontram parados, e que a locomotiva já não se encontra nas instalações.
- O inspetor nunca deverá passar os limites do parque para inspecionar os contentores que sejam transportados no comboio, apenas poderão ser inspecionados os comboios que se encontrem dentro da área reservada do parque até ao limite da zona alcatroada.
- Caso seja necessário inspecionar o teto de qualquer contentor, o inspetor deve dar indicações ao painel, para que posicione os contentores no chão para mais tarde serem inspecionados nas devidas condições.
6.Tais regras de inspeção de contentores destinavam-se, além do mais, a evitar o risco do trabalhador ser atingido por eletrocussão, pois na inspeção dos contentores era vedado ao inspetor passar os limites do parque para inspecionar comboios, e que apenas poderiam ser inspecionados os comboios que se encontrassem dentro da área reservada do parque até ao limite da zona alcatroada;
7.Aquelas normas determinavam igualmente que sempre que fosse necessário inspecionar o teto de qualquer contentor este devia ser posicionado no chão;
8.Os contentores Bulk, onde o sinistrado morreu, tem escotilhas no teto pelo que para as mesmas serem inspecionadas o contentor deve ser colocado no chão;
9.Quando os vagões não cabem todos no parque, o comboio é fisicamente dividido e ficam do de fora do parque, devidamente separados, os vagões que não couberam no parque;
10.Só depois de terem sido inspecionados os contentores dos vagões que ficaram dentro do parque, e depois de retirados estes vagões para fora do parque, é que entram neste, para serem inspecionados, os contentores dos vagões que ficaram de fora do parque;
11.No dia do acidente o comboio estava fisicamente dividido, com as carruagens que ficaram de fora do parque separadas dos restantes que ficaram dentro do parque;
12.O sinistrado XXX tinha conhecimento daquelas normas e procedimentos a observar na inspeção de contentores e praticou-as sempre na inspeção de contentores;
13.O sinistrado XXX Silva tinha igualmente conhecimento do perigo de eletrocussão existente na zona das catenárias e que por isso aí não podia proceder à inspeção de contentores;
14.Não se fez qualquer prova, pelo que se desconhece como o acidente ocorreu;
15.Não se encontra verificado o nexo de causalidade entre a inobservância de regras legais de segurança e a produção do acidente;
16.A Ré CCC não deu qualquer ordem ao sinistrado XXX para inspecionar o contentor no local onde ocorreu o acidente;
17.É de concluir, pois, que se tais regras e procedimentos que disciplinam a atividade de inspeção de contentores tivessem sido observadas, seguramente o sinistrado XXX não teria sofrido qualquer lesão;
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e bem assim revogada a douta sentença proferida pelo Tribunal A quo, absolvendo-se a Ré CCC do pedido.”
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A 2ª Ré contra-alegou, concluindo que.
A.Alega a Recorrente, em suma, discordar da douta sentença do Tribunal a quo, porquanto considera a Recorrente não violou as regras de segurança, e que não existe nexo de causalidade entre a violação das normas em causa e o acidente de trabalho.
Ora,
B.Previamente, é de referir que o recurso apresentado é intempestivo, pois, sendo o objecto do recurso delimitado pelas suas conclusão, versa apenas sobre questões de direito, sendo aplicável o prazo de 20 dias previsto no artigo 80,º, n.º 1, do C.P.T.
C.Por outro lado, não é cumprido pela recorrente o ónus de impugnação da matéria de facto, designadamente, indicação nas conclusões dos pontos que se pretende alterar e, no corpo alegatório, dos meios probatórios que fundamentam o recurso da decisão, pelo que seria sempre de rejeitar esta parte do recurso.
D.No entanto, por uma questão de cautela, uma vez que é invocada a alteração da decisão da matéria de facto, será de referir que é manifesta a falta de fundamentação da pretensão das Recorrentes, na medida em que se demonstra que estamos perante uma decisão da matéria de facto pelo Tribunal a quo totalmente justificada e cuja decisão se encontra claramente fundamentada pela apreciação das provas produzida, quer da prova documental e, bem, assim, da prova testemunhal.
E.É pois manifesta a boa e justificada apreciação da prova e, consequentemente, nada há a alterar quanto à matéria de facto.
F.Quanto à matéria de direito, é evidente a Recorrente incorreu num conjunto significativo de condutas ilícitas relacionadas com os seus deveres de segurança e saúde no trabalho (factos provados n.º 12, 35, 37, e 44 a 47).
G.Razão pelo qual somos levados a afirmar que a entidade empregadora manifestou total desprezo por todo e qualquer dever que sobre ela impendesse, relacionado com a eliminação do risco previsível de electrocussão dos seus trabalhadores (facto provado n.º 43).
H.A Recorrente não implementou qualquer tipo de procedimento que evitasse risco de electrocussão, designamente, proibição da realização da inspecção na zona das catenárias, levando a que o seu trabalhador realizasse as suas tarefas em condições de total desproteção e ignorando o risco que corria (factos provados 44 e 47).
I.Mostra-se igualmente, e de forma inelutável, demonstrado o nexo de causalidade na medida em que, foi devido à conduta prévia da entidade empregadora que não instruir o sinistrado que o mesmo procedeu da forma descrita, com a agravante de nem sequer ter conhecimento do risco que corria (factos provados n.ºs 48 e 50).
J.Por conseguinte, bem andou a meritíssima Juiz a quo ao reconhecer a responsabilidade da Recorrente nos termos do n.º 1 do artigo 18.º da L.A.T.
Nestes termos, e nos mais de Direito, sempre com o douto suprimento de V. Exa.s, deverá ser julgado improcedente o presente recurso, assim se fazendo Justiça!”
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O Exmo Procurador-Geral Adjunto, junto deste Tribunal da Relação, emitiu parecer no sentido da improcedência dos recursos.
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Os autos foram aos vistos aos Exmos Desembargadores-Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir
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II–Objecto
Assente que é pelas conclusões do articulado de recurso que se afere o objecto deste[1], no presente caso cumpre apreciar e decidir
- da impugnação da matéria de facto (admissibilidade);
- se o acidente está descaracterizado ou se a responsabilidade da 1ª Ré é agravada:
- se o tribunal a quo errou na fixação do quantum indemnizatório pela perda do direito à vida e por danos não patrimoniais próprios dos Autores.
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III–Fundamentação de Facto.

