Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
85/22.9PFSXL.L1-9
Relator: CARLOS DA CUNHA COUTINHO
Descritores: REINCIDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
INTERNAMENTO DE IMPUTÁVEL EM ESTABELECIMENTO DESTINADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. Circunstância qualificativa da Reincidência;
II. Omissão de factos concretos em que assenta o preenchimento do pressuposto material da reincidência;
III. Internamento do arguido em estabelecimento destinado a inimputáveis
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que integram a 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

A) Relatório:
1) No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Almada, Juiz 1, nos autos de Processo Comum, com intervenção do Tribunal colectivo, com o n.º 85/22.9PFSXL, após a realização da audiência de julgamento, foi proferido acórdão, datado de 18 de Outubro de 2022, onde se decidiu condenar o arguido A, na pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão efectiva, pela prática, em autoria material, como reincidente, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, 26.º, 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, alínea e), por referência ao artigo 202.º, alínea d), todos do Código Penal.
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2) Inconformado com esta decisão, da mesma interpôs o arguido o presente recurso, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
I. O presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito da sentença condenatória proferida nos presentes autos que condenou o Recorrente, em autoria material, como reincidente, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, 26.º, 203.°, n.º 1, 204.º, n.º 2, alínea e), por referência ao artigo 202.º, alínea d), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão;
II. O instrumento recursal deverá ser admitido nos autos por despacho e os autos de recurso enviados ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, concretamente para que seja revista tal condenação e determinada a modificação da pena efectiva por pena de prisão suspensa na execução, bem como atenuada a sua condenação, atento à sua imputabilidade reduzida;
III. O Tribunal desconsiderou o facto de que o Recorrente apresenta imputabilidade reduzida, razão pela qual jamais poderia ser submetido à pena de prisão efectiva em um Estabelecimento Prisional convencional, pois não ostenta capacidades mentais suficientes;
IV. O Juízo Sentenciante acabou por desconsiderar a sua confissão, bem como o sentimento de arrependimento, dentro daquilo que é possível do ponto de vista mental, o seu juízo de censura;
V. A reincidência e a alegada gravidade da conduta descrita nos autos não são fundamentos suficientes para determinar a prisão efectiva;
VI. Infelizmente, o Recorrente não tem família, pois os seus progenitores já faleceram e este não é casado, tampouco tem filhos;
VII. O Recorrente merecia ter recebido um plano de reinserção social condizente com o seu perfil e com o seu quadro de inimputabilidade reduzida, mas, o Estado nunca cumpriu adequadamente o seu papel para prestar um apoio condigno ou propiciar uma real inserção social;
VIII. A saúde mental é um tema extremamente em voga e que merece total atenção nas políticas públicas e, também, o Tribunal deve ponderar a imputabilidade reduzida do Recorrente;
IX. Ao determinar o afastamento do Recorrente do convívio social com uma medida de pena de prisão efectiva, não se resolve o problema. Antes pelo contrário, só servirá para prejudicar ainda mais a pessoa do condenado;
X. A prisão efectiva não é adequada para o caso dos autos e mesmo que fosse privado da sua liberdade, o Recorrente deveria, então, ser colocado em um estabelecimento próprio para a sua imputabilidade reduzida;
XI. O Estabelecimento Prisional não é adequado aos inimputáveis, tampouco é pertinente para os condenados com imputabilidade reduzida;
XII. Ainda assim, em Audiência, o Recorrente demonstrou, dentro das suas reduzidas condições psíquicas, um sincero arrependimento e admitiu estar a viver problemas sociais, pela ausência de apoios e respaldo familiar;
XIII. A condenação a tal pena efectiva é excessiva, desajustada e injusta, pois não foram devidamente ponderadas as circunstâncias que devem presidir à determinação da fixação da pena concreta a que alude o n° 2 do Artigo 71° do Código Penal, designadamente, porque não foi dado o justo relevo atenuativo às circunstâncias que depõem a seu favor, às suas condições pessoais e à sua condição de imputabilidade reduzida;
XIV. A medida da pena foi extremamente injusta e desarrazoada, quer em função da culpa do Recorrente, quer face às necessidades de prevenção e reprovação criminal, do caso concreto;
XV. A pena de prisão efectiva deve ser invocada apenas como uma última ratio, sob pena de excluir pessoas do convívio em sociedade, sobretudo como é o caso do Recorrente, que tem problemas mentais e que jamais poderia ser submetido a um Estabelecimento Prisional convencional;
XVI. Tanto é assim que o Recorrente já cumpriu penas em estabelecimentos prisionais destinados a pessoas inimputáveis, diante do seu quadro com limitações pessoais e evidências de imputabilidade reduzida;
XVII. O Juízo Sentenciante deveria ter ponderado que o Recorrente atende aos requisitos para aplicação da pena de prisão suspensa na sua execução, considerando a pena aplicada ter sido inferior a 05 (cinco) anos.
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3) Notificado do requerimento de interposição de recurso o Ministério Púbico respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência e confirmação do acórdão recorrido, concluindo que:
1º. Nestes autos, por Acórdão de 19-10-2022, foi o arguido A condenado pela prática, em autoria material, como reincidente, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, 26.º, 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, alínea e), por referência ao artigo 202.º, alínea d), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão;
2º. O critério subjacente à escolha da pena ou à sua substituição é o mesmo que encontramos para a determinação da medida da pena: o da realização das finalidades próprias da punição - a tutela necessária dos bens jurídicos e a reintegração do agente na comunidade;
3º. Existe um limite mínimo de tutela da eficácia e validade geral do ordenamento jurídico abaixo do qual ficam em causa a tutela dos bens jurídicos e a confiança da comunidade na vigência da norma violada, limite este que, na prática, consubstanciará o limite de não execução da pena aplicada;
4º. No caso dos autos, muito bem andou o Tribunal “a quo” ao condenar o arguido em pena de prisão efectiva, já que não existem nos autos quaisquer elementos que permitam concluir que os fins punitivos serão atingidos com a aplicação de qualquer outra pena que não a de prisão efectiva; senão vejamos:
- À data dos factos o arguido já contava com 6 condenações, cinco das quais pela prática de sete crimes de furto qualificado, um crime de furto qualificado na forma tentada e ainda um crime de trafico de estupefacientes de introdução em lugar vedado ao público, em penas de prisão suspensa e penas de prisão efetiva pelo cometimento de tais ilícitos;
- Não obstante todas as condenações sofridas e não obstante as quatro últimas lhe tenham valido a condenação em penas de prisão efectiva (sendo que em 3 delas estava em causa a prática de crime da mesma natureza daquele pelo qual foi condenado nestes autos), o arguido voltou a reiterar na prática do mesmo tipo de crime, que atenta contra o património de outrem, manifestando, assim, desprezo pelos valores inerentes à proteção de tal bem jurídico, absoluta indiferença às condenações anteriormente sofridas e demonstrando não ter interiorizado minimamente o desvalor das suas condutas, nem mesmo após lhe terem sido aplicadas várias penas de prisão efectiva nas quatro condenações anteriores;
- Ademais, os factos que motivaram a condenação do arguido nestes autos foram praticados pouco mais de 2 anos após se encontrar em liberdade, de onde se retira uma vez mais que o arguido tem mantido absoluta indiferença não só às condenações sofridas, como também às penas que lhe foram impostas;
- Acresce que, em julgamento, pese embora tenha confessado parcialmente os factos (o que pouco abona a favor do arguido face à elucidativa e cabal prova da prática dos factos contra si reunida nos autos) o arguido revelou um reduzido sentido crítico face ao seu comportamento, adotando uma postura de vitimização, alegando que não beneficia de qualquer apoio familiar nem de “ajudas”, conforme se salientou, e bem, no Acórdão recorrido;
- Por fim, como se salientou com acerto no Acórdão, o arguido, pelos hábitos de consumo de estupefacientes, pela falta de adesão ao plano terapêutico que lhe foi prescrito (de modo a debelar as suas fragilidades ao nível da saúde mental), pela ausência de permeabilidade à intervenção dos serviços de reinserção social, pelo seu desinvestimento escolar e laboral, pela inexistência de laços familiares, sendo certo que não revelou ter interiorizado o desvalor do seu comportamento, nem capacidade de avaliar as suas debilidades, apresenta elevados riscos de reincidência;
