Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
449/18.2GDALM.L1-3
Relator: RUI MIGUEL TEIXEIRA
Descritores: PENA DE MULTA
DOSEAMENTO
ESPÍRITO DO LEGISLADOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/18/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSP PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: - A pena de multa deve ser doseada de tal forma que tal sanção não represente qualquer sacrifício para o condenado, sob pena de se estar a desacreditar esta pena, os tribunais e a própria Justiça, gerando um sentimento de injustiça, de insegurança, de inutilidade e de impunidade.
- a medida abstracta da pena de multa (entre 5 e 500 € diários) fixada no Código Penal decorre da redacção dada ao artº 47º nº 2 do Código Penal pelo D.L. 323/2001 de 17.12..
- Foi naquela altura determinado que o mínimo diário da multa seria 5 €. Desde então para cá existe depreciação de moeda. Por outras palavras: para se adquirir aquilo que em 2001 se adquiria com 5 € hoje é necessária quantia diferente.
- Assim, utilizando o índice de preços ao consumidor divulgado pelo INE e  temos que 5,00 € ( o mínimo diário de multa desde 2001) deverá ser actualizado para 6,83 € à data presente (Maio de 2022);
- Tal terá de ser o mínimo diário de uma pena de multa sob pena de não se obedecer ao espírito da lei.
 (elaborado pelo relator )
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes que compõem a 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
 
I- Relatório
CL______ foi condenada pela prática de um crime de ofensa á integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, 145º nº 1, alínea a) e nº 2, por referência ao artigo 132º nº 2, alínea l) do Código Penal na pena de 2 meses de prisão e um crime de ofensa á integridade fisica qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, 145º nº 1, alínea a) e nº 2, por referência ao artigo 132º nº 2, alínea l) do Código Penal na pena de 4 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico foi condenada na pena única de cinco meses de prisão, substituída por 150 dias de multa, à taxa diária de seis euros, perfazendo o total de 900€.
Inconformada com tal decisão recorre a este Tribunal formulando, após motivação, as seguintes conclusões:
A) A recorrente CL_______ foi condenada pela prática de um crime de ofensa á integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, 145º nº 1, alínea a) e nº 2, por referência ao artigo 132º nº 2, alínea l) do Código Penal na pena de 2 meses de prisão e um crime de ofensa á integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, 145º nº 1, alínea a) e nº 2, por referência ao artigo 132º nº 2, alínea l) do Código Penal na pena de 4 meses de prisão. Em cúmulo jurídico foi condenada na pena única de cinco meses de prisão, substituída por 150 dias de multa, à taxa diária de seis euros, perfazendo o total de 900€. B) O Recurso versa sobre matéria de direito.
C) O artigo 145º do Código Penal estabelece que:
“1- Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido:
c) Com pena de prisão até quatro anos, no caso do artigo 143;
d) Com pena de prisão de três a doze anos no caso do artigo 144º;
3- São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 132º”
D) A recorrente foi condenada pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada com referência ao artigo 132º nº 2 alínea l) do Código Penal, que prevê ser susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade, a circunstância de o agente praticar o facto contra funcionário, no exercício das suas funções ou por causa delas.
E) Para preenchimento dos elementos objectivos, não basta demonstrar única e exclusivamente a qualidade do ofendido, sendo necessário provar a existência de circunstâncias que revelem uma especial censurabilidade ou perversidade.
F) De acordo com os pontos 5 e 6 da matéria dada como provada, a recorrente agarrou o frasco que continho líquido anti-séptico para as mãos e tentou atirá-lo a CT_____-  , tendo-lhe agarrado no braço com a outra mão, batendo com o frasco na mão daquela e em seguida virou-se para VC____ empunhando o frasco para o lançar, tendo saltado líquido do mesmo que atingiu a ofendida VC____ nos olhos.
G) Resultou, ainda provado no ponto 7 que o frasco possuía doseador que estava colocado no momento.
H) Resulta da motivação da decisão, que a CT_____ esclareceu que o frasco utilizado continha um doseador que estava colocado no momento em que a arguida o utilizou para tentar atingi-las e que o líquido que atingiu os olhos da Colega foi do excesso que fica sempre na tampa do produto. 
I) A utilização de um frasco anti-séptico, com doseador para tentar atingir as ofendidas, apesar de censurável não assume gravidade suficiente para ser susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade.
J) A conduta da recorrente não preenche os elementos objectivos do crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo artigo 145º nº 1 al. a) e nº 2, por referência 132º nº 2 alínea l) do Código Penal. 