A–Matéria de Facto Provada
São os seguintes os factos considerados provados pela primeira instância
1. XXX nasceu no dia 05-06-1990 e faleceu no dia 18-02-2015, no estado de solteiro.
2. Foi contratado pela 1ª Ré, CCC, S.A., em 01-07-2014, como ajudante de reparação e tinha como local de trabalho a serralharia.
3. No dia 18 de Fevereiro de 2015, cerca das 11:00 horas, em …, Loures, o referido XXX foi vítima de um acidente quando prestava serviço sob as ordens, direcção e fiscalização da 1ª Ré.
4. No momento do acidente o sinistrado Luís Miguel estava a trabalhar na Plataforma …, com a categoria profissional de outros trabalhadores polivalentes – 9622.2 (Inspector de Contentores), mediante a retribuição mensal de €505,00x14meses + €98,21 x 11 meses, o que corresponde à remuneração anual de €8.150,31.
5. Tal acidente consistiu no facto do sinistrado, XXX, ao proceder à inspecção de um contentor de 30 pés, tipo “Bulk”, no topo do contentor, ter sido sugado por uma catenária.
6. Em resultado do acidente, advieram para o sinistrado, necessária e directamente as seguintes lesões corporais, que causaram a sua morte imediata:
– A morte de XXX foi devida à electrocussão por electricidade industrial – descarga de catoneira, com ponto de entrada na região parietal direita e de saída na planta do pé esquerdo e com consequentes queimaduras de 1º - 2º grau de cerca de 54% de superfície corporal (de couro cabeludo, pescoço, tórax, região lombar e dos membros inferiores), as quais lhe determinaram a morte.
7. A 1ª Ré tem como objecto social o parqueamento, movimentação, reparação e transporte de contentores.
8. Desenvolve a sua actividade no terminal de mercadorias da ….
9. Para a concretização e desenvolvimento da sua actividade a 1ª Ré CCC, S.A. celebrou com a EEE (aqui 3ª Ré) um contrato de concessão com o nº 31/2005.
10. O terminal de mercadorias da … (onde a 1ª Ré desenvolve a sua actividade) é constituído por 3 linhas férreas: “linha da rede”; “linha do meio” e “linha mar”.
11. O acidente ocorreu na epítetada “linha mar”, especificamente na linha norte, 57-A, na proximidade do poste de catenária B2, 26D do terminal de mercadorias da ….
12. A 1º Ré CCC, S.A., à data do acidente, não tinha, nem apresentou, qualquer documento comprovativo da realização de uma avaliação de riscos profissionais para a actividade que desenvolve, consubstanciada num relatório de avaliação de riscos profissionais.
13. A 1ª Ré não promoveu a realização de exames de saúde de admissão ou outros ao trabalhador sinistrado, admitido em 01/07/2014.
14. Decorrente do acidente foram, pela ACT, levantados 3 autos de notícia, contra a 1ª Ré, devido a falta de avaliação de riscos profissionais, falta de formação, falta de realização de exames de saúde.
15. No momento do acidente o trabalhador sinistrado encontrava-se a usar colete e botas de biqueira de aço.
16. A inspecção de contentores é uma tarefa que consiste em verificar o estado geral de conservação, limpeza e funcionamento dos contentores.
17. A referida função é exercida na empresa Ré CCC por funcionários com a categoria de Inspector de Contentores.
18. Na data do acidente a responsabilidade civil da entidade empregadora, emergente de acidentes de trabalho, encontrava-se transferida para a entidade seguradora: “DDD, S.A.”, mediante contrato de seguro titulado pela Apólice nº 0003645468, abrangendo integralmente a remuneração do mesmo acidentado no montante de €505,00x14 meses + €98,21 x11 meses, o que corresponde à remuneração anual de €8.150,31.
19. BBB nascido em …2014 é filho do sinistrado XXX e de AAA.
20. AAA, viveu em união de facto, como se de marido e mulher se tratassem, com o sinistrado XXX desde Novembro de 2012, até à data da morte deste.
21. A Autora nasceu no dia …1991.
22. O sinistrado era beneficiário da segurança social n.º ….
23. O sinistrado era um homem jovem saudável, apto para o trabalho, feliz, alegre, comunicativo, com grande apego ao seu núcleo familiar, mormente ao seu filho BBB e à sua companheira AAA.
24. À data do acidente AAA não trabalhava fora de casa, pois tinha (tem) um filho bebé para cuidar (BBB).
25. Era com o salário do sinistrado que o agregado familiar se sustentava, fazendo face a todas as despesas, como alimentação, vestuário, água e luz.
26. O 1º Autor tinha grande afecto por seu pai (o sinistrado), sendo que quando este chegava a casa vindo do trabalho ficava eufórico de ver o pai, o que acontecia diariamente.
27. A 2ª Autora tinha grande amor e afecto pelo sinistrado, com quem vivia maritalmente desde Novembro 2012 e estavam a criar o filho de ambos, BBB.
28. Devido à morte do sinistrado a 2ª Autora “mergulhou” numa profunda tristeza, dor, angústia e depressão traumática.
29. Com a morte do sinistrado a 2ª Autora teve que começar a trabalhar fora de casa para suportar sozinha todos os encargos familiares consigo e com o seu filho.
30. Solicitando à sua mãe e “sogra” que lhe cuidem do bebé (aqui 1º Autor) enquanto ela está no trabalho.
31. O sinistrado era para o seu filho e sua “mulher” / companheira AAA uma referência e o pilar principal e essencial do agregado familiar, quer a nível psicológico, quer a nível financeiro.
32. Após a morte do sinistrado a Autora AAA ficou com dificuldade em falar sem quebras, verificando-se “gaguejar” amiúdes vezes quando fala, decorrente da “tensão nervosa” e depressão que se “apoderou de si” após o acidente.
33. O sinistrado iniciou funções como inspector de contentores em Outubro de 2014.
34. O acidente ocorreu quando o sinistrado se encontrava sozinho a inspeccionar contentores, que tinham dado entrada no parque de mercadorias da ….
35. A inspecção dos contentores deveria ser efectuada na zona de descargas, local pavimentado e fora da zona de perigo de tensão.
36. No dia do acidente, o comboio que transportava os contentores não coube no limite da zona alcatroada do parque, tendo sido colocadas algumas carruagens (com contentores) na zona das catenárias.
37. Devido a esta circunstância, o sinistrado, para realizar a inspecção dos referidos contentores, foi para onde estes se encontravam, isto é, fora da zona de descargas, numa zona de tensão.
38. Os contentores em causa, do tipo “Bulk” eram dotados de escotilha no tecto, pelo que o sinistrado a fim de proceder à verificação do estado das escotilhas subiu ao topo do contentor.
39. A catenária encontrava-se a uma altura padronizada de 4.75 metros do solo.
40. O trabalhador encontrava-se em cima do contentor que tem uma altura de 2.75 m.
41. O contentor encontrava-se em cima do vagão com 1,19 m.
42. Entre o topo do contentor e a catenária distavam apenas 81 cm.
43. O risco de contacto e electrocussão era previsível e detectável pela entidade empregadora.
44. O sinistrado não tinha conhecimento dos procedimentos, medidas de prevenção a tomar, locais ou zonas proibidos ou perigosas, ou quaisquer outras instruções de saúde e segurança específicas para o exercício da actividade de inspector.
45. Por não lhe ter sido ministrada formação em segurança e saúde no trabalho pela 1.ª Ré.
46. E por no local do acidente não existir qualquer sinaléctica de aviso ou interdição de passagem.
47. Nem sinaléctica de proibição de efectuar inspecções aos contentores.
48. A formação referida em 14. teria possibilitado ao sinistrado:
a)- Ter conhecimento da zona de descargas e os seus limites, ou seja, o conhecimento do local onde deveria prestar a sua função;
b)- Ter conhecimento do perigo de electrocussão existente na zona das catenárias.
49. O sinistrado procedeu à inspecção do contentor naquele lugar - zona das catenárias – porque desconhecia que estava a correr risco de vida.
50. Ao não avaliar os riscos da função e do local em causa, ao não proibir o acesso à zona de tensão e ao não adoptar qualquer medida preventiva (tanto a nível de sinalização como equipamento adequado), a entidade empregadora permitiu que o sinistrado acedesse à zona onde existem catenárias e que ocorresse o acidente.
51. O conhecimento dos perigos e adopção de medidas preventivas teriam permitido ao sinistrado evitar o acidente.
52. O parque de contentores tem o solo todo pavimentado com alcatrão e está vedado em praticamente todo o seu perímetro por uma vedação de ferro, com excepção da parte onde se encontram as linhas férreas, que não está vedada nem alcatroada.
53. No parque, onde se iniciam as linhas férreas estão colocados há muitos anos, entre o espaço das linhas, uns contentores.
54. A zona do parque para efectuar as descargas dos contentores dos comboios e se proceder à inspecção dos mesmos está alcatroada e a zona onde se inicia a linha do comboio com catenárias tem um solo constituído por brita, pelo que é visível e perceptível a delimitação entre aquelas duas zonas.

