Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10215/2002-3
Relator: MORAES ROCHA
Descritores: MÁQUINA DE JOGO
JOGO DE FORTUNA E AZAR
CRIME CONTINUADO
CONTINUAÇÃO CRIMINOSA
NON BIS IN IDEM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/10/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: O arguido importou algumas centenas de máquinas de jogo de fortuna e azar que colocou em exploração em vários estabelecimentos.
"O crime em causa nos autos preenche-se com a colocação das máquinas em exploração; colocadas em tempos e locais diferentes elas constituem plúrimas resoluções, autónomas e individualizadas e, assim, diferentes crimes".
A sentença que condenou o arguido é de manter por não ter sido violado o princípio non bis in idem.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, precedendo Julgamento, no Tribunal da Relação de Lisboa
(V) foi condenado no Tribunal Judicial da Comarca de Sintra pela prática do crime de exploração ilícita de jogo, p.p. pelo art. 108.º do DL 422/89, com referência aos arts. 1.º, 3.º, n.º 1, 4, n.º 1, al. G) do mesmo diploma, na pena de 4 meses de prisão que se substitui por igual tempo de multa à taxa diária de 1000$00 e ainda em 60 dias de multa à mesma taxa diária, na pena única de 180 dias de multa à taxa diária de 1000$00 o que perfaz a multa de 180000$00 e a que corresponde 120 dias de prisão subsidiária.

Inconformado recorre o arguido para este Tribunal da Relação de Lisboa, retirando as seguintes conclusões da motivação:

«1. O tribunal a quo entendeu que a colocação de cada máquina em cada um dos diversos estabelecimentos, entre os quais o dos autos, após acordo celebrado com os respectivos proprietários, pressupõe uma decisão autónoma e individualizada relativamente aos demais proprietários. Dessa posição discorda frontalmente o Recorrente.
2. - Na esteira do douto acórdão da Relação de Lisboa, de 18-03-98, junto a fls. 116/135 e de 24-11-98, publicado na C.J., Ano XXIII, t 5/143, que aqui se dá por reproduzido, melhor seria entender-se que a exploração de todas as 333 máquinas importadas pelo arguido numa só ocasião (entre as quais se inclui a dos autos) foi motivada por um só desígnio e integra, objectivamente, um único crime, organizando-se um só processo e submetido a um só julgamento toda a actividade do Recorrente.
3. - Atento o disposto no n.o 5 do art.º 29.º da C.R.P. e art.os 497º e 498.º do C.P .Civil, aplicáveis ex vi art.º 4.º do C.P .Penal, o Recorrente não poderá ser de novo julgado (e condenado) nos presentes autos, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, devendo reconhecer-se a existência de caso julgado e proceder-se ao respectivo arquivamento, absolvendo-se o Recorrente.
4. - Em face da factualidade provada e da decisão tomada pela M.a Juíza do tribunal a quo, no sentido de não admitir a existência de caso julgado, a sentença recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova, facilmente detectável no corpo do seu texto, o que inquina a sua viabilidade decisória e é fundamento do presente recurso, nos termos da al. c) do n.º 2 do art.º 410.º do Código de Processo Penal.
Nestes termos e nos mais de direito que V. Ex.as doutamente suprirão, deve a douta sentença recorrida ser revogada e ser substituída por outra que julgue procedente a invocada excepção do caso julgado, absolvendo-se o Recorrente.»

Em resposta ao recurso, vem o Ministério Público junto do tribunal recorrido alegar:

«1. O arguido (V), interpôs recurso da sentença que o condenou na pena de 4 meses de prisão substituída por igual tempo de multa á taxa diária de 1.000$00 e 60 dias de multa á mesma taxa e na pena única de 180 dias de multa no valor de 180.000$00 e 120 dias de prisão subsidiária, como autor material de um crime de exploração ilícita de jogos de fortuna e azar, p.p. art.º 108 do D.L.402/89 de 2.12.
2. De acordo com jurisprudência pacifica, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que os recorrentes extraem das respectivas motivações.
3. Das conclusões do recorrente, extrai-se, no que interessa e em síntese, que o recorrente já foi julgado noutros processos pelos mesmos factos, pelo que havendo erro notório na apreciação da prova, se mostra violado o principio ne bis In idem e o disposto no art.o 410-2-c) do C.P.P., pelo que o recorrente deve ser absolvido
4. Não concordamos com os argumentos invocados pelo recorrente, pelas seguintes razões:

