Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
13609/21.0T8LSB-C.L1-8
Relator: CRISTINA LOURENÇO
Descritores: MEIOS DE PROVA
SMS
DOCUMENTOS ELETRÓNICOS
ILICITUDE
PROIBIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O autor pode apresentar como prova SMS (short message service) que lhe foi remetida pela ré via WhatSapp/Messanger, através de telemóvel e que não contém qualquer referência a caráter confidencial da mensagem e não se refere à intimidade da vida privada da remetente, porquanto depois de rececionada, lida e guardada, tal comunicação não se distingue de comunicação escrita que tivesse sido enviada por via mais tradicional, por exemplo, uma carta remetida pelos serviços de correio. 
2. Os SMS, ou cópia dos mesmos, são considerados documentos eletrónicos com força probatória (arts. 2º, al. a), 3º e 4, do decreto-Lei nº 290-D/99, de 2/08 e art. 46º do Regulamento da União Europeia nº 910/2014, de 23/07/2014) e não contendo assinatura digital certificada por entidade credenciada serão apreciados nos termos gerais de direito, isto é, de acordo com as regras gerais da prova documental (art. 362º e segs. do Código Civil).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
L.F.M.S. com residência fiscal na Rua …., Guarda, intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra M.C. P.M., com domicílio profissional na Rua …., em Lisboa, pedindo seja a mesma julgada procedente, por provada, decidindo-se, em consequência:
a) Declarar que o A. é comproprietário, sem determinação de parte ou de direito, juntamente com a R., do imóvel sito (…), em Silves, descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o n.º (…);
b) Declarar que o A. é comproprietário, sem determinação de parte ou de direito, juntamente com a R. da viatura automóvel, marca Audi, modelo A1, com a matrícula (…);
c) Ordenar o averbamento da compropriedade do A. sobre os bens ora em referência, no registo predial e automóvel, respetivamente;
d) Declarar que o A. é comproprietário sem determinação de parte ou de direito, juntamento com a R., dos bens móveis que compõem o recheio do imóvel referido na alínea a) supra;
e) Declarar que o A. era comproprietário, sem determinação de parte ou de direito, juntamento com a R. do imóvel sito (…), em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º (…), da freguesia de Santos-o-Velho, desde a data da sua aquisição, apenas formalmente registada em nome da R., em 25.11.2013 e até 19.02.2020, data em que a R. o alienou sem o consentimento e contra a vontade do A.;
f) Declarar que o A. era comproprietário, sem determinação de parte ou direito, juntamente com a R. da viatura automóvel da marca BMW, modelo X6, com a matrícula (…), desde a data da sua aquisição apenas registada formalmente em nome da R., e até à data da sua venda pela A. em finais de 2019;
g) Declarar que o A. é comproprietário, sem determinação de parte ou de direito, juntamente com a R., dos bens móveis que compunham o recheio do imóvel referido na alínea e) supra;
h) Condenar a R. a reconhecer que o A. é comproprietário, juntamente com a R., sem determinação de parte ou de direito dos bens referidos nas alíneas a), b), d) e g) e, bem assim, que foi comproprietário, sem determinação de parte ou de direito, juntamente com a R., dos bens referidos supra nas als. e) e f), no período compreendido entre a data do registo da sua aquisição pela R. e a sua alienação a terceiros, também pela R.;
i) Condenar a R. a restituir ao A., os seguintes bens pessoais deste com que se locupletou:
(i) Serviço de chá/café em estanho composto entre outros, por bule, açucareiro, prato oval grande;
(ii) Serviço de jantar em louça (antigo), de família, oferecido ao A. pelos seus pais;
(iii) Fio em ouro antigo, pertença do aqui A.;
(iv) Duas toalhas de mesa antigas, uma delas em renda, feita à mão, que pertenceu aos avós do aqui A.;
(v) Uma salva de prata, oferecida ao A. pelos seus pais;
 j) Condenar a R. a conferir ao A. acesso para uso e fruição aos bens referidos nas als. a) e b), de cujo uso e fruição exclusivos se locupletou, pelo menos desde setembro de 2019, nos termos previstos no art.º 1406.º n.º 1 do CC;