5º. O arguido já sofreu diversas condenações pelo mesmo tipo de ilícito e o seu passado criminoso, de onde resulta a reiteração na ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma incriminadora pela qual foi condenado nestes autos, demonstra, assim, claramente, que não é possível, nos termos do artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal, fazer um juízo favorável quanto à sua capacidade de se conformar com o Direito e com os valores por ele tutelados;
6º. O arguido continua a revelar uma absoluta desconsideração pelos bens jurídicos penalmente tutelados em geral e, em particular, pelos bens jurídicos tutelados pela norma incriminadora pela qual foi condenado nestes autos;
7º. A execução da pena de prisão imposta ao arguido surge, assim, como a única solução punitiva adequada e suficiente às elevadíssimas necessidades de prevenção especial que o mesmo suscita e, bem assim, à reposição da confiança da comunidade na vigência da norma violada;
8º. O Tribunal Colectivo atendeu e valorou adequadamente todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, levando em linha de conta, como resulta da leitura do acórdão, a situação de imputabilidade diminuída do arguido e a confissão parcial que formulou;
9º. Sucede que, apesar da patologia (debilidade mental ligeira) de que o arguido padece, o que diminui o seu grau de culpa, certo é que o mesmo tem contribuído para o agravamento da sua situação de saúde, face aos seus consumos de estupefacientes e na medida em que não aderiu a tratamento psicofarmacológico que lhe foi prescrito;
10º. Assim, tendo em conta a intensidade do dolo com que o arguido actuou na prática do crime, na forma mais grave de dolo directo, o grau mediano de ilicitude dos factos, as elevadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir (atendendo à frequência com que este tipo de ilícitos são praticados, levando a que o mínimo de pena imprescindível ao restabelecimento da confiança colectiva na validade e vigência da norma violada se situe algo acima do limite mínimo da moldura penal), as elevadas exigências de prevenção especial advenientes do facto de o arguido ter um extenso rol de antecedentes criminais (conforme já antes mencionado) sete dos quais pelo mesmo tipo de ilícito e a circunstância de o arguido não ter demonstrado em audiência que interiorizou o desvalor da sua conduta (conforme bem se salienta na sentença recorrida), a moldura concreta da pena de prisão aplicada ao arguido pela prática do crime de furto qualificado, como reincidente, não muito distanciada do limite mínimo legal, é perfeitamente adequada e justificada para a cabal salvaguarda das finalidades da punição;
11º. Não tendo o arguido sido considerado inimputável, nem havendo fundamento de facto para tal, face ao teor do relatório pericial de fls. 271 a 277 (relatório da perícia médico-legal de psiquiatria), não deverá determinar-se o cumprimento da pena aplicada ao arguido em estabelecimento destinado a inimputáveis.
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4) O recurso foi remetido para este Tribunal da Relação e aqui, com vista nos termos do artigo 416.º do Código de Processo Penal, o Ex.mo Senhor Procurador – Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente.
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5) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido apresentou resposta, repisando “integralmente todos os termos do Recurso interposto em 18-11-2022, pelo que requer o prosseguimento do feito e suplica para que seja dado provimento ao instrumento recursal apresentado, como medida de justiça”.
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6) Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
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Cumpre apreciar e decidir.
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B) Fundamentação:
1. Âmbito do recurso e questões a decidir:
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, face ao disposto no artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que estabelece que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”; são, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2, e 410.º, nº 3, do mesmo diploma legal). O que é pacífico, tanto a nível da doutrina como da jurisprudência (cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113; bem como o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no DR 1ª série, de 28.12.1995; e ainda, entre muitos, os Acórdãos do STJ de 11.7.2019, in www.dgsi.pt; de 25.06.1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03.02.1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28.04.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 193.
Acresce que da conjugação das normas constantes dos artigos 368.º e 369.º, por remissão do artigo 424.º, n.º 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objeto do recurso pela ordem seguinte:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pelos vícios enumerados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a que se segue impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412.º, do mesmo diploma;
Por último, as questões relativas à matéria de Direito.
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2. No caso dos autos face às conclusões da motivação apresentadas pelo arguido, as questões a decidir são as seguintes:
1.ª: Impugnação da matéria de facto;
2.ª: Imputabilidade diminuída do arguido;
3.ª: Escolha e medida da pena; excessividade da pena aplicada;
4.ª A reincidência: vício da decisão recorrida cujo conhecimento é oficioso, nos termos previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
5.ª Eventual suspensão da execução da pena de prisão;
6.ª Cumprimento da pena de prisão em estabelecimento destinado a imputáveis.
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3. A Decisão recorrida:
Naquilo em que o mesmo releva para o conhecimento do objeto do recurso, é o seguinte o teor do Acórdão recorrido:
(…) Matéria de facto provada
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos, com relevância para a decisão de mérito:
1) No dia 27 de janeiro de 2022, pelas 12:00 horas, o arguido dirigiu-se à Rua B, Seixal, e, aí chegado, espreitou para o interior e procurou abrir as portas e janelas de residências e portões de garagens que aí se situavam, tendo em vista apoderar-se de objetos com valor económico que se encontrassem no interior das mesmas, introduzindo-se no seu interior através do arrombamento das respetivas portas, se necessário fosse;
2) Breves momentos depois, o arguido acercou-se da garagem situada nas traseiras da Rua ..., propriedade de C e forçou e estroncou a fechadura do portão da mesma, que estava fechado, introduzindo- se no seu interior;
3) Uma vez no interior da referida garagem, o arguido A retirou, do local onde se encontravam:
i. 7 (sete) garrafas de Licor Beirão;
ii. 4 (quatro) garrafas de Martini;
iii. 1 (uma) garrafa de Gin;
iv. 2 (duas) garrafas de Moscatel de Setúbal;
v. 2 (duas) facas de cozinha, da marca SICO;
vi. 3 (três) rolos de toalhas de cozinha, da marca ROLLODRAP;
vii. 2 (duas) colheres de cozinha da marca FAPLANA;
viii. 1 (um) contador de voltas;
4) Tais objetos tinham o valor total aproximado de 338€ (trezentos e trinta e oito euros);
5) O arguido A colocou os artigos mencionados em 3. no interior de sacos do lixo pretos de grandes dimensões, e, de seguida e na posse dos mesmos, abandonou o local, levando-os consigo, assim os fazendo seus;
6) Logo após, o arguido A dirigiu-se rapidamente à zona de estacionamento situada na mesma Rua ..., onde começou a acondicionar os bens que tinha retirado da referida garagem, no interior de um saco de compras do Pingo-Doce, tendo sido seguido e intercetado por agentes da Polícia de Segurança Pública na posse dos mesmos;
7) O arguido A padece de debilidade mental ligeira, condição que reduz a sua capacidade de avaliação das consequências dos seus atos e determina um risco elevado de voltar a praticar atos semelhantes aos supra referidos;
8) Ao atuar da forma descrita, o arguido A quis fazer seus os objetos descritos, o que efetivamente fez, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam, mas antes a terceira pessoa, contra cuja vontade agia;
9) E porque não autorizado para o efeito pelo seu legítimo proprietário, sabia que não podia agir do modo descrito, forçando e estroncando a porta da garagem acima referida para se introduzir no seu interior, assim como sabia que não podia apoderar-se de bens que não eram seus, o que representou, quis e conseguiu;
10) O arguido A agiu de forma livre, deliberada, voluntária e consciente;
11) Bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas, e, ainda assim, não se coibiu de as adotar, mas tendo alterada/diminuída, mas não excluída, a sua capacidade de decidir e avaliar o valor e significado proibido dos seus atos;
REINCIDÊNCIA
12) O arguido regista os seguintes antecedentes criminais:
i. No âmbito do processo n.º 1016/01.5PCALM, que correu termos no Tribunal Colectivo do 2.º Juízo Criminal de Almada foi condenado, por decisão transitada em julgado em 20/05/2002, pela prática, 06/07/2001, de três crimes de furto qualificado, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos;
ii. No âmbito do processo n.º 728/01.8PCALM, que correu termos no Tribunal Colectivo do 2.º Juízo Criminal de Almada foi condenado, por decisão transitada em julgado em 25/09/2002, pela prática em 18/09/1984 de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos e 7 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos;
