Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO LEE FERREIRA | ||
Descritores: | DEPOIMENTO INDIRECTO TESTEMUNHA ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 11/23/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: |
I-O depoimento indirecto consiste numa comunicação de um facto de que o sujeito teve conhecimento por intermédio de uma terceira pessoa. Quando qualquer uma das pessoas ouvidas na audiência de julgamento descreve o que a ofendida lhes disse, ou o que ouviu da boca da ofendida quando falava ao telefone com o pai, está a descrever eventos da vida real que directamente presenciou e apreendeu pelos seus próprios sentidos e não está a produzir um depoimento indirecto. II-A norma constante do nº 1 do artigo 129º do Código de Processo Penal exige enquanto condição de validade que a testemunha fonte seja chamada a depor, para que possa haver inquirição na audiência e a necessária avaliação sobre a fidedignidade e credibilidade do depoimento indirecto. Os termos utilizados na norma levam-nos a considerar que o concreto teor do depoimento da testemunha fonte ou o elenco das perguntas que lhe sejam feitas não constituem requisitos de validade ou de eficácia da prova decorrente do depoimento indirecto. A valoração do hearsay evidence pode mesmo acontecer se a testemunha não comparecer ou, se comparecendo, não prestar qualquer depoimento. III-, A doutrina e a jurisprudência têm densificado o conceito de crime prolongado ou de trato sucessivo, considerando a existência de um só crime – apesar de se desdobrar em diversas condutas repetidas ao longo de um certo período de tempo, desde que se verifique uma "unidade resolutiva". | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência no Tribunal da Relação de Lisboa,
1. Após a realização da audiência de julgamento nestes autos 570/14.6PFSXL e por acórdão depositado a 11/4/2016, o tribunal colectivo condenou cada um dos arguidos M e V, pelo cometimento de um crime de abuso sexual de criança qualificado, previsto e punido pelos artigos 171º, nº 1, e 177º, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de cinco anos de prisão, de execução suspensa por igual período de tempo e mediante o regime de prova. Os arguidos interpuseram recurso e da motivação extraíram as seguintes conclusões (transcrição): “A. 1. Os factos provados no acórdão recorrido referem práticas "frequentes", decorrentes de "estímulos", "combinações", "incentivos", "incentivo/', "conluio/', fazendo crer que era habitual e prática quotidiana dos arguidos envolverem a sua filha L em práticas e jogos erotizados. 2. Porém, a prova realizada ficou muito aquém da demonstração que se impõe para assim se poder concluir! 3. Na decisão sub judicie majorou-se, para firmar a convicção do Tribunal, os depoimentos indirectos, com o argumento de que foi ouvida a "fonte" das histórias relatadas por quem ouviu dizer! 4. Contudo, não bastará a "fonte" ser chamada a depor para se poder valorar os depoimentos indirectos. É, antes, necessário que a "fonte" seja chamada a depor sobre os factos relatados no testemunho do que foi ouvido dizer, sob pena de não se poder ser valorado tudo o que for dito além do questionado ao depoente "fonte". 5. Neste sentido, não pode ser admitida e valorada qualquer prova que extravase o âmbito do depoimento da "fonte", pelo que os depoimentos das testemunhas Emília e Sónia - avó, avô e tia maternos, respectivamente — terão que ser amplamente desconsiderados. 6. O depoimento da "fonte" (menor L) é parco no contexto a que os factos constantes da acusação - e carreados para a decisão em tarefa de copy paste — dizem respeito. 7. Percorrendo o depoimento da menor Lé possível aferir que, em momento algum, lhe foi questionado se os pais lhe confidenciaram que as "ritualizações" que faziam entre eles tinham que ficar em segredo. 8. Também, em momento algum do mesmo depoimento, lhe foi questionado se os pais tinham por hábito andar nus à sua frente. 9. De igual modo, não foi a menor questionada se tomava banho com os pais e se iam todos nus para a banheira. 10. Doutro modo sim, respondeu a depoente que as "brincadeiras" ocorriam com os intervenientes vestidos! 11. Descreveu as "brincadeiras" com naturalidade, não referindo qualquer facto — ainda que indiciário ou suspeito — do qual se possa inferir algum jogo erotizado ou de cariz sexual. 12. Questionada sobre se viu o pai nu, respondeu afirmativamente, facto confirmado, aliás, pelos arguidos e contextualizado no ambiente familiar de tomada de banhos. Nada se indagou mais em sede de depoimento sobre esta questão! 13. Questionada sobre se já mexeu na "filinha do pai' respondeu, primeiramente que não se lembra, mas, posteriormente e em contexto de situações em que se magoavam no jogo das cócegas, disse que sim: "dava um beijinho na mão e depois punha na pilinha do pai'. 14. Não foi, no entanto, questionada — o que seria absolutamente relevante para o apuramento da verdade material — se o pai estava nu quando isso sucedia! Porventura não... 15. Os arguidos explicaram — nas declarações prestadas - de forma coerente o contexto em que aconteceu o contacto da menor com a nudez (numa base de curiosidade natural). 16. De idêntico modo, nada foi questionado à menor L quanto à brincadeira das pinturas corporais e quanto à razão para ter dado um beijinho no mamilo da mãe! 17. Pelo que entendemos ser contrário ao espírito da lei e viola os princípios constitucionais garantidos à defesa a valoração de depoimentos indirectos que não resultem directamente da sindicância dos factos à depoente "fonte". 18. Devendo, pois e necessariamente, ser desconsiderados os depoimento da avó, avô e tia maternos em tudo o que não respeite a factos questionados à depoente L ou, claro está, a factos de conhecimento directo destas testemunhas. 19. Doutro modo, está-se a violar o disposto nos artigos 128° e 129° do Código Penal -violação essa que está consumada no aliás douto acórdão ora sob escrutínio. B. 20. O Tribunal a quo considerou indevidamente factos como provados. 21. Com efeito, considerou provados factos que não resultam de nenhum depoimento (nem directo, nem indirecto) e, por sua vez, inflamou uma realidade que, a ter de algum modo existido, em momento algum se comprovou que tivesse um contexto de tão gravoso relevo. 22. A decisão recorrida considera como provado que os arguidos "confidenciaram à menor", ou sequer que, em número de vezes não determinado, e se "exibiram desnudados", "sugestionaram a menor a retribuir-lhe carícias em zonas erógenas dos seus corpos, tendo o arguido V "induzido a menor a mexer-lhe no pénis, manipulando-o, fazendo-lhe festas e dando-lhe beijos 23. Contudo, os factos provados reconduzem-se a expressões "literárias" — por certo consequência do copy paste do libelo acusatório — e descrevem uma realidade que, em sede de audiência de julgamento, não foi minimamente demonstrado. 24. Não é factual que os arguidos tenham "confidenciado", " exibindo-se", "sugestionado", "induzido", "aliciado", "estimulado" o que quer que seja. 25. Tratam-se de adjectivações, expressões genéricas, de grande amplitude e ambiguidade e que carecem de efectiva demonstração factual que, in casu, inexistiu. 26. Os depoimentos das testemunhas que são base da prova acusatória — a avó e tia maternas — não permitem concluir os factos que são dados como provados. 27. A falta de demonstração resulta da necessária leitura integral (ou praticamente) dos depoimentos das testemunhas em referência e que se reproduzem no presente recurso. 28. Quanto ao depoimento da avó materna: está carregado de subjectividade e é emotivo, sobressaindo o conflito latente com a sua filha M, criticando e fazendo juízos de valor sobre comportamentos, tidos pela experiência comum como normais, quer da sua filha, quer do seu "genro". 29. Nada do que referiu em depoimento permite concluir os factos citados no ponto 22 destas conclusões! 30. Quanto ao depoimento da tia materna: deve ser amplamente desconsiderado por se reportar a depoimento indirecto referente a factos não sindicados à menor Lem sede de depoimento para memória futura. 31. Trata-se de um depoimento subjectivo, frio e que sublinha — uma vez mais — o litígio com a irmã e com o "cunhado", resultando esse facto bem claro quando se referiu à circunstância de não ser convidada para festas de aniversário da sobrinha nos últimos anos. 32. Ninguém, nunca, nem de modo algum referiu factos que permitam concluir que "os arguidos confidenciaram à menor que tais ritualizações teriam que ficar em segredo, ninguém podendo saber, apenas os arguidos e a menor 33. Ninguém, nunca, nem de modo algum referiu factos que permitam inferir que os arguidos "sugestionaram a menor a retribuir-lhe carícias em zonas erógenas dos seus corpos". 34. Ninguém, nunca, nem de modo algum referiu factos que infiram que "o arguido V induziu a menor a mexer-lhe no pénis, manipulando-o, pazendo-lhe festas e dando beijos e a arguida M sugestionou a mesma a chupar-lhe e a dar-lhe beijos no mamilo". 35. O mesmo se dizendo para a maioria dos factos provados e cuja demonstração do contrário só é possível com recurso à transcrição integral (ou quase integral) dos depoimentos das testemunhas que o Tribunal a quo valorou! 36. Os factos descritos nos pontos 4 a 11, 20, 21, 23, 24, 25, 30 e 31 da matéria dada como provada na decisão recorrida foram incorrectamente julgados e dados como provados. 37. Devendo, ao invés e em boa justiça, ser considerados como não provados, atenta a prova produzida em audiência de julgamento. 38. Conclui-se, assim, pela nulidade da decisão, ao abrigo do disposto no artigo 379°, n.° al. c) do Código Penal. C. 39. A douta decisão recorrida é, igualmente, nula por falta de necessária ou suficiente fundamentação, não cumprindo cabalmente o estatuído no artigo 374°, n.° 2 do Código de Processo Penal. 40. O Tribunal a quo limitou-se a fazer referência á admissão dos depoimentos indirectos (que devem, como já demonstrado, ser desvalorados!), sem se referir em concreto quais as declarações que contribuíram para o merecimento da prova e sem fazer exame crítico à mesma. 41. Refere, em sede de motivação, o Tribunal a quo que, "com efeito, a menor L em sede de declarações, não confirma os factos que lhe são colocados e que, de forma directa ou indirecta, a eles respeita, que não se lembra. 42. No entanto, tal conclusão não corresponde, de todo, à realidade do processo, bastando — para confirmar esta afirmação — confrontar o depoimento para memória futura constante de fls. 463-497! 43. Também acrescenta o Tribunal a quo que "quer a avó, quer a tia materna, apresentam declarações as quais confirmam, na quase totalidade, os factos aqui em apreço, sendo a sua rabeio de ciência aquilo que a menor lhes contou". 44. Ora - sem prejuízo do que vai já supra referido quanto à não valoração dos depoimentos indirectos - sempre se impõe questionar a que "quase totalidade" dos factos se reporta o Tribunal a quo. 45. Pois que da transcrição dos depoimentos das testemunhas em referência resulta necessário concluir que a realidade descrita por estas está muito longe de demonstrar que, entre outras coisas, os arguidos ''confidenciaram à menor", ou sequer que, em número de vezes não determinado, e se "exibiram desnudados", ''sugestionaram a menor a retribuir-lhe carícias em zonas erógenas dos seus corpos, tendo o arguido V "induzido a menor a mexer-lhe no pénis, manipulando-o, fazendo-lhe festas e dando-lhe beijos"! 46. Sendo que a testemunha Ramiro apenas se referiu a um única história contada pela menor que nem tão-pouco vem relatada na decisão recorrida, por certo, por irrelevante no juízo de valor a fazer sobre ela. 47. A fundamentação que se impõe ao tribunal — por imperativo constitucional e defesa do cidadão — não se pode limitar a uma vaga alusão aos depoimentos valorados, nem aos documentos considerados! 48. Deve, antes, circunstanciar minimamente os factos e as razões que lhe permitiram majorar desse modo a prova! 49. O Tribunal a quo omite qualquer fundamentação sobre a prova apresentada pela defesa! 50. Omissão essa que — por certo não é inocente — constitui uma ofensa e é uma violação aos princípios processuais consagrados na lei. 51. Assim, não tendo o Tribunal a quo indicado de forma suficiente as provas que serviram de base para formar a sua convicção, nem tendo efectuado o exame crítico de tais provas - e, em particular, de TODAS as testemunhas e demais prova apresentada pela defesa — temos que concluir que existe insuficiente fundamentação da decisão, o que determina a sua nulidade, nos termos do artigo 379°, n.° al. a), com referência ao artigo 374°, n.° 2, ambos do Código de Processo Penal. D. 52. O Tribunal a quo ao dar como provados os factos, na versão que consta da fundamentação da decisão, violou, entre outro, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127° do Código de Processo Penal - princípio que está associado ao dever de perseguir a verdade material. 53. Por outro lado, ao dar como provados factos que não resultaram da prova produzida em audiência de julgamento violou o artigo 355°, n.° 1 desse mesmo código. 54. Com efeito, em momento algum foram demonstrados factos que permitam concluir que arguidos "confidenciaram à menor", ou sequer que, em número de vezes não determinado, e se "exibiram desnudados", "sugestionaram a menor a retribuir-lhe carícias em zonas erógenas dos seus corpos, tendo o arguido V "induzido a menor a mexer-lhe no pénis, manipulando-o, fazendo-lhe festas e dando-lhe beijoí''. 55. O, aliás, douto acórdão recorrido, de uma forma escandalosa e inaceitável, reproduz como comprovada uma realidade factual que não foi minimamente demonstrada em audiência de julgamento, violando-se assim os mais elementares princípios do processo penal. 56. O acórdão recorrido violou o princípio in dúbio pro reo. 57. Com efeito, face à inexistência da prova - já demonstrada quer pela transcrição dos depoimentos "chave", quer pela desvalorização e desconsideração que se impõe dos depoimentos indirectos — é impossível deixar de concluir que não se tenha gerado uma dúvida para além do razoável acerca dos factos de que os arguidos vinham acusados. 