Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5167/2004-5
Relator: FILOMENA CLEMENTE LIMA
Descritores: MEDIDAS DE COACÇÃO
PRISÃO PREVENTIVA
OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/15/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Não deve ser alterada a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica uma vez que o arguido, apesar de estrangeiro, tem vida profissional e familiar estável em Portugal e mudou de residência afastando-se da área de residência da menor vítima .
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


1. No processo de inquérito n.º 1496/03.4 TACSC do 2º Juízo Criminal de Lisboa foi proferido despacho, em 2.4.2002, que, no seguimento do requerimento do arguido J., detido em 26.2.04 em que este pedia a substituição da medida a de coacção de prisão preventiva, aplicada em 27.2.04 aquando do primeiro interrogatório, pela de prisão domiciliária com sujeição a vigilância electrónica, deferiu a pretensão do arguido e decidiu substituir a referida medida de prisão preventiva pela medida de permanência na habitação com recurso a vigilância electrónica.

Inconformado com este despacho interpôs recurso o MºPº motivando o recurso com as conclusões :
- Está fortemente indiciado que o arguido cometeu um crime de abuso sexual de criança na forma continuada, p.p. pelo art.º 172º, n.º1 CP, punível com pena de prisão de 1 a 8 anos;
- Mantêm-se os pressupostos de facto e de direito que conduziram à aplicação ao arguido da medida de prisão preventiva;
- Não tendo sobrevindo circunstâncias que alterassem o quadro em função da qual a mesma fora aplicada e que implicasse a sua substituição, maxime pela redução das exigências cautelares, pela medida de obrigação de permanência na habitação com monotorização telemática posicional, vulgo vigilância electrónica;
- Mantendo-se prementes as necessidades de acautelar os perigos de fuga, de continuação da actividade criminosa e da conservação da prova que se fazem sentir com acuidade e que se não compadecem coma aplicação da medida ora aplicada ;
- Face à acentuada gravidade do crime, a sujeição a outra medida que não a prisão preventiva, é susceptível de causar intranquilidade e alarme social relevante que cumpre acautelar, atenta a necessidade premente de considerar o limiar mínimo de prevenção geral, o qual impõe, no caso concreto e enquanto se não afrouxar o juízo de indiciação subjacente à decisão, quer o mesmo se mantenha nessa situação;
- Só a prisão preventiva se revela adequada, necessária e proporcional ao arguido sendo a única consentânea com as exigências cautelares e que salvaguarda os objectivos delineados pelo art.º 204º CPP;
- Ao substituir-se a medida de prisão preventiva pela permanência na habitação violaram-se os art.ºs 193º, 202º e 204 CPP.

Admitido o recurso com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo, respondeu o arguido pugnando pela improcedência do recurso.
Neste Tribunal, o Exm.º Sr. Procurador Geral Adjunto apôs visto nos autos.
Colhidos os vistos legais procedeu-se a conferência.

2. O objecto de recurso, tal como se mostra delimitado pelas conclusões da motivação, reporta-se à apreciação da suficiência da medida aplicada pela decisão recorrida para alcançar as exigências cautelares do caso concreto que, segundo o recorrente não se mostra adequada a tais exigências, apenas o sendo a prisão preventiva cuja aplicação é requerida pelo MºPº por se mostrar necessária e proporcional para a sua prevenção.