iii. No âmbito do processo n.º 343/02.9GDALM, que correu termos no Tribunal Colectivo do 1.º Juízo Criminal de Almada, foi condenado, por decisão transitada em julgado em 03/11/2005, pela prática, em 13/05/2002, de um crime de furto qualificado, na pena de 30 meses de prisão;
No âmbito do processo n.º 343/02.9GDALM, por decisão transitada em julgado em 04/09/2006, foi realizado o cúmulo jurídico das penas aplicadas nesses autos e nos processos n.ºs 1016/01.5PCALM, e 728/01.8PCALM tendo o arguido sido condenado na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão
iv. No âmbito do processo n.º 1530/02.5PCALM, que correu termos no Tribunal Coletivo do 2.º Juízo Criminal de Almada, foi condenado, por decisão transitada em julgado em 21/04/2003, pela prática em 04/09/2002 de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão;
v. No âmbito do processo n.º 638/08.8GDALM, que correu termos no 2.º Juízo de Competência Criminal de Almada foi condenado, por decisão transitada em julgado em 16/11/2009, pela prática, em 14/10/2008, de 1 crime tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de 3 anos e 4 meses de prisão;
vi. No âmbito do processo n.º 776/15.0GCALM, que correu termos no Tribunal Coletivo do 2.º Juízo Central Criminal de Almada o arguido foi condenado, por decisão transitada em julgado em 08/08/2016, pela prática, em 29/03/2015 de um crime de furto qualificado, em 30/03/2015, de um crime de furto qualificado na forma tentada e de um crime de introdução em local vedado ao público, na pena única de 4 anos de prisão, a ser cumprida em ala psiquiátrica até que seja submetido a avaliação mais rigorosa de natureza psiquiátrica e encaminhamento para estabelecimento adequado se necessário;
13) No âmbito do processo n.º 638/08.8GDALM, o arguido foi detido para sujeição a primeiro interrogatório judicial em 14/10/2008, tendo-lhe sido aplicada a medida de coação de obrigação de permanência na habitação a que ficou sujeito até 26/11/2008, após o que, por despacho proferido em 03/07/2009 foi ordenada a libertação do mesmo e a sujeição à medida de coação de obrigação de permanência na habitação. Por despacho proferido em 21/09/2009, foi determinada a substituição da medida de coação de obrigação de permanência na habitação pela medida de coação de prisão preventiva, tendo sido desligado deste processo e ligado ao processo n.º 343/02.9GDALM em 03/01/2011, a fim de ai cumprir a pena de 1 (um) ano e (6) seis meses de prisão decorrente da revogação da liberdade condicional, findo o qual, em 02/08/2012 foi de novo ligado a estes autos, até ao termo da pena de prisão, atingido em 12/09/2013;
14) No âmbito do processo n.º 776/15.0GCALM, o arguido foi detido em 19/06/2015 e ficou sujeito à medida de coação de prisão preventiva desde o dia 20/06/2015, tendo iniciado o cumprimento de pena em estabelecimento destinado a inimputáveis (Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental do EP Central de Santa Cruz do Bispo) em 08/08/2016 até ao dia 19/05/2019, data do termo da pena aplicada;
Mais se provou que (condições pessoais):
15) A é originário de uma família de condição social muito precária e disfuncional;
16) Os pais nunca coabitaram e o arguido, praticamente, não conviveu com o pai;
17) Viveu com a mãe até aos quatro anos de idade, num contexto de grande precariedade e de negligência, altura em que foi vítima de atropelamento e sofreu traumatismo craniano que se supõe ter deixado sequelas a nível cognitivo;
18) O arguido foi integrado numa família de acolhimento até aos oito anos, idade em que voltou a casa da mãe e do padrasto, que residiam numa zona socialmente problemática;
19) A começou a desenvolver vivências de rua e a praticar pequenos furtos no bairro de residência;
20) Foi colocado noutra família de acolhimento aos 11 anos de idade, mas agravou os comportamentos desadaptados, fazendo fugas de casa e da escola;
21) Começou também a consumir estupefacientes, nomeadamente canábis, embora também exista referência ao consumo de outras drogas;
22) Aos 14 anos de idade, por determinação do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, A cumpriu uma medida de internamento de dois anos no colégio Dr. Alberto Souto;
23) Aos 16 anos de idade o arguido reintegrou o agregado materno, mas só lá pernoitava, não se envolvendo na dinâmica familiar e ocupando o tempo na rua, convivendo com pares;
24) A não conseguiu completar o 1º ciclo de escolaridade pelo que não sabe ler, escrever e contar;
25) Também não fez qualquer formação profissional;
26) A partir de maio de 2002 o arguido sofreu condenações, tendo-lhe sido concedida em 07-07-2008 liberdade condicional que veio a ser revogada em 06-12-2010;
27) Em 2011 foi diagnosticado ao arguido a doença mental de psicose esquizofrénica e debilidade ligeira;
28) Por decisão do Tribunal de Execução de Penas de Évora proferida no processo n.º 672/10.8TXEVR em 19/12/2011, foi determinado que o arguido cumpriria a pena de 3 anos e 4 meses de prisão aplicada no processo n.º 638/08.8DGALM, em “estabelecimento destinado a inimputáveis”;
29) O arguido foi internado na Clínica Psiquiátrica de Santa Cruz do Bispo, de onde foi libertado em 2013;
30) Como a mãe do arguido faleceu em 2012, este integrou o agregado do padrasto, tendo, de acordo com os registos existentes no seu dossier, incendiado a habitação, o que levou a que fosse internado no Hospital Garcia de Orta e, quando teve alta, foi viver para a rua;
31) Tudo indica que nesta altura aumentou a convivialidade com pares toxicodependentes e delinquentes;
32) Como vivia na rua tinha o apoio da AMI, ao nível da alimentação, vestuário e cuidados de higiene, mas recusou a integração numa instituição;
33) A terá deixado de tomar os medicamentos, nomeadamente o neuroléptico injetável de libertação prolongada, tendo vindo a cometer novos furtos e voltou a ser preso em junho de 2015;
34) Foi condenado em cúmulo a 4 anos de internamento em estabelecimento de saúde mental, que cumpriu na Clínica Psiquiátrica de Santa Cruz do Bispo até junho de 2019;
35) Foi um vizinho e amigo D, que o foi buscar a Santa Cruz do Bispo, quando saiu em liberdade, e foi para a casa deste que foi viver;
36) Ali permaneceu algum tempo até que foi repreendido por esta pessoa, devido ao facto das entidades policiais ali se deslocarem frequentemente, alegadamente porque o arguido cometia crimes de furto;
37) Este amigo afirma que não o expulsou de casa, terá sido o arguido a sair e ir viver na rua, porque não queria cumprir regras básicas de convivência familiar;
38) Aquando da reclusão o arguido residia num apartamento de habitação social, localizado no Monte da Caparica, que havia ocupado ilegalmente;
39) A habitação não dispunha de abastecimento de água e de eletricidade;
40) O arguido tinha apoio do Centro Comunitário E, que lhe servia refeições, lavava a roupa e permita-lhe cuidar da sua higiene;
41) Era também este serviço que o conduzia ao serviço de psiquiatria do Hospital Garcia de Orta, a fim de tomar a medicação;
42) Porém, ultimamente recusava tomar a medicação e chegou a fugir do Hospital quando ali foi levado para o fazer;
43) Também foi a assistente social deste centro comunitário que diligenciou a sua legalização junto do SEF, o que não foi viável uma vez que o arguido não conseguiu demonstrar que tinha residência e meios de subsistência;
44) Tudo indica que o arguido, eventualmente porque estaria perturbado mentalmente e não se queria tratar, mantinha comportamentos socialmente desajustados, existindo diversos registos policiais da Guarda Nacional Republicana e da Polícia de Segurança Pública quanto a ele;
45) O presente processo judicial teve um impacto significativo na vida do arguido atendendo a que a reclusão interrompeu os seus comportamentos disruptivos;
46) Contudo, o arguido não reconhece desvalor à sua conduta nem a desviância do seu percurso de vida, justificando a prática dos crimes com o facto de, segundo ele, não ter família e como tal não ter apoio;
47) De acordo com a avaliação dos serviços de reinserção social o arguido foi educado num contexto familiar e social desfavorável pelo que não adquiriu competências pessoais e sociais essenciais à sua integração social, particularmente a nível da sua educação, formação profissional, da regulação emocional, resolução de problemas e definição de objetivos de vida;
48) O seu nível de literacia é muito reduzido o que dificulta a sua compreensão de si e do mundo, o que é um sério handicap à sua integração social;
49) Eventualmente, a disrupção comportamental que vem manifestando desde os 8 anos de idade, já seria a génese da doença mental (esquizofrenia) que lhe foi diagnosticada em 2011;
50) A progressão da doença foi negativa do ponto de vista da adaptação social porque o arguido também passou a consumir drogas em idade precoce e nunca aderiu ao tratamento;
51) Por outro lado, tendo ficado sem apoio familiar, em razão do falecimento da mãe, passou a viver na rua e também não cumpria as orientações das instituições de apoio social locais;
52) O arguido sempre recusou internamento em qualquer instituição de apoio social;
53) No presente, o arguido não tem documentação: autorização de residência emitida pelo SEF; não dispõe de habitação (pois ocupava um apartamento de forma ilegal que já foi tomado pela entidade proprietária (IHRU); não tem emprego, nem capacidade para trabalhar regularmente e como tal não tem meios de subsistência;
54) O arguido também não revela motivação para cumprir o plano terapêutico e também revela grande dificuldade em seguir as orientações dos serviços locais de apoio social.