58. Não foram, pois, minimamente circunstanciados os factos que permitiram concluir que arguidos "confidenciaram à menor", ou sequer que, em número de vezes não determinado, e se "exibiram desnudados", "sugestionaram a menor a retribuir-lhe carícias em Zpnas erógenas dos seus corpos, tendo o arguido Vitor "induzido a menor a mexer-lhe no pénis, manipulando-o, pazendo-lhe festas e dando-lhe beijos"\ 59. A dúvida é latente e evidente! 60. Violou o Tribunal a quo, assim, o artigo 32°, n.° 2 da Constituição da República Portuguesa. F. 61. Subsistindo, ainda assim, factos provados, impõe-se questionar se os mesmo merecem censura penal! 62. O que implica considerar que os factos subsistentes (que transcenderão os factos desvalorados) envolvem um acto sexual de relevo. 63. Acto esse que terá que se entender como o acto que tendo relação com o sexo, se reveste de certa gravidade e que, para além disso, há da parte do autor a intenção de satisfazer apetites sexuais. 64. Quanto muito poderão subsistir factos provados quanto à conversa da Lao telefone com o pai, o jogo das pinturas, bem como o beijo para a fotografia no mamilo da mãe — sendo que estes últimos foram registados fotograficamente pelo pai. 65. Tratam-se de actos sexuais? Por certo que não! 66. Mas mesmo que assim se considere, terão os mesmos o necessário relevo para efeitos penais? A conclusão que se impõe é negativa! 67. Os episódios em causa não têm qualquer envolvente sexual, ou deixam claramente enormes dúvidas no ar sobre se têm ou não! 68. Não compete ao Tribunal fazer qualquer juízo de censura moral que atente contra a liberdade e autodeterminação sexual e que respeite à educação dos filhos. 69. Violou assim, por errónea aplicação da lei, o disposto no artigo 171° do Código Penal. G. 70. Ao fixar a pena concreta aplicável aos arguidos em 5 anos de prisão, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 40°, 71°, n.° 1 e 2, 72°, n.° 2, al. b) e 73 do Código Penal. 71. Pois que não fez adequada ponderação das exigências de prevenção especial, nem considerou correctamente a culpa dos arguido — que apenas por mero exercício académico aqui se admite. 72. Não estão em causa actos violentos, nem encontramos neles a usual perfídia que se associa a este tipo de realidade. 73. Os arguidos não têm antecedentes criminais, inexistindo em qualquer sede indícios de práticas ou comportamentos sexualmente ou moralmente censuráveis, estando inseridos social e laboralmente. 74. Devia o Tribunal a quo, quanto muito, ter aproximado a pena concretamente aplicável do seu limite mínimo e sempre abaixo dos 2 anos de prisão, mantendo-se suspensa a sua aplicação e sujeitando-se os arguidos a regime de prova.” A assistente, Maria, interpôs igualmente recurso do acórdão, apresentando as seguintes conclusões (transcrição): “1º O acórdão recorrido optou com recurso à figura do crime continuado por considerar os diversos abusos sexuais perpetrados pelos arguidos num único crime, diminuindo a sua culpa, fixando a pena em limites médios e suspendendo a pena na sua execução. 2º. Contudo, não se vê como a diminuição da culpa possa existir no caso concreto, onde estão em causa abusos sexuais de criança, por atos que se sucederam no tempo, e se renovaram por impulso dos arguidos seus pais através de jogos e brincadeiras que os premiavam, pelo que antes pelo contrário, os comportamentos se deveriam enquadrar no crime prolongado ou de trato sucessivo, através do qual a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua à medida que os atos se repetem (V. Art. 30º do Código Penal. Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque. Comentário do Código Penal. Universidade Católica Editora, 208 p. 139. No mesmo sentido, Maia Gonçalves, Código Penal Anotado e Comentado, Almedina, 2007, p. 649. Inês Pereira Leite "Pedofilia, Repercussões das Novas Formas de Criminalidade na Teoria Geral da Infração, Almedina Coimbra, 2004, p. 155. Cfr. Acórdão do STJ 29-11-2012, Acórdão do STJ de 24-11-2004, Acórdão do STJ de 03-11-2005, Acórdão de 29-03-2007, Acórdão do STJ de 23-01-2008, Acórdão do STJ de 8-1-2014 todos em www.dgsi.pt V. factos 7,12, 21 e 22 dos factos dados como provados de que sio exemplos os jogos com prémio para a menor em compensação pelo abuso, o aproveitamento das rotinas de higiene da menor para os abusos ou brincadeiras como "o pai maluco" ou "guerra das almofadas"). 3º. A medida concreta da pena aplicada e a suspensão da sua execução peca por insuficiência porque não tem em consideração a culpa dos agentes e as exigências de prevenção geral e especial, uma vez que a deturpação do ato de brincar por parte dos arguidos irá marcar a sua própria filha, menor e indefesa, com efeitos psicológicos futuros para toda a vida. (V. artigo 719 do Código Penal). 4º. Na verdade, como se demonstra cientificamente as crianças, vítimas de abuso sexual, manifestam dificuldades em compreender o significado dos atos/comportamentos do perpetrador, mas à medida que vão crescendo, as dimensões da vergonha e da estigmatização intensificam-se e influenciam o impacto da experiência abusiva, sendo o grau de severidade agravado em virtude de ter sido praticado pelos próprios progenitores, deixando a criança desprovida de figuras parentais cuidadoras e concomitantemente construindo patologias irreversíveis nesta menor, quer a nível cognitivo, social e afetivo. (Browne, A. & Finkelhor, D. (1986) Impact of child sexual abuse, a review of the research, In Donnely, A. & Oates, Q, (Eds.), Classic Paper in Child Abuse, (2000), Thousand Oaks: Sage Publications. Furniss, T. (1993) Abuso sexual da criança: uma abordagem multidisciplinar, Porto Alegre, Artes Médicas. Kendall-Tackett, K., Williams, L, & Finkelhor, D. (1993) Impact of sexual abuse on children: A review and synthesis of recent empirical studies, Psychological Bulletin, 113(1). Freud, Anna (1936) O ego e os mecanismos de defesa 7. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. Lamour, M. Os abusos sexuais em crianças pequenas: sedução, culpa, segredo, In: GabeL, M. (Org.), Crianças vítimas de abuso sexual. São Paulo: Summus, 1997. p. 43-61. Strecht, P. (2001). Interiores. Lisboa: Assírio & Alvim). Face à matéria ora alegada, deverá o Venerando Tribunal da Relação, salvo o devido respeito por opinião adversa, determinar a revogação da pena de 5 anos de prisão aplicada aos arguidos suspensa na sua execução pela prática do crime de abuso sexual agravado, substituindo-a por uma pena de prisão efetiva próxima dos limites máximos da punibilidade, nos termos do disposto no artigo 40º e 71º do Código Penal” O recurso foi admitido por despacho de 13/5/2016. O Ministério Público, por intermédio do procurador da república, respondeu ao recurso interposto pela assistente, formulando as seguintes conclusões (transcrição): “a) O Colectivo para condenar os arguidos / recorrentes baseou-se nos depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento, bem como os documentos e relatórios, tudo conforme consta do acórdão em crise. b) Na aplicação da medida da pena o Colectivo atendeu, de forma rigorosa, aos preceitos legais em vigor. c ) Não padece a douta decisão recorrida de quaisquer vícios que levem à sua nulidade, designadamente os de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, de erro notório na apreciação da prova e da fundamentação. d ) Dúvidas não nos restam que os arguidos / ora recorrentes agiram de forma voluntária e consciente, em comunhão de esforços, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei. e ) Assim, não nos merece, assim, o douto Acórdão recorrido, qualquer censura ou reparo. f} Pelo que não deve ser dado provimento ao recurso g) E mantida a decisão da 1ª instância.” O mesmo magistrado respondeu ao recurso dos arguidos, com as seguintes conclusões (transcrição): a ) O Colectivo para condenar os arguidos / recorrentes baseou-se nos depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento, bem como os documentos e relatórios, tudo conforme consta do acórdão em crise. b) Na aplicação da medida da pena o Colectivo atendeu, de forma rigorosa, aos preceitos legais em vigor. c)Não padece a douta decisão recorrida de quaisquer vícios que levem à sua nulidade, designadamente os de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, de erro notório na apreciação da prova e da fundamentação. d ) Dúvidas não nos restam que os arguidos / ora recorrentes agiram de forma voluntária e consciente, em comunhão de esforços, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei. e ) Assim, não nos merece, assim, o douto Acórdão recorrido, qualquer censura ou reparo. f) Pelo que não deve ser dado provimento ao recurso. g) E mantida a decisão da 1- instância.” A assistente apresentou resposta ao recurso dos arguidos, formulando as seguintes conclusões (transcrição): “1- A prova produzida demonstra claramente que os factos dos quais os arguidos vêm acusados foram praticados pelos mesmos. 2- O Tribunal valorou a sua decisão com base no depoimento indireto da tia e da avó materna, mas não só!! 3- O Tribunal teve em consideração toda a prova produzida, nomeadamente a prova pericial que veio corroborar todo o depoimento indireto. 4- No que diz respeito ao depoimento indireto, resulta a sua admissibilidade condicionada à verificação de uma das situações contempladas no artigo, pelo que verificado que a "fonte", menor L, foi ouvida o depoimento indireto pode ser valorado, mesmo que em concreto a menor não tenha explicitado, ipsis verbis, o que foi relatado pela avó materna e tia materna. (" Acórdão do TRC de 26 de Novembro de 2008, Processo n227/05.6GDFND.Cl - "A lei não proíbe de forma absoluta a produção de depoimentos indiretos.il. - A proibição da valoração só ocorrerá se o juiz não chamar a depor a pessoa indicada pela testemunha como fonte da ciência transmitida a tribunal, podendo, no entanto, o tribunal valorara depoimento indirecto sempre que a inquirição da fonte não seja possível, por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada. III. - Tendo o juiz chamado a depor a fonte, o depoimento indirecto pode ser valorado, mesmo nos casos em que aquela se recusa, lícita ou ilicitamente, a prestar depoimento ou, por exemplo, diz de nada se recordar, porquanto nestes casos é possível o exercício do contraditório, na audiência de julgamento, através do interrogatório e do contra-interrogatório, quer da testemunha de ouvir dizer, quer da testemunha fonte. IV. - Não fixando a lei as regras de valoração do depoimento indirecto, quando tal valoração é admissível, terá de entender-se, em ordem ao princípio-base da livre apreciação da prova, estabelecido no art. 127B, do C. Processo Penal, que o depoimento deve ser avaliado conjuntamente com a demais prova produzida, incluindo o correspondente depoimento directo, quando tenha sido prestado, tudo conforme a livre apreciação e as regras da experiência comum portanto, sem qualquer hierarquia de valoração entre um e outro. V. - Tendo deposto a pessoa a quem se ouviu dizer, desaparece a proibição de prova de valoração do depoimento de ouvir dizer, pelo que nenhum impedimento se forma para que o tribunal valore o "depoimento indirecto" no processo deformação da sua convicção" ) 5- O que importa na verdade é que não há uma desconexão entre o depoimento da tia e avó e da menor L, muito peio contrário! 6- Dado que houve depoimento da menor não há nenhum impedimento a essa valoração, bem como, face a toda a prova feita em audiência de julgamento o Exmo. Senhor Juiz tendo por base o princípio da livre apreciação da prova tem liberdade para decidir e apreciar a prova produzida como um todo. 7- Ao contrário do alegado pelos arguidos, basta que a "fonte" seja chamada a depor, pois mesmo que diga que não se recorda dos factos, pode o depoimento ser valorado, devendo o Juiz com base no principio da livre apreciação da prova valorar de acordo com a experiência e conhecimento, tudo o que for dito. ("Acórdão TPR 2 de Fev. de 2011, Processo nB 195/07.2GACNF.P1 " No caso de depoimento indireto, se o juiz chama a fonte a depor, aquele (depoimento indireto) pode ser valorado, mesmo nos casos em que a fonte se recusa, licita ou ilicitamente a prestar depoimento, ou simplesmente diz que já não se recorda dos factos" 8- O que não foi o caso, percorrendo o depoimento da menor é possível aferir que face as questões feitas pelo instituto de Medicina Legal a mesma as veio confirmar. 9- Quando questionada se alguma vez mexeu na "pilinha do pai" veio dizer que sim " dava um beijinho na mão e depois punha na pilinha do pai". 10- Ora cumpre referir que não importa pergunta se o pai estava vestido ou não, a verdade é que em momento algum deve uma criança tocar no órgão sexual do pai, esteja ele nu ou vestido, não parecendo que o facto do pai estar vestido seja relevante para o apuramento da verdade. 11- A verdade é que a menor TOCAVA no órgão sexual do pai, e se o fazia é porque o pai deixava. 12- Nas declarações que os arguidos prestaram sobre o contato da menor a nudez, revelam-se claramente despropositadas e irreais. 13- Curiosidade natural será perguntar "o que é?" ou "porque que é diferente da mãe", agora uma menor de 4/5 anos perguntar se pode tocar, pode beijar e associar a pilinha do pai a uma velha enrugadinha, parece um tanto quanto despropositado e irreal para uma criança dessa idade, pelo que não deverá ter sido essa a realidade dos factos. 14- As pinturas corporais são pinturas para crianças se divertirem, pintarem o rosto, braços, pernas, mãos, e não para pais desnudados se divertirem com filhos nus. 15- Desta forma, os depoimentos da tia e da avó, devem ser valorados, juntamente com o que a menor disse e veio confirmar, bem como toda a prova pericial que veio corroborar todo o exposto, sem deixar dúvidas, de qual é a verdade. 