3.
3.1. Nenhuma medida de coacção prevista no C.P.P., à excepção do T.I.R., pode ser aplicada se, em concreto, se não verificar : fuga ou perigo de fuga; perigo de perturbação do inquérito; perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa.
É o que decorre do art.º 204º C.P.P. que define os requisitos gerais de aplicação das medidas de coacção e, nos termos do disposto no art.º 202º, n.º1 al. a) C.P.P., estabelecem-se os casos em que pode ser imposta a prisão preventiva ao arguido.
Esses pressupostos são :
- haver fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos;
e de
- serem inadequadas e insuficientes as demais medidas para garantir as necessidades cautelares, reportadas aos perigos definidos no preceito do art.º 204º C.P.P..
Sendo a prisão preventiva a medida mais gravosa de entre as medidas cautelares previstas no C.P.P. só deve a mesma ser aplicada se, em concreto, se verificarem os perigos enumerados no art.º 204º C.P.P. e se, em concreto, essas exigências cautelares forem de tal modo prementes e insusceptíveis de serem garantidas por outras medidas cautelares menos gravosas e limitativas dos direitos do arguido.
Só excepcionalmente deve ser aplicada a medida de prisão preventiva que tem carácter residual ou subsidiário, o que decorre do princípio constitucional consagrado no art.º 28º C.R.P..
Não se limitando a lei a falar em suficientes indícios, exigindo, para aplicação da mais gravosa das medidas de coacção, fortes indícios da prática de crime doloso punível com prisão de máximo superior a três anos, tem-se entendido que « (...) inculca a ideia da necessidade de que a suspeita sobre a autoria ou participação no crime tenha uma base de sustentação segura (...) que essa suspeita assente (...) em factos de relevo que façam acreditar que eles são idóneos e bastantes para imputar ao arguido essa responsabilidade (...) o que não invalida o entendimento de que a expressão utilizada pelo legislador (...) porventura não constituirá mais do que uma injunção psicológica ao juiz, no sentido de uma maior exigência na ponderação dos dados probatórios recolhidos acerca do crime assacado ao arguido...», in Simas Santos e Leal-Henriques, «Código de Processo Penal Anotado», Ed. Rei dos Livros, 2.ª edição, 1999, pp. 996/997.
.
Com efeito, nos termos conjugadamente prevenidos nos arts. 192.º n.º 2, 193.º, 197.º n.º 1, 198.º, 199.º e 200.º a 202.º, do CPP, é pressuposto da aplicação, nomeadamente, da prisão preventiva, além do mais – e para o que ao caso importa -, a existência de um «fumus comissi delicti», no sentido de que é sempre necessário que seja possível formular um juízo de indiciação da prática de certo crime.
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, « No momento da aplicação de uma medida de coacção (...), que pode ocorrer ainda na fase do inquérito ou da instrução, fases em que o material probatório não é ainda completo, não pode exigir-se uma comprovação categórica da existência dos referidos pressupostos, mas tão-só, face ao estado dos autos, a convicção objectivável com os elementos recolhidos nos autos, de que o arguido virá a ser condenado pela prática de determinado crime».
E adianta: «Nos casos em que a lei exige fortes indícios, a exigência é naturalmente maior; embora não seja ainda de exigir a comprovação categórica, sem qualquer dúvida razoável, é pelo menos necessário que, face aos elementos de prova disponíveis, seja possível formar a convicção sobre a maior probabilidade de condenação do que de absolvição.», in «Curso de Processo Penal», Ed. Verbo, 2.ª edição, 1999, pág. 240.
Quando a lei fala em fortes indícios pretende exigir uma indiciação reforçada, filiada no conceito de provas sérias a que se referem V. Moreira e G. Canotilho, na «Constituição da República Portuguesa, Anotada», 3.ª edição, Coimbra, 1993, pág. 185.
Assim, o primeiro pressuposto da aplicação da prisão preventiva é a existência de fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos (art.º 202º, al.a) C.P.P.).

Nesta sede não é questionável a natureza e consistência do quadro de indícios que é possível desde já delinear, não sendo tal questão objecto de recurso.
A acusação deduzida confirma a existência de fortes indícios da prática pelo arguido de factos susceptíveis de integrarem um crime de abuso sexual de criança na forma continuada, p.p. pelos art.ºs 172º, n.º1 e 30ºCP.
Perante tais indícios, que a decisão recorrida reconhece serem fortes sem que tal definição fosse questionada nesse recurso, há que apreciar da adequação da medida às exigências cautelares definidas neste processo.
Para esta decisão mostra-se decisivo conhecer das razões de facto e de direito que levaram à aplicação no primeiro interrogatório da prisão preventiva e das que poderão ter determinado uma alteração das mesmas por forma a ter permitido a alteração da mesma.