*
1.2) Matéria de facto não provada
Da audiência de discussão e julgamento não resultou provado que:
a) Em data anterior ao dia 27 de janeiro de 2022, o arguido decidiu apoderar-se de objetos com valor económico que se encontrassem no interior de residências ou dos respetivos anexos e/ou garagens.
b) O arguido causou a obstrução da fechadura e a mesma ficou com marcas na zona da tranca inferior, assim a estragando e inutilizando.
c) O arguido retirou da garagem 1 (uma) bicicleta BTT de Suspensão Total ST 540S, no valor de €650,00 (seiscentos e cinquenta euros), a qual recolheu do local e fez sua.
d) Como consequência direta e necessária da atuação do arguido A, a fechadura do portão da garagem referida sofreu estragos, o que causou ao respetivo proprietário um prejuízo de valor não concretamente apurado.
(…).
*
4. Apreciação do recurso
1.ª questão: A alegada impugnação da matéria de facto.
O recorrente começa por referir na primeira conclusão apresentada que “o presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito da sentença condenatória”. No entanto, das seguintes conclusões, não resulta que esteja em causa a matéria de facto apurada em audiência de julgamento, até porque, como reconheceu na quarta conclusão, o arguido confessou os factos de que vinha acusado. Como é sabido, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: a primeira, num âmbito mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e a segunda, num contexto mais amplo, nos termos previstos no artigo 412.º, n/s 3, 4 e 6 do mesmo diploma legal. Na primeira via de impugnação, estamos perante vícios decisórios previstos nas alíneas do artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, cuja indagação, como resulta do preceito, tem de resultar da decisão recorrida, «por si só ou conjugada com as regras da experiência comum», não sendo admissível o recurso a elementos estranhos àquela, para a fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento: como referem Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques (in recursos Penais, 9.ª edição, Rei dos Livros), neste caso o recorrente “não pode ir buscar outros elementos para fundamentar o vício invocado fora da decisão, nomeadamente ir à cata de eventuais contradições entre a decisão e outras peças processuais, como por exemplo recorrer a dados do inquérito, da instrução ou do próprio julgamento”; na segunda via de impugnação, num outro âmbito, por via da impugnação “ampla” da matéria de facto (também chamada recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto), a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que contém e pode ser extraído da prova documentada produzida em audiência, dentro dos limites dados pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelo artigo 412.º, n.ºs 3  e 4 do Código de Processo Penal.
Enquanto na primeira via de impugnação, o recorrente invoca vícios da própria decisão recorrida, «por si só ou conjugada com as regras da experiência comum», na segunda, o recorrente invoca erros de julgamento com base nas provas produzidas e “erradamente” apreciadas pelo Tribunal recorrido. Neste último caso, o recorrente pretende é que o Tribunal de recurso se debruce não apenas sobre o texto da decisão recorrida, mas também sobre a prova produzida no Tribunal recorrido (cf. com o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09/05/2017 (www.dgsi.pt). Acresce que quando o recorrente opta pela impugnação ampla da matéria de facto, teria de ter dado cumprimento a um “tríplice ónus”, em obediência ao disposto no artigo 412.º, números 4 e 5 do Código de Processo Penal, como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 12/09/2012, no processo n.º 45/09.8GBACB.C1 (relatado pela juíza desembargadora Brízida Martins): 
a) Indicar, dos pontos de facto, os que considera incorretamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência;
b) Indicar, das provas, as que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação – o que determina que se identifique qual o meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa, que decisão se impõe face a esse meio de prova e porque se impõe. Caso o meio de prova tenha sido gravado, a norma exige a indicação do início e termo da gravação e a indicação do ponto preciso da gravação onde se encontra o fundamento da impugnação (as concretas passagens a que se refere o n.º 4 do encimado artigo 412.º);
c) Indicar que provas pretende que sejam renovadas, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação.
Na verdade, impõe o artigo 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal que quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo, o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da tomada na sentença e/ou as que deviam ser renovadas. Esta especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação (artigo 412.º, n.º 4 do Código de Processo Penal). Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente”, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08/03/2012 no Acórdão n.º 3/2012.
Todas estas especificações devem constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas pelo recorrente, sendo que o incumprimento das formalidades impostas pelo artigo 412.º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla.
No caso dos autos, não tendo o recorrente cumprido o ónus de impugnação, impõem-se concluir que não pode ser posta em causa a matéria de facto dada como assente pelo Tribunal recorrido, sendo certo que, como o próprio não desmente, “reconheceu os factos que lhe vinham imputados, em sede de primeiro interrogatório judicial e depois, parcialmente, em audiência de discussão e julgamento”, como se escreveu na decisão recorrida.
Quanto à alegada “imputabilidade diminuída do arguido”.
Nas conclusões do recurso, vem alegada uma “imputabilidade reduzida” que foi desconsiderada pelo Tribunal recorrido, razão pela qual “jamais poderia ser submetido à pena de prisão efectiva em um estabelecimento prisional convencional, pois não ostenta capacidades mentais suficientes”. Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 31/08/2022, processo n.º 441/20.7PBLRA.C1, a imputabilidade diminuída ou atenuada como alguns lhe chamam, não está prevista em qualquer preceito legal no Código Penal, “quer a nível de definição quer a nível de efeitos que podem surgir com a sua aplicação”. Conforme se refere no acórdão do STJ de 3/7/2014 (processo n.º 354/12.6GASXL.L1.S1, consultado em www.dgsi.pt), «os casos de “diminuição sensível da capacidade de avaliação” podem ser tratados como de inimputabilidade ou antes de imputabilidade (diminuída), de acordo com o juízo que o tribunal faça sobre os pressupostos referidos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 20.º do CP. No caso de o tribunal considerar o agente imputável, estaremos então perante um caso de imputabilidade diminuída, mas o legislador não determina nem sequer prevê a atenuação especial da pena, como se imporia caso a imputabilidade diminuída se fundasse numa presumida diminuição da culpa. É que na determinação do grau de culpa na imputabilidade diminuída há que levar em conta as qualidades pessoais do agente, refletidas no facto; quando estas se revelarem especialmente desvaliosas do ponto de vista do direito, estaremos perante uma culpa agravada, a que corresponderá uma pena necessariamente mais grave».