55. Das normas internas de inspecção de contentores elaboradas pela Ré CCC – está determinado que:
- Na inspeção de contentores no comboio, o inspetor deve garantir que os mesmos se encontram parados, e que a locomotiva já não se encontra nas instalações.
- O inspetor nunca deverá passar os limites do parque para inspecionar os contentores que sejam transportados no comboio, apenas poderão ser inspecionados os comboios que se encontrem dentro da área reservada do parque, nomeadamente até ao limite da zona alcatroada.
- Caso seja necessário inspecionar o teto de qualquer contentor, o inspetor deve dar indicações ao painel, para que posicione os contentores no chão para mais tarde serem inspecionados nas devidas condições.

56. Ao começar a exercer as funções de inspector de contentores XXX estagiou durante cerca uma semana com o Chefe dos Inspectores, (…).
57. O sinistrado seguia um regime de trabalho de segunda a sexta-feira, das 08:00 às 13:00 horas e das 14:00 às 17:00 horas.
58. Nos termos do contrato de trabalho, celebrado entre a Ré, CCC e o sinistrado: “4.º
(Local de Trabalho)
O local da prestação de trabalho do segundo contraente será na Plataforma … – Parque Norte.”
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B–Matéria de Facto Não Provada
São os seguintes os factos considerados não provados pela primeira instância.
1.- O sinistrado apenas tenha iniciado funções de inspector de contentores no início de Fevereiro de 2015.
2.- Não existem catenárias na parcela de terreno concessionada, referida em 9., designada por “parque dos contentores”.
3.- Os contentores referidos em 54.º servem de barreira e impedem a passagem de máquinas ou viaturas para a linha férrea.
4.- Os vagões que não cabem no parque são separados dos restantes e aguardam fora do parque e só depois dos contentores que ficam dentro do parque serem descarregados do comboio e dos respectivos vagões serem retirados do parque é que avançam para  dentro do parque os vagões com contentores que ficaram fora dele para serem também descarregados e inspeccionados.
5.- Os contentores “bulk” são sempre inspeccionados no solo, pela sua porta do lado da frente, e nunca através das suas escotilhas, embora o bom funcionamento destas deva também ser verificado pelos inspectores.
6.- A inspeção dos contentores que chegam nos comboios é sempre feita dentro do parque, numa zona alcatroada, local onde não existe qualquer catenária.
7.- O poste com a primeira catenária onde está aposto e é visível um sinal a alertar para o perigo de electrocussão, está a mais de trinta metros da zona onde se inicia a linha de comboio com catenárias (da linha onde termina igualmente a zona onde se procede à inspecção dos contentores.
8.- É, assim, nulo, o risco de electrocussão na área onde se fazem as descargas e as inspeções dos contentores, como aliás também o é em toda a área do parque de contentores.
9.- Que tenha sido entregue à Sra. Inspetora do Trabalho, no dia do acidente, cópia do doc. 6 (fls. 51 e 52) com as “normas internas de inspecção” referidas em 57.
10.- As referidas normas estão afixadas há anos na sala dos inspectores local onde estes se reúnem para tratarem das questões e dos assuntos relacionados com a organização e funcionamento do respectivo serviço.
11.- XXX frequentava diariamente a referida sala e tinha conhecimento das referidas normas internas de inspecção.
12.- XXX tinha conhecimento que a passagem para fora dos limites do parque, além de ser proibida, acarretava problemas de segurança ao nível de atropelamento pelos comboios e sobretudo de electrocussão.
13.- Que o referido (…) e outros com quem o sinistrado estagiou o tenham ensinado as referidas normas internas que devia seguir na inspecção de contentores e ainda a absoluta proibição de sair dos limites do parque devido aos riscos de atropelamento e electrocussão.
14.- O (…) entre Setembro e a data do acidente:
- Efectuou sempre as inspecções dentro da área reservada do parque;
- Nunca ultrapassou os limites do parque para inspeccionar os contentores;
- Solicitou sempre ao painel que posicionasse contentores no chão para inspeccionar sempre que necessário o tecto dos mesmos;
- Inspeccionou os contentores “bulk”, sempre no chão, depois de retirado o saco de plástico do seu interior.
***

IV–Apreciação do Recurso
A primeira questão a decidir é a da apreciação do recurso da matéria de facto. Trata-se do recurso interposto pela 1ª Ré, que, nas conclusões, afirma “Não se fez qualquer prova, pelo que se desconhece como o acidente ocorreu” (ponto 14. das conclusões)
Determina o art. 662º do NCPC que “1. A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”

Trata-se de um preceito imperativo, sempre que a reapreciação dos meios de prova determine um resultado diverso do alcançado pela primeira instância.