a) Não é verdade que o arguido tenha sido julgado noutros processos pelos mesmos factos. O arg. foi sim, julgado noutros processos, pela mesma actividade ilícita, o que é bem diferente. Mas neste
processo o que se discutiu foi uma concreta factualidade, paralela de outras, mas distinta, porque demarcadamente situada no espaço e no tempo, consequente de decisões criminosas plurimas e volitivamente autónomas. Que não encontra correspondência ou conexão em qualquer factualidade já eventualmente julgada. Logo, o objecto processual destes autos, é diferente do objecto processual de outros processos congéneres em que o arguido tenha participado como agente do mesmo tipo de crime.
b) Não há qualquer erro notório na apreciação da prova, sendo certo que, para que tal se verificasse, mister seria que a percepção do erro, que se reporta conceptualmente á matéria de facto e não á de direito, como parece pretender o recorrente, resultasse dos próprios termos da decisão recorrida de forma óbvia ao chamado homem médio, isto é, que no plano do entendimento racional das coisas, as premissas de que o tribunal partiu, por absurdas e contraditórias não pudessem conduzir ás conclusões alcançadas.
c) A prova produzida em julgamento, foi analisada de forma séria e ponderada pelo tribunal, que formou a sua convicção livremente, segundo as regras técnico Jurídicas temperadas pelas regras de experiência de vida. que concluiu que o arguido cometeu o crime porque foi condenado, fundamentando basta e suficientemente tal conclusão.
d) Assim foi o arguido correctamente condenado.

5. Conclui-se assim, que não merece censura a douta sentença recorrida, pelo que mesma se deverá manter, conforme se demonstrou.

Deve portanto negar-se provimento ao recurso e confirmar-se a sentença recorrida.»

Neste Tribunal da Relação de Lisboa o Exmo. Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.

Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre apreciar e decidir.

Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art. 410.º do Código de Processo Penal, são as seguintes as questões objecto do presente recurso:

- erro na apreciação da prova e consequente caso julgado; e,
- da unidade ou pluralidade de crimes.
Em bom rigor estas questões estão entre si interligadas porquanto a procedência de uma acarreta a procedência da outra e, por seu turno, a improcedência de uma a improcedência da outra.

Quanto à primeira questão - erro na apreciação da prova e consequente caso julgado -, ela é equacionada da seguinte forma pelo recorrente:

«A M.a juíza do tribunal a quo, a fls. 580, deu como provado que A máquina dos autos denominada "BABY GUM" fazia parte do das 333 máquinas que o arguido recebeu das 400 que importou, em princípios de Junho de 1994 (...).
No que directamente respeita à problemática da excepção do caso julgado, analisada em sede de enquadramento jurídico-penal, verifica-se que a M.a Juíza subscritora da douta decisão recorrida entende que (...) a colocação de cada máquina em cada um dos diversos estabelecimentos, entre os quais o dos autos, após acordo celebrado com os respectivos proprietários, pressupõe uma decisão autónoma e individualizada relativamente aos demais proprietários.
Significa isto que o crime em causa se consuma com a colocação à disposição do público e não com o acto de importação, ainda que com a finalidade de colocar as máquinas importadas para exploração.
(...)
Ora, é por demais patente que o que motiva a conduta do Recorrente é, apenas e só, a ideia final de colocar as máquinas em exploração.
Assim, e s. m. o., discorda-se de que o acto de colocar um lote de máquinas (importadas em simultâneo) em exploração, constitua vários actos, tantos quanto o número de máquinas efectivamente exploradas. Por esta via de raciocínio, igualmente, ter-se-ia de considerar tantos actos de importação consoante o número de máquinas importadas. Tal, salvo o devido respeito, não merece acolhimento.
A ser assim, atendo o disposto no n.o 5 do art.º 29.º da Constituição da República Portuguesa e art.os 497.º e 498.º do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi art. o 4.º do Código de Processo Penal, o Recorrente não poderá ser de novo julgado (e condenado) nos presentes autos, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, devendo proceder-se ao respectivo arquivamento.
Por todo o exposto e na sua sequência lógica, acresce ainda dizer que, atendendo à matéria de facto dada como provada e cujo fundamental excerto se transcreveu supra, a sentença de que se recorre padece do vício de erro notório na apreciação da prova, facilmente detectável no corpo do seu texto, o que inquina a sua viabilidade decisória e é fundamento do presente recurso, nos termos da al. c) do n.º 2 do art.º 410.º do Código de Processo Penal.
Erro notório na apreciação da prova, porquanto, em face da matéria que considerou provada, a M.a juíza do tribunal a quo deveria ter considerado a existência de caso julgado e absolvido o Recorrente.»