16- Assim, ao determinar qual a medida da pena a aplicar, para os Exmos. Senhores Juízes, que formaram o coletivo a culpabilidade dos arguidos situa-se em termos médios ou até um pouco abaixo da média. 17- O fundamento que legitima a aplicação duma pena é a prevenção na sua dupla dimensão: geral e especial. 18- Deste modo, pode-se dizer que as necessidades de prevenção geral neste caso são elevadas face ao tipo de crime que está aqui em causa, bem como a sua gravidade. 19- O facto de os arguidos não terem antecedentes criminais, ou que inexistam quaisquer indícios de práticas ou comportamentos sexualmente ou moralmente censuráveis ou que estejam inseridos social ou profissionalmente não, parece, motivo suficiente para atenuação face ao que esta aqui em causa. 20- Face à inexistência de quaisquer indícios de práticas ou comportamentos sexualmente ou moralmente censuráveis, importa referir que se tratando de casos que muitas vezes acontecem no seio familiar, fora do conhecimento da comunidade, deverá ter-se em consideração como agravante e não como atenuante. 21- Mais, em momento algum os arguidos reconheceram os factos ou demonstraram arrependimento, pelo contrário, todo o depoimento dos arguidos vai no sentido de relativizar a situação, como se fosse normal todo o ocorrido. 22- É surreal, invocar que dado que a vitima não foi molestada e que encarou os factos como brincadeiras positivas deverá ser atenuada a pena concreta a aplicar. 23- Apesar da idade da menor, e apesar de não se ter apercebido da gravidade da situação, não é motivo de atenuação, dado que foram os próprios pais que lhe demonstraram desde sempre que eram brincadeiras, e por esse motivo deve a pena ser agravada. 24- Incutir na ideia de uma criança que brincar é isso, é demasiado cruel, desde logo, pelos termos em que a "brincadeira" ocorreu - e que o acórdão dá como provados, mas também pelas marcas/sequelas psicológicas futuras, para a quais os relatórios periciais juntos aos autos e a investigação cientifica na área não deixam de remeter. 25- Na verdade, como se demonstra cientificamente as crianças, vítimas de abuso sexual, manifestam dificuldades em compreender o significado dos atos/comportamentos do perpetrador, mas à medida que vão crescendo, as dimensões da vergonha e da estigmatização intensificam-se e influenciam o impacto da experiência abusiva, sendo o grau de severidade agravado em virtude de ter sido praticado pelos próprios progenitores, deixando a criança desprovida de figuras parentais cuidadoras e concomitantemente construindo patologias irreversíveis nesta menor, quer a nível cognitivo, social e afetivo. {Bmwne, A. & Finkelhor, D, (1986) Impact ofchild sexual abuse, a review ofthe research, In Donnely, A. & Oates, Q. (Eds.), Classic Paper in ChildAbuse, (2000), Thousand Oaks: Sage Publications. Furniss, T. (1993) Abuso sexual da criança: uma abordagem multidisciplinar, Porto Alegre, Artes Médicas. Kendall-Tackett, K., Williams, L, & Finkelhor, D. (1993) Impact of sexual abuse on children: A review and synthesis ofrecent empirical studies, Psychological Bulletin, 113(1). Freud, Anna (1936) O ego e os mecanismos de defesa 7. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. Lamour, M. Os abusos sexuais em crianças pequenas: sedução, culpa, segredo, In: GabeL, M. (Org.), Crianças vítimas de abuso sexual. São Paulo: Summus, 1997. p. 43-61. Strecht, P. (2001). Interiores. Lisboa: Assírio & Alvim). 26- Logo, estas "brincadeiras" tidas como normais, em nada atenua a culpa dos arguidos, muito pelo contrário. 27- Entende-se desta forma, que ao determinar a pena a aplicar, não foram corretamente tidos em conta todos os acontecimentos, devendo, desta forma devido ao elevado grau de prevenção, elevado grau de culpa, elevadas consequências no futuro, ser outra a pena a aplicar, mais concretamente a pena de prisão efetiva. 28- A pena justa só poderá ser uma pena muito aproximada da máxima, para que estes progenitores, possam de forma cuidada, compreender a gravidade dos seus atos, que até à presente data reiteram a sua não compreensão. 29- A aplicação de penas suspensas não protege a vítima, colocando-a em particular vulnerabilidade quando o perpetrador do abuso são os próprios progenitores, que desta forma tem um destaque na vida da vítima tendo desta forma oportunidade de continuar a perseguir, intimidar e maltratar a vítima.” O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa por intermédio da procuradora-geral adjunta emitiu parecer no sentido de que os recursos não merecem provimento. Quer a assistente, quer os arguidos apresentaram resposta ao parecer do Ministério Público, renovando os argumentos expostos anteriormente. Recolhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. 2. Como tem sido entendimento unânime, o objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal da relação definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deveria sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir de forma precisa e clara as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, pag 1027 e 1122, Santos, Simas, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196). Tendo em conta as conclusões do recurso dos arguidos e as conclusões do recurso da assistente, as questões a apreciar são as seguintes: a) Nulidade por deficiente fundamentação; b) Decisão da matéria de facto (valoração indevida de depoimentos indirectos, erro no julgamento da matéria de facto, violação do princípio in dúbio pro reo); c) Enquadramento jurídico no crime de abuso sexual de criança; d) Crime único, crime continuado ou vários crimes; e) Medida concreta das pena e f) Suspensão da execução da pena. 3. Matéria de facto No acórdão recorrido, o tribunal colectivo julgou provada a seguinte matéria de facto (transcrição): “1 – A menor L nasceu no dia 27 de Maio de 2008, sendo filha dos arguidos V e de M. 2 – Os arguidos viveram em comunhão de cama, mesa e habitação desde o final do ano de 2003 até à presente data. 3 – Juntamente com a menor L, residiram, até Maio de 2013, na habitação sita na Praceta ..., Aroeira e, desde aquela data, na casa sita na Rua dos Pinheiros, n.º 164, 2º Esq., Herdade da Aroeira, Charneca da Caparica. 4 – Pelo menos no período compreendido entre Maio de 2013 a 21 de Julho de 2014, tinha a menor entre 5 a 6 anos de idade, os arguidos, em conjugação e comunhão de esforços, valendo-se do ascendente parental e da tenra idade da menor L, aproveitando as rotinas de higiene e lazer realizadas com a menor dentro de casa, envolveram-na em atividades erotizadas e de contornos sexuais, as quais, atenta a forma como decorriam, foram sendo percecionadas positivamente pela menor como brincadeiras e jogos. 5 – Aproveitando o natural desconhecimento da menor de dinâmicas relacionadas com a sexualidade, os arguidos, através de estratagemas lúdicos partilhados com a menor, promoveram e incentivaram momentos de intimidade entre os três, durante os quais interagiam com a filha, estando eles e a menor desnudados. 6 – Os arguidos confidenciaram à menor que tais ritualizações teriam de ficar em segredo, ninguém podendo saber, apenas os arguidos e a menor. 7 – Assim, em data não concretamente apurada, mas situada no período temporal mencionado em 3., no interior das residências acima mencionadas, em número de vezes não determinado, normalmente durante ou após as rotinas de higiene da menor, os arguidos exibiram-se desnudados perante a mesma e, através de cócegas e manifestações de afeto, interagiram com a menor L, promovendo momentos de descontração e diversão. 8 – Os arguidos sugestionaram a menor a retribuir-lhes carícias em zonas erógenas dos seus corpos. 9 – Assim, o arguido V induziu a menor a mexer-lhe no pénis, manipulando-o, fazendo-lhe festas e dando-lhe beijos e a arguida M sugestionou a mesma a chupar-lhe e a dar-lhe beijos nos mamilos. 10 – A menor referia-se ao órgão sexual do arguido como «a pilinha é fofinha» e aos seus testículos como «papos de galinha» e mexia e beijava frequentemente essa zona corporal do pai. 11 – Já a arguida M sugestionava a menor a chupar e a beijar os seus mamilos, afirmando que se tratava do «miminho da maminha». 12 – No dia 13 de Outubro de 2013, pelas 17H48, no interior da casa de banho da residência sita na Praceta ..., Aroeira, os arguidos aliciaram a menor a despir-se e a entrar na banheira, juntamente com a arguida M, sob pretexto de fazer pinturas corporais com tintas que esta tinha comprado para o efeito. 13 – Assim, enquanto o arguido V, usando uma máquina fotográfica, tirava fotografias à arguida M e à menor L, estando estas molhadas e nuas dentro da banheira, a arguida M começou por pintar o corpo da menor, usando o dedo e uma tinta vermelha. 14 – A arguida M pintou uma flor e escreveu a palavra Luz nas zonas do peito e da barriga da menor L. 15 – Estimulada pela progenitora, a menor Lpintou o corpo da arguida M, com o seu dedo, fazendo movimentos circulares em redor do peito da arguida. 16 – Exibindo aquelas pinturas corporais, os arguidos pediram à menor que pousasse para a fotografia, tendo o arguido V fotografado tais poses da menor, dentro da banheira, ao lado da progenitora. 17 – No dia 22 de Outubro de 2013, pelas 19h56, no interior da casa de banho da residência sita na Praceta ..., Aroeira, os arguidos combinaram registar outras cenas intimas envolvendo a menor L. 18 – Assim, enquanto o arguido V, usando uma máquina fotográfica, tirava fotografias à arguida M e à menor L, a arguida M, estando vestida da cintura para baixo, de frente para o lavatório e em frente ao espelho, levantou a camisola e expôs o peito. 19 – Incentivada pelos arguidos, a menor virou-se para a arguida M e chupou-lhe o mamilo esquerdo, pousando para o arguido V que fotografou o ato. 20 – Em datas não concretamente apuradas, mas situadas no período mencionado em 3., sempre no interior de uma daquelas residências, normalmente após as rotinas de higiene da menor e dos arguidos, em número de vezes não determinado, estes incentivaram-na a participar na brincadeira a que chamavam «pai maluco». 21 – Tal “brincadeira” ocorreu nos seguintes termos: O arguido V, apresentando-se em t-shirt e meias, mas sem cuecas, colocou-se de gatas e a arguida M introduziu-lhe um rebuçado no ânus. Seguidamente, a gatinhar, o arguido fugiu da menor e pediu-lhe que o apanhasse, dizendo-lhe que, caso o conseguisse, ganhava o jogo. Depois de apanhar o pai, a menor L, com um alicate de unhas, retirou o rebuçado do ânus do pai. 22 – Outra das brincadeiras que os arguidos promoviam tratava-se da guerra das almofadas, em que ambos participavam, uma vezes estando vestidos, outras vezes nus. 23 – Com efeito, em datas e horas não determinadas, mas situadas no período de tempo supra referido, no interior de uma daquelas residências, em cima da cama, ambos os arguidos, todos nus, brincaram com a menor às almofadas, instituindo as regras de quem caísse da cama perdia o jogo e tinha de se deitar no chão e, quem ganhava, sentava-se em cima da pessoa deitada. 24 – Assim, em número de vezes não concretamente determinado, incentivada pelos progenitores, a menor sentou-se, toda nua, em cima da zona pélvica do arguido, bem como sobre a zona genital da arguida, estando estes igualmente despidos, mantendo contacto e fricção entre a sua vagina e a zona genital dos arguidos. 25 – A menor era aliciada com um prémio, caso ganhasse o jogo, que poderia ser uma guloseima ou ver televisão. 26 – Em Junho de 2014, em dia não concretamente apurado, estava o arguido V ausente de casa por motivos laborais, este falou ao telefone com a menor L, que estava acompanhada da arguida M e da avó Maria, e questionou-a sobre se tinha saudades das brincadeiras que faziam, tendo a menor respondido que tinha saudades dele, de brincar com a pilinha e de dar dentadinhas na orelhinha. 27 – Os arguidos estavam cientes que a menor, filha de ambos, apenas tinha entre 5 a 6 anos de idade e não tinha capacidade para perceber o significado de condutas de conotação erótica e sexual. 28 – Incumbindo aos pais o dever de velar pela segurança, educação, desenvolvimento harmónico dos seus filhos menores, os arguidos, violando tais deveres, tinham perfeito conhecimento da perturbação que tais atuações provocavam na formação e estruturação da personalidade da menor, por ser precocemente envolvida em condutas de acentuada conotação erótica e sexual. 29 – Ao adotarem as condutas descritas os arguidos atuaram com intenção de alcançar prazer, envolvendo a menor em práticas de pendor erótico e sexual, bem sabendo que esta não tinha a capacidade e o discernimento necessários a uma livre decisão. 30 – Com efeito, de modo conluiado e em comunhão e conjugação de esforços, ambos os arguidos atuaram com intenção de induzir a menor a tocar-lhes em zonas do corpo erógenas, como o pénis, o ânus e o peito, cientes que tais práticas repetidas, pela sua natureza erótica e sexual, eram aptas a colocar em causa o normal desenvolvimento físico e psicológico da menor, perturbando e prejudicando a formação e estruturação da sua personalidade, nomeadamente no campo sexual. 31 – Mediante acordo entre ambos estabelecido, quiseram ainda os arguidos compelir a menor a contactos e poses eróticas dentro da banheira, para o efeito expondo-se a arguida M desnudada e usando as pinturas corporais como aliciante lúdico, bem sabendo que o envolvimento da menor naquela atividade era prejudicial ao seu equilibrado desenvolvimento psicológico e autodeterminação sexual. 32 – Os arguidos agiram em ambiente de convivência e coabitação familiar, impulsionados por circunstâncias endógenas, do seu interior, preparando o cenário e sugestionando a menor. 33 – Ambos os arguidos agiram livre, deliberada e conscientemente, cientes que praticavam factos proibidos e punidos por lei. 34 – Os arguidos não manifestaram arrependimento. 