Nos termos do disposto no art. 640º do CPC, a impugnação da matéria de facto tem, no entanto, de obedecer a determinados requisitos adjectivos, a saber.
“1 Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)-Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b)- Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a)- Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados,  incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
(…)” (sic)

A propósito destes ónus, Abrantes Geraldes[2] expressa a ideia de que “as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.[3]

In casu, a análise das conclusões de recurso da 1ª Ré não permite perceber que esta pretende impugnar a matéria de facto e, pretendendo, quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.

Na verdade, o Apelante deve deixar claro nas conclusões do recurso, que delimitam o objecto deste, qual “a decisão, alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova[4]

Como afirma ainda o mesmo Autor, “A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a)-Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b)-Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (…)”[5]
No presente caso, não tendo a Apelante dado cumprimento aos referidos ónus, rejeita-se o recurso na parte em que impugna a matéria de facto.
***

2.A segunda questão consiste em reapreciar a responsabilidade da empregadora do sinistrado.
A Apelante argui que adoptou um conjunto de normas internas que visavam, além do mais, evitar o risco do trabalhador ser atingido por electrocussão, pois na inspecção dos contentores era vedado ao inspector passar os limites do parque para inspeccionar comboios, que apenas podiam ser inspeccionados até à área reservada do parque, até ao limite da zona alcatroada, e que sempre que fosse necessário inspeccionar o tecto de qualquer contentor, este deveria ser posicionado no chão.
Defende que o sinistrado tinha conhecimento dessas normas e sempre as cumpriu, e refuta a verificação de qualquer nexo de causalidade entre a inobservância de regras legais de segurança e a produção do acidente, pois, tão pouco, deu qualquer ordem ao sinistrado para inspeccionar o contentor no local onde ocorreu o acidente.
Ou seja, embora a Apelante não o diga expressamente, face ao alegado, é de concluir que pretende ver descaracterizado o acidente, face à responsabilidade que imputa ao próprio sinistrado pela sua ocorrência, por violação das normas impostas pela entidade patronal, ou, pelo menos, ver afastada a sua responsabilidade.

É a seguinte a decisão da primeira instância quanto a esta matéria:
3.2.Da descaracterização do acidente por o acidente ter provindo de acto do sinistrado que importou a violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador;
Não obstante na tentativa de conciliação da fase conciliatório do processo as RR terem aceite a caracterização do acidente em causa nos autos, como acidente de trabalho, a Ré C.ª de seguros, em sede de resposta à contestação apresentada pela Co-Ré CCC defende que não obstante dos elementos disponíveis se concluir que o acidente decorreu da violação das regras da entidade empregadora, a provar-se a factualidade descrita por esta: que o sinistrado conhecia as normas internas que proibiam a inspecção de contentores fora dos limites do parque, nomeadamente fora da zona alcatroada, onde ocorreu o acidente, o acidente deverá ser descaracterizado, nos termos do art. 14.º, n.º 1 alínea a) da lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.
(…)
Resultou dos factos provados que existem na Ré Entidade empregadora umas folhas com o teor constante do artigo 55. dos factos provados onde além do mais se refere que:
“- O inspetor nunca deverá passar os limites do parque para inspecionar os contentores que sejam transportados no comboio, apenas poderão ser inspecionados os comboios que se encontrem dentro da área reservada do parque, nomeadamente até ao limite da zona alcatroada.
- Caso seja necessário inspecionar o teto de qualquer contentor, o inspetor deve dar indicações ao painel, para que posicione os contentores no chão para mais tarde serem inspecionados nas devidas condições. (30. BI)”.
É evidente que tais normas têm em vista evitar o perigo de electrocussão, face à existência de linhas férreas com catenárias, no parque de mercadorias da Bobadela, local de trabalho do sinistrado que inspeccionava contentores. Por um lado, impede-se os trabalhadores de saírem da zona alcatroada para a zona de brita onde existem as catenárias, por outro, prescreve-se a obrigatoriedade de os contentores estarem no chão quando se pretende inspeccionar os topos dos mesmos, evitando assim quedas e a proximidade das catenárias.
Importa agora apreciar se o sinistrado desrespeitou tais regras. A violação de qualquer norma implica que se tenha conhecimento da mesma. O ónus da prova de que o sinistrado conhecia a norma, por ser facto constitutivo da excepção de descaracterização, incumbia às RR. Ora, apesar de o terem alegado as RR não o demonstraram. Com efeito, não ficou provado que tais normas tenham sido dadas a conhecer ao sinistrado pela entidade empregadora. (Cfr. os factos 31 a 35 da base instrutória que foram dados como não provados em 10. a 14.).
Porém, refira-se que, ainda que se demonstrasse que o sinistrado conhecia as referidas normas e tivesse actuado em violação das mesmas, o acidente também não seria descaracterizado face às especificidades do caso concreto que revelam a existência de uma causa justificativa de uma possível violação das referidas regras.
Com efeito, o n.º 2 do art. 14.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, prescreve que “existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento, ou, tendo-o, fosse manifestamente difícil entende-la.”.
Ora, no caso concreto, inexistia qualquer informação no local a avisar da proibição de acesso à zona das catenárias – conforme posteriormente ao acidente foi colocado –, não foi dada formação ao trabalhador, explicando-lhe os riscos a que estava sujeito, nem tão pouco existia qualquer plano de avaliação de riscos profissionais que o trabalhador pudesse ter acesso para compreender os riscos que sofria.
Por conseguinte, e considerando que o sinistrado estava a inspeccionar os vagões em cumprimento do que lhe havia sido determinado, sempre se teria que entender que o trabalhador não teria tido acesso à informação.
Por todo o exposto, é manifesto que o acidente não deve ser descaracterizado.
*
3.3. Da responsabilidade agravada
(…)
Volvendo ao caso concreto e considerando os factos provados designadamente em 12., 13 e 43. a 51.º existe sem dúvida um conjunto particularmente significativo de condutas negligentes da parte da entidade empregadora. Desde logo na data do acidente: a)- A Ré CCC não tinha procedido à avaliação dos riscos profissionais para a actividade que desenvolve, violando assim o disposto o n.º 1 e as alíneas b), c) e d) do n.º 2 do referido art. 15.º; (Cfr. facto 12.)
b)- A ré não tinha colocado qualquer sinaléctica de aviso ou interdição de passagem para a zona das catenárias, onde ocorreu o acidente, bem sabendo que a Plataforma … – Parque Norte – local de trabalho do sinistrado e onde ocorreu o acidente – é constituído por três linhas férreas, violando assim o n.º 1 e as alíneas a) e e) do n.º 2 citado artigo 15.º, c) A Ré não ministrou formação em segurança e saúde no Trabalho ao sinistrado violando assim o disposto no citado artigo 20.º,
E todas estas inobservâncias de preceitos legais e regulamentares foram consequência directa e necessária da actuação culposa da entidade empregadora. Com efeito, se houvesse uma avaliação de riscos profissionais para actividades na proximidade e na zona das catenárias, tal como consta do relatório da (…) – contratada pela própria CCC – a Ré tomaria consciência de que para além de colocar avisos/sinaléctica, não deveria colocar um trabalhador sozinho a inspecionar os contentores, mas pelo menos dois ou mais trabalhadores (fls. 34), atendendo não apenas à especial perigosidade das tarefas desempenhadas pelo sinistrado mas também a peculiar circunstância subjectiva do trabalhador: era jovem (25 anos), estava há menos de um ano na empresa e há menos de seis meses nestas especiais funções de inspector;
Note-se que, ficou demonstrado que o sinistrado procedeu à inspecção do contentor no referido local por desconhecer que estava a correr risco de vida. Obviamente que se existisse delimitação horizontal (barras oblíquas amarelas e pretas e vertical) da zona interdita, o sinistrado, como qualquer outro trabalhador, tinha a percepção de se tratar de uma zona de risco e não teria ido realizar as suas funções naquela zona do Parque.
Finalmente, ficou demonstrado que se tivesse sido ministrada ao sinistrado formação sobre segurança e saúde no trabalho, o sinistrado teria tido a possibilidade de tomar conhecimento, quais as zonas de descargas e quais as zonas de perigo, nomeadamente de electrocussão na zona das catenárias, dentro do seu local de trabalho, o que teria evitado o acidente.
Por todo o exposto, importa concluir que as condições criadas pelos representantes da entidade empregadora são a causa jurídica do acidente dos autos, pois “a acção que é condição ou pressuposto de um dano só deixa de ser sua causa, sob o prisma do direito, quando com ela concorra, para a produção desse dano, uma circunstância anómala ou extraordinária que o agente ignore e não tenha obrigação de conhecer, à data da acção.” (Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 406), o que no caso concreto, não sucedeu. Com efeito, perante o conjunto de circunstâncias dadas, ou seja, perante as repetidas infracções cometidas pela Ré, o acidente nada teve de anómalo ou extraordinário, sendo até previsível.
Demonstrada que está a culpa da entidade empregadora, no acidente, importa agora apreciar quais as indemnizações devidas, tendo em consideração que por força da referida culpa a indemnização deverá ser agravada.”