Perante os argumentos do recorrente, importa conhecer a decisão recorrida que é do seguinte teor:

«O Ministério Público acusou para julgamento em processo comum com intervenção do Tribunal Singular os arguidos:
- (V), casado, empresário, natural, Mértola, residente no Cacém,
- (P), casado, empresário, natural de Lisboa, residente em Belas,
- (J), casado, empresário, natural de Reguengos de Monsaraz residente em Oeiras,
porquanto lhes é imputada a prática, por cada um dos arguidos de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo art° 108°, do Dec.Lei 422/89, de 02/12, com referência ao art° 4°, nº1, alo g) do mesmo diploma lega, na redacção do Dec.Lei 10/95, de 19-01.
*
O arguido (V) apresentou contestação, alegou, em resumo, que agiu com manifesta falta de ilicitude do facto (legalidade das máquinas) e por se verificar haver uma lacuna da lei, dado as máquinas dos autor se encontrarem à data da sua apreensão omissas na legislação em vigor e ainda caso, se entenda que as máquinas se enquadram nas modalidades afins do jogo ou azar a sua exploração deve ser punida com multa a título de contravenção.
Conclui pela sua absolvição.
Juntou procuração e documentos.
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Os 2° e 3° arguidos não apresentaram contestação.
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Por sentença proferida a fls. 411/439 foi acusação julgada parcialmente procedente consequência absolvidos os arguidos (P) e (J) e o arguido (V) condenado pela prática do crime de exploração ilícita de jogo p. e p. pelo art° 108°, do Dec.Lei 422/89, com referência aos art°s 1, 3 nº l, 4, n° I, alo g) do mesmo diploma legal, na pena de 4 meses de prisão que se substitui por igual tempo de multa à taxa diária de 1.000$00 e ainda em 60 dias de multa à mesma taxa diária, na pena única de 180 dias de multa à taxa diária de 1.000$00 o que perfaz a multa de 180.000$00 e a que corresponde 120 dias de prisão subsidiária.
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Inconformado, o arguido (V)recorreu da sentença.
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Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido a fls. 468/482, determinou-se o reenvio do processo para novo julgamento, para apuramento da matéria conexionada com a eventualidade do caso julgado, devendo apurar-se se a máquina foi importada e dada à exploração conjuntamente com outras, se o arguido actuou sob uma só e única resolução criminosa, se o arguido já foi julgado e condenado por outras parcelas dessa actividade única.
Na sequência do determinado, designou-se dia para audiência de julgamento.
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Procedeu-se à produção de prova com observância do legal formalismo.
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O arguido (V)veio suscitar a questão da inaplicabilidade do disposto nos art°s 1°, 3°, e 4°, nº l al. f) do Dec.Lei 422/89, de 02 de Dezembro, invocando que o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias - ac. de 30-04-96, proferido no âmbito do processo C-194/94- tem entendido que, nos termos dos art°s 8° e 9º da Directiva Comunitária 83/189, a inobservância do dever de informação, por parte dos estados membros, à Comissão das regras e especificações técnicas adoptadas nas normas nacionais acarreta a inaplicabilidade dessas mesmas regras técnicas, por forma a que estas não possam ser opostas aos particulares e que sabendo-se que o Estado Português não informou a Comissão sobre as normas técnicas que verteu no Dec.Lei 422/89, de 2 de Dezembro e 10/95 de 19 de Janeiro, quanto à caracterização dos jogos de fortuna ou azar e modalidade afins, devem os autos ser arquivados por ausência de tipificação do crime pelo qual o arguido vem acusado.
Liminarmente se dirá que a Directiva 83/189/CEE do Conselho, de 28 de Março de 1983 foi revogada pela Directiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de Junho de 1998 relativa a um procedimento de informação no domínio das normas e regulamentações técnicas e esta Directiva foi transposta para o direito interno pelo Dec.Lei 58/2000, de 18-04.
O art° l.º do citado Dec.Lei 58/2000 estabelece os procedimentos administrativos a que obedece a troca de informação no domínio das normas e das regulamentações técnicas, bem como das regras, relativas aos serviços da sociedade da informação (...).
o art° 2°, por sua vez, define o que se entende por "produto", "serviço", "especificação técnica", "outra exigência", "norma", "projecto de norma" "regra técnica", "projecto de regra técnica" e "regra relativa aos serviços".