A propósito escreve Paulo Pinto de Albuquerque na anotação ao artigo 20.º do Código Penal (in Comentário do Código Penal, Universidade católica, 5.ª edição actualizada, Lisboa 2022, páginas 200 e 201), que o agente imputável diminuído, “pode ser sancionado com uma medida de segurança quando seja declarado como inimputável e perigoso; pode ser condenado em pena a executar em estabelecimento prisional comum, não verificados os pressupostos do artigo 104.º do Código Penal; pode ser condenado em pena a executar em estabelecimento destinado a inimputáveis, verificados os pressupostos do artigo 104º do CP; pode ser condenado em pena relativamente indeterminada, quando seja declarado imputável e a sua anomalia psíquica coincida com uma tendência para o crime (artigo 83º do CP) e, finalmente, pode ser condenado em pena atenuada quando seja declarado imputável e não perigoso”.
No caso dos autos, o Tribunal recorrido partindo do relatório pericial junto aos autos a folhas 276 e 277[1], deu como provado que o arguido bem sabia que as suas condutas “eram proibidas por lei e criminalmente punidas, e, ainda assim, não se coibiu de as adotar, mas tendo alterada/diminuída, mas não excluída, a sua capacidade de decidir e avaliar o valor e significado proibido dos seus atos”. Deste modo, o Tribunal considerou o arguido como imputável por “não revelar indícios de inimputabilidade”, apresentando uma alteração/diminuição da sua imputabilidade e, ao contrário do alegado pelo recorrente, não desconsiderou esse facto, porque de forma expressa, entendeu que o mesmo era “portador de uma debilidade mental ligeira, que reduz a capacidade de avaliação das consequências dos seus atos, sendo a sua imputabilidade reduzida, motivo pelo qual deverá considerar-se que o seu grau de culpa se mostra diminuído”.
O Tribunal recorrido entendeu e bem, que a imputabilidade diminuída de que o arguido era portador, deveria ser ponderada para mitigar o grau de culpa em sede de escolha e medida da pena concreta, o que nos leva já à terceira questão a decidir no presente recurso.
Da escolha e da medida da pena; excessividade da pena aplicada.
Vejamos, começando por atender ao que foi escrito no acórdão a este respeito (transcrição):
2.1) Determinação da medida concreta da pena
Cumpre agora determinar a natureza e a medida da pena a aplicar, tendo presente o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, e, como ponto de partida, a moldura penal abstrata do crime por ele praticado, de furto qualificado, previsto no artigo 204.º, n.º 2, alínea e) do Código Penal, punido com pena de 2 (dois) a 8 (oito) anos de prisão.
*
Dentro da moldura acima indicada, deverá a pena ser agora determinada em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção.
O modelo mais adequado de determinação da pena é aquele que comete à culpa a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral de integração a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo coincide com a medida ótima de tutela dos bens jurídicos e cujo limite mínimo corresponde às irrenunciáveis exigências de defesa do ordenamento jurídico e, por último à prevenção especial de integração a função de encontrar, dentro da moldura de prevenção, o quantum exato de pena que melhor sirva as exigências de socialização .
No crime de furto deverá assinalar-se que o número elevado de crimes desta índole aumenta as exigências de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma, o que equivale a dizer que aumenta as exigências da prevenção geral positiva.
Na determinação da medida concreta da pena deverão ser consideradas todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo legal convocado, sejam expressivas das exigências concretas de culpa e de prevenção (cfr. artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal).
*
Considerando agora os critérios parametrizadores enunciados no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, e reportando-nos aos fatores concretos concernentes à execução dos factos evidenciam-se as seguintes circunstâncias com relevo para a correspondente ponderação:
- O grau de ilicitude dos factos é mediano, tendo o arguido agido durante o dia, sendo que foi intercetado pelas entidades policiais pouco tempo depois de ter consumado os factos, o que propiciou a recuperação dos objetos furtados;
- A conduta do arguido anterior aos factos deverá ser ponderada desfavoravelmente, uma vez que o mesmo já regista diversos contactos com o sistema de justiça, traduzidos em seis condenações, cinco das quais pelo cometimento de crimes contra o património (pela prática de sete crimes de furto qualificado, um crime de furto qualificado na forma tentada e de um crime de introdução em local vedado ao público) e uma pelo crime de trafico de estupefacientes, sendo certo que a última condenação se reporta a factos praticados em março de 2015 e o arguido esteve a cumprir pena privativa da liberdade até maio de 2019;
- Da análise do percurso pessoal do arguido ressalta que o mesmo, atualmente com 38 anos de idade, teve um processo de crescimento num contexto familiar e social desfavorável, tendo sofrido na infância um acidente que o poderá ter afetado a nível cognitivo, tendo sido diagnosticado com doença mental (esquizofrenia) desde 2011, situação agravada pelo consumo de estupefacientes que iniciou em idade precoce. O arguido não completou qualquer nível de escolaridade, sendo analfabeto, nunca aderiu ao tratamento da sua doença e recusou o internamento em qualquer instituição de apoio. Não possui qualquer documentação, não tem qualquer apoio familiar, sobretudo após o falecimento da sua mãe, não tem emprego, nem capacidade para trabalhar regularmente, nem meios de subsistência. O arguido também não revela motivação para cumprir o plano terapêutico e revela grande dificuldade em seguir as orientações dos serviços locais de apoio social. Assim, terá se de concluir que, apesar da patologia (debilidade mental ligeira) de que o arguido de que padece, o que diminui o seu grau de culpa, certo é que o mesmo tem contribuído para o agravamento da sua situação de saúde, face aos seus consumos de estupefacientes e na medida em que não aderiu a tratamento psicofarmacológico que lhe foi prescrito;
- Apesar de ter reconhecido, parcialmente, os factos praticados, o arguido revela um reduzido sentido crítico face ao seu comportamento, adotando uma postura de vitimização, alegando que não beneficia de qualquer apoio familiar nem de “ajudas”;
- No entanto, o arguido é portador de uma debilidade mental ligeira, que reduz a capacidade de avaliação das consequências dos seus atos, sendo a sua imputabilidade reduzida, motivo pelo qual deverá considerar-se que o seu grau de culpa se mostra diminuído.
Tudo visto e ponderado, atentas as fortes razões de prevenção geral e especial supra referidas, o tribunal decide aplicar ao arguido pena de 2 (dois) anos e (10) meses de prisão.
*
Na moldura penal abstrata prevista para o crime de furto qualificado, previsto no artigo 204.º, n.º 2, alínea e) do Código Penal, encontra-se estabelecida uma pena de 2 (dois) a 8 (oito) anos de prisão. O código Penal contém uma disposição preliminar dentro do Título III, que se ocupa das consequências jurídicas do facto, nos termos da qual a aplicação de uma pena tem como finalidade “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” – cf.  o artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal. Nos termos do disposto no n.º 2 do mesmo artigo, «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa». Por sua vez, estabelece o artigo 70.º do Código Penal que «se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o Tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição». Para a determinação da medida concreta da pena há que fazer apelo aos critérios definidos pelo artigos 71.º, n.º 1, do Código Penal, nos termos dos quais, tal medida será encontrada dentro da moldura penal abstratamente aplicável, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo ainda a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente. Deve o Tribunal na determinação concreta da pena o tribunal atender a «todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena».
No caso dos autos, o Tribunal recorrido fundamentou corretamente a pena aplicada, considerando o “mediano grau da ilicitude dos factos”, mas salientando, em desfavor do arguido, a sua conduta anterior que efetivamente acentua as exigências de prevenção especial que se fazem sentir no caso em apreço.  Na verdade, não se pode olvidar as seis condenações anteriores, cinco pela prática de crimes contra o património, sendo certo que como salientou o Tribunal recorrido, a última condenação “se reporta a factos praticados em março de 2015 e o arguido esteve a cumprir pena privativa da liberdade até maio de 2019”. Mais ponderou acertadamente o Tribunal recorrido, o “reduzido sentido crítico face ao seu comportamento, adotando uma postura de vitimização”, apesar de ter reconhecido “parcialmente” os factos.