Decorre das alegações de recurso que o mesmo, nesta parte, dependia da alteração da decisão que incidiu sobre a matéria de facto.

Não ocorreu essa alteração pelas razões supra expostas.

Vejamos

Quanto à descaracterização do acidente

O artigo 14º da LAT – Lei 98/2009 de 04 de Setembro – determina que o empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que “a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
c)-Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado (…)”
Como salienta Pedro Romano Martinez[6], no caso da alínea a), «o legislador exige somente que a violação careça de “causa justificativa”, pelo que está fora de questão o requisito da negligência grosseira da vítima; a exigência dessa culpa grave encontra-se na alínea seguinte do mesmo preceito. A diferença de formulação constante das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 7.º da LAT (correspondentes às mesmas alíneas do n.º 1 do artigo 290.º do Código do Trabalho) tem de acarretar uma interpretação distinta. Por outro lado, há motivos para que o legislador tenha estabelecido regras diversas. Na alínea a) só se exige a falta de causa justificativa, porque atende-se à violação das condições de segurança específicas daquela empresa; por isso, basta que o trabalhador conscientemente viole essas regras

Relativamente à alegada negligência grosseira, o nº3 do art. 14º dispõe que “Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança profissional ou dos usos e costumes da profissão” (sic).

Para que o acidente possa considerar-se descaracterizado, nos termos deste normativo legal, é necessário que se verifique uma conduta temerária e inútil, até do ponto de vista da sua conexão com o trabalho que se desempenha, uma falta grave e indesculpável da vítima e que o acidente provenha exclusivamente dessa falta grave e indesculpável. Tal falta não pode ser uma simples imprudência, uma mera negligência ou uma distracção[7]. Tem de se tratar de um comportamento “ … ostensivamente indesculpável, reprovado por um elementar sentido de prudência …”[8].A lei quis “…acentuar o elevado grau de reprovabilidade e censurabilidade do comportamento objectivador dessa falta[9]
Como se afirma no Acórdão desta secção de 18 de Outubro de 2000[10], “Se para o resultado do evento naturalístico interceder um comportamento da vítima que se desenhe como gravemente censurável, que se apresente como merecedor de forte reprovação, quer pela omissão de elementares cautelas e de regras de prudência comummente observadas, indesculpável à luz da normalidade dos comportamentos, quer por acções temerárias, inúteis e gratuitas, normalmente associadas a situações de elevado risco, não vemos como desprezar esta realidade e ignorá-la como causa do dano produzido, e causa exclusiva, se para o acidente não concorreu culpa da entidade patronal ou de terceiro, caso fortuito ou força maior” (sic)
A culpa grosseira ou grave “consiste em não fazer o que faz a generalidade das pessoas, em não observar os cuidados que todos, em princípio, adoptam. A culpa leve seria a omissão da diligência normal (podendo o padrão de normalidade ser dado em termos subjectivos concretos, ou em termos objectivos, abstractos). A culpa levíssima será a omissão dos cuidados especiais que só as pessoas muito prudentes e escrupulosas observam[11]
Portanto, a lei não se basta, para a descaracterização do acidente, com uma simples distracção, imprudência ou uma negligência, exigindo que o sinistrado proceda como uma pessoa extremamente desleixada, que viole o mais elementar sentido de prudência e “… que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão” [12]
A culpa grave pressupõe três requisitos: (i) uma acção especialmente perigosa (traduzida, v.g., na infracção de um dever de cuidado especialmente importante ou de vários deveres menos significativos); aliada a um (ii) resultado de verificação altamente provável (à luz da conduta adoptada); e, nessa medida, (iii) uma atitude especialmente censurável de leviandade ou de descuido, reveladora de “qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez.[13]
Para o que nos interessa, a culpa grosseira deve ser apreciada em concreto, tendo em conta cada caso particular e as condições do próprio sinistrado.
Por outro lado, por se tratar de factos impeditivos do direito à reparação, incumbia à Ré o ónus de alegar e provar os que permitissem valorar a conduta do sinistrado como violadora, sem causa justificativa, das regras de segurança implantadas pela entidade patronal, ou como negligência grosseira “.[14]