K) O artigo 143º estabelece que:
“1-Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2.O procedimento depende de queixa, salvo quando a ofensa seja cometida contra agentes das forças e serviços de segurança, no exercício das suas funções ou por causa delas”.
L) Resulta da motivação da decisão, que a ofendida VC____ afirmou que o frasco de álcool estava sem tampa, tendo a ofendida CT_____ esclarecido que o frasco utilizado continha um doseador que estava colocado no momento em que a arguida o utilizou para tentar atingi-las e que o líquido que atingiu os olhos da Colega foi do excesso que fica sempre na tampa do produto.
M) A recorrente não atingiu o corpo ou a saúde da ofendida VC____, apenas empunhou o frasco com anti-séptico para lançá-lo à ofendida, mas não o lançou. Por outro lado, o frasco estava fechado pois tinha um doseador, tendo o excesso que fica na tampa é que atingiu VC____  .
N) Actualmente, e devido ao vírus Covid 19, a utilização de frascos doseadores contendo anti-sépticos (desinfetantes) é prática normal e corrente por toda a população, mas não o era à data dos factos, 30 de julho de 2018.
O) Pelo que o homem médio colocado no lugar da ora recorrente, não saberia que ao manusear um frasco com anti-séptico que possui doseador poderia sair do mesmo, o excesso que fica na tampa e que pudesse atingir a ofendida VC____  .
P) Face ao exposto, e salvo melhor opinião não se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos da prática do crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo artigo 145º nº 1 al. a) e nº 2, por referência 132º nº 2 alínea l) do Código Penal na pessoa da ofendida VC____  .
Q) Na eventualidade, dos Venerandos Juízes Desembargadores manterem a condenação, a recorrente discorda da medida da pena aplicada.
R) Na determinação da medida da pena, o Tribunal deverá atender aos critérios estabelecidos no artigo 71º do Código Penal: culpa do agente, as exigências de prevenção geral e especial e todas as circunstâncias, que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido.
S) A ora recorrente, não tem antecedentes criminais, encontra-se inserida social, profissional e familiarmente.
T) Conforme resulta da matéria dada como provada nos pontos 15 a19, a recorrente trabalha, auferindo 600€ mensais, recebendo 20€ de abono e não recebe pensão de alimento do filho, vive como o filho de 10 anos de idade, em casa do IHRU pagando o valor de 4 euros mensais, e 30 euros de um acordo de pagamento de rendas em atraso, e gasta 20 euros mensais em medicação para o filho que é asmático e 0,85€ por cada refeição na escola. 
U) Face ao disposto no artigo 47º nº 1 e 2 do Código Penal, às exigências de prevenção geral e especial, às condições económicas da recorrente, ao facto de não ter antecedentes criminais, afigura-se adequado substituir a pena única de prisão por 90 dias de multa, á razão diária de cinco euros, perfazendo o valor total de 450 euros.
Termos em que e nos demais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso e por via dele, ser revogado o acórdão recorrido, tudo com as legais consequências.
Fazendo-se, assim, a habitual e necessária Justiça.”
Ao assim recorrido respondeu o Ministério Público sustentando que que de nenhum lapso padece a decisão devendo a mesma ser mantida.
Subidos os autos a este Tribunal o Digno Procurador Geral Adjunto lavrou parecer no mesmo sentido.
Os autos foram a vistos e à conferência.
*
II – Do âmbito do recurso e da decisão recorrida
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do Código do Processo Penal).
No caso concreto, analisadas as conclusões recursais as questões a decidir são:
a) A subsunção da conduta ao tipo qualificado de ofensas à integridade física;
b) A medida da pena.
Não tendo sido impugnada a matéria de facto é a seguinte aquela a considerar:
1. No dia 30 de Julho de 2018, pelas 12h30, no interior do Centro de Saúde do Monte da Caparica, a arguida entrou no consultório da ofendida CT_____-   , médica dentista, a fim de ser atendida, no que foi informada por CT_____ que tinha chegado atrasada para a consulta e seria atendida se a paciente seguinte faltasse.
2. Cerca de 20 minutos depois, a arguida foi chamada para a realização da consulta e quando se sentou na cadeira disse, dirigindo-se a CT_____ “Espero que me faça os tratamentos como deve ser, espero que não me faças doer.”. 
3. Perante este comportamento da arguida, CT_____ disse-lhe que “não havia condições para continuar a consulta” e que deveria ser marcado outro dia. 
4. Acto contínuo, a arguida abandonou o consultório e aí regressou cerca de 15 minutos depois, abeirando-se da secretária onde se encontrava CT_____-   e a ofendida VC____  , assistente administrativa. 