35 – Não são conhecidas condenações criminais aos arguidos. Condições pessoais e sociais dos arguidos 36 – V O arguido é natural do Barreiro, sendo a mais novo de dois irmãos germanos. Todo o seu processo de socialização decorreu na zona de onde é natural, inserido no agregado materno, uma vez que a separação parental terá ocorrido durante o primeiro ano de vida. O estilo relacional foi caracterizado como sendo adequado, verificando-se a criação e manutenção de laços afetivos entre os elementos que o compunham. O progenitor, que entretanto reconstituiu a vida afetiva, manteve-se sempre presente e interessado no processo de desenvolvimento do arguido. O arguido ter-se-á desenvolvido num enquadramento económico capaz de suprir as suas necessidades. Apresenta um percurso escolar regular, com uma retenção no 9º ano de escolaridade, tendo enveredado pela frequência de um curso técnico profissional de eletricidade, o qual acabou por não concluir, uma vez que ficou em falta uma disciplina. Iniciou a vida profissional com cerca de 21 anos de idade, predominantemente na área de apoio técnico de equipamentos médicos, em diversas empresas do ramo. Com cerca de 25 anos de idade iniciou um relacionamento de namoro com a sua atual companheira e coarguida no presente processo, passando o casal a viver maritalmente cerca de dois anos depois. Inicialmente o casal manteve-se na zona onde residiam, Alhos Vedros, em habitação propriedade de familiar do arguido, optando mais tarde por adquirir habitação própria na zona de Porto Salvo, em virtude de os postos de trabalho de ambos se situarem naquela zona. Em Maio de 2008, veio a nascer a única filha do casal, tratando-se de uma gravidez desejada e planeada. A menor, entre os 9 e os 15 meses de idade ficou na residência dos avós maternos, devido aos afazeres profissionais dos pais, integrando equipamento de infância, perto da sua residência, a partir desta altura. Posteriormente, há cerca de quatro anos, o agregado optou por alterar de residência para a Margem Sul, onde se mantém desde então. A relação do casal é caraterizada como normativa e sem quaisquer problemáticas relacionais. À data da prática dos factos aqui em causa o arguido mantinha o agregado atrás descrito, constituído pelo cônjuge e pela filha, então com cerca de cinco anos de idade. Viviam em casa arrendada, com adequadas condições de habitabilidade e o arguido desempenhava funções como técnico de equipamentos médicos. A sua rotina centrava-se no exercício da atividade profissional, a qual por vezes implicava deslocações ao estrangeiro e na assunção das tarefas parentais, que em conjunto com a coarguida assumia. Mantinha uma relação de proximidade com a filha, assumindo tendencialmente uma postura relacional mais descontraída marcada pelo recurso a atividades lúdicas, dentro de uma dinâmica parental em que a mãe, complementarmente, assumiria, entre outros, um papel marcado por maior imposição de regras. Atualmente, V constitui agregado apenas com a companheira, mantendo o seu modo de vida, rotina e contactos sociais. Desempenha atividade profissional na área comercial relacionada com equipamentos médicos. O casal vive dos seus vencimentos, sendo o auferido pelo arguido de cerca de 750,00 €/mês. Cessou os contactos com a filha em Maio de 2015 em virtude de considerar que as circunstâncias artificiais em que aqueles ocorriam poderiam potenciar, junto da menor, uma imagem negativa dos pais, condicionando assim, hipoteticamente, o regular desenvolvimento futuro da mesma. Manifesta sentimentos de tristeza face à cessação de contactos com a filha. 37 – M M é natural da Baixa da Banheira, sendo a mais velha de duas irmãs germanas. Todo o seu processo de socialização decorreu na zona de onde é natural, inserida no agregado de origem, o qual dispunha de recursos económicos adequados à satisfação das necessidades dos respetivos membros. Com o passar dos anos a relação entre a arguida e a progenitora parece ter sido alvo de desgaste, alegadamente devido a crescentes incompatibilidades entre ambas, associadas a diferentes modo de ser e de estar, considerando a arguida que a progenitora tenderia a apresentar uma visão rígida e comportamento manipulador. Neste contexto, a arguida que apresentou um percurso escolar normativo, sem qualquer retenção e ingressou no ensino superior, terá optado por se autonomizar em termos habitacionais, quando se encontrava no 3º ano da faculdade. À data, para se sustentar manteve durante algum tempo atividade profissional indiferenciada, optando por retornar à habitação dos progenitores, com o objetivo de terminar os estudos superiores, mantendo-se a trabalhar. Com cerca de 28 anos de idade, terminou a licenciatura em Antropologia Social. Iniciou atividade profissional como assistente técnica no IST – Instituto Superior Técnico – onde ascendeu a técnica superior após conclusão do curso superior. No plano efetivo, M iniciou com cerca de 28 anos de idade um relacionamento de namoro com o atual companheiro, iniciando vivência marital com aquele cerca de dois anos depois. Inicialmente, o casal manteve-se a residir na zona onde residiam, Alhos Vedros, em habitação propriedade de familiar da arguida, optando mais tarde por adquirir habitação própria na zona de Porto Salvo, em virtude de os postos de trabalho de ambos se situarem naquela zona. Mais tarde, em Maio de 2008, veio a nascer a única filha do casal, tratando-se de uma gravidez desejada e planeada. A menor, entre os 9 e os 15 meses de idade ficou na residência dos avós maternos, devido aos afazeres profissionais dos pais, integrando equipamento de infância, perto da sua residência, a partir desta altura. Posteriormente, há cerca de quatro anos, o agregado optou por alterar de residência para a Margem Sul, onde se mantém desde então. A relação do casal é caraterizada como normativa e sem quaisquer problemáticas relacionais. A relação da arguida com os seus progenitores, essencialmente com a mãe, figura mais ativa, foi caracterizada como apresentando divergências e alguma conflituosidade ainda que em termos latentes, aparentemente associadas a diferentes modos de ver e de estar na vida, os quais se vieram a acentuar com o nascimento da menor, segundo a perspetiva da arguida. Não existem indicadores de conotação com problemática criminal anterior, parecendo o grupo de pares da arguida estar associado ao exercício da atividade profissional, amigos de longa data e família de origem. À data da prática dos alegados factos, a arguida mantinha o agregado atrás descrito, constituído pelo companheiro e pela filha então com cerca de cinco anos de idade. Residiam em habitação arrendada pelo casal, com adequadas condições de habitabilidade. Em termos profissionais, mantinha-se ativa, a desempenhar funções como técnica superior na área orçamental e patrimonial do IST. A sua rotina parecia centrar-se no exercício da atividade e assunção de tarefas parentais. Segundo o referido, M mantinha uma relação de proximidade com a filha, assumindo tendencialmente uma postura relacional mais didática, dentro de uma dinâmica parental em que o pai, complementarmente assumiria, entre outros, um papel mais lúdico. Atualmente, M constitui apenas agregado com o companheiro. Apresenta uma situação sócio económica estável, uma vez que todas as necessidades parecem ser supridas, vivendo o casal com base nos vencimentos auferidos, sendo que a arguida aufere em média cerca de 1117 euros mensais. Na sequência das alegações que originaram o presente processo a arguida deixou de residir na companhia da filha desde finais de Julho de 2014, ainda que posteriormente, por um curto período de tempo, aquela lhe tenha sido novamente confiada. Manteve no entanto os contactos com a filha em regime de visitas imposto pelo tribunal e tê-los-á cessado em Maio 2015, em virtude de o casal ter considerado que as circunstâncias artificiais em que aqueles ocorriam poderiam potenciar, junto da menor, uma imagem negativa dos pais, condicionando assim, hipoteticamente e em termos futuros, o regular desenvolvimento da mesma. Manifesta sentimentos de tristeza e de revolta por se encontrar privada da companhia da filha. “ Na motivação da decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto, consta o seguinte (transcrição): A convicção do Tribunal assentou na conjugação e análise crítica, de acordo com as regras de experiência comum, de toda a prova produzida. Em concreto. Dados os contornos da presente situação, justifica-se, antes de mais, proceder à apreciação da prova testemunhal. A este propósito, dispõe o art. 128º, nº 1, do C. Processo Penal que a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento direto e que constituam objeto da prova. A testemunha tem conhecimento direto dos factos, quando os percecionou de forma imediata e não intermediada, através dos seus próprios sentidos. Como é manifesto, no caso em apreço, a assistente Maria e as testemunhas Sónia e Ramiro , respetivamente, avó, tia e avô da L, não presenciaram os factos em causa, os quais apenas conhecem na estrita medida em que tal lhes foi relatado pela menor – e que reproduziram em audiência. Porém, determina o art. 129º, nº 1, do Cód. Processo Penal que: “Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.”. Da conjugação destes dois preceitos resulta que a regra é a do testemunho direto. Todavia, a lei não proíbe de forma absoluta a produção de depoimentos indiretos, nomeadamente, o denominado testemunho de ouvir dizer. O que o código proíbe é a valoração de tais depoimentos, se o juiz não chamar a depor a pessoa indicada pela testemunha como fonte do conhecimento que transmitiu ao tribunal. Mas, uma vez chamada a fonte a depor em audiência de julgamento, o depoimento indireto não só pode, como deve ser valorado. E tem-se entendido que tal valoração pode ocorrer mesmo naquelas situações em que a fonte se recusa, lícita ou ilicitamente, a prestar depoimento ou, por exemplo, diz de nada se recordar já - cfr. Ac. da R. do Porto de 07/11/2007, in www.dgsj.pt Ora se assim é para os casos de recusa, por maioria de razão será quando a fonte até relata em sentido contrário ao da testemunha do depoimento indireto. Caberá aí ao Tribunal, e dentro do princípio da livre apreciação da prova, valorar cada um dos depoimentos e as suas contradições, bem como a razão de ser destas. A valoração do depoimento indireto nestas circunstâncias, é possível porque deste modo foi garantido o exercício do contraditório na audiência de julgamento, através do interrogatório e do contra-interrogatório, quer da testemunha de ouvir dizer, quer da testemunha fonte, assim se assegurando o respeito pela estrutura acusatória do processo criminal, imposto pelo art. 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa. A conformidade do art. 129º, nº 1, do C. Processo Penal, ao admitir, nas circunstâncias aí previstas, a valoração do “hearsay evidence”, com a nossa Lei Fundamental tem vindo a ser afirmada pelo Tribunal Constitucional, nos seguintes termos: “Ora, entende-se que a regulamentação consagrada na norma do nº 1 do artigo 129º do Código de Processo Penal se revela como proporcionada, nela se precipitando uma adequada ponderação dos interesses do arguido em poder confrontar os depoimentos das testemunhas de acusação, os da repressão penal, prosseguidos pelo acusador público, e, por último, os do tribunal preocupado com a descoberta da verdade através de um processo regular e justo (due process of law). (…) Tão-pouco se pode afirmar que a estrutura acusatória do processo criminal, que impõe que a audiência de julgamento e mesmo os atos instrutórios determinados por lei estejam subordinados ao princípio do contraditório, ponha em causa a regulamentação do segmento da norma em causa. A lei processual penal veda, em princípio, a admissibilidade do testemunho de ouvir dizer, impondo que seja chamada a depor a pessoa determinada invocada no testemunho prestado, assegurando-se a imediação, relativamente ao tribunal criminal e aos sujeitos processuais. Só nos casos de total impossibilidade – em virtude de morte, anomalia psíquica superveniente ou de impossibilidade de ser encontrada – pode ser admitido e valorado o depoimento indireto.” - Cit. Ac. do T.Constitucional nº 213/94, de 2 de Março de 1994; cfr. no mesmo sentido, Ac. do T.Constitucional nº 440/99, de 8 de Julho de 1999, ambos in www.tribunalconstitucional.pt. Ora, foi o que sucedeu no caso dos autos. Com efeito, a menor Lem sede de declarações para memória futura, não confirma os factos constantes da acusação, respondendo na maior parte das vezes às perguntas que lhe são colocadas e que, de forma direta ou indireta, a eles respeitam, que não se lembra. Por outro lado, quer a avó, quer a tia materna, apresentam declarações nas quais confirmam, na quase totalidade, os factos aqui em apreço, sendo a sua razão de ciência aquilo que a menor lhes contou. E, convenceu-se o Tribunal que efetivamente a menor contou às mencionadas testemunhas, e também à testemunha Ramiro – embora a este em muito menor grau – aquilo que os mesmos relataram em audiência. Tal convencimento funda-se, desde logo, na circunstância da menor, sujeita a duas avaliações psicológicas do IML – no âmbito destes autos e no âmbito de processo que corre termos no Tribunal de Família e Menores – aí ter relatado igualmente, e no essencial, os mesmos factos que relatou à tia e à avó, o que nos foi confirmado em audiência pelas médicas que as realizaram, ou seja, o relato, por parte da menor, não é apenas feito às suas familiares mas também às mencionadas pessoas. Acresce que a assistente, avó da menor, presta um depoimento profundamente sentido mas que se mostra, no essencial e no que aqui está em causa, não só credível, como também consentâneo com a demais prova produzida. Com efeito, o seu relato sobre a forma como tomou conhecimento da situação em causa e do seu desenvolvimento, surge naturalmente e de forma coerente e é, no seu todo, coincidente com os relatos das demais pessoas ouvidas. Desde logo, a avó relata que ouviu uma conversa telefónica entre a neta e o pai, na qual aquela dizia a este que “tinha saudades dele, de brincar com a pilinha e de dar dentadinhas