Feitos estes considerandos, e volvendo ao presente caso, analisando os factos, temos que o acidente ocorreu quando o sinistrado estava sozinho a inspeccionar um contentor, fora da zona de descargas – que é uma zona pavimentada, fora do perigo de tensão – encontrando-se na zona de tensão, para onde foi porque o comboio que transportava os contentores não coube no limite da zona alcatroada do parque. Estava em cima do contentor para verificar o estado das escotilhas do mesmo e a catenária encontrava-se a 81 cm do topo do contentor, sendo o risco de contacto e electrocussão previsível e detectável pela empregadora. Foi sugado pela catenária, donde resultou a sua morte imediata, face às lesões que aquele facto lhe provocou.

Os factos descritos sob os nº12, 44 a 51 dos provados, não permitem concluir que para o resultado do evento naturalístico intercedeu um comportamento da vítima altamente censurável, merecedor de forte reprovação, por se tratar de uma conduta injustificável e indesculpável face às regras da normalidade dos comportamentos numa situação como a dos autos. Não resultam ademais quaisquer factos que nos permitam concluir que o acidente resultou de culpa exclusiva do sinistrado.

Na verdade, incumbia à Ré, empregadora, providenciar para que o sinistrado conhecesse os procedimentos e os perigos que a sua actividade encerra. Acresce que o local de trabalho deveria estar devidamente sinalizado sobre a proximidade da catenária o que não acontecia.

Na verdade, não logrou o Ré fazer prova de qualquer facto que nos permita concluir que a conduta do Autor foi leviana, desconhecendo-se o que o levou a subir para o contentor, para além do facto de estar a cumprir as funções para as quais foi contratado.

Tudo visto, conclui-se que o acidente a que se referem os autos não está descaracterizado.

Quanto à responsabilidade agravada da empregadora.

Mas os mesmos factos supra referidos, tal como assinalou a primeira instância, em moldes que não merecem censura, determinam a responsabilidade agravada da empregadora.

Como se afirma na decisão recorrida “Com efeito, se houvesse uma avaliação de riscos profissionais para actividades na proximidade e na zona das catenárias, tal como consta do relatório da (…) – contratada pela própria CCC – a Ré tomaria consciência de que para além de colocar avisos/sinaléctica, não deveria colocar um trabalhador sozinho a inspecionar os contentores, mas pelo menos dois ou mais trabalhadores (fls. 34), atendendo não apenas à especial perigosidade das tarefas desempenhadas pelo sinistrado mas também a peculiar circunstância subjectiva do trabalhador: era jovem (25 anos), estava há menos de um ano na empresa e há menos de seis meses nestas especiais funções de inspector;
Note-se que, ficou demonstrado que o sinistrado procedeu à inspecção do contentor no referido local por desconhecer que estava a correr risco de vida. Obviamente que se existisse delimitação horizontal (barras oblíquas amarelas e pretas e vertical) da zona interdita, o sinistrado, como qualquer outro trabalhador, tinha a percepção de se tratar de uma zona de risco e não teria ido realizar as suas funções naquela zona do Parque.
Finalmente, ficou demonstrado que se tivesse sido ministrada ao sinistrado formação sobre segurança e saúde no trabalho, o sinistrado teria tido a possibilidade de tomar conhecimento, quais as zonas de descargas e quais as zonas de perigo, nomeadamente de electrocussão na zona das catenárias, dentro do seu local de trabalho, o que teria evitado o acidente.

Concordamos com esta fundamentação, que encontra respaldo nos factos provados, não tendo sido carreados para o recurso argumentos que a permitam infirmar.
Improcede, pois o recurso interposto pela Ré.
***

3.–Analisemos agora o recurso dos Autores: os mesmos insurgem-se relativamente às indemnizações pela perda do direito à vida – 60.000€ – e por danos não patrimoniais próprios - 20.000€ para cada um - pretendendo a revogação da sentença com a atribuição de 80.000€, a título de perda do direito à vida e de, respectivamente, 120.000€ para o 2ª Autor e 100.000€ para a Autora, a título de danos não patrimoniais.

A sentença recorrida decidiu da seguinte forma:Em relação aos primeiros danos não patrimoniais sofridos pelos AA, os seus danos próprios pela perda de um familiar próximo (marido e filhos) pondera-se os factos apurados, o entendimento jurisprudencial dominante e ter presente que esses danos, e correspondente montante indemnizatório, são fixados equitativamente, olhando todas as circunstâncias do caso concreto, onde se incluem o grau de culpabilidade e a situação económica, quer do lesante, quer do lesado (artigos 494.º e 496.º, n.º3 do CC).
Olhando ao grau de parentesco imediato, à ligação íntima e cooperante entre a vítima, autora e o filho de ambos, o acompanhamento familiar, a circunstância repentina e inesperada da morte e ponderando ainda os valores constantes da tabela anexa à Portaria n.º 377/2008, de 26 de maio, considera-se equitativamente adequado o montante indemnizatório de vinte mil euros para a viúva e vinte mil euros para o filho, aferido, nesse juízo de equidade, ao momento presente (outubro de 2017) e como montante, bastante mas necessário a “pagar” a angústia, a tristeza, o sofrimento, a falta de apoio, carinho, assistência e companhia.
Em relação ao dano morte, interessa essencialmente encontrar um montante equilibrado e respeitador do que vem sendo o entendimento da jurisprudência dos tribunais superiores, considerando-se também o referido na Portaria n.º 377/2008, de 26 de maio. E, neste contexto (onde se remete, exemplificativamente, para acórdãos da Relação do Porto – 11.05.2004, dgsi e de Coimbra – P. 3089/07, CJ/2010, Tomo II, 2010 -, o primeiro, fixando 50.000,00€ e o segundo, fixando 60.000,00€), considera-se equitativamente adequado o montante indemnizatório de sessenta mil euros aferido, nesse juízo de equidade, ao momento presente (outubro de 2017).
A indemnização pelo dano da perda da vida do sinistrado, marido e pai, é conjuntamente devida à autora e ao filho de ambos, em partes iguais (artigo 496.º, n.º 2 do CC).”