k) Condenar a R. a pagar ao A., o montante de € 157.709,59 (cento e cinquenta e sete mil e nove euros e cinquenta e nove cêntimos), correspondente a ½ das mais valias auferidas com a venda do imóvel descrito na al. e) e juros de mora vencidos desde a data da alienação e até à presente data, e bem assim nos vincendos até efetivo e integral pagamento;
l) Condenar a R. a pagar ao A. a quantia de € 29.270,96 (vinte e nove mil duzentos e setenta euros e noventa e seis cêntimos) correspondente a ½ do valor investido pelo A., na aquisição da casa de Lisboa, acrescido de juros vencidos até à presente data, calculados à taxa legal em vigor aplicável às obrigações civis, desde a data da aquisição do imóvel (25.11.2013) e, bem assim, nos vincendos até efetivo e integral pagamento;
m) Condenar a R. a pagar ao A. a quantia de € 9.675,75 (nove mil seiscentos e setenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos), correspondente a ½ do montante da dívida contraída pelas partes junto dos pais do A. e que este já pagou na íntegra aos seus pais, acrescida dos juros já vencidos desde a data desse pagamento e até à presente data calculados à taxa legal em vigor aplicável às obrigações civis, desde a data do pagamento (08.04.2020) e até à presente data, e bem assim nos vincendos até efetivo e integral pagamento;
n) Condenar a R. a pagar ao A., o montante de € 10.601,64 (dez mil, seiscentos e um euros e sessenta e quatro cêntimos correspondente ao remanescente do 1/2 do produto da venda do automóvel BMX X6 realizada pela R., acrescida dos juros já vencidos desde a data desse pagamento e até à presente data calculados à taxa legal em vigor aplicável às obrigações civis desde a data estimada da alienação da viatura (01.12.2019) até à presente data, e bem assim nos vincendos até efetivo e integral pagamento;
o) Condenar a R. a pagar ao A. o montante de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) a título de indemnização pelo período em que se locupletou do uso e fruição exclusivos do imóvel referido na al. a) supra, pelo menos desde setembro de 2019, acrescido do montante de € 375,00 ao mês desde a citação e até efetiva disponibilização ao A. do imóvel para seu uso e fruição previstos na al. j);
Caso se entenda que não pode ser reconhecido ao A. a qualidade de comproprietário dos bens objetos dos presentes autos,
p) Condenar a R. a pagar ao A. os montantes peticionados nas als. k), l), m), n), o) supra a título de enriquecimento sem causa acrescido do montante de € 107.000,00 (centos mil euros) também a título de enriquecimento sem causa, respeitantes aos bens referidos nas als. a) e b) supra, acrescido de juros desde a citação até integral pagamento.
Apresentou a final, como prova, entre outros, imagens de mensagens escritas trocadas entre si e a ré, via “Messenger/Whatsapp”, através de telemóvel.
*
A ré contestou a ação, concluindo pela sua improcedência e consequente absolvição dos pedidos contra si formulados.
Relativamente à prova apresentada pelo autor, nomeadamente, as mensagens escritas estabelecidas e trocadas entre ambos via Whatsapp/Messanger, através de telemóvel, pediu o respetivo desentranhamento dos autos (documentos nºs 3, 4, 5, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 25), por nunca ter autorizado aquele a usar tais mensagens relativas às suas relações pessoais, e o uso das mesmas constituir meio de prova proibido por violação do segredo relativo às comunicações e dados pessoais, consubstanciando, inclusivamente, o crime de devassa da sua vida privada.
*
O autor opôs-se à pretensão da ré.
*
Dispensada a realização da audiência prévia, foi feito o saneamento do processo, fixado o objeto do litígio e elencados os temas da prova.
Apreciados, então, os requerimentos probatórios apresentados pelas partes, e no que concerne à junção da referida prova, foi proferida a seguinte decisão:
“Requer a Ré que todos os meios de prova relativos às conversas entre A. e R. por sms, whatsapp/Messenger, juntas pelo A. sejam desentranhadas dos autos porquanto a Ré não autorizou o seu uso por parte do mesmo, constituindo o uso de tais mensagens meio de prova proibido.
A tal se opôs o A..
Apreciando e decidindo:
As mensagens sms e os e-mails, enquanto documentos eletrónicos, integram-se no conceito de prova documental.