O Tribunal recorrido ponderou ainda, além das circunstâncias pessoais socioecónomicas do arguido, o facto de este ser portador de “uma debilidade mental ligeira, que reduz a capacidade de avaliação das consequências dos seus atos, sendo a sua imputabilidade reduzida”, o que justificava uma diminuição do seu “grau de culpa.
Assim, é manifesto que “atentas as fortes razões de prevenção geral e especial” que se fazem sentir no caso dos autos, não merece qualquer reparo a medida da pena aplicada, muito próxima do limite mínimo previsto na moldura penal, não resultando da ponderação levada a cabo pelo Tribunal recorrido que não tenha sido dado o “justo relevo atenuativo às circunstâncias que depõem a seu favor, às usas condições pessoais e á sua condição de imputabilidade reduzida”, como concluiu o recorrente na 13.ª conclusão.
Mostra-se por isso adequadamente fixada a pena de 2 (dois) anos e (10) meses de prisão.
Quanto à aplicação da circunstância qualificativa da reincidência que embora não tenha sido posta em causa pelo recorrente, deve ser ponderada por este Tribunal de recurso uma vez que a decisão recorrida omite factos necessários à condenação do recorrente como recorrente, o que configura um vício da decisão recorrida, nos termos previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e cujo conhecimento é oficioso.
Vejamos.
Nos termos do artigo 75.º n.º 1 do Código Penal, «é punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a seis meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a seis meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime». Segundo o n.º 2 do mesmo artigo, acrescenta: «o crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de cinco anos; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade».
São, assim, pressupostos formais da reincidência:
a) que o crime agora cometido seja um crime doloso;
b) que este crime, sem a incidência da reincidência, deva ser punido com pena de prisão efectiva superior a 6 meses;
c) que o arguido tenha antes sido condenado, por decisão transitada em julgado, também em pena de prisão efectiva superior a 6 meses, por outro crime doloso;
d) que entre a prática do crime anterior e a do novo crime não tenham decorrido mais de 5 anos, prazo este que se suspende durante o tempo em que o arguido tenha estado privado da liberdade, em cumprimento de medida de coacção, de pena ou de medida de segurança.
Além destes pressupostos formais, a verificação da reincidência exige ainda um pressuposto material: o de que, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente seja de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime. Como é jurisprudência dominante, a circunstância qualificativa da reincidência, prevista no artigo 75.º do Código Penal, “não opera como mero efeito automático das anteriores condenações, ou seja, não é suficiente erigir a história delitual do arguido em pressuposto automático da agravação, exige-se a demonstração de que as condenações anteriores não tiveram a suficiente força de dissuasão para o afastar do crime” – cf. com o Acórdão do STJ de 17/12/2014 (relatado pelo Senhor Conselheiro Raúl Borges). Como se acrescenta neste acórdão, “só através da análise do caso concreto, do seu específico enquadramento, de uma avaliação judicial concreta do pleno das circunstâncias que enformam a vivência do arguido no período em causa, se consegue reconhecer um caso de culpa agravada, em que o arguido deva ser censurado por a condenação anterior não lhe ter servido de suficiente advertência contra o crime, ou uma falta de fundamento para a agravação da pena, por se estar perante simples pluriocasionalidade”: por isso, é necessária, “uma específica comprovação factual, de enunciação dos factos concretos dos quais se possa retirar a ilação de que a recidiva se explica por o arguido não ter sentido e interiorizado a admonição contra o crime, veiculada pela anterior condenação transitada em julgado e que conduz à falência desta no que respeita ao desiderato dissuasor (…); só através da análise do caso concreto, do seu específico enquadramento, de uma avaliação judicial concreta do pleno das circunstâncias que enformam a vivência do arguido no período em causa, poder-se-á concluir estarmos perante um caso de culpa agravada, devendo o arguido ser censurado por a condenação anterior não lhe ter servido de suficiente advertência contra o crime, ou antes, face a uma falta de fundamento para a agravação da pena, por se estar perante simples pluriocasionalidade”.
Quanto aos pressupostos formais, o Tribunal tem, em primeiro lugar, de “determinar a pena que concretamente deveria caber ao agente se ele não fosse reincidente, seguindo o procedimento normal de determinação da pena, por duas razões: para assim determinar se se verifica um dos pressupostos formais – o de o crime reiterado ser punido com prisão efectiva; e, por outro lado, para tornar possível a última operação, imposta pela 2ª parte do n.º 1 do artigo 76.º – a agravação resultante da reincidência não pode exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores”, como explica Figueiredo Dias, inDireito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, §381, pág. 270”.
No caso dos autos, verifica-se que os pressupostos formais para a punição do arguido como reincidente estão efectivamente verificados. Quanto ao pressuposto material verifica-se que da factualidade dada como provada, apenas se discriminam os antecedentes criminais do arguido, não tendo sido levados aos factos provados, quaisquer factos concretos dos quais se possa retirar a ilação de que a “recidiva se explica por o arguido não ter sentido e interiorizado a admonição contra o crime, veiculada pela anterior condenação transitada em julgado e que conduz à falência desta no que respeita ao desiderato dissuasor” (cf. a jurisprudência do STJ acima citada).
Vejamos:
Na parte da fundamentação jurídica, no que se refere à reincidência, consta o seguinte (transcrição):
2.3) Da reincidência
Nos termos do artigo 75.º do Código Penal “É punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efetiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efetiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.”
Os pressupostos formais para a punição do arguido como reincidente estão verificados uma vez que o mesmo já foi condenado em pena de prisão efetiva superior a seis meses por crime doloso (designadamente no âmbito do processo n.º 776/15.0GCALM) e, como se conclui pelos factos em apreço nos presentes autos, também deve ser condenado em pena de prisão efetiva superior a seis meses.
Por outro lado, entre a prática do crime em que anteriormente o arguido foi condenado em pena de prisão efetiva superior a seis meses (29/03/2015, no âmbito do processo n.º processo n.º 776/15.0GCALM) e a data da prática dos crimes ora em apreço (27/01/2022) decorreram mais de cinco anos.
No entanto, o arguido foi sucessivamente condenado em penas de prisão, sendo que âmbito do processo n.º 776/15.0GCALM foi detido em 19/06/2015, ficou sujeito à medida de coação de prisão preventiva desde o dia 20/06/2015 e iniciou o cumprimento de pena em estabelecimento destinado a inimputáveis (Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental do EP Central de Santa Cruz do Bispo) em 08/08/2016 até ao dia 19/05/2019.
Assim sendo, o arguido cumpriu, no total 3 anos e 11 meses de prisão, no período compreendido entre 19/06/2015 até 19/05/2019, período este que não poderá ser computado, atento o disposto no artigo 75.º, n.º 2, do Código Penal.
Deste modo, conclui-se que o arguido cometeu crime doloso punido com pena de prisão efetiva (crime de furto, praticado em 27/01/2022, punido com pena de prisão efetiva), depois de ter sido condenado, por decisão transitada em julgado, em pena de prisão superior a 6 meses (no processo n.º 776/15.0GCALM, por factos de 29/03/2015) sendo que entre a prática dos crimes em apreço não decorreu mais de cinco anos, uma vez que entre esses factos (isto é, entre 29/03/2015 e 27/01/2022), o arguido cumpriu três anos e onze meses de prisão efetiva.
Por seu turno é pressuposto material da reincidência que de acordo com as circunstâncias do caso, o agente seja de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime, assentando num conceito de culpa agravada do agente. A agravação da pena do delinquente que cometeu crimes depois de condenado anteriormente por outros da mesma espécie (reincidência específica, própria ou homótropa) ou de espécie diferente (reincidência genérica, imprópria ou polítropa) assenta, essencialmente, num maior grau de culpa, decorrente da circunstância de, apesar de já ter sido condenado, insistir em praticar o mal, em desrespeitar a ordem jurídica, conquanto não lhe seja alheia, também, a perigosidade, ou seja, o perigo revelado, face à persistência em delinquir, de voltar a cometer outros crimes.