O art° 4°diz que os serviços que pretendam elaborar regras técnicas relativas aos produtos ou regras relativas aos serviços definidos no art° 2° devem comunicar, de imediato, à Comissão Europeia qualquer projecto de regra técnica.
A al. g) do citado art° 2° defina "regra técnica" como a especificação técnica ou outro requisito, regra ou exigência relativa aos serviços, incluindo as disposições regulamentares internas que lhe são aplicáveis e cujo cumprimento seja obrigatório, de jure ou de facto, para a comercialização, a utilização, a prestação de serviços ou o estabelecimento de um operador de serviços.
Lê-se no preâmbulo do Dec.Lei 422/89, de 02.12, que "... a presente legislação, de interesse e ordem pública, dadas as respectivas incidências sociais, administrativas, penais e tributárias, haja sido reformulada com vista a instaurar um sistema mais adequado de regulamentação e de controlo da actividade, sem deixar de acautelar a defesa dos direitos constituídos e das legítimas expectativas das actuais concessionárias da exploração de jogos de fortuna ou azar.
E no do Dec.Lei 10/95, de 19.01 que "A manutenção daquele quadro normativo naquilo em que o mesmo traduza não já uma opção de controlar a difusão do fenómeno do jogo, mas o modo como esse controlo deve ser feito, é susceptível de gerar um distanciamento entre o direito e a realidade que este pretende disciplinar, em termos que poderão acarretar a incapacidade das concessionárias de se adaptarem às preferências e ao perfil dos jogadores, estimulando-se, por essa via, a proliferação do jogo clandestino, com total subversão da intenção reiterada do legislador nesta matéria. Neste contexto, tendo não só em conta essas mutações mas também a resposta que, em países de tradição cultural próxima da portuguesa, lhes vem sendo dada a nível legislativo, importa encontrar novas soluções que, não pondo em causa os interesses de ordem pública cuja tutela sempre foi assumida neste domínio, criem um enquadramento susceptível de melhorar as condições de exploração da actividade e de assegurar uma efectiva repressão das infracções, através do reforço da responsabilidade das concessionárias, dos seus administradores, trabalhadores e frequentadores".
O art° l ° do Dec.Lei 422/89 dá uma definição de jogos de fortuna ou azar, como sendo aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte.
De acordo com o art° 9° o direito de explorar jogos de fortuna ou azar é reservado ao Estado e só pode ser exercido por empresas constituídas sob a forma de sociedades anónimas a quem o Governo adjudicar a respectiva concessão mediante contrato administrativo.
Por seu turno o art° 3°, n.ºl do mesmo Dec.Lei na redacção que lhe foi dada pelo Dec.Lei 10/95, de 19.01, dita que "A exploração e a prática dos jogos de fortuna ou azar só são permitidas nos casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário criadas por decreto-lei ou, fora daqueles, nos casos excepcionados nos art°s 6° a 8°".
Significa isto que as normas constantes do mencionado Dec.Lei 422/89, de 02-12, com as alterações introduzidas pelo Dec.Lei 10/95, de 19-01, apenas regulam a actividade do jogo permitindo a sua prática em zonas circunscritas previamente definidas imperativamente pela lei.
Contra não se diga que o facto de a al. f) do art° 40 do mesmo Dec.Lei 422/89 se referir a "jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas", que tal disposição exija a elaboração das respectivas regras técnicas e posterior comunicação à Comissão, porquanto se trata tão só de delimitar quais os tipos de jogos cuja exploração é autorizada.
Assim e porque a actividade regulada pelo mencionado Dec.Lei 422/89 se encontra fora do âmbito da Directiva 98/34/CE, aplicável na ordem jurídica interna pelo Dec.Lei 58/2000, de 18-04, não se verifica a arguida excepção.
*
DA EXCEPÇÃO DO CASO JULGADO
Produzida a prova quanto a esta questão, o Tribunal considera provados os seguintes factos:

- A máquina dos autos denominada "BABY GUM" fazia parte do das 333 máquinas que o arguido recebeu das 400 que importou, em princípios de Junho de 1994.
- Aquando da importação, o arguido não tinha clientes em vista e assim que as máquinas chegassem, contactava com os clientes.
- O arguido sofreu diversas condenações nomeadamente 11, por crime de exploração ilícita de jogo, tendo por objecto máquinas que faziam parte do lote das 400 que importou.