na orelhinha”. Naturalmente, tal conversa deixou-a alerta. Ora, a própria arguida admite a ocorrência de tal conversa embora afirme que não lhe ligou e apenas a recordou muito tempo depois, considerando porém que a filha proferiu tal frase já no final, num momento em que o pai já havia desligado, e com o propósito de chocar a avó já que, sendo uma criança inteligente, tinha noção que a mesma ficava desagradada com quaisquer comentários do género. Tal versão não tem qualquer sentido. Desde logo, estamos a falar de uma criança de 5/6 anos, idade essa, que, conforme é sabido (e foi sobejamente referido em audiência por diversas testemunhas, especialistas na matéria) apresenta um interesse mínimo pelo sexo e pelos órgãos sexuais, sendo que sempre que surjam elementos que indicam o contrário, tal deverá ver averiguado já que pode indiciar um contacto com o sexo – o que foi expressamente dito pela testemunha Prof. Eduardo Sá, arrolado pela defesa. Tal é do conhecimento geral e não é de supor que qualquer mãe que ouça uma filha, dessa idade, proferir tais palavras as ignore, considere inócuas e muito menos que as esqueça. Pelo contrário, a reação natural será a de questioná-la, de imediato, a fim de perceber o que pretende dizer e a que propósito proferiu tais palavras. Mais, não é natural uma criança de tal idade usar tais expressões para chocar a avó pois são situações que, não ocorrendo na sua vida, para ela serão inimagináveis e muito menos com a noção de reprovação que qualquer pessoa lhes atribuiria. Temos pois que a “história” não surge do nada, sem que exista qualquer facto que a despolete: não só esse facto existiu como, repete-se, é admitido (embora com outro sentido) pela arguida, como é também, por si só, apto ao surgimento de suspeitas sobre o que se passará de facto com a criança. Posteriormente a menor relata os demais factos em causa à tia e à avó e, na sequência do início dos presentes autos, e bem assim do processo que corre termos no Tribunal de família, aos diversos peritos por quem é examinada. E, as histórias são coincidentes. É certo que, como afirmam os arguidos, se poderia estar perante uma situação de sugestionamento da menor, através da avó e tia maternas. Porém, o Tribunal afastou tal possibilidade desde logo por força das declarações prestadas pela perita médica, Dr.ª R, a qual esclareceu o método usado na realização das entrevistas (e que ocorreu nestes autos) salientando que, no que respeita à avó da menor, verificou a existência clara de um sentimento de ambivalência, ou seja, o acreditar na neta mas por outro lado, o não querer acreditar por isso significar que a filha teria tido o mencionado comportamento. Ora, esclareceu a mesma perita, de modo óbvio, que o sugestionador não apresenta esse sentimento, pelo contrário, pretende passar a ideia de que acredita profundamente no que é relatado pela criança. Por outro lado, a regra, nas situações de sugestionamento, a “história” passa pelo comum, pelo normal, por aquilo que se vê e ouve à volta, ou seja, pelos atos normais neste tipo de situações e nunca pela criação de “histórias” muito elaboradas e pouco comuns as quais, numa fase inicial, poderão até encarar-se como inverosímeis. Ora, o relato da menor – e o seu desenho – sobre a “brincadeira dos rebuçados”, em que o pai está nu, de gatas, a mãe lhe coloca um rebuçado no ânus, que a menor terá que tirar com uma pinça depois de correr atrás do pai, pode ser considerado de todo “anómalo”, no que respeita a situações de abusos sexuais de crianças, em que, na maior parte dos casos existem toques e carícias em contextos ditos “normais.” É certo que tais atos também surgem nos relatos da menor, porém ocorrem num contexto muito pouco vulgar e, como tal, muito pouco usados em caso de sugestionamento. Acresce que em momento algum se vislumbrou dos depoimentos dos familiares da menor uma intenção ou uma qualquer objetivo definido de criar um artifício para afastar a Ldos pais, sendo antes evidente a sua preocupação pelo bem-estar da criança. É certo que não existe entre eles um excelente relacionamento, mas isso não justifica certamente a criação de um estratagema como aquele que é invocado pelos arguidos. Aliás, saliente-se, que pese embora as divergências entre mãe e filha, existia relacionamento entre ambas que não seria tão distante quanto pode parecer pois é certo que a avó da menor está em casa desta na noite em que ouve a conversa telefónica da criança com o pai (onde passou a noite, aliás) e não entrega a criança depois de ter passado férias com ela (o que também ocorreu com o consentimento dos pais da menor). O mau relacionamento ou mesmo o corte de relações instala-se após o início do presente processo. Por último não é de crer que qualquer pai/mãe queira ver a sua filha condenada por um crime de natureza sexual praticado contra a própria neta, com o normal desgosto, angústia e conotação social que isso terá, apenas para conseguir ter a neta aos seus cuidados. Tal comportamento, por parte dos avós, constituiria um desvio total ao padrão de comportamento normal que, certamente implicaria que padecessem de algum tipo de distúrbio – o que não ocorre com se vê da avaliação psicológica a que ambos foram sujeitos. Também se convenceu o Tribunal que a Lrelatou factos por si vivenciados e não fruto da sua imaginação. Mais uma vez, refere-se, que o relato de histórias não vividas constitui, por regra um relato daquilo que se vê ou ouve à sua volta (designadamente nos meios de comunicação social) e não no relato de histórias demasiado elaboradas. Saliente-se também que a idade da criança não lhe permite aperceber-se com facilidade de notícias sobre assuntos de natureza sexual e a sua perceção e não existe qualquer indício que a mesma, de alguma forma, tivesse estado exposta a material de natureza pornográfica. Os seus relatos e desenhos sobre os atos aqui em causa não são concisos e omissos nalgumas partes, mas antes claros, concretos e cheios de pormenores. Mais, nas diversas vezes que a Lrelata ou desenha as situações estas, no essencial, são coincidentes. E, saliente-se, é do conhecimento geral e foi reforçado em audiência por todos os especialistas na matéria, as crianças relatam e, sobretudo, desenham cenas daquilo que vivem. Convenceram-se as técnicas que efetivamente os relatos da menor correspondem a situações por si vividas e nos seus precisos termos. A tudo o que fica dito acresce ainda um outro facto objetivo que são as fotos apreendidas e juntas aos autos, tiradas pelo pai, onde a menor e a mãe surgem nuas, na banheira e onde a Lsurge com a boca no peito da arguida. É certo que tais fotos, por si só, poderiam não ter significado muito relevante pois, pese embora o seu conteúdo erotizado, poderíamos estar apenas perante um modelo de educação mais aberto e isento de preconceitos, o que certamente poderia ser discutível, mas não mais do que isso. Porém, as mencionadas fotos, no presente contexto e conjugadas com todos os demais factos mencionados, constituem mais um indício seguro de que os factos descritos ocorreram efetivamente. Salienta-se ainda que nada tem de estranho a criança, durante algum tempo, guardar estes atos para si, sem os revelar. Na verdade, tal como a mesma diz, tratava-se de um segredo partilhado apenas por ela e pelos pais, o que gerava uma cumplicidade que lhe seria agradável. Por outro lado, os atos concretos em causa ocorreram num contexto de brincadeira, sendo vivenciado pela menor como uma experiência agradável e positiva. Tal é esclarecido como normal pelas médicas que realizaram avaliações à menor e pela testemunha Prof. Eduardo Sá, arrolada pela defesa. E, a circunstância da menor, em sede de declarações para memória futura não relatar os factos é perfeitamente justificável: nesse momento já se apercebeu perfeitamente da tensão existente entre os pais e os avós (e a tia) e, por outro lado, apresenta um profundo sentimento de lealdade para com os pais. Face a todo o exposto, concluiu o Tribunal, com segurança, de que os factos ocorreram da forma descrita. Não existe qualquer arrependimento por parte dos arguidos. Estes em momento algum aceitam a prática dos factos, procurando sempre atribuir toda a situação a terceiros (à avó porque quer a criança, à tia porque é uma infeliz que não tem marido nem filhos ou mesmo à perita médica porque estaria conluiada com a tia e com a avó já que seria amiga daquela – o que é perentoriamente negado pela perita que foi nomeada pelo IML e que nunca havia visto a avó até à primeira entrevista que teve com ela e que nunca conheceu a tia) e considerando sempre que todo o seu comportamento com a menor foi normal. É certo que os mesmos não são obrigados a confessar os factos, assistindo-lhes até o direito de, sem serem prejudicados, não prestarem declarações. Porém, o arrependimento pressupõe necessariamente a admissão interior completa dos atos praticados e a interiorização da censurabilidade dessa conduta…e isso não pode coexistir com a sua desculpabilização e com a imputação da responsabilidade a terceiros. Atendeu-se também aos relatórios dos exames realizados à menor, aos relatórios dos exames à personalidade dos progenitores e avós da menor, aos relatórios sobre as condições pessoais e sociais dos arguidos e ao teor dos seus CRC.” 4. Nulidade do acórdão por deficiente fundamentação Em conformidade com disposto no nº 2 artigo 374º do Código de Processo Penal, a sentença tem de conter uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, aqui se incluindo não só a indicação mas também o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Como se escreveu no Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 23-02-2011, Santos Cabral processo n.º 241/08.2GAMTR.P1.S2, in www.dgsi.pt, “A motivação existirá, e será suficiente, sempre que com ela se consiga conhecer as razões do decisor. É evidente que o dever de fundamentação da decisão começa, e acaba, nos precisos termos que são exigidos pela exigência de tornar clara a lógica de raciocínio que foi seguida. Não conforma tal conceito uma obrigação de explanação de todas as possibilidades teóricas de conceptualizar a forma como se desenrolou a dinâmica dos factos em determinada situação e muito menos de equacionar todas as perplexidades que assaltam a cada um dos intervenientes processuais, no caso o arguido, perante os factos provados. O tribunal tem o dever de indicar os factos que se provam e os que não se provam e a forma como alcançou a respectiva conclusão. Por seu turno, aquele que discorda da forma como se formou tal conclusão e caso lhe assista o respectivo direito de recurso virá indicar aquilo de que discorda e o motivo por que discorda Exige-se um exame, ou seja uma observação atenciosa ou cuidada, efectuada de um modo crítico, isto é, sob um juízo de censura ou de “contraponto”. O exame crítico das provas há-de consistir por isso numa análise que permita uma perfeita compreensão da decisão pelos destinatários, aqui aferidos considerando um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas. Assim, haverá nulidade da sentença (artigo 379º nº 1, alínea a) Código de Processo Penal) sempre que, em consequência de uma omissão ou deficiência na análise crítica da prova, fique afectada a compreensão do processo lógico e racional que conduziu à decisão concreta em relação a cada facto provado e não provado. O segmento da motivação da convicção do tribunal acima transcrito permite saber perfeitamente os alicerces probatórios e o raciocínio que conduziram à decisão sobre os factos provados. Assim como possibilita a apresentação dos argumentos de defesa e o controlo sobre a fundamentação factual e lógica da decisão, imprescindível na apreciação da impugnação da decisão em matéria de facto. No que concretamente diz respeito aos argumentos invocados neste âmbito pelo recorrente, a decisão recorrida contem efectivamente a indicação precisa dos elementos de prova em que o tribunal se baseou, a explicação clara dos motivos pelos quais o tribunal atribuiu credibilidade aos depoimentos da avó e da tia materna da criança e uma apreciação crítica das provas, apresentando também os fundamentos para ter afastado a hipótese de falsidade nos depoimentos, de um “sugestionamento” da criança pelos avós e tia. Como convenientemente se explicou no acórdão, o convencimento do tribunal de que a ofendida contou aos avós e à tia o que estas testemunhas relataram na audiência, “na circunstância da menor, sujeita a duas avaliações psicológicas do IML – no âmbito destes autos e no âmbito de processo que corre termos no Tribunal de Família e Menores – aí ter relatado igualmente, e no essencial, os mesmos factos que relatou à tia e à avó (…),” O Tribunal justificou a credibilidade nestes depoimentos e afastou a possibilidade de “sugestionamento”, “desde logo por força das declarações prestadas pela perita médica, Dr.