Por seu turno, como salienta Figueiredo Dias, “só relativamente a crimes que tenham sido previstos e queridos pelo agente e se fundamentem numa atitude pessoal contrária ou indiferente às normas jurídico-penais ganha sentido o pressuposto material da reincidência da não motivação do agente pela advertência contida na condenação ou condenações anteriores”, acrescentando “o critério essencial da censura ao agente por não ter atendido a admonição contra o crime resultante da condenação ou condenações anteriores (…) exige de todo o modo, atentas as circunstâncias do caso, uma íntima conexão entre os crimes reiterados, que deva considerar-se relevante do ponto de vista daquela censura e da consequente culpa”.
No caso vertente, considerado o eloquente percurso criminal do arguido, no qual ressaltam seis condenações transitadas em julgado (cinco das quais pela prática de sete crimes de furto qualificado, de um crime de furto qualificado na forma tentada e de um crime de introdução em lugar vedado ao público e ainda outra pela prática de um crime de trafico de estupefacientes) por factos praticados no período compreendido entre os anos de 2001 e 2015, tendo-lhe sido aplicadas e ele cumprido quatro penas de prisão efetiva pelo cometimento de tais crimes, entende-se que efetivamente as condenações sofridas pelo arguido não foram suficientes para o dissuadir de manter o mesmo comportamento, não tendo manifestamente servido de suficiente advertência para evitar que o mesmo voltasse a cometer o mesmo tipo de ilícitos.
Na verdade, apesar de restituído à liberdade em 19/05/2019 o arguido não restruturou a sua vida, a partir de certa altura passou a viver na rua porque não adequou o seu comportamento as normas de convivência relativamente à pessoa que o acolheu, sendo que recusava cumprir o seu plano terapêutico, não tomando a medicação que lhe foi prescrita, não criou hábitos de trabalho nem tinha meios de subsistência, donde resulta que o mesmo evidencia falta de preparação e de competências para alterar o seu percurso de vida, apresentando elevado risco de reincidência.
Da articulação destes factos é assim possível inferir que de nada serviu ao arguido a condenação e a experiência da prisão, com vista a afastá-lo da prática de crimes, designadamente de crimes de natureza idêntica aquela pelos quais já havia cumprido várias penas de prisão efetiva.
Pelo exposto é de concluir que o arguido deve ser punido como reincidente.
Assim, as penas aplicáveis aos vários tipos de ilícito, por força do disposto no artigo 76.º, n.º 1 do Código Penal, são agravadas em um terço no seu limite mínimo, mantendo-se os respetivos limites máximos.
(…).
Ora face a esta exiguidade de factos, não é possível concluir, como fez o Tribunal recorrido, “que durante o prazo de cinco anos previsto no n.º 2 do artigo 75, o arguido tenha praticados factos dos quais se possa concluir que as condenações anteriores não lhe serviram de advertência”.
Na verdade, da sentença consta apenas dos factos provados, a indicação da data dos crimes anteriores e das respetivas sentenças, mas nada se sabe sobre as circunstâncias de facto em que foram praticados, ainda que de forma resumida: só em face do confronto entre as circunstâncias em que foi praticado o crime anterior e aquelas em que foi praticado o crime actual, é que comparando-as, se pode concluir ou não, que o arguido agiu indiferente à advertência da condenação anterior. Da leitura da sentença, ficamos a saber as circunstâncias do caso que descrevem a atual conduta ilícita do arguido, mas não se sabem, ainda que de forma sintética, as circunstâncias em que praticou o (s) crime anterior o que era essencial para se poder concluir por um juízo de reincidência. A sentença recorrida concluiu pela existência de um “elevado risco de reincidência”, entendendo que “de nada serviu ao arguido a condenação e a experiência da prisão, com vista a afastá-lo da prática de crimes, designadamente de crimes de natureza idêntica aquela pelos quais já havia cumprido várias penas de prisão efetiva”, não explicando se estamos perante um caso de culpa agravada, devendo o arguido ser censurado por a condenação anterior não lhe ter servido de suficiente advertência contra o crime, ou se estamos perante uma  situação de “pluriocasionalidade”, sem fundamento para a agravação da pena.    
Por outras palavras, durante aquele prazo de cinco anos, em termos de factos concretos em que assentaria o preenchimento do pressuposto material da reincidência, não foram apurados suficientes para o fundamentar, não tendo o Tribunal recorrido comparado as “circunstâncias do caso”, limitando-se a concluir que a condenação anterior, não serviu de suficiente advertência para o impedir de praticar o novo crime. Verifica-se, assim, que quanto ao pressuposto material, a decisão condenatória apoia a reincidência na prática do crime anterior, sem dar como provados, factos provados específicos que fossem reveladores do apontado pressuposto material.
Ora sendo assim, e nesta parte, verifica-se que quanto à circunstância qualificativa da reincidência, existe na decisão recorrida, uma insuficiência da matéria de facto provada para a decisão. Como escrevem Simas Santos e Leal Henriques, (in Recursos Penais, 9.ª edição, Rei dos Livros, 2020), existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando “se chega à conclusão de que com os factos provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou (…), quando a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito”: como entendeu o STJ no acórdão de 07/06/2021 (processo n.º 07P2268), o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que podendo e devendo ser indagados, são necessários para se formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição e decorre da circunstância do tribunal não ter dado como provados ou não provados, todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão; daí que aquela alínea se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (…)”. No mesmo sentido, se pronunciou o mesmo Tribunal Superior no Acórdão do Tribunal de 12/03/2009 (processo n.º 3173/08.5), entendendo que “a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão implica falta de factos provados que autorizem a ilação tirada. É uma lacuna de factos, que se revela internamente, só a expensas da própria sentença, sempre no cotejo da própria decisão …) mas não se confunde com a eventual falta de provas para que se pudessem dar como provados os factos que se consideraram como provados”.
Assim e concluindo, não constando os factos da descrição da matéria de facto provada, e considerando que os mesmos são importantes para se conseguir formular um juízo de condenação do arguido como reincidente, e consequentemente, no que toca à medida da pena, ocorre o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que alude o artigo 410.º, n.º 2 a) Código de Processo Penal.
Pelo exposto, e considerando que o vertido na sentença não alberga, ainda que de forma sintética, os factos referentes à anterior condenação, será de desconsiderar a qualificativa no que respeita ao crime em causa, o que tem reflexos ao nível da medida da pena. Sem o juízo da reincidência, a pena a aplicar deve ser assim, a aplicada pelo Tribunal recorrido, ou seja, a pena de 2 (dois) anos e (10) meses de prisão.
Face ao acima exposto, conclui-se que nesta parte deve ser alterada a decisão da 1.ª instância, impondo-se conceder provimento parcial ao recurso.
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Quanto à suspensão da pena de prisão:
Escreveu-se a propósito na decisão recorrida o seguinte:
“2.2) Da suspensão da pena de prisão
Nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
Verificados que sejam, pois, os pressupostos expressamente formulados pelo dispositivo em análise, o Tribunal tem o poder-dever de decretar a suspensão.
Na base de tal decisão, está em causa a ponderação, não de razões atinentes à culpa, mas apenas de razões ligadas às finalidades preventivas da punição, especialmente as que respeitam à prevenção especial de ressocialização, acentuadamente tidas em conta no instituto em análise, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral.
A finalidade política criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é, pois, o afastamento do agente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer correção ou melhora das conceções daquele sobre a vida e o mundo.
Por conseguinte, a suspensão da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime, sendo que, a ser determinada constituirá numa crença fundada de que a socialização em liberdade possa ser conseguida.
O Tribunal poderá, pois, “correr o risco” fundado e calculado sobre a manutenção do agente em liberdade, a não ser que haja razões sérias para pôr em causa a capacidade do agente de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, devendo neste caso o juízo de prognose ser desfavorável e a suspensão negada.
Em tal juízo de prognose, há que ter em conta a personalidade do agente, as suas condições de vida, a conduta anterior e posterior ao facto punível e as circunstâncias desse mesmo facto.
No caso concreto, afigura-se-nos que as condenações criminais já sofridas pelo arguido pela prática de factos de idêntica natureza não justificam como razoável um juízo de prognose positiva no sentido de que a censura do ato e a ameaça de prisão sejam já suficientes para realizarem de forma adequada as finalidades da punição.