A convicção do Tribunal fundou-se nas declarações prestadas pelo arguido que referiu qual o procedimento por si adoptado para a colocação das máquinas em diversos estabelecimentos, tendo referido, ainda no tangente aos antecedentes criminais relacionados com as máquinas importadas e que faziam parte das 333 que recebeu de uma encomenda que fez em princípios de Junho de 94, de 400 máquinas e ainda no teor do certificado de registo criminal junto aos autos.
Vejamos:
o objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e a extensão do caso julgado. A este efeito se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade (fixado na acusação o objecto do processo penal deve manter-se o mesmo até ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade (deve o tribunal conhecer e julgar o objecto que lhe foi proposto - thema decidendum e thema probandum - na sua totalidade) e da consumpção do objecto do processo penal (a questão posta ao tribunal quer tenha sido quer quando o não tenha sido, deve considerar-se irrepetivelmente decidido).
O princípio da consumpção conduz a que o caso julgado que se forma com a sentença abranger todo o objecto do processo (todos os factos que deverem considerar-se não violar o princípio da identidade), exactamente por a todo esse se dever estender o conhecimento do tribunal (princípio da Unidade ou individivisibilidade), mesmo que em concreto os factos que o integram não tenham sido analisados, ou sequer conhecidos, pelo Tribunal).
Contrariamente ao C.P.P. de 29 - art°s 148° a 154° da Secção IV e sob o título DO CASO JULGADO - o C.P.P. vigente não contém disposições que regulamentam o instituto de caso julgado, designadamente os seus efeitos, referindo apenas dois artigos a tal matéria - art°s 84° (A decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido cível constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis) e 467° (1- As decisões penais condenatórias transitadas em julgado têm força executiva em todo o território português ou sob administração portuguesa e ainda em território estrangeiro, conforme os tratados, convenções e regras de direito internacional; 2- As decisões penais absolutórias são exequíveis logo que proferidas, sem prejuízo do disposto no art° 214°, nº 3).
Porque assim é, levanta-se a questão de se saber se as regras gerais do valor do caso julgado são as consignadas na lei processual civil, considerando o estatuído no art° 4.º do C.P.P., ou se haverá que aplicar as doutrinalmente estabelecidas.
Prescreve a segunda parte do n° 1 do art° 497.º do C.P.C. que o caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que não admite recurso ordinário.
E o art° 498.º do C.P.C. estabelece os requisitos do caso julgado:

1. Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas
acções procede do mesmo facto jurídico.

Em processo penal, inexiste o conceito de partes do processo, mas sim sujeitos, o pedido, a aplicação de uma sanção penal em facto que a lei declara passível de pena por disposição penal e a causa de pedir, a própria conduta do agente.
De acordo com os mencionados art°s do C.P.P. de 29, a identidade da causa de pedir e do pedido abrangia diversas situações, nomeadamente, as seguintes:

Art° 149° - Caso julgado absolutório pessoal
Quando, por acórdão, sentença ou despacho, com trânsito em julgado, se tenha decidido que um arguido não praticou certos factos, que por eles não é responsável ou que a respectiva acção penal se extinguiu, não poderá contra ele propor-se nova acção penal por infracção constituída, no todo ou em parte, por esses factos, ainda que se lhe atribua comparticipação de diversa natureza.

Art° 150° - Absolvição por falta de provas
Se um tribunal absolver um réu por falta de provas, não poderá contra ele propor-se nova acção penal por infracção, constituída no todo ou em parte pelos mesmos factos por que respondeu, ainda que se lhe atribua comparticipação de diversa natureza.

Art° 153.º - Efeitos do caso julgado penal condenatório
A condenação definitiva proferida na acção penal constituirá caso julgado, quanto à existência e qualificação do facto punível e quanto à determinação dos seus agentes, mesmo nas acções não penais em que se discutam direitos que dependam da existência da infracção.