ª R, a qual esclareceu o método usado na realização das entrevistas (e que ocorreu nestes autos) salientando que, no que respeita à avó da menor, verificou a existência clara de um sentimento de ambivalência, ou seja, o acreditar na neta mas por outro lado, o não querer acreditar por isso significar que a filha teria tido o mencionado comportamento. Ora, esclareceu a mesma perita, de modo óbvio, que o sugestionador não apresenta esse sentimento, pelo contrário, pretende passar a ideia de que acredita profundamente no que é relatado pela criança. Por outro lado, a regra, nas situações de sugestionamento, a “história” passa pelo comum, pelo normal, por aquilo que se vê e ouve à volta, ou seja, pelos atos normais neste tipo de situações e nunca pela criação de “histórias” muito elaboradas e pouco comuns as quais, numa fase inicial, poderão até encarar-se como inverosímeis. Ora, o relato da menor – e o seu desenho – sobre a “brincadeira dos rebuçados”, em que o pai está nu, de gatas, a mãe lhe coloca um rebuçado no ânus, que a menor terá que tirar com uma pinça depois de correr atrás do pai, pode ser considerado de todo “anómalo”, no que respeita a situações de abusos sexuais de crianças, em que, na maior parte dos casos existem toques e carícias em contextos ditos “normais.” É certo que tais atos também surgem nos relatos da menor, porém ocorrem num contexto muito pouco vulgar e, como tal, muito pouco usados em caso de sugestionamento.” Os recorrentes não concretizam fundamentos e também não vislumbramos em que medida a omissão de referência expressa aos depoimentos de testemunhas indicadas pela defesa atinge o dever de fundamentação do acórdão em recurso. Impõe-se ainda notar que a questão de saber se existe nulidade da sentença tem necessariamente de ser aferida apenas pela leitura do próprio texto da sentença, à luz de critérios de razoabilidade e dos ensinamentos extraídos de casos semelhantes. Não se pode pois confundir a discordância com a omissão ou falta de fundamentação: a divergência dos arguidos perante a análise, o exame crítico e o juízo probatório constantes do acórdão integram um problema distinto que deve ser enfrentado em sede de impugnação da decisão em matéria de facto. Sem necessidade de outros considerandos, improcede a nulidade suscitada pelos arguidos. 5. Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia. Os arguidos recorrentes aduzem argumentos tendentes a permitirem a conclusão que o tribunal incorreu em erro de julgamento na matéria de facto (conclusões 20 a 37) para logo de seguida, sem mais, afirmarem que a decisão se encontra inquinada de nulidade ao abrigo do disposto no artigo 379º, nº al. c) do Código Penal (conclusão 38). Sentimos uma acrescida dificuldade em entender a pretensão dos recorrentes. Como tem sido salientado, a omissão de pronúncia a que se reporta a previsão da alínea c) do artigo 379º do Código de Processo Penal significa fundamentalmente a ausência de atitude ou de posicionamento pelo tribunal em caso ou sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Como sabemos, as questões que o juiz deve apreciar são todas aquelas que os sujeitos processuais interessados submetam à apreciação do tribunal (art. 660.º, n.º 2, do CPC), e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deva conhecer independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual. A “pronúncia” cuja falta ou “omissão” determina a consequência prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP – a nulidade da sentença – deve, pois, incidir sobre problemas ou questões em sentido técnico e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou razões alegadas. Nestes termos, impõe-se salientar que só se verifica nulidade se o tribunal deixar de se pronunciar sobre questão suscitada, sendo absolutamente irrelevante o sentido dessa pronúncia. Não sabemos qual o “assunto” ou “tema” tenha sido descurado pelo tribunal colectivo ou que apreciação ou decisão esteja em falta no acórdão recorrido. Reafirmamos aqui que a divergência dos arguidos perante a análise, o exame crítico e o juízo probatório constantes do acórdão integram um problema distinto que deve ser enfrentado em sede de impugnação da decisão em matéria de facto. Em face do exposto, não consideramos verificada nulidade da sentença por omissão de pronúncia. 6. Da admissibilidade de depoimentos indirectos. Na tese constante da motivação de recurso dos arguidos, os depoimentos de Emília e Sónia – avó, avô e tia materna da L, respectivamente – terão de ser amplamente desconsiderados quanto a todos factos que não tenham sido questionados no depoimento para memória futura da menor L (de 7 de Janeiro de 2015, de fls. 541 a 542 e 601 a 627). Apesar da regra geral de que a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo, o testemunho indirecto ou de ouvir dizer não se encontra absolutamente proibido. Sob a epígrafe Depoimento indirecto, estabelece o artigo 129.º do Código de Processo Penal: : «1. Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas. 2. (…) 3. Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos». O depoimento indirecto consiste numa comunicação de um facto de que o sujeito teve conhecimento por intermédio de uma terceira pessoa. Quando qualquer uma das pessoas ouvidas na audiência de julgamento destes autos, seja familiar ou perito, descreve na audiência o que a L lhes disse, ou o que ouviu da boca da criança quando falava ao telefone com o pai, está a descrever eventos da vida real que directamente presenciou e apreendeu pelos seus próprios sentidos. O conhecimento que a testemunha transmite nesse depoimento é aquele que ela adquiriu de uma forma directa e imediata. Diferente seria se as testemunhas relatassem o que tinham ouvido dizer a um dos interlocutores numa conversa a que não assistiram. Subscrevemos o entendimento expresso no acórdão do Tribunal da Relação do Porto 24-09-2008 António Gama proc. 0843468 quando aí se escreve que, “A melhor interpretação da formulação legal conduz a que só se considere depoimento indirecto, v.g. se a pessoa que faz o relato, não assistiu ou presenciou a ocorrência. Assim se entre A e B se desenvolve uma conversa, a que C pessoalmente assiste, mas na qual não intervém, apesar de o seu depoimento «resultar do que ouviu dizer a pessoas determinadas» temos como indiscutível que não estamos perante depoimento indirecto, ele esteve presente, viveu a realidade, ouviu as conversas de A e B. De outro modo chegávamos ao absurdo de não haver «depoimentos directos puros», só o que o depoente disse era depoimento directo, já o que ouviu, mesmo em resposta à sua conversa, porque «ouviu dizer a pessoa determinada» seria depoimento indirecto. Não pode ser. O critério operativo da distinção entre depoimento directo e indirecto é o da vivência da realidade que se relata: se o depoente viveu e assistiu a essa realidade o seu depoimento é directo, se não, é indirecto. O que o legislador quis afastar foi o «depoimento em segunda mão»: o C vem a tribunal dizer que o A lhe disse que o B fez ou aconteceu. São estes, mas não apenas estes, os depoimentos indirectos que o legislador quis vetar como meio de prova, salvo se chamar o «intermediário» a depor. Assim se estiver em causa saber se o arguido fez, ou não, a predita declaração, se teve ou não a conversa com as testemunhas, não é caso de depoimento indirecto.” Concluímos assim que em tudo quanto relataram de palavras e frases que lhes foram ditas pela L, os depoimentos das testemunhas não constituem depoimentos indirectos e por isso não se encontram sujeitos à disciplina do artigo 129º do C.P.P. Ainda que se entenda que os depoimentos são indirectos por serem de ouvir dizer da criança, sempre diremos que a objecção suscitada pelos arguidos carece de fundamento atendível. A norma constante do nº 1 do artigo 129º do Código de Processo Penal exige enquanto condição de validade que a testemunha fonte seja chamada a depor, para que possa haver inquirição na audiência e a necessária avaliação sobre a fidedignidade e credibilidade do depoimento indirecto. Os termos utilizados na norma levam-nos a considerar que o concreto teor do depoimento da testemunha fonte ou o elenco das perguntas que lhe sejam feitas não constituem requisitos de validade ou de eficácia da prova decorrente do depoimento indirecto. A valoração do hearsay evidence pode mesmo acontecer se a testemunha não comparecer ou, se comparecendo, não prestar qualquer depoimento. Segundo se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-06-2012, proc. 127/10.0JABRG.G2.S1, Santos Cabral, in www.dgsi.pt, “O depoimento indirecto será objecto de valoração quando a testemunha referenciada comparecer, existindo, então, a necessidade de, com observância, do princípio da livre apreciação da prova, conjugar e cotejar o depoimento indirecto e o depoimento directo, esclarecendo, e concluindo, sobre eventuais contradições ou convergência. A mesma testemunha referenciada no depoimento indirecto pode não comparecer ou, comparecendo, recusar-se, de forma ilegal, a prestar depoimento. Em qualquer uma dessas hipóteses assegurado que está o princípio de imediação com a valoração da credibilidade e fiabilidade dos depoimentos, ou do próprio comportamento pessoal processual da testemunha, os depoimentos directo e indirecto, deverão ser livremente valorados. Na disciplina legal do artigo 129 é suficiente a tentativa de realização do contraditório e não é de exigir a efectiva consumação de tal princípio para que o depoimento indirecto tenha potencialidade para ser valorado.” Assim, desde que tenha havido convocação da testemunha “fonte”, os elementos probatórios recolhidos, uma vez submetidos na audiência a ampla discussão e ao principio do contraditório, podem ser avaliados conjuntamente com a demais prova produzida ou examinada, em conformidade com o principio geral da livre apreciação da prova. Uma vez garantida esta possibilidade de exercício do direito ao contraditório quanto a ambos os depoimentos e de apresentação de meios de prova tendentes a infirmar a credibilidade e a fidedignidade de um e de outro, a valoração do depoimento indirecto não contende de forma intolerável com os princípios do processo justo e equitativo, nem com o direito de defesa do arguido, garantidos nos artigos 20º, nº 4 e 32º, nºs 1 e 5 da Constituição. Como considerou o Tribunal Constitucional, a regulamentação consagrada na norma do nº 1 do art. 129º CPP reflecte uma adequada ponderação dos interesses do arguido em poder confrontar os depoimentos das testemunhas de acusação, os da repressão penal, prosseguidos pelo acusador público, e, por último, os do tribunal, preocupado com a descoberta da verdade através de um processo regular e justo (due process of law).” (Acórdão nº 213/94 no D.R. II série, de 23 de Agosto de 1994 e Acórdão nº 440/99, acessível in www.tribunalconstitucional.pt ). Em conclusão, improcede a argumentação dos arguidos neste âmbito e nada obsta à valoração dos depoimentos das testemunhas Emília e Sónia, mesmo quando relataram factos que não foram objecto de inquirição ou não constam das declarações para memória futura da menor LCordeiro. 7. Os tribunais da relação conhecem dos recursos em matéria de facto e em matéria de direito (artigos 427º e 428º do Código de Processo Penal) e a decisão sobre a matéria de facto pode ser alvo de recurso em dois planos bem distintos: Uma primeira forma de colocar em crise a decisão de facto consiste na alegação de um dos vícios do artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal ou seja, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou o erro notório na apreciação da prova. Neste caso, também de conhecimento oficioso, o objecto de apreciação encontra-se bem delimitado: trata-se de analisar apenas a decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras normais de experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo, nomeadamente ao conteúdo dos meios de prova produzidos, inclusive da prova oralmente produzida e gravada em audiência. Num segundo plano, este já de “verdadeiro recurso em matéria de facto”, a análise não se limita ao texto da decisão e envolve a apreciação da prova produzida ou examinada em audiência de julgamento. Ainda assim, o recurso não pressupõe nem se destina a uma nova análise de todos os elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se não tivesse havido julgamento em primeira instância, mas apenas a uma reapreciação autónoma da decisão tomada pelo tribunal a quo, circunscrita aos factos individualizados que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, na avaliação das provas que impunham uma decisão diferente. O problema a resolver restringe-se a saber se ocorreu erro no julgamento de facto ou seja, se houve valoração indevida de elementos de prova. Sem esquecer os limites próprios da apreciação em segunda instância, o tribunal de recurso tem o dever de verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova especificados pelo recorrente e que este considera imporem decisão distinta. Importa recordar uma vez mais que o contacto pessoal confere ao juiz em primeira instância os meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. Com efeito, na apreciação do depoimento das testemunhas e das declarações dos arguidos atribui-se relevância aos aspectos verbais, mas também se pode considerar a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, os olhares para os advogados e as partes, antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos e toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo de áudio. Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores do desconforto da mentira e da efabulação. Assim, a fiabilidade de um depoimento depende em muito da espontaneidade, da pormenorização, da coerência do discurso, bem como da coincidência com os elementos extraídos de outros meios de prova. Note-se bem que a segurança de um testemunho pode desvanecer-se quando se revelam contradições ou incongruências em aspectos essenciais com anteriores afirmações ou perante outros elementos probatórios seguros. Por fim, interessa notar que a autenticidade e a segurança de um depoimento também depende muito do conteúdo das perguntas e da forma como as mesmas são apresentadas ao declarante. Uma pergunta sugestiva ou capciosa pode destroçar uma afirmação assertiva de uma testemunha. Ora, convém notar que o tribunal de segunda instância não tem possibilidade de fazer as perguntas que entende deverem ser feitas, nem pela forma que considera adequada e processualmente válida. Por isso, justificadamente se afirma que impor decisão diferente quanto à matéria de facto provada e não provada, para os efeitos do artigo 412º nº 3 alínea b) do Código de Processo Penal, não pode deixar de ter um significado mais exigente do que simplesmente admitir ou permitir uma decisão diversa da recorrida. Em todo o caso, a atribuição de confiança a um elemento de prova tem subjacente a utilização de regras ou máximas da experiência comum e o tribunal de recurso pode e deve não só questionar a razoabilidade da norma extraída da vivência comum subjacente à opção do tribunal recorrido, mas também apreciar a verosimilhança ou plausibilidade da narrativa de uma testemunha ou declarante, por forma a poder aferir da correcção do raciocínio indutivo constante da decisão em apreço. 