Está em causa nos autos comunicações efectuadas entre A. e R. que tem a mesma natureza que a correspondência, em nada se distinguindo de uma “carta remetida por correio físico”. E tendo sido já recebidas, “se já foram abertas e porventura lidas e mantidas no computador (ou no telemóvel, acrescenta-se) a que se destinavam, não deverão ter mais protecção que as cartas em papel em que são recebidas, abertas ou porventura guardadas numa gaveta, numa pasta ou num arquivo”. Cfr. neste sentido, ainda que no âmbito do processo penal, vidé Ac. da Relação do Porto de 22.05.2013, Relator: Melo Lima, Processo nº 74/07.3PASTS.P1., in dgsi.pt)
De igual modo se decidiu no Ac. R. Lisboa de 15/07/08, Proc. nº 3453/2008, www.dgsi.pt, em que se escreveu: “na sua essência, a mensagem mantida em suporte digital depois de recebida e lida terá a mesma protecção da carta em papel que tenha sido recebida pelo correio e que foi aberta e guardada em arquivo pessoal”, salientando ainda que “tratando-se de meros documentos escritos, estas mensagens não gozam de aplicação do regime de protecção da reserva da correspondência e das comunicações”.
Em face do exposto, indefere-se o pedido de desentranhamento.”
*
Não se conformando com esta decisão, dela veio a ré recorrer, concluindo, assim, a motivação do seu recurso:
“A) Como resulta do disposto no nº 3 do art.º 126º do C.C. são nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada e nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular;
B) A R. nunca deu consentimento ao A. para este usar nestes autos ou em qualquer processo as comunicações efectuadas entre eles quer durante o tempo em que viveram em união de facto quer após a separação;
C) O sigilo que impende sobre as comunicações electrónicas, sobre a vida privada e sobre a integridade moral e ética de qualquer pessoa só pode ser levantado judicialmente nos termos e ao abrigo do principio da descoberta da verdade a que alude o art.º 417º do C.P.C., desde que o tribunal assim o entenda e nos termos estritamente indispensáveis a que alude o nº 2 do art.º 418º do C.P.C..
D) No caso da presente acção o A. usar as comunicações electrónicas, a devassa da vida privada e familiar e a violação da integridade moral e ética da R. sem autorização judicial e o levantamento do sigilo, sem autorização da R. e contra a vontade da mesma;
E) Tais meios de prova, usados ilicitamente são nulos e de nenhum efeitos e integram os crimes supra descritos de que a R. vai apresentar o competente procedimento criminal;
F) Acresce que em relação à causa de pedir e pedidos formulados relativamente ao reconhecimento de direito de propriedade em compropriedade de imóveis e veículos sujeitos a registo a lei exige a existência de documentos formais autênticos e ou autenticados os quais não tem qualquer conformidade com as comunicações electrónicas;
G) As comunicações electrónicas extraídas pelo A nem sequer estão autenticadas, nem identificam as fontes de emissão e recepção e são inidóneas ao direito probatório da formalidade do direito de transmissão do direito de propriedade em compropriedade ou em comunhão hereditária ou conjugal inexistente, bem como inidóneas à comprovação de qualquer direito de crédito relativamente a qualquer contrato;
H) A decisão recorrida é nula por violação do nº 3 do art.º 129º do C.C. e do disposto nos artsº. 413º, 417º e 418º todos do C.P.C. e integram os crimes dos arts.º 193º, 194º e 195º todos do C.P..
Nestes Termos e nos mais de direito aplicáveis que mui doutamente serão supridos deve o presente recurso ser dado como provado e procedente e em consequência ser proferido douto acórdão que revogue essa parte decisória do despacho saneador, declare a junção das comunicações como nula e inadmissível nos termos legais supra referidos.”
*
O autor contra-alegou, propugnou pela improcedência do recurso, mas não formulou conclusões.
Pediu a condenação da ré/recorrente como litigante de má fé, alegando, para tanto, que esta sabia que este recurso é destituído de falta de fundamento, consubstanciando um mero expediente dilatório com vista a obstaculizar à produção de prova pelo recorrido, o que se traduz em litigância de má-fé, nas modalidades expressamente previstas no art.º 542.º n.º 2 al. a) e d) do CPC.
Conclui, pedindo a condenação da recorrente em multa exemplar e em indemnização ao recorrido, nos termos do disposto no art.º 543.º n.º 1 al. a), daquele mesmo Código, ou seja, no reembolso das despesas, incluindo honorários dos mandatários, em que este se viu e verá forçado a incorrer em virtude da má-fé daquela.
*
Notificada da apresentação das contra-alegações, a ré/recorrente não se pronunciou sobre o pedido de condenação de litigante de má fé contra si formulado.
*
O recurso foi admitido pelo tribunal de 1ª instância (referência citius 411206613 do processo principal), recebido neste tribunal nos mesmos termos, e mostrando-se cumpridos os vistos legais, cabe apreciar e decidir.
*
II. Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das partes, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. arts. 635º, nº 4, 639º, nº 1, e 662º, nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.º 5º, nº3 do mesmo Código).