"A simples indicação dos princípios expressos e que vieram a ser traduzidos pela sua inclusão no anterior código mostra de forma suficientemente clara que existem diferenças fundamentais entre a aplicação das regras que tradicionalmente se consideram como respeitantes à figura do caso julgado penal e as que se aplicam ao direito civil. Na verdade, e por exemplo, a mesma situação de um réu ser absolvido por falta de provas levaria, segundo as regras do processo penal, a que se não pudesse propor contra ele nova acção penal por infracção constituída, no todo ou em parte, pelos mesmos factos por que responde, ainda que se lhe atribuísse comparticipação de diversa natureza, mas conduziria, segundo as regras do processo civil, à solução de ser admissível a renovação da acção penal contra ele se  lhe viesse a atribuir comparticipação de diferente natureza, uma vez que a causa de pedir deveria ser considerado como distinta da anterior acção em que ele fora absolvido.
Daí que haja que concluir que os princípios que regem o caso julgado penal e que são produto de uma lenta e elaborada evolução, resultante da consideração do especial melindre da defesa dos direitos humanos, se não articulem adequadamente com as regras do caso julgado cível, o que implica que estas últimas não possam ser aplicadas, nos termos do art° 4.º do C.P.P.
Há, por isso, que recorrer aos princípios gerais do processo penal e que se encontram consignados na legislação anterior, uma vez que a não inclusão de regras específicas sobre o caso julgado no actual Código não teve como causa o querer o legislador aplicar as regras próprias do processo civil e sim reservar para a lei substantiva penal a respectiva definição...
Entende-se, por tal motivo, e uma vez que a lei penal ainda regulamentou os efeitos do caso julgado penal, que se têm de considerar como ainda vigor as disposições regulamentadoras do tema que constavam do anterior C.P.P., medida em que traduzem os princípios gerais do direito penal vigente entre nós" – v. Assento n° 3/2000, de 15.12.99, in D.R. n° 35, I-A, de 11.02.2000.