8. Os arguidos impugnam a decisão quanto a todos os factos constantes dos pontos 4 a 11, 20, 21, 23 a 25, 30 e 31, admitindo a ocorrência dos factos que se encontram documentados nas fotografias tiradas pelo pai e reconhecendo implicitamente a ocorrência das brincadeiras com a filha apelidadas de “guerra das almofadas”, em que os arguidos participavam umas vezes vestidos, outras vezes nus (cfr. ponto 22). Os excertos das declarações da assistente Maria e do depoimento de Sónia que os recorrentes transcrevem na motivação constituem as concretas provas que este tribunal de recurso deve analisar, sem prejuízo de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa (artigo 412º, nºs 3, 4 e 6 do Código de Processo Penal). Tanto quanto nos foi possível extrair da audição integral das declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento a partir do CD apenso aos autos, a assistente Maria Emília Varela Borges prestou as suas declarações de uma forma serena, circunstanciada, coerente e segura em todos os elementos essenciais, revelando a vivencia dos acontecimentos, nos exactos termos descritos na fundamentação do acórdão e na motivação do recurso e que aqui damos por novamente reproduzido. Estas declarações encontram-se parcialmente corroboradas pelo depoimento da tia materna Sónia, que depôs igualmente de uma forma serena coerente e segura, nos termos igualmente transcritos pelos recorrentes. Em nossa apreciação, compreende-se que a intensa frieza, desconsideração, inimizade e mesmo ódio que reciprocamente existe hoje entre por um lado os pais e a irmã da arguida e, por outro, os arguidos, possa fazer temer pela credibilidade e fiabilidade dos depoimentos e das declarações de qualquer um dos envolvidos. Assim como se poderia eventualmente conjecturar que as declarações da avó estariam de alguma forma condicionadas pelo objectivo de lhe ver confiada a guarda e os cuidados da neta. A fundamentação da sentença evidencia essas preocupações e afigura-se-nos que a fidedignidade da narração da mãe, do pai e da irmã da arguida resistem a essas eventuais dúvidas, pela serenidade, consistência e segurança evidenciadas. Ao invés do que parece ser o entendimento expresso pelos recorrentes na motivação, o juízo probatório do tribunal não se baseou apenas nas declarações da assistente e dos arguidos e nos depoimentos do avô e da tia materna, mas também em prova pericial, documental e em prova resultante de outros testemunhos prestados ma audiência de julgamento. Como já anteriormente se deixou expresso, o convencimento do tribunal de que a ofendida contou aos avós e à tia o que estas testemunhas relataram na audiência resulta da circunstância de a menor L, sujeita a duas avaliações psicológicas do IML – no âmbito destes autos e no âmbito de processo que corre termos no Tribunal de Família e Menores – aí ter relatado igualmente, e no essencial, os mesmos factos que relatou à tia e à avó e justificou a credibilidade nestes depoimentos “desde logo por força das declarações prestadas pela senhora perita. Deve notar-se que a perita psicóloga Dr.ª R escreveu no relatório pericial de fls.491 a 497 (transcrição): “ (…) Na segunda sessão de avaliação junto da menor, decorrida no presente dia, continuaram a explorar-se as dinâmicas familiares e as brincadeiras com os diversos adultos. De forma espontânea, embora salientando que ninguém pode saber, Ldescreveu junto da perita as diversas brincadeiras que faz com os pais, nomeadamente: ‘a minha mãe metia um rebuçado dentro do cuzinho do meu pai lavadinho, ele fugia e eu tinha que o apanhar, se eu apanhasse ganhava o jogo’. Diz ainda que ‘o papá estava quieto e a mamã punha o rebuçadinho, embrulhado no papel’. Depois, Ltirava esse mesmo rebuçado ‘com um alicate’. É pedido a L que melhor explique esta brincadeira, com recurso ao desenho. De forma detalhada e muito clara, desenha o pai em posição ‘de gatas’. Desenha-se a si própria e à mãe (sendo que esta tem o rebuçado na mão) perto do pai. No fim, desenha um rebuçado dentro do rabo do pai. Este desenho é em tudo semelhante àquele que a avó trouxe, mas que não foi mostrado à menor no decurso desta avaliação pericial, o que nos leva a concluir que o desenho que a avó apresenta foi, de facto, elaborado pela menor. Descreve seguidamente outra brincadeira, que denomina de guerra de almofadas. Explica que, umas vezes com roupa e, outras vezes, todos nus, ela e os pais brincavam a fazer uma guerra de almofadas em cima da cama, e que quem caísse da cama perdia. Quem perdia tinha que se deitar, sendo que quem ganhava sentava-se em cima da pessoa deitada: ‘se o papá cair eu salto em cima da barriguinha e da pilinha dele, e da mamã também... se eles caírem no chão, a pessoa que os fez cair ganha, quem cai perde... depois a pessoa que ganha, ganha um prémio, uma pastilha ou ver televisão’. É pedido a L que exemplifique esta brincadeira com recurso a um boneco existente na sala de avaliação. A menor deita o boneco no chão, coloca-se por cima deste, em pé e de pernas abertas, e depois senta-se em cima da sua zona pélvica. Acrescenta ainda que ‘eu mexo na pilinha do papá, é fofinha, quando toma banho fica fofinha, quando fica seca fica fofa’. Questionada, afirma que mexe na pilinha do pai com a mão e que também lhe dá beijinhos, quer quando este está acordado, quer quando está a dormir (admite que, por vezes, vai à cama do pai e lhe mexe na pilinha, sem que este acorde). Perguntada sobre se a mãe está presente quando mexe e dá beijos na pilinha do pai, responde de forma afirmativa. A pedido da perita, faz também um desenho em que representa o pai vestido, mas com o pénis de fora, representando também ‘as coisas atrás da pilinha... os tomates?’ Desenha-se ao lado do pai, com a sua mão a mexer na pilinha do pai. Esclarece que não mexe na ‘ló ló’da mãe e que na sua ‘lóló’ também ninguém mexe. Descreve ainda uma situação em que o pai estava fora de casa 'e eu comi esparguete e salsicha, e como eu gosto de mexer na pilinha do pai e é fofinha, eu guardei metade da salsicha no frigorífico (...) todos os dias ia mexer na salsicha, devagarinho’. Descreve estas brincadeiras como ‘giras e engraçadas’, e também como um segredo, ‘ninguém pode saber, só da minha família, eu, o pai e a mãe’. Mostra-se muito contente por ter regressado a casa dos pais, embora saliente que também gosta de viver com os avós. Na terceira sessão de avaliação conta que já voltou a viver com os pais, o que lhe agrada. Refere que nunca mais voltou a ver os avós ‘porque a mãe não quer... chatearam-se...’, embora desconheça os motivos. Admite sentir saudades dos avós, embora destaque que não quer lá dormir muitas noites, ‘porque tenho saudades do papá e da mamã’. Conta que o pai tem estado fora a trabalhar, pelo que não voltaram a fazer as brincadeiras descritas anteriormente. Acrescenta que, apenas com a mãe, não as pode fazer, "porque algumas são com o pai... a do rebuçado e as outras... só uma é que é feita com a mãe, a das cócegas, fazemos cócegas uns aos outros'. Questionada, afirma que as cócegas são nos pés, pernas, barriga, pescoço e debaixo dos braços. Reforça a ideia de que gosta de todas as brincadeiras que faz com os pais (…) Lmostra-se disponível face a este processo de avaliação, colaborando com aquilo que lhe é pedido. Evidencia uma idade aparente superior à sua idade real e uma apresentação cuidada. O seu discurso é organizado e coerente. Situa-se no espaço e no tempo e demonstra ter conhecimentos adequados sobre a sua vida familiar, escolar e social. Não se observam alterações ao nível do pensamento. No que respeita às dinâmicas familiares descritas, considera-se estarmos perante uma situação com claros indícios da prática de comportamentos sexualmente abusivos por parte de ambos os pais da menor, que participam de forma activa nas várias brincadeiras descritas. L percepciona estes comportamentos de forma positiva, o que pode ser entendido como compreensível, tendo em conta a sua tenra idade, e natural desconhecimento de dinâmicas relacionadas com a sexualidade, bem como a existência de uma relação afectiva com ambos os pais. Destaca-se ainda o facto de estas verbalizações serem coerentes e detalhadas, bem como compatíveis com aquelas efectuadas em momentos prévios, quer junto da avó materna, quer junto do médico especialista em Medicina Legal, Dr. Gonçalo, que observou a menor em sede de perícia de natureza sexual em Direito Penal (relatório remetido a esse tribunal em 22 de Agosto de 2014). Assim, somos de opinião estarmos perante uma situação de perigo para a integridade física e mental da menor, cuja protecção deve ser assegurada mediante afastamento de ambos os pais.” Na audiência de julgamento, a Srª perita esclareceu de uma forma clara e minuciosa o teor do relatório de avaliação psicológica que elaborou, respondendo com precisão a todas as questões suscitadas sobre a fiabilidade e autenticidade do relato da criança. Com particular relevo, a Drª R baseou-se na espontaneidade e pormenorização do relato para afastar a hipótese de as histórias narradas terem origem em “invenção” da criança ou em sugestionamento dos adultos. Não existe o mínimo fundamento que nos permita duvidar da competência técnica, isenção e imparcialidade da Srª Dr.ª R. No relatório pericial psicológico realizado em 14 de Outubro de 2015 e cuja cópia se encontra de fls. 1302 a 1311, consta além do mais o seguinte (transcrição): (…) Espontaneamente no tema das brincadeiras (a L) descreve três que teria com os pais e, saliente-se, no final de as contar, aparentemente para reparar uma partilha irreflectida, diz “Foi só um dia. Uma vez.” Seguem-se as transcrições das três histórias relatadas pela menor, pela ordem e obedecendo ao rigor das palavras da mesma 1a Brincadeira -‘‘0 meu pai em t-shirt e meias de gatas a correr e eu com alicate que pega coisas a tentar tirar o rebuçado. A minha mãe punha depois de dar a partida 1,2,3... (contagem da mãe com o gesto da mão a dar a partida). Se ganhasse tirava o pêlo de onde quisesse... (questionada sobre a zona do corpo de onde o tirava, L faz que está a pensar e diz) já sei...da pilinha e dava 10 beijinhos e punha um penso.” 2a Brincadeira -“A mãe punha a língua na minha boca, o meu pai na minha e na minha mãe e todos púnhamos a língua uns nos outros.” Desenha também as três brincadeiras, atribuindo espontaneamente a mesma ordem que lhes havia dado uma semana antes quando as descreveu, seguindo-se algumas verbalizações que acompanharam a sua atividade gráfica: 1a Brincadeira “0 pai, não tem calças, são pernas sem cuecas... A mãe tem uma bandeira, verde de um lado e vermelho do outro. Verde para avançar e vermelho para não avançar...” 2 a Brincadeira (desenho com identificação dos pais com ela e com o dedo a apontar sequencialmente para cada uma das figuras) "língua aqui, língua aqui e língua aqui, Uasua.com todos” 3a Brincadeira “Acho que já me lembro. Brincadeira de luta de almofadas. Cama, minha cabeça, meu pai e minha mãe. Estrelinhas no céu, nuvens, nuvens e nuvens, é mesmo assim.” Refira-se uma ingenuidade, mesmo relativizada à sua idade, a existência de sinalizadores da sua perceção de conflitualidade e de eventuais indicadores de contacto, aparentemente não traumático, de experiencias com conteúdo erotizado. No conjunto, a sua produção grafo motora transmite uma entidade psicológica una, com certo expansionismo, eventualmente pelo suporte afetivo que tem internalizado. 0 CAT-H dá nota dos seus recursos cognitivos, sendo as narrativas adequadas às imagens que as sugerem, com identificação de dinâmicas relacionais, entre as quais a pais/filhos em que os primeiros são passivos e desatentos enquanto os segundos apresentam alguma autonomia face aos pais que “dormem”. A figura masculina tem uma conotação desagradável e um pouco temerosa, a feminina tem uma representação frágil e pouco securizante, enquanto as figuras mais novas são desprotegidas perante a ameaça à sua natural ingenuidade e fantasia.” Em audiência de julgamento foi igualmente recolhido o depoimento da Sr.ª Dr.