5. Nessas circunstâncias, a arguida agarrou o frasco contendo líquido anti-séptico (contendo componentes de álcool) para as mãos e tentou atirá-lo a CT_____-  , tendo-lhe agarrado no braço com a outra mão, batendo com o frasco na mão daquela.
6. Em seguida, a arguida virou-se para VC____ empunhando o frasco para o lançar, tendo saltado líquido do mesmo, que atingiu a ofendida VC____ nos olhos.
7. O referido frasco possuía doseador que estava colocado no momento em que a arguida actuou, contendo restos de líquido que ficavam acumulados. 
8. Consequência da conduta da arguida, CT_____-   sofreu escoriação superficial do dorso da mão direita e dores. 
9. Consequência necessária da conduta da arguida, VC____ sofreu ardor em ambos os olhos, vendo turvo durante cerca de 15 dias após a agressão.  
10. A arguida quis atingir o corpo e a saúde das ofendidas CT_____-   e VC____  , respectivamente médica e assistente dentária, bem sabendo que o arranhão que desferiu em CT_____-   era passível de lhe causar dor e a lesão descrita, o que a arguida quis e conseguiu.
11. A arguida sabia que ao empunhar o frasco de anti-séptico para lançá-lo à ofendida VC____ poderia atingi-la com o líquido do mesmo e, não obstante, actuou, conformando-se com essa possibilidade.   
12. A arguida conhecia a qualidade profissional das ofendidas, sabia que as mesmas se encontravam no exercício das suas profissões.
13. A arguida agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei e tinha a necessária capacidade para se determinar de acordo com essa avaliação.
14. A arguida estudou até o 9.º ano.
15. Trabalha como auxiliar de educação e aufere €600,00.  16. Reside com o filho de 10 anos em casa do IHRU (Instituto de Habitação e da Reabilitação Urbana) pagando o valor de €4,00 mensais relativos a renda e €30,00 relativos a um acordo de pagamento de rendas em atraso.  
17. Tem um custo de €20,00 mensais com medicamentos para o filho que é asmático e €0,85 por cada refeição daquele na escola. 
18. O filho recebe €20,00 de abono e não recebe pensão de alimentos. 
19. A arguida não tem antecedentes criminais. 
 ii. Factos não provados   
A. A arguida repetiu as expressões referidas em 2) mais do que uma vez. 
B. Nas circunstâncias descritas em 3), CT_____ disse à arguida que se retirasse. 
C. Nas circunstâncias descritas em 4), a arguida atirou o referido líquido em direcção à face da ofendida VC____  .
III – Da análise dos fundamentos do recurso
A primeira questão prende-se com a subsunção dos factos ao Direito.
Dispõe o art. l43°, nº1. do Código Penal que quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa
é punido (...)
O bem protegido por esta norma é a integridade física da pessoa humana e nele se consagra um crime material e de dano uma vez que o tipo legal abrange um determinado resultado - a lesão do corpo ou saúde de outrem. 
A verificação desta ofensa no corpo ou saúde é independente da dor ou sofrimento causados, e a sua realização é instantânea, consumando-se com a acção ou omissão produtiva do dano.
Assim, quer os meios empregues pelo agente, quer a duração da agressão ou as suas consequências só deverão ser tidas em conta para a determinação da medida da pena (ou para a qualificação da lesão como ofensa à integridade física grave).
Integra a infracção "qualquer dano ocasionado por alguém, sem animus necandi, à integridade física ou saúde (fisiológica ou mental) de outrem", traduzido em ofensa à "normalidade funcional do corpo ou organismo humano, seja do ponto de vista anatómico, seja do ponto de vista fisiológico ou psíquico" - Nélson Hungria, citado por Leal-Henriques e Simas Santos, in Código Penal anotado, 1996, II, 136.
Por ofensa no corpo poder-se-á entender "todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem estar físico de uma forma não insignificante" - Eser § 223 e Maiwald I, 80, cit. por Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 205.
Como lesão da saúde deve considerar-se "toda a intervenção que ponha em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a; pertence a este âmbito toda a produção ou aprofundamento de uma constituição patológica" - Maiwald, 1,81, cito por Paula Ribeiro de Faria, op. supra cit., 207.
Perante a matéria de facto provada, pode afirmar-se sem necessidade de desenvolver alongadas reflexões, que se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de ofensa corporal simples, tal com está previsto no artigo 143°, nº1, do Código Penal.
Assim, a arguida agarrou no braço da ofendida CT_____-  , batendo com o frasco na mão daquela. Em seguida, a arguida virou-se para VC____ empunhando o frasco para o lançar, tendo saltado líquido do mesmo, que atingiu a ofendida VC____ nos olhos.
Ou seja, duas agressões a duas pessoas.