Vejamos, então, se estamos a julgar o "mesmo crime", em violação do princípio do ne bis in idem, previsto no art° 29°, n° 5 da C.R.P., que dispõe que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.
No caso concreto, em princípios do mês de Junho de 1994, o arguido (V)importou algumas centenas de máquinas de jogo, com características idênticas à dos autos, sendo que o mesmo arguido já foi condenado e absolvido por mais do que uma vez, por exploração ilícita de jogo, relacionada com essas máquinas.
Estatui o art° 108°, n.º 1 do Dec.Lei 422/89, de 02.12, que quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou de azar fora dos locais legalmente autorizado será punido com prisão até 2 aos e multa até 200 dias.
Relativamente à importação, dispõe o ART.º 115° do mencionado Dec.Lei que quem, sem autorização da Inspecção Geral de Jogos, fabricar, publicitar, importar, transportar, transaccionar, expuser ou divulgar material e utensílios que seja caracterizadamente destinados à prática dos jogos de fortuna ou azar será punido com prisão até 2 anos e multa até 200 dias.
Com efeito, a importação da máquinas dos autos e de outras, constituiu um só acto, independentemente do número das mesmas, seja uma, seja uma centena, seja três centenas, qualquer que seja o seu número.
Porém, há que ter em atenção, que o que se discute nos presentes autos não é a importação dessas máquinas mas sim a sua colocação para exploração em estabelecimentos que para o efeito não possui o respectivo licenciamento.
Aquilo que é característico do ilícito é, antes de mais a instalação nos diversos estabelecimentos conjugado com a possibilidade de utilização nos diferentes
locais por diferentes pessoais, de modo que a utilização de cada uma delas constitui a
infracção (exploração ilícita).
E a colocação de cada máquina em cada um dos diversos estabelecimentos, entre os quais o dos autos, após acordo celebrado com os respectivos proprietários, pressupõe uma decisão autónoma e individualizada relativamente aos demais proprietários.
Significa isto que o crime em causa se consuma com a colocação à disposição do público e não com o acto de importação, ainda que com a finalidade de colocar as máquinas importadas para exploração.
É que o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente - art° -30°, n° 1 do Cód. Penal.
Pode, também, acontecer que a realização repetida do mesmo tipo corresponde a um caso de unidade natural de acção.
Dita o n° 1 do art° 30° do Cód. Penal que o número de crimes determina- se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
O seu n° 2 diz que constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
Ensina Eduardo Correia que se deve considerar a forma como o acontecimento exterior se desenvolvera olhando fundamentalmente a conexão temporal, que liga os vários momentos E isto justamente no sentido de que para afirmar a existência de uma unidade resolutiva, é necessária uma conexão que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação.
A unidade resolutiva é assim, uma espécie de efeito que se extrai da conduta.
É certo que não desconhecemos o ac. R.L. de 24-11-98, publicado na C.I., Ano XXIII, T5/143 e no qual se decidiu que "Está assente que o recorrente adquiriu todas essas máquinas com o propósito de as explorar. Assim, se todas as máquinas foram adquiridas na mesma altura, há uma só resolução relativamente à exploração de todas elas.
Havendo uma só resolução criminosa a presidir a toda a actuação do arguido - exploração
de jogo de fortuna ou azar por meio de todas aquelas máquinas - e sendo negado um só valor jurídico - o tutelado com a incriminação dessa exploração - , há um só crime, por ser possível formular um juízo de censura". Lê-se, ainda, nesse acórdão que "Se a exploração de todas essas máquinas integra um único crime, é evidente que se deveria ter organizado um só processo e submetido a um só julgamento toda a referida actividade do recorrente. Se, diferentemente, por cada uma das condutas em que se desenvolve esse único crime, se organizou um processo autónomo, se deduziu uma acusação e se submeteu o arguido a julgamento, toma-se claro que, a partir do momento em que uma sentença transitada em julgado tenha apreciado uma dessas condutas e por ela tenha condenado aquele como autor do crime de exploração de jogo ilícito, o recorrente já não pode ser julgado e condenado pelas restantes condutas, ou parcelas do crime, sob pena de o estar a ser mais que uma vez, o que é proibido pelo art° 29.º, n° 5 da C.R.P.
Porém, e pelas razões que atrás explanamos, entendemos que o objecto que foi proposto para a presente decisão não é o mesmo dos outros processos que já foram julgados e alguns com trânsito em julgado.
Com efeito, aprecia-se no presente processo a colocação de duas máquinas no estabelecimento em Belas, Sintra, e propriedade dos arguidos (J) e (P), uma delas, modelo Baby Gum, propriedade da sociedade Jogape da qual o arguido (V)é sócio gerente, para exploração, enquanto que nos processos em que o arguido (V)já se encontra julgado (cfr. cópias das decisões juntas a fls. 121/161, apreciou-se a colocação para exploração de máquina/máquinas, seguido de acordo com proprietários de outros estabelecimentos e daí, outras resoluções criminosas.
Desta forma, o objecto da acusação dos presentes autos é diverso do dos outros processos, pelo que se não verifica a apontada excepção do caso julgado.
Mesmo que se entendesse que as disposições do C.P.C. seriam aplicadas subsidiariamente por força do disposto no art. 4.º do C.P.P., a igual resultado chegaríamos.
Em sede de processo civil, a excepção do caso julgado, hoje excepção dilatória (art° 494.º, al.º i) do C.P.C.), consiste no facto de a causa ser repetição de outra anterior, já decidida por sentença transitada em julgado.
E conforme atrás referimos, o art.º 498.º do C.P.C. estabelece os requisitos do caso julgado, i.e., repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir; há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.
Em sede de processo penal, a identidade subjectiva que importa, há-de referir-se apenas a identidade do arguido, uma vez que o Estado é sempre o titular do jus puniendi razão porque é completamente irrelevante a identidade da parte acusadora.
A causa de pedir será o facto jurídico concreto que fundamenta a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.
O pedido, a pretensão do reconhecimento jurisdicional de que um determinado facto constitui o crime por que o arguido é acusado da sua prática e consequente aplicação da sanção prevista na lei.
aos que se pretendem julgar no novo processo.
Se a identidade subjectiva é patente, já no que ao pedido e à causa de pedir tange, de tudo quanto se disse, resulta que estes dois requisitos não se verificam, porquanto o que se pede nos presentes autos é a condenação do arguido (V)pela prática do crime de exploração de jogo ilícito no estabelecimento pertença de (J) e (P), enquanto os factos já julgados referem-se à exploração de jogo ilícito por banda do arguido (V)em estabelecimentos diversos - cfr. neste sentido os
acs. da R.L, de 28.04.98 do Proc. n° 7029/97 e 26.05.98 do Procº n° 340.
Assim, improcede a arguida excepção do caso julgado.
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Em face do exposto, mantém-se a sentença de fls. 411/439, que se dá por integralmente reproduzida e que condenou o arguido (V) pela prática do crime de exploração ilícita de jogo p. e p. pelo art° 108°, do Dec.Lei 422/89, com referência aos art°s 1, 3 n.º l, 4, n.º l, al. g) do mesmo diploma legal, na pena de 4 meses de prisão que se substitui por igual tempo de multa à taxa diária de 1.000$00 e ainda em 60 dias de multa à mesma taxa diária, na pena única de 180 dias de multa à taxa diária de 1.000$00 o que perfaz a multa de 180.000$00 e a que corresponde 120 dias de prisão subsidiária.»