Com efeito, à data dos factos a que se reportam os presentes autos, o arguido já havia sofrido seis condenações transitadas em julgado, cinco das quais pela prática de sete crimes de furto qualificado, um crime de furto qualificado na forma tentada e ainda um crime de trafico de estupefacientes de introdução em lugar vedado ao público, em penas de prisão suspensa e penas de prisão efetiva pelo cometimento de tais ilícitos.
Contudo e apesar de sucessivamente condenado pelo cometimento de crimes de idêntica etiologia, em penas de prisão efetiva, o arguido voltou tentar invadir a esfera do património de outrem, negando, mais uma vez, os valores inerentes à proteção de tal bem jurídico, demonstrando incapacidade para o valorar positivamente.
Acresce que o arguido, pelos hábitos de consumo de estupefacientes, pela falta de adesão ao plano terapêutico que lhe foi prescrito (de modo a debelar as suas fragilidades ao nível da saúde mental), pela ausência de permeabilidade à intervenção dos serviços de reinserção social, pelo seu desinvestimento escolar e laboral, pela inexistência de laços familiares, sendo certo que não revelou ter interiorizado o desvalor do seu comportamento, nem capacidade de avaliar as suas debilidades, apresenta elevados riscos de reincidência.
Tais circunstâncias não permitem a formulação de um juízo de prognose positivo quanto à capacidade e preparação do arguido manter uma conduta lícita, caso seja mantido em liberdade.
Nestes termos, entende-se não ser de suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido (…).
Diz o recorrente e bem, que a pena de prisão efetiva, só deve ser aplicada como “última ratio”: porém, ao contrário do alegado, o Tribunal recorrido ponderou com acerto, a suspensão da pena de prisão, tendo afastado esta por se lhe ter afigurado que “as condenações criminais já sofridas pelo arguido pela prática de factos de idêntica natureza não justificam como razoável um juízo de prognose positiva no sentido de que a censura do ato e a ameaça de prisão sejam já suficientes para realizarem de forma adequada as finalidades da punição”.
Em abono da decisão do Tribunal recorrido, entendemos que no caso dos autos, também não é possível um juízo de prognose favorável quando ao cumprimento futuro de eventuais deveres ou regras de conduta que teriam se de ser estabelecidos nos termos do disposto no artigo 50.º, n.º 2 do Código Penal, nomeadamente, a sujeição a tratamento psicológico ou psiquiátrico em instituição adequada e o respeito pela toma da medicação que porventura lhe fosse prescrita: na verdade, sem qualquer retaguarda familiar ou outra (nomeadamente vicinal que não soube também aproveitar), não se admite como possível prever que o arguido, que no passado recusou a integração numa instituição, recusou  a toma de medicação e fugiu do Hospital quando ali foi levado, venha a cumprir em meio livre, qualquer plano de tratamento à patologia que apresenta. Acresce que resulta do relatório pericial junto aos autos, que o condenado apresenta “características determinam um risco de reincidência criminal muito elevado, sendo necessária uma intervenção multidisciplinar em meio contentor para modificar o seu comportamento”, pelo que suspender a execução da pena de prisão, não tem qualquer justificação no caso do recorrente.
Improcede o recurso nesta parte.
Finalmente, quanto ao cumprimento da pena de prisão “num estabelecimento próprio para a sua imputabilidade reduzida”, também se impõe a improcedência do recurso.
Vejamos. Diz o recorrente que o Estabelecimento Prisional, “não é adequado aos inimputáveis, tampouco é pertinente para os condenados com imputabilidade reduzida”, parecendo convocar o regime previsto no artigo 104.º do Código Penal, nos termos do qual, «quando o agente não for declarado inimputável e for condenado em prisão, mas se mostrar que, por virtude de anomalia psíquica de que já sofria ao tempo do crime, o regime dos estabelecimentos comuns lhe será prejudicial, ou que ele perturbará seriamente esse regime, o tribunal ordena o seu internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena». Como entendeu o STJ, no acórdão de 06/01/2021 (proferido no processo n.º 3563/19.3JAPRT.P1.S1, consultado em www.dgsi.pt), está em causa, “mais que uma mera faculdade colocada à disposição do juiz, antes se traduzindo num poder/dever do mesmo”.
Ora, no caso dos autos, não resulta do relatório pericial que se imponha o internamento do arguido num estabelecimento destinado a inimputáveis, embora precise de uma “intervenção multidisciplinar em meio contentor para modificar o seu comportamento”, porque padece de uma debilidade mental ligeira. Salvo o devido respeito por opinião contrária, não tinha o tribunal recorrido elementos suficientes para exercer o seu poder/dever de determinar o cumprimento da pena de prisão num estabelecimento destinado a inimputáveis. Isto não quer dizer que o recluso não possa vir a beneficiar em meio prisional, mesmo num estabelecimento prisional comum, do adequado acompanhamento médico, nomeadamente na vertente de saúde mental. Na verdade, no estabelecimento prisional existem serviços clínicos adequados que permitem proporcionar os cuidados de saúde que no exterior nunca poderia beneficiar, devido à falta da já referida falta de retaguarda familiar, podendo até ser colocado num quarto de segurança junto do sector clínico, nos termos do disposto no artigo 9.º, n.º 5 do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, aprovado pela lei n.º 115/2009, de 12/10. Nos termos do disposto no artigo 7.º, deste diploma, a execução da pena de prisão, garante ao recluso, nomeadamente, o direito à saúde e ao acesso ao Serviço Nacional de Saúde em condições idênticas às que são asseguradas a todos os cidadãos. Para o efeito, quando entra no estabelecimento prisional, o recluso é avaliado através da recolha de elementos que permitam ao directo do estabelecimento determinar, “os cuidados a prestar ao recluso, mediante avaliação clínica” – cf. o artigo 19.º, n.º 1, a) do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL) e o artigo 53.º, n.º 1 do respetivo regulamento (aprovado pelo Decreto-lei n.º 51/2011, de 11 de Abril)[2]. Por outro lado, a afectação a estabelecimento prisional ou unidade é da competência do director-geral dos Serviços Prisionais, tendo em conta, além do mais, “o estado de saúde do recluso” – artigo 20.º do CEPMPL.
Deste modo, como refere o Ministério Público na resposta ao recurso, “não tendo o arguido sido considerado inimputável, nem havendo fundamento de facto para tal, face ao teor do relatório pericial de fls. 271 a 277 (relatório da perícia médico-legal de psiquiatria), não deverá determinar-se o cumprimento da pena aplicada ao arguido em estabelecimento destinado a inimputáveis”.
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C) Decisão:
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido A e, em consequência, alterando parcialmente a decisão recorrida, desconsiderando a reincidência, decidem condená-lo na pena de 2 (dois) anos e (10) meses de prisão pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, 26.º, 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, alínea e), por referência ao artigo 202.º, alínea d), todos do Código Penal, mantendo-se no mais, tudo o ali decidido.
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Sem custas – artigo 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
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Notifique.
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Lisboa, 23 de fevereiro de 2023 (o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos seus signatários – art.º 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
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Carlos da Cunha Coutinho
Raquel Lima
Micaela Pires Rodrigues
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[1] Resulta do teor do exame pericial que o arguido “preenche também critérios para Perturbação de Personalidade de Tipo Dissocial (F60.2) caracterizada por impulsividade, baixa tolerância à frustração, baixa capacidade de empatia, de arrependimento, sendo que é um diagnóstico que, por si só, não incapacita a pessoa que dela padece de avaliar a ilicitude dos actos ou de se autodeterminar de acordo com essa avaliação.” bem como apresenta “características determinam um risco de reincidência criminal muito elevado, sendo necessária uma intervenção multidisciplinar em meio contentor para modificar o seu comportamento” (cf. fls. 276 verso e 277).
[2] No prazo máximo de 72 horas após o ingresso no estabelecimento prisional, o recluso é presente a consulta médica, na qual é feita a sua avaliação e durante esta, “é prestada especial atenção à presença de distúrbios mentais – cf. a alínea a) do n.º 4, do artigo 53 do RGEP.