Contudo, o tipo base de ofensas à integridade física conhece ainda  tipos agravados e tipos privilegiados, os quais estão numa relação de especialidade para com o tipo base.
Um dos tipos agravados é o tipo de ofensas à integridade física agravado p. e p. pelo artº 145º do Código Penal, o qual dispõe que:
«1 - Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido:
a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º;
b) Com pena de prisão de três a doze anos no caso do artigo 144.º 
2 - São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º».
Por sua vez, o nº 2 al. l) do artº 132º do Código Penal dispõe que é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade, entre outras, a circunstância de o agente praticar o facto contra funcionário, no exercício das suas funções ou por causa delas.
Ora, como é bom de ver ambas as vítimas são funcionárias pois que prestam serviço em Centro de Saúde estatal preenchendo assim o conceito contido no artº 386º nº 1 do Código Penal.
Que a agressão se deveu ao facto das vítimas desempenharem funções públicas também não há dúvidas pois que não fora tal qualidade destas nunca a arguida haveria ali se deslocado e regressado após ter sido mandada sair.
A recorrente coloca em causa que a sua conduta seja enquadrável no conceito de perversidade ou censurabilidade contido no nº 1 do artº 132º do Código Penal.
Na verdade, o preceito foi construído dogmaticamente de acordo com a técnica dos exemplos padrão o que, em termos muito simples, determina que, por principio o preenchimento objectivo do exemplo arrasta consigo a inclusão da cláusula geral. Contudo, admitem-se situações em que o preenchimento objectivo do exemplo não arrasta consigo o conteúdo da perversidade ou censurabilidade. Nestas situações o tipo agravado não é preenchido.
Mas não é claramente o caso pois que aqui a especial censurabilidade é patente.
Como refere o Ministério Público na sua reposta: “A especial censurabilidade e perversidade resulta da atitude inesperada, inopinada, injustificada e surpresa da arguida sobre uma médica dentista e assistente de dentista num centro de saúde público, lugar de trabalho das mesmas, sendo estas funcionárias públicas a exercer as suas funções. Existe ainda o facto da necessidade de se impor da arguida quando foi a mesma que chegou atrasada à consulta, exigindo celeridade e qualidade no atendimento quando foi a mesma que não respeitou horários, agredindo sem qualquer motivo sequer para estar descontente com o serviço. O factor surpresa emprestado à agressão quando voltou ao consultório só e apenas para agredir quando tudo fazia crer que qualquer eventual desentendimento já estaria resolvido, não dando qualquer possibilidade de defesa às ofendidas.  
 Quanto à arguida VC____  o dolo não foi considerado na sua modalidade, de dolo directo, o que se prende com o modo como estava acondicionado o liquido que atingiu os olhos da mesma, mas sim na modalidade de dolo eventual. Não foi um acaso o líquido ter atingido os olhos da mesma, pois o mesmo estava saído do frasco em parte, sendo o excesso que fica junto ao mesmo depois da sua utilização o que não poderia deixar de ser visto e constatado pela arguida que inopinadamente esgrimia tal frasco, acontecesse o que acontecesse, na direcção da ofendida. O álcool gel não era de uso corrente, mas tais frascos com os mecanismos em causa são abundantemente usados, há muito, com produtos de higiene e detergentes, sendo o seu funcionamento e falhas comummente conhecidos.” Assim, nada há a objectar à qualificação jurídica.
E o mesmo se diga quanto à medida da pena.
O ponto de partida e enquadramento geral da tarefa a realizar, não pode deixar de se prender com o disposto no artº 40º do Código Penal, nos termos do qual toda a pena tem como finalidade “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Em matéria de culpabilidade, diz-nos o nº 2 do preceito que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. 
Com este preceito, fica-nos a indicação de que a pena assume agora, e entre nós, um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição “qua tale” da culpa. Assim, a avaliação da culpa do agente fica ao serviço, fundamentalmente, de propósitos garantísticos e no interesse do arguido. Com este entendimento tem-se visto, aliás, uma consonância com o imperativo constitucional do nº 2 do artº 18º da Constituição da República, de acordo com o qual “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.” Sendo certo que se não divisa, no texto fundamental, a eleição dum imperativo ético-penal da retribuição ou expiação da culpa, como direito ou interesse protegido constitucionalmente. 
Quando, pois, o artº 71º do Código Penal nos vem dizer, no seu nº 1, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não o podemos dissociar daquele artº 40º. Daí que a doutrina venha a defender, sobretudo pela mão de Figueiredo Dias, (Cfr. “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2005, pags. 227 e segs.) que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar reflectirá, de um modo geral, a seguinte lógica: 
A partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma “sub-moldura” para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o “quantum” abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.” (Cfr. Idem pág. 229). 