Vejamos.

No caso dos danos não patrimoniais, a indemnização não pretende reconstituir a situação que existiria se não ocorresse o evento, mas tem natureza mista, visando compensar de alguma forma os lesados, sendo também sancionatória da conduta do agente[15].

Como afirma Mota Pinto, “Os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis, não podem ser reintegrados mesmo por equivalente. Mas é possível, em certa medida, contrabalançar o dano, compensá-lo mediante satisfações derivadas da utilização do dinheiro. Não se trata, portanto, de atribuir ao lesado um “preço de dor” ou um “preço do sangue”, mas de lhe proporcionar uma satisfação, em virtude de a aptidão do dinheiro para propiciar a realização de uma ampla gama de interesses, na qual se podem incluir mesmo interesses de ordem refinadamente ideal[16]

Na fixação do quantum indemnizatório, manda a nossa lei atender, através da remissão para o disposto no art. 494º do C. Civil, ao grau de culpa do lesante, à situação económica do lesante e do lesado, e às demais circunstâncias do caso, entre as quais se contam as lesões sofridas e correspondente sofrimento, as flutuações do valor da moeda, etc, devendo sempre ser proporcionada à gravidade do dano e tomando em consideração, na sua fixação, “todas as regras da boa prudência, do bom sendo prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida”.[17]

Neste contexto, de há alguns anos a esta parte, a jurisprudência, de forma consentânea com a vida e a realidade das coisas, tem chamado a atenção para a circunstância de já ser tempo de acabar com “miserabilismos indemnizatórios”. Com efeito, a compensação por danos não patrimoniais, designadamente pelo dano morte, deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico, traduzindo uma certa dignificação dos sentimentos, e constituindo um lenitivo para os danos suportados, devendo ter-se em conta “…o contínuo aumento dos seguros obrigatórios e respectivos prémios[18]

Dano cuja ressarcibilidade não oferece dúvida é a perda do direito à vida, que é o dano de maior gravidade, pois atinge o bem supremo que é a vida da vítima, sendo tal perda definitiva.

Não é fácil o apuramento da indemnização deste dano.

O julgador tem de olhar para a vítima concreta, no seu concreto condicionalismo. Como afirma Dário Martins de Almeida[19] “…uma vida não tem apenas um valor de natureza: tem, sobretudo, um valor social, porque o homem é um ser em situação. E é em função desse valor que os tribunais têm de apreciar, em concreto, o montante da indemnização pela lesão do direito à vida….

Como é óbvio, também não é possível atender em termos absolutos, àquele valor social. É, sobretudo, em termos muito relativos que a matéria há-de ser apreciada, de tal sorte que as diferenças de montante pecuniário se justifiquem pelos limites da equidade, por detrás da qual está sempre o bom senso”.

Os montantes indemnizatórios que vêm sendo atribuídos pela jurisprudência a este título são muito variáveis, devendo ter-se em consideração na sua fixação, nomeadamente, o grau de culpa do lesante, a saúde, a idade, o apego à vida, a força de vida, a ligação à família, a formação académica, as qualidades de trabalho e a idoneidade moral.

Os montantes de tais indemnizações tendem a aumentar em consonância com a necessidade da nossa aproximação, também a este nível, à restante Europa. Sintomática desta necessidade de evolução, foi a Resolução do Conselho de Ministros de 4 de Março de 2001, sobre o acidente de Entre-os-Rios, que fixou em 10.000.000$00, a indemnização pela perda do direito à vida, superior às indemnizações então normalmente atribuídas pelos tribunais para o mesmo dano.

Cita-se aqui, pelo seu interesse, a resenha levada a efeito no acórdão do STJ de 03-11-2016[20], a propósito dos parâmetros indemnizatórios seguidos no que respeita à perda do direito à vida “A jurisprudência portuguesa foi, durante muito tempo, extremamente avara quando se tratava de determinar a indemnização correspondente a este tipo de dano, mas verificou-se, nesse campo, um salto qualitativo, com o progressivo aumento do montante indemnizatório pela perda do direito à vida. Isso mesmo se constata através do teor do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/2/2002, acessível em wwwdgsi.pt., onde se mencionam vários outros arestos do mais Alto Tribunal, fixando a indemnização pelo dano morte entre €40 000,00/8.000.000$00 e €50 000,00/10.000.000$00[3[21]].
Consolidou-se, assim, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o entendimento de que o dano pela perda do direito à vida, direito absoluto e do qual emergem todos os outros direitos, situa-se, em regra e com algumas oscilações, entre os €50 000,00 e €80 000,00, indo mesmo alguns dos mais recentes arestos a €100.000,00 (cfr, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Janeiro de 2012, de 10 de Maio de 2012 (processo 451/06.7GTBRG.G1.S2), de 12 de Setembro de 2013 (processo 1/12.6TBTMR.C1.S1), de 24 de Setembro de 2013 (processo 294/07.0TBETZ.E2.S1), de 19 de Fevereiro de 2014 (processo 1229/10.9TAPDL.L1.S1), de 09 de Setembro de 2014 (processo 121/10.1TBPTL.G1.S1),  de 11 de Fevereiro de 2015 (processo 6301/13.0TBMTS.S1), de 12 de Março de 2015 (processo 185/13.6GCALQ.L1.S1), de 12 de Março de 2015 (processo 1369/13.2JAPRT.P1S1), de 30 de Abril de 2015 (processo 1380/13.3T2AVR.C1.S1), de 18 de Junho de 2015 (processo 2567/09.9TBABF.E1.S1) e de 16 de Setembro de 2016 (processo 492/10.OTBB.P1.S1), todos acessíveis através de www.dgsi.pt.). “

No presente caso o dano morte do falecido foi fixado em 60.000€, valor situado claramente dentro das margens definidas em tais arestos. No entanto, considerando a idade do sinistrado – tinha 24 anos – estando no fulgor da sua vida familiar, profissional e social; tinha uma expectativa de vida de cerca de 50 anos - a esperança média de vida das pessoas do sexo masculino, em Portugal, é de cerca de 75 anos para os homens e a tendência é actualmente crescente - expectativa essa que se viu abruptamente gorada num ápice; era um jovem saudável, feliz, alegre, comunicativo, com grande apego ao seu núcleo familiar, e as circunstâncias da sua morte – não resultando de culpa sua -  entendemos como razoável e adequada a indemnização de 80.000€, atribuídos em conjunto aos Autores, assim procedendo o recurso nesta parte.