3.2. Resulta dos autos que :
Em 27.2.04, aquando do seu 1º interrogatório, entendeu-se que perante os factos indiciados era de recear o perigo de fuga, nomeadamente por ser estrangeiro e a continuação da actividade criminosa perante a personalidade revelada pelo arguido e as circunstâncias que rodearam a prática do crime e por, embora não existam indícios de que continue actualmente os seus contactos com a menor, o arguido saber onde a mesma se encontra e os percursos que habitualmente faz. A decisão recorrido ponderou ainda a gravidade da sua conduta, que a decisão fez questão de enfatizar, e a intranquilidade pública e intensa perturbação da ordem que os factos são susceptíveis de gerar.
Estas razões levaram a decisão que aplicou a prisão preventiva a concluir que só uma medida de carácter detentivo era então adequada a prevenir tais receios (cfr. auto de fls. 163 e ss.).
Entretanto, foi proferida em 29.3.03, a acusação contra o arguido nos termos supra descritos. Esta em 28.5.2004 foi confirmada pela decisão de pronúncia que manteve a medida de obrigação de permanência na habitação.

A decisão recorrida, para concluir pela suficiência da medida de permanência na habitação para garantir as exigências cautelares existentes em concreto, ponderou, essencialmente com base no resultado do relatório social realizado pelo IRS, que as exigências cautelares que existiam e que não desapareceram, se mostram contudo atenuadas, nomeadamente perante o facto de o arguido ter mudado de residência há cerca de um ano, não havendo na comunidade, onde reside agora, conhecimento da sua actual situação, além de se mostrarem preenchidos os requisitos de consentimento, habitacionais e de inserção social, familiar e técnicas para a aplicação da medida que requereu em substituição da prisão preventiva.

Da leitura do relatório do IRS resulta que o arguido tem uma dinâmica familiar harmoniosa ocupando grande parte do tempo a trabalhar, sendo proprietário de três empresas, actualmente geridas pelas filhas e por um dos sócios e tendo condições satisfatórias para trabalhar em casa já que pediu uma linha telefónica para uso de fax – não sendo possível o recurso a meios telemáticos nos locais de trabalho por estarem tais meios apenas associados a fiscalização na habitação pelo que o IRS refere a impossibilidade de retomar a sua actividade profissional nesses locais. Refere ainda o relatório que não há conhecimento da sua situação no meio onde vive, tendo uma situação económica acima da média.

3.3. O que se impõe averiguar neste momento é a existência de uma eventual diminuição das exigências cautelares por forma a dever-se, ou não, substituir a medida inicialmente aplicada.
Só a posterior verificação de que a medida de coacção teria sido aplicada fora das condições previstas na lei ou em caso de alteração das circunstâncias que determinaram a sua aplicação justificaria a sua revogação. E só uma atenuação das exigências cautelares justificaria a sua substituição .
Nos termos do art.º 213º CPP, deve ser reexaminada de três em três meses, oficiosa e obrigatoriamente (se bem que possa ocorrer em qualquer momento processual), a subsistência dos pressupostos da prisão preventiva que tenha sido ordenada, devendo ela ser mantida ou revogada ou substituída se se verificarem razões para tal. Tais razões podem estar relacionadas com a verificação de alguma das causas de extinção ou suspensão das medidas de coacção ou com verificação de alguma das causas de revogação ou substituição enumeradas no art.º 212º CPP.
Estas últimas referem-se essencialmente à alteração das circunstâncias que determinaram a sua aplicação ou atenuação das exigências cautelares ou à verificação posterior da sua inaplicabilidade.
As medidas de coacção podem ser substituídas por outras menos graves sempre que se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua aplicação ( art.º 212º,n.ºs 1 e 3 C.P.P.).
É jurisprudência fixada pelo STJ (acórdão do Pleno das Secções Criminais, de 24-1-96, no DR, I-A, de 14-3-96), que a prisão preventiva deve ser revogada ou substituída por outra medida de coacção logo que se verifiquem circunstâncias que tal justifiquem, nos termos deste artigo, independentemente do reexame trimestral dos seus pressupostos, imposto pelo art. 213.º, do CPP.
Os referidos preceitos traduzem, consabidamente, o afloramento do princípio de que as medidas de coacção, pelas contínuas variações do seu condicionalismo, estão sujeitas à condição rebus sic stantibus.
E que, embora a primitiva decisão de aplicação de determinada medida de coacção não seja definitiva, ela é, contudo, intocável e imodificável enquanto não sobrevierem motivos que justifiquem legalmente nova tomada de posição.
Como se assinalava no acórdão da R. Porto, de 16-10-91 (sumariado no BMJ 410-877), enquanto não ocorrerem alterações fundamentais ou significativas da situação existente à data da pronúncia anterior sobre a aplicação das medidas de coacção, o tribunal não pode reformar “in pejus” a decisão anteriormente tomada.
Nessa esteira, designadamente, os acórdãos, da mesma Relação, de 1-9-97 (BMJ 469-656) e de 7-1-98 (BMJ 473-564).