Perante os factos apurados no primeiro julgamento e, sobretudo, os seguintes factos apurados após reenvio do processo, «A máquina dos autos denominada "BABY GUM" fazia parte do das 333 máquinas que o arguido recebeu das 400 que importou, em princípios de Junho de 1994. Aquando da importação, o arguido não tinha clientes em vista e assim que as máquinas chegassem, contactava com os clientes. O arguido sofreu diversas condenações nomeadamente 11, por crime de exploração ilícita de jogo, tendo por objecto máquinas que faziam parte do lote das 400 que importou.», a sentença recorrida desatendeu a excepção de caso julgado pois entendeu que quanto ao pedido e à causa de pedir, estes dois requisitos não se verificam, porquanto o que se pede nos presentes autos é a condenação do arguido (V)pela prática do crime de exploração de jogo ilícito no estabelecimento pertença de (J) e (P), enquanto os factos já julgados referem-se à exploração de jogo ilícito por banda do arguido (V)em estabelecimentos diversos daqueles.

Cumpre apreciar.

Importa apurar se os presentes autos se reportam a um crime cometido pelo arguido já anteriormente julgado e pelo qual este foi condenado ou, então, se é um novo crime.
Isto porque ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime, art.º 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
No caso concreto, em princípios do mês de Junho de 1994, o arguido (V)importou algumas centenas de máquinas de jogo, com características idênticas à dos autos, sendo que o mesmo arguido já foi condenado e absolvido por mais do que uma vez, por exploração ilícita de jogo, relacionada com essas máquinas.
O acto de importação foi um só, já não assim a colocação das máquinas em exploração. Com efeito, colocou o arguido em Junho de 1995, três máquinas eléctricas de jogo,  no estabelecimento pertença de (J) e (P), esta a realidade dos presentes autos, distinta dos processos pretéritos em que existindo exploração de máquinas em tudo iguais à dos presentes autos, procedentes da aludida importação, as mesmas foram postas em exploração em estabelecimentos distintos do referido.
Recorde-se que no momento da importação o arguido não tinha clientes em vista, estes iam sendo contactados..., isto é, existe um desígnio inicial e, depois a  concretização, a par e passo, propósito que se renova ou repete e não uma só intenção.
O crime in casu preenche-se com a colocação das máquinas  em exploração; colocadas em tempos e locais diferentes elas constituem plurimas resoluções, autónomas e individualizadas e, assim, diferentes crimes.
Nestes autos, o crime - que abrange mais do que uma máquina - tem um objecto específico, distinto dos anteriormente julgados. Não existe  unidade de acção mas apenas repetição de um mesmo tipo de crime. Renova-se a intenção criminosa –  não existe uma só -  em tempo e espaço diverso.
Importa assim referir que não existe violação do disposto no art.º 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa e que a subsunção feita pelo juiz a quo está correcta, isto é, usando a expressão do recorrente, não existe “erro notório na apreciação da prova”.
Assim se apreciou a totalidade das questões - erro na apreciação da prova e consequente caso julgado; e, da unidade ou pluralidade de crimes – sendo um mesmo raciocínio condutor das alegações de recurso, como se referiu, as questões estão interligadas, restando concluir pela improcedência do recurso.
Termos em que se acorda, na improcedência do recurso, em confirmar integralmente a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente – art. 513.º, n.º 1, do C.P.P. – fixando-se a taxa de justiça em 5 UC’s.
Lisboa, 3 de Dezembro de 2003.
(Moraes Rocha)
(Carlos Almeida)
(Telo Lucas)