No caso em apreço cabe decidir:
- Da admissibilidade como prova documental de mensagens escritas trocadas entre autor e ré pelo sistema de mensagens WhatsApp, através de telemóvel.
- Litigância de má fé da recorrente.
III. Fundamentação de Facto
Os factos a atender são os descritos em sede de relatório, e bem assim, o seguinte, demonstrado pela consulta que fizemos do processo através da aplicação informática citius:
- Após a prolação do despacho recorrido o processo prosseguiu os seus ulteriores termos, estando em curso a realização da audiência de julgamento.
IV. Fundamentação de Direito
As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (art. 341º, do Código Civil).
Quem invoca um direito tem o dever de fazer a prova dos factos constitutivos desse mesmo direito (art. 342º, nº 1, do Código Civil), garantindo o art. 346º, do mesmo Código o direito à contraprova: “(…) à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torna-los duvidosos; se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova”.
A garantia de acesso pleno aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos e bem assim o direito a um processo equitativo encontra respaldo no art. 20º da CRP e por via dele tem de se reconhecer às partes a faculdade de apresentarem os meios probatórios necessários à prova da veracidade dos factos que alegam, ainda que neste campo não estejamos perante um direito absoluto, pois como salienta José Lebre de Freitas[1], em “(…) sede de prova, o direito ao processo equitativo implica a inadmissibilidade de meios de prova ilícitos, quer o sejam por violarem direitos fundamentais, quer porque se formaram ou obtiveram por processos ilícitos”.
Acolhendo-nos nestes ensinamentos, podemos então afirmar que no campo do processo civil as provas podem ser ilícitas por terem sido obtidas por recurso a métodos proibidos (através de práticas violadoras de direitos fundamentais) ou por terem sido obtidas em resultado de violação de regras processuais, sendo que a lei processual civil não se refere expressamente à inadmissibilidade da prova ilícita, contrariamente ao que ocorre na lei processual penal (cf. art. 125º do Código de Processo Penal), prevendo apenas situações de recusa no que diz respeito ao dever de cooperação para a descoberta da verdade, nos termos previstos no art. 417º, do Código de Processo Civil, designadamente, no seu nº 3, nos termos do qual:
3 - A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:
a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.”
Em termos sintéticos, seguindo de perto Carlos Castelo Branco[2], e no que diz respeito às provas obtidas em violação do direito substantivo (no caso não foi suscitada a questão de obtenção de prova por violação de regras processuais, nem tal questão se coloca à luz dos factos acima referenciados), podemos distinguir entre provas ilícitas absolutas e provas ilícitas relativas, dizendo as primeiras respeito àquelas que são obtidas mediante tortura, coação, ou ofensa da integridade física ou moral das pessoas, em violação dos arts. 16º, 18º, 24º, e 25º da CRP, por isso absolutamente proibidas, que devem considerar-se inexistentes, e suscetíveis de serem subsumíveis à previsão da alínea a), do referido nº 3, do art. 417º; reportando-se as segundas àquelas que são obtidas em violação de outros direitos fundamentais, como o direito à intimidade da vida privada ou familiar, o direito à inviolabilidade do domicílio, ao segredo de correspondência ou das telecomunicações, o direito à imagem, …. (cf. arts. 26º e 34º da CRP), e que podem ser subsumidas à al. b), do nº 3, daquele mesmo art. 417º. Relativamente a este tipo de provas, o consentimento do titular pode ser relevante, no sentido de retirar ilicitude ao ato lesivo, e consequentemente à prova; ocorrendo, porém, recusa de consentimento, o juiz será confrontado com um conflito, que deverá resolver, efetuando uma ponderação dos direitos em confronto, podendo decidir pela cedência do direito ao segredo da correspondência, por exemplo, face ao direito de produção de prova, quando os elementos probatórios em causa se revelem essenciais à justa composição do litígio.
Retornando ao caso dos autos, verificamos, porém, que os elementos probatórios apresentados pelo autor consubstanciam imagens (“cópias”) de comunicações escritas, estabelecidas com a própria ré, via Messenger/WhatSapp, através de telemóvel. Tratam-se, efetivamente, de comunicações enviadas e dirigidas pela própria ré, ao autor, e por este àquela, às quais um e outro responderam, respetivamente, e que depois de rececionadas, lidas e guardadas por cada um deles, têm valor equivalente a comunicação que tivesse sido estabelecida entre um e outro por uma via mais tradicional, como uma carta recebida pelos serviços de correio, por exemplo.