Ora, será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão actuar os pontos de vista da reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico- normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe, como se viu já, estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar. 
Duas notas a acrescentar: “a defesa de bens jurídicos”, mencionada no referido artº 40º, deve ser entendida, em sede de fins das penas, como propósito de prevenção geral positiva ou de integração. No dizer de Günther Jakobs como fim de “estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida”, e portanto “modelo de orientação para os contactos sociais”, ou ainda como “réplica perante a infracção da norma, executada à custa do seu infractor” (In “Derecho Penal. Parte General, Madrid, Marcial Pons, pág. 8 e segs.). Na verdade, a defesa de bens jurídico-penais sem mais é, ela mesma, em geral, o desiderato do próprio sistema penal globalmente considerado. 
Quanto à prevenção especial, sabe-se como ela pode operar através da “neutralização afastamento” do delinquente para que fique impedido fisicamente de cometer mais crimes, como intimidação do autor do crime para que não reincida, e, sobretudo, para que sejam fornecidos ao arguido os meios de modificação de uma personalidade revelada desviada, assim este queira colaborar em tal tarefa (Vide, a propósito, v.g. Roxin in “Derecho Penal-Parte Especial”, Tomo I, Madrid, Civitas, 1997, pág.86). 
A jurisprudência do Supremo Tribunal tem-se orientado quase unanimemente num sentido igual ao que acaba de se referir. 
O nº 2 do artº 71º do Código Penal manda atender , na determinação concreta da pena, “ a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”. 
Enumera a seguir, a título exemplificativo, circunstâncias referentes à ilicitude do facto, à culpa do agente, à sua personalidade, ao meio em que se insere, ao comportamento anterior e posterior ao crime. 
Feitas estas considerações não descortinamos onde é que existe algo de errado na fixação da pena.
A medida da mesma (penas individuais e única) mostram-se devidamente balanceadas tendo levado em consideração todos os elementos facto que depõem a favor da arguida e contra a mesma sendo que, verdadeiramente, nada temos a acrescentar ao que consta da sentença recorrida.
A conversão em multa decorre de uma imposição legal inexistindo razões que determinem o cumprimento da pena de prisão.
Quanto ao valor diário da multa há muito que este Tribunal vem chamando a atenção para o valor do dinheiro e para a sua repercussão nas penas. 
Nos Acs. de 19.12.2018 tirado no processo 563/14.3PHSNT.L1, Ac. de 27.01.2021 tirado no processo 14/20.4RGR.L1 e 1044/18.1POLSB.L1 de 12.01.2021, todos desta secção, considerou-se “Dispõe o artº 47º nº 2 do Código Penal que “Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre (euro) 5 e (euro) 500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.
O preceito em questão tem a redacção que lhe foi dada pelo D.L. 323/2001 de 17.12.
Foi naquela altura determinado que o mínimo diário da multa seria 5 €. Desde então para cá existe depreciação de moeda. Por outras palavras: para se adquirir aquilo que em 2001 se adquiria com 5 € hoje é necessária quantia diferente.
Assim, utilizando o índice de preços ao consumidor divulgado pelo INE e o seu simulador (https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ipc ) temos que 5,00 € ( o mínimo diário de multa desde 2001) deverá ser actualizado para 6,83 € à data presente.
A tal acresce que o montante diário da pena de multa não deve ser doseado por forma a que tal sanção não represente qualquer sacrifício para o condenado, sob pena de se estar a desacreditar esta pena, os tribunais e a própria Justiça, gerando um sentimento de injustiça, de insegurança, de inutilidade e de impunidade. (…)” (no mesmo sentido vide Ac. desta Relação, secção e relator tirados nos processos 428/16.4SILSB.L1 e 7/17.9XELSB.L1).
Assim sendo, temos que o valor encontrado de 6 € apenas peca por defeito e apenas porque o Ministério Público não recorreu é que este Tribunal não aumenta o quantum diário da multa.
E tanto basta para que o recurso improceda.
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IV – Dispositivo 
Por todo o exposto, acordam os juízes que compõem a 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em manter na íntegra a douta sentença recorrida.
Custas pela arguida que se fixam em 3 (três) U.C.
 Notifique.
 
Acórdão elaborado pelo 1º signatário em processador de texto que o reviu integralmente sendo assinado pelo próprio e pela Veneranda Juíza Adjunta.
 
Lisboa e Tribunal da Relação, 18 de Maio de 2022  
Rui Miguel de Castro Ferreira Teixeira  
Cristina Almeida e Sousa