Como dano não patrimonial próprio de cada um dos Autores, cumpre atender desde logo ao facto de o acidente se dever a culpa e grave da 1ª Ré, bem como ao sofrimento com a morte do, respectivamente, marido e pai.

Quanto à 1ª Autora, resulta das regras da experiência e do senso comum, que o desgosto da perda do companheiro e amparo de sempre é irreversível e perdurará por toda a sua vida. A Autora sofreu um profundo desgosto e sensação de perda com a sua morte, com quem vivia maritalmente há dois anos e três meses, e com o filho de ambos.

Tudo visto e ponderado, o Tribunal entende como ajustado compensar a Autora, a titulo de danos não patrimoniais próprios com a quantia de 40.000€.

Relativamente ao segundo Autor, o mesmo tinha apenas 3 meses à data do falecimento do sinistrado. É certo que tinha afecto pelo pai. Mas sendo tão jovem, não tem, naturalmente noção da extensão do drama que o atingiu: a “falta do pai”, que resulta da morte, e é inultrapassável. Dimensionará essa perda, quando começar a sentir a sua falta, a comparar a sua situação à de outras crianças que têm pai e de quem podia esperar afecto, carinho e apoio.

Considerando todos estes factores – idade da vítima e do filho, e de ser esta uma circunstância que o acompanhará para o resto da vida, entendemos que não merece censura a indemnização de 20.000€ por danos não patrimoniais fixada pelo tribunal relativamente ao 2º Autor, mantendo a sentença nesta parte.
***

V–Decisão.
Face a todo o exposto, acorda-se na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em
1. Não admitir o recurso sobre a matéria de facto interposto pela Ré CCC, SA.
2. Julgar improcedente o recurso interposto por CCC, SA.
3. Julgar parcialmente procedente o recurso interposto por AAA, por si e em representação do seu filho menor BBB, revogando parcialmente a sentença, e, em consequência,
5.1.– Condenar a Ré, CCC, SA., a pagar à Autora a quantia de 40.000€ (quarenta mil euros) pelo dano morte e a quantia de 40.000€ (quarenta mil euros) a título de danos não patrimoniais próprios.
5.2. Condenar a Ré, CCC, SA. a pagar ao Autor a quantia de 40.000€ (quarenta mil euros) pelo dano morte.
No mais, mantém-se a sentença recorrida.
***

Custas do recurso dos Autores, a cargo destes na proporção de 1/10.
Custas do recurso da Ré, CCC, SA., a cargo desta.
Registe.
Notifique.


Lisboa, 2018-04-26



(Paula de Jesus Jorge dos Santos)
(1ª adjunta – Paula Sá Fernandes, com voto de vencida)
(2º adjunto – José Feteira)


Voto vencida,
Relativamente ao montante de indemnização fixado ao 2.º autor, filho do sinistrado, pelos danos não patrimoniais, fixaria o montante de 40.000 euros pelas razões invocadas no acórdão, mas também porque tais danos se repercutirão na formação da sua personalidade de modo contínuo, marcante e inevitável, e sempre associados a uma culpa grave da entidade empregadora.
Paula Sá Fernandes
                       

[1]Cfr artigos 635º nº 4 e 639 nº1 e 3 do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do art. 1º, nº 2, alínea a) e 87º nº 1 do Código de Processo do Trabalho, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, salvo as de conhecimento oficioso e não podendo conhecer de questões constantes das conclusões que não tenham sido explanadas nas alegações (motivações).
[2]Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pág. 129.
[3]Convém relembrar que um dos objectivos propostos pelo legislador quando introduziu um efectivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto, através do Dec.Lei nº39/95, de 15 de Fevereiro, e que deixou expresso na justificação preambular: “facultar às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais – e seguramente excepcionais – erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito” …. “incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.” Mais adiante acrescentou ainda que “este especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, decorre, aliás, dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado.”
[4]Abrantes Geraldes, ob citada, pág. 126.
[5]Ob citada pág. 128.
[6]In Direito do Trabalho, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 851-852.
[7]Cfr. Ac. Rel. Coimbra de 04-05-2005 in CJ t.III, 55.
[8]Cfr Ac. Rel Lisboa de 13-04-2005 in www.dgsi.pt.
[9]Cfr. também Ac. Rel. Lisboa de 09-05-07 – Proc 1034/2007.4.
[10]Recurso nº 5327/4/00.
[11]Sic A. Varela – Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10º edição, pág. 577 – nota de rodapé nº2, citando Diez-Picazo.
[12]Sic Ac Rel Lisboa de 13-04-2005, já supra referido.
[13]Cfr. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, Coimbra Editora, I, 1999, pág. 113.
[14]Cfr. art. 342º nº2 do C.Civil e cfr., entre outros, Ac. Rel. Lisboa de 13-04-2005 e Ac. STJ de 13-07-2004 e de 16-06-2004.
[15]Cfr. Ac. Rel. Coimbra de 31-03-1987 in CJ t.2º, pág.85 e Ac. Rel. Évora de 13-10-1988 in BMJ 380/560, Ac. STJ de 25-01-2002 in CJ e STJ t.I, pág. 63 Ac. Rel. Lisboa de 14-04-2005.
[16]Sic Teoria Geral do Direito Civil, 3º edição, pág. 115.
[17]Sic A. Varela e Pires de Lima, C.Civil anotado, 4º edição, pág.501.
[18]Sic citado Ac. da Rel. Lisboa de 14-04-2005 – vide também, a titulo exemplificativo, Ac. STJ de 16-12-1993 in CJ. t. 3º, pág. 181, Ac. STJ 18-06-1996 in BMJ 458-287, Ac. Rel. Porto de 15-05-2001 in CJ t.III – 189, Ac. STJ de 08-06-99 in BMJ 488-331, e do STJ de 25-06-2002 in CJ t. II-134 e Ac. Rel. Lisboa de 26-04-2005 , Acórdão do STJ de 03-11-2016 – Processo 6/15.5T8VFR.P1.S1, de 16-03-2017 –Processo 294/07.0TBPCV.C1.S1.
[19]In Manual de Acidentes de Viação, pág. 190.
[20]Processo 6/15.5T8VFR.P1.S1.
[21]E nessa linha de orientação se inserem ainda os acórdãos do STJ de 25/1/2002, in C.J. no X, tomo I, pág. 62, de 29/5/2002 e de
27/2/2003, estes acessíveis em www.dgsi.pt. Nota de rodapé do acórdão citado.