Nos termos do disposto no art. 34º, nº 1, da CRP, o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis, constituindo inclusivamente crime a divulgação do conteúdo de cartas, escritos fechados, ou telecomunicações, por quem, sem consentimento, tenha aberto e acedido a escrito que não lhe era dirigido, que dele tenha tomado conhecimento por processos técnicos ou mediante intromissão no conteúdo de telecomunicação (cf. art. 194º, nº 3, por referências aos nºs 1, e 2, do Código Penal).
É igualmente reconhecido a todos o direito à reserva da vida privada e familiar (art. 26º, nº 1, da CRP).
Ora, no caso dos autos, o autor é o destinatário direto e imediato dos SMS enviados pela ré, no âmbito dos quais são feitas considerações sobre bens, designadamente imóveis, e a que aquele acedeu de forma totalmente lícita. Tais SMS não foram enviados como confidenciais – tendo em consideração o que deles resulta – e nem se referem à intimidade da vida privada daquela (cf. 2ª parte, do art. 77º, do Código Civil), pelo que a sua apresentação, como meio de prova, não coloca em causa a reserva da intimidade da vida privada da ré.
Estamos perante documentos pertencentes ao autor e que entraram legitimamente na sua posse.
Os SMS (short message service) são considerados documentos eletrónicos (cf. art. 2º, al. a), do DL 290-D/99, de 2/08), suscetíveis de serem apresentados como prova (cf., ainda, art. 46º do Regulamento da União Europeia nº 910/2014, de 23/07/2014[3]), e têm força probatória nos termos previstos no art. 3º daquele primeiro diploma, sendo que nas situações – como a dos autos – em que deles não conste uma assinatura digital certificada por uma entidade credenciada, são apreciados nos termos gerais de direito, isto é, de acordo com as regras gerais da prova documental (cf. art. 362º e segs., do Código Civil), estabelecendo ainda o art. 4º, do DL 290-D/99, quanto às cópias de documentos daquela natureza, que “As cópias de documentos eletrónicos, sobre idêntico ou diferente tipo de suporte, são válidas e eficazes nos termos gerais de direito e têm a força probatória atribuída às cópias fotográficas pelo n.º 2 do artigo 387.º do Código Civil (…), se forem observados os requisitos aí previstos.
E pelo exposto, é de manter a decisão de admissão dos documentos em causa como elementos de prova, questão que não se confunde com o interesse concreto e o valor probatório de cada um dos documentos que só em momento oportuno – fundamentação de facto - pode ser apreciada e discutida, tratando-se, por isso, de juízo que não cumpre fazer no momento em que o juiz decide sobre a admissibilidade dos meios de prova.
*
Litigância de má fé
Diz o autor/recorrido, que a ré/recorrente, ao interpor recurso do despacho supra referenciado litigou com má fé, por não poder desconhecer que o recurso é destituído de fundamento, sendo o seu comportamento processual subsumível à previsão das alíneas a), e d), do art. 542º, do Código de Processo Civil.
Dispõe este preceito legal:
“1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
(…).”
A litigância de má fé traduz-se na "utilização maliciosa e abusiva do processo"[4], visando o instituto da má fé punir o comportamento processual censurável das partes (os arts. 7º, e 8º, do Código de Processo Civil consagram os deveres de boa fé processual e de cooperação, que as partes devem acatar tendo em vista a justa composição do litígio). Como salienta Menezes Cordeiro[5] estamos perante um “(…) instituto processual, de  tipo público e que visa o imediato policiamento do processo. Não se trata de uma manifestação de responsabilidade civil, que pretenda suprir danos, ilícita e culposamente causados a outrem, através de actuações processuais. Antes corresponde a um subsistema sancionatório próprio, de âmbito limitado e com objectivos muito práticos e distintos”.
As condutas sancionadas (de cariz substancial e processual), encontram-se tipificadas no sobredito nº 2, do art. 542º.
Para além de só poderem relevar para efeitos de má fé aquelas condutas expressamente consignadas na lei, a condenação pressupõe sempre o dolo (intenção e vontade da parte na adoção do(s) comportamento(s)), ou negligência grave da parte, e não apenas uma culpa lato sensu (a negligência grave pressupõe uma atuação sem o mínimo de cautela, sem qualquer ponderação, especialmente exigível a quem intenta ou contesta uma ação), razão pela qual se exige especial prudência na aplicação jurisdicional do instituto, tanto mais que, como reconheceu o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 15710/2002 (Processo Nº 02A2185, cuja decisão está acessível no sítio da internet www.dgsi.pt ), quando lidamos com o instituto da litigância de má fé, movemo-nos num campo melindroso, pois “ (…) a lide processual arrasta um afrontamento, um conflito de interesses, pouco propício a uma ponderação serena e objectiva das intervenções processuais, obnubilando o todo processual e deixando “ver” apenas a “verdade” do “seu” caso – em que a censura se há-de basear na ofensa de valores éticos, exigindo o nº 2 do art. 456º do CPC[6] o dolo ou a negligência grave.