Compulsados os autos verifica-se que, no momento, continuam a subsistir os receios de perturbação da tranquilidade pública e de fuga e o perigo de continuação da actividade criminosa, assinalados na decisão que aplicou a prisão preventiva, tal como se mantêm intocáceis os juízos indiciários formulados.
O que há que averiguar é se tais perigos se mostram atenuados por forma a que possa ainda ser adequada a acautelar tais receios uma medida menos gravosa do que a prisão preventiva.

Com efeito, as medidas de coacção estão sujeitas aos princípios da legalidade, da proporcionalidade e adequação e da necessidade, enunciados nos art.ºs 191º e 193º C.P.P..
Estes princípios são uma emanação do princípio constitucional da presunção de inocência que impõe que “qualquer limitação à sua liberdade, anterior à condenação com trânsito em julgado, deva não só ser socialmente necessária como também suportável” (Castro e Sousa, in Jornadas de Direito Processual Penal, 150).
Assim, nenhuma medida, porque restritiva de direitos fundamentais, deve ser aplicada se não se revelar absolutamente necessária e a medida utilizada deve ser adequada a prosseguir os objectivos cautelares para que foi criada pela lei e deve ser proporcional ao fim visado, proibindo-se o excesso da medida relativamente aos fins obtidos.
As medidas coactivas só devem ser usadas se estritamente necessárias e sempre no quadro legalmente estabelecido, com prioridade para as menos gravosas e desde que da sua aplicação não resultem inconvenientes graves para a prossecução do interesse processual em causa.

Além dos factos referidos e susceptíveis de integrarem a prática pelo arguido de um crime de abuso sexual de criança na forma continuada, que se prolongou por um ano (o ano de 2002), na pessoa de uma menor de 10 anos de idade, resulta dos autos que o arguido, de nacionalidade francesa, vive em Portugal desde 1988 vivendo com uma companheira desde há cerca de 10 anos. Em 2003 mudou-se de Cascais, da casa onde ocorreram os factos, na R. Fausto Figueiredo para a Quinta da Beloura onde vive actualmente.
Há que ponderar ainda o teor do relatório social supra mencionado e das informações nele contidas.

Perante estes elementos afigura-se que, neste momento, para acautelar os receios verificados, pelas razões focadas na decisão recorrida, não se impõe a prisão preventiva do arguido que só se justificaria se fosse a única capaz de, nos actuais termos processuais, acautelar os receios de continuação da actividade criminosa e de perturbação da tranquilidade pública que se mostram atenuados pelo facto de o arguido já não residir na área da residência da menor e de no local onde mora actualmente não ser conhecida a factualidade indiciada. Também o receio de fuga se mostra diminuído perante o conhecimento, trazido pelo decurso do próprio inquérito e pelo relatório realizado, de que embora o arguido seja nacional francês, tem vida familiar e profissional estabilizada em Portugal onde vive há cerca de 16 anos, o que diminui o receio inicialmente constatado.
Tal como se deixou definido e com os contornos atrás referidos, não obstante a gravidade da actuação do arguido e da previsibilidade de condenação numa pena gravosa, mostra-se para tanto suficiente a obrigação de permanência na habitação (prevista no art.º 201º CPP) a que se deverá confinar face ao teor do relatório do IRS, com recurso a vigilância electrónica, medida que se mostra adequada a afastar os receios cautelares concretamente verificados e referidos, atentas as condições de vida do arguido e do seu agregado familiar.




4. Pelo exposto, acordam os juízes em negar provimento ao recurso mantendo a decisão recorrida.
Sem tributação.


Elaborado, revisto e assinado pela relatora Filomena Lima e assinado pelos Desembargadores Ana Sebastião e Pereira da Rocha.

Lx., 15/06/2004