Por isso se aceita que os tribunais devam ser prudentes na condenação por litigância de má fé, apurando-se caso a caso – apreciação casuística - onde deverá caber a natureza dos factos e a forma como a negação ou omissão são feitas.”
Para o efeito, será essencial ainda, como defende Paula Costa e Silva[7], que o tribunal na apreciação e conhecimento da questão da má fé tenha em consideração a integralidade do comportamento da parte. “É da análise da totalidade da intervenção do sujeito processual que decorre a possibilidade de exercer censura sobre essa intervenção já que ela permitirá ao julgador formar uma imagem mais nítida daquela que pode ser a colocação de fins do sujeito processual”.
O direito a recorrer é um direito que assiste às partes (ou mesmo a quem não o seja, desde que possa ser direta e efetivamente prejudicada por uma decisão suscetível de recurso – cf. art. 631º, nº 2, do Código de Processo Civil) que não se conformem com o sentido de determinada decisão que lhes seja desfavorável.
Recorre de má fé quem tem consciência de que as razões da discordância quanto à decisão são manifestamente infundadas; quem tem consciência que não tem qualquer razão, ou, como decidiu o STJ, em acórdão de12.01.2017[8], quem “(…) usa os mecanismos processuais com o único objectivo de retardar o trânsito em julgado da decisão, como sucede com a dedução de pretensão recursória cuja falta de fundamento não ignorava ou não devia ignorar”.
A ré alegou e concluiu as suas alegações de recurso sustentando a não aceitação do despacho recorrido à luz de normas jurídicas cuja interpretação não coincide, efetivamente, com aquela já expendida por este tribunal, mas tendo presente o que a recorrente alegou e o modo como apresentou o seu raciocínio interpretativo, não se pode afirmar que tinha consciência de que não lhe assistia razão, não relevando a circunstância de ser advogada, como parece fazer crer o recorrido nas suas alegações, tanto mais que apresentou as razões que no seu entender sustentavam a interpretação que fez das normas em causa, não estando igualmente evidenciado que por essa via procurou retardar o trânsito em julgado da decisão, estando inclusivamente o processo a seguir os seus  normais trâmites processuais.
Deste modo, não estando preenchidos os pressupostos da litigância de má fé contidos nas alíneas a), e d), do art. 542º, do Código de Processo Civil, impõe-se julgar improcedente o pedido formulado pelo recorrido.
Decisão
Na sequência do exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação e em manter a decisão recorrida; e em julgar improcedente por não provado o pedido de condenação da ré/recorrente como litigante de má fé, pela interposição do recurso, absolvendo-a do pedido que foi deduzido pelo recorrido.
Custas pela recorrente (art. 527º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Custas a cargo do recorrido no que diz respeito ao decaimento do pedido de condenação da ré/recorrente como litigante de má fé, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (art. 7º, nº 4, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela II que lhe está anexa (“Incidentes/procedimentos anómalos”, e art. 527º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Notifique.

Lisboa, 28 de abril de 2022
Cristina Lourenço
Ferreira de Almeida
Teresa Prazeres Pais
_______________________________________________________
[1] “Introdução ao Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto”, págs-107-108.
[2] “A Prova Ilícita: Verdade ou Lealdade?”, Almedina – Casa do Juiz, págs. 228-232
[3] Sob a epígrafe “Efeitos legais dos documentos eletrónicos dispõe”: “Não podem ser negados efeitos legais nem admissibilidade enquanto prova em processo judicial a um documento eletrónico pelo simples facto de se apresentar em formato eletrónico.”
[5] “Litigância de Má Fé Abuso do Direito de Acção e Culpa “In Agendo”, Almedina, 2006, pág. 28.
[6] Corresponde ao atual art. 542º, do Código de Processo Civil.
[7] In “A Litigância de Má Fé”, Coimbra Editora, 2008, pág. 344.
[8] Procº nº 59970/12.8YIPRT.E1.S1 – acessível no sítio da internet, www.dgsi.pt/jstj.