ª Luísa , psicóloga clínica, que seguiu e esclareceu o teor do relatório, salientando a espontaneidade e a riqueza de pormenores na descrição. Afiançou ainda que os indicadores são muito reais e parecem corresponder a uma experiência da criança. Também não existe o mínimo fundamento que nos permita duvidar da competência técnica, isenção e imparcialidade desta perita. Restará por fim lembrar que no seu depoimento, o Sr. Professor Eduardo Sá, indicado pela defesa, não infirmou - nem lhe era tecnicamente possível – o teor dos relatórios já constantes dos autos, fruto de observação directa da criança. Sempre afirmou contudo que a pormenorização e o “colorido” do relato da Lindiciam que os factos se passaram como ela contou à avó, à tia e sucessivamente em três perícias. Como é por demais sabido, a prova segura dos factos relevantes pode resultar de declaração confessória, testemunho ou outro meio de comprovação imediata e directa dos eventos materiais, mas ainda de um raciocínio lógico e indutivo com base em factos ou acontecimentos “instrumentais” ou “circunstanciais”, mediante a aplicação de regras gerais empíricas ou de máximas da experiência (artigos 124º a 127º do Código de Processo Penal e quanto à utilização de presunções como meios lógicos ou mentais para a descoberta dos factos, os artigos 349º e 351º do Código Civil). O teor das conversas e dos desenhos da ofendida, recolhidos em prova testemunhal ou pericial, constituem os factos base, indícios ou factos instrumentais que uma vez conjugados à luz de normas de comportamento humano extraídas da generalização de casos semelhantes, permitam estabelecer um juízo de inferência razoável com o facto ou factos probandos. Dito de outro modo: provado que a criança disse o que disse, narrando os incidentes que considerou como de brincadeiras, é naturalmente possível inferir, para lá de uma dúvida razoável, que efectivamente ocorreram na vida real os factos que a Lnarrou. Estaremos aqui no plano da prova indiciária ou por presunção probatória. No mais e procurando percorrer os argumentos expostos pelos recorrentes: - A circunstância de os arguidos terem dito à filha L que o teor das brincadeiras devia permanecer em segredo entre pais e filha surge-nos referido nas declarações da avó (v.f. a 20:40/21:25) e no relatório da Drª R (“relatando espontaneamente que ninguém pode saber”). O recorrente não nos indica elemento de prova que nos imponha uma decisão diferente. -Que os arguidos se exibiram desnudados, ou seja, que estiveram sem roupa na presença da filha resulta evidentemente dos próprios factos de 13 de Outubro e de 22 de Outubro de 2013 que os recorrentes não contestam, assim como ressalta dos relatos da criança às senhoras peritas, das declarações da assistente, do depoimento da tia materna e das fotografias examinadas na audiência; -Afigura-se-nos como evidente que dos meios de prova elencados, designadamente da descrição dos acontecimentos considerados como de brincadeiras, pode resultar como provado para lá de uma dúvida razoável que em mais do que uma ocasião, os arguidos, pelo seu comportamento nas brincadeiras que necessariamente proporcionaram e dirigiam, terão “induzido” ou “estimulado” ou “sugestionado” a filha de 6 anos de idade para que lhes tocassem ou acariciassem em partes erógenas dos seus corpos, incluindo pegar, fazer festas e dar beijos no pénis do pai. - Segundo o princípio in dúbio pro reo, o tribunal deve sempre decidir a favor do arguido se não se encontrar convencido da verdade ou falsidade de um facto, isto é, se permanecer em estado de dúvida sobre a realidade do mesmo (numa situação de non liquet). Como persistentemente tem sido sublinhado, para que se imponha a aplicação deste princípio é necessário que perante a prova produzida permaneça no espírito do julgador uma dúvida razoável e insanável sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão. Entende-se que será relevante a dúvida compreensível para uma pessoa racional e sensata e não qualquer indecisão ou conjectura “concebível” . Assim, só existe violação do princípio se, perante uma situação assumidamente de dúvida razoável, se decida sem ser a favor do arguido, sendo de realçar que a dúvida relevante é a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que, se o tribunal não teve, deveria ter tido (neste sentido, entre outros, o Acórdão Supremo Tribunal de Justiça 14-04-2011, processo 117/08.3PEFUN.L1.S1 disponível in www.dgsi.pt ). No caso concreto, em lado algum da sentença transparece que o tribunal recorrido tenha enfrentado uma situação de dúvida sobre a ocorrência de qualquer um dos factos que julgou provados. Sendo inquestionável que também agora em nossa reapreciação, não se nos suscita dúvida que justifique a aplicação daquele princípio. Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual, improcede igualmente a argumentação do recorrente neste âmbito. Em conclusão: O tribunal colectivo ponderou todas as provas, segundo critérios de objectividade e à luz das regras da experiência comum e da normalidade, no pleno uso do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código Processo Penal. Não existe qualquer obstáculo processual a que, no confronto entre as declarações prestadas pelos arguidos, por um lado, e as declarações da avó e depoimento da tia, por outro, o tribunal atribua maior credibilidade aos últimos em detrimento dos primeiros, na medida em que se encontram todos sujeitos à livre apreciação do julgador, sem hierarquias ou preferências. Na valoração conjunta que fazemos dos elementos probatórios disponíveis, depois de termos procedido à audição integral do registo áudio das declarações, depoimentos e exame dos relatórios periciais e desenhos feitos pela criança, não encontramos no processo de formação da convicção do tribunal recorrido qualquer erro de racionalidade, infracção de regras de experiencia comum ou outro fundamento que nos imponha uma solução diferente da que consta da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida. Termos em que improcede o recurso dos arguidos neste âmbito. 9. Cumpre seguidamente apreciar o recurso no segmento referente ao enquadramento jurídico-penal dos factos provados. Na descrição típica constante do artigo 171º, nº 1 do Código Penal comete o crime de abuso sexual de crianças, quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos. A doutrina e a jurisprudência coincidem no entendimento de que acto sexual de relevo será o acto dotado de conotação sexual objectiva, identificável por um observador externo, que seja abstractamente idóneo à satisfação de instintos sexuais e que seja apto a ofender o adequado desenvolvimento sexual de uma criança ou jovem menor de 14 anos, e que, por isso mesmo, seja susceptível de vir a condicionar a sua liberdade e autonomia sexual. Aqui se incluem aqueles actos que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade sexual do sujeito passivo, sendo por isso de excluir do âmbito de protecção os actos insignificantes ou bagatelares, e os que não representem entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima, v.g. actos que, embora pesados ou em si significantes por impróprios, desonestos, da mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma importante a livre determinação sexual da vítima (Inês Ferreira Leite A tutela Penal da Liberdade Sexual, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 21, n.º 1, Janeiro-Março 2011, pp. 71-73, Simas Santos e Leal Henriques in Código Penal, II, pág. 368, Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense, I, pág. 449, Maria do Carmo Silva Dias, “Repercussões da Lei n.º 59/2007, de 4/9 nos crimes contra a liberdade sexual, Revista do CEJ, 1.º Semestre de 2008, Número 8, José Mouraz Lopes, Crimes Sexuais, Coimbra Editora, Dezembro 2015, p. 37 a 43 e 137 a 141, e entre outros, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/06/2000, CJ STJ, VIII, II, p. 226). Aplicando estas considerações ao circunstancialismo destes autos, concordamos com o enquadramento jurídico-penal constante do acórdão recorrido. Embora no quadro de um ambiente aparentemente lúdico, os arguidos permitiram e levaram a filha a pegar e beijar o pénis do pai e a beijar o mamilo da mãe e a manter contacto e fricção entre a sua vagina e a zona genital de cada um dos pais. Estes actos cometidos pelos arguidos são em si mesmo actos sexuais de relevo porque se relacionam com a actividade sexual e são normalmente praticados no domínio da sexualidade entre pessoas. Assim como também são idóneos a afectar de uma forma grave e séria o desenvolvimento da personalidade no campo da sexualidade numa criança de 6 anos de idade. 10. Da unidade ou pluralidade de infracções: Sendo caso de preenchimento plúrimo do mesmo tipo de crime, suscita-se a questão de saber se existe um único crime, um crime na forma continuada ou diversos crimes de abuso sexual de criança. Segundo Eduardo Correia, o juízo de censura em que se estrutura a culpa provém da falta de eficácia das normas jurídicas no domínio da representação e da motivação do agente. Se o desenvolvimento da actividade do agente e a determinação da sua vontade tiver obedecido a uma pluralidade de resoluções, serão plúrimos os juízos de reprovação decorrentes da reiterada falta de eficácia das normas. A resolução, neste sentido de determinação da vontade, surge como, “o termo daquele específico momento do processo volitivo em que o «eu» pondera o valor e o desvalor, os prós e os contras dum projecto concebido. É o termo daquela específica fase da volição, que metaforicamente se costuma descrever como constituída por uma luta de motivos e contra motivos, no qual o próprio “eu” intervém activamente numa afirmação da sua personalidade. O índice da unidade ou pluralidade de determinações volitivas e, por aí, a solução da questão da unidade ou pluralidade de infracções hão-de provir fundamentalmente não apenas da ausência ou verificação de uma “descontinuidade” na actuação do agente, mas de uma análise global da “forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. Na verdade, “(…) a experiencia e as leis de psicologia ensinam-nos que, em regra se entre os diversos actos medeia um largo espaço de tempo, a resolução que porventura inicialmente os abrangia a todos se esgota no intervalo da execução, de tal sorte que os últimos não são já a sua mera descarga, mas supõem um novo processo deliberativo (Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade de Infracções, Almedina, Coimbra, 1983, p. 94 a 98). Numa perspectiva distinta, a doutrina e a jurisprudência têm densificado o conceito de crime prolongado ou de trato sucessivo, considerando a existência de um só crime – apesar de se desdobrar em diversas condutas repetidas ao longo de um certo período de tempo. Como se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/11/2012 processo 862/11.6TAPFR.S1, Santos Carvalho, também citado pela assistente na motivação de recurso, “Os crimes sexuais são muitas vezes atos isolados, fruto de circunstâncias irrepetíveis. É assim no caso de violações durante um assalto a uma residência, ou na sequência de um rapto, ou num encontro em local ermo. Mas, outras vezes seguem um percurso que se prolonga no tempo, isto é, em vez de um ato ou de vários atos ilícitos, há uma atividade sexual ilícita. É próprio da natureza humana a junção dos mesmos parceiros sexuais por períodos prolongados no tempo. O mesmo se passa, muitas vezes, nos crimes sexuais, sempre que as circunstâncias o proporcionam e a diferença entre estes e as uniões sexuais mais correntes entre as pessoas, é a circunstância de nos casos criminosos existir uma vítima, alguém a quem o agente retira [ou condiciona] a liberdade ou a autodeterminação sexual. Na “atividade sexual criminosa” o agente aproveita-se sexualmente de outra pessoa que é acessível ao seu contato, por ser da família, ou do seu círculo de amizades, ou do seu local de trabalho, ou por outra circunstância similar, fazendo-o pela força, ou pela intimidação, ou pela incapacidade da vítima em se defender, por exemplo, por ser menor. Nesses casos, os crimes sexuais tendem a ter uma frequência por um período prolongado no tempo e a juntar os mesmos «parceiros», um deles vitimizado sucessivamente. Ora, quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem. O mesmo sucede com outro tipo de crimes que, tal como o sexo, facilmente se transformam numa “atividade”, como, por exemplo, com o crime de tráfico de droga. Pergunta-se, por isso, se nesses casos de “atividade criminosa”, o traficante de rua que, por exemplo, se vem a apurar que vendeu droga diariamente durante um ano, recebendo do «fornecedor» pequenas doses de cada vez, praticou, «pelo menos», 200, 300 ou 365 crimes de tráfico [o que aparenta ser uma contagem arbitrária ou, pelo menos, “imaginativa”] ou se praticou um único crime de tráfico, objetiva e subjetivamente mais grave, dentro da sua moldura típica, em função do período de tempo durante o qual se prolongou a atividade. Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem. O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque).” Não se vislumbra no caso concreto a existência de qualquer circunstância exterior que seja susceptível de diminuir a culpa dos arguidos, pelo que se encontra afastada a possibilidade de subsunção na figura do crime continuado. Todos os eventos da vida real imputados aos arguidos lesam o mesmo bem jurídico, incidem sobre a mesma vítima, foram cometidos de forma repetida num período de tempo que se estende por cerca de oito meses, mas sempre no quadro de uma actividade lúdica de características semelhantes, no interior da casa da família e com os mesmos participantes. Estas circunstâncias concretas levam-nos a concluir que todos os factos a que se reportam os presentes autos e descritos na acusação foram cometidos sob uma mesma unidade resolutiva. No caso dos crimes de trato sucessivo, a punição faz-se pelo ilícito mais grave entretanto cometido, pelo que cada um dos arguidos deve ser punido pelo cometimento em autoria material de um crime de abuso sexual de criança qualificado, previsto e punido pelos artigos 171º, nº 1, e 177º, alínea a), ambos do Código Penal. 11. Cumpre de seguida apreciar o recurso no segmento correspondente às consequências jurídicas, devendo tomar-se em conta a argumentação expendida no recurso da assistente e nos recursos dos arguidos. Segundo o entendimento sedimentado na doutrina e jurisprudência do nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, o tribunal deve atender à culpa do agente, enquanto limite superior e inultrapassável da pena, mas a pena assume hoje um sentido fundamentalmente preventivo, não lhe cabendo como finalidade a retribuição qua tale da culpa. Considerando que as finalidades de aplicação das penas incidem fundamentalmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reintegração do agente na sociedade, o limite máximo da moldura do caso concreto deve fixar-se na medida considerada como “óptima” para a protecção dos bens jurídicos e para a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade e vigência das normas infringidas, consentida pela culpa do agente, enquanto o limite inferior há-de corresponder a um mínimo, ainda admissível pela comunidade para satisfação dessas exigências tutelares. Por fim, entre os limites desta “sub moldura”, o tribunal deve fixar a pena num quantum que traduza a concordância prática dos valores decorrentes das necessidades de prevenção geral com as exigências de prevenção especial que se revelam no caso concreto, quer na vertente da socialização, quer na de advertência individual de segurança ou inocuização do delinquente . Nesta tarefa de individualização, o tribunal dispõe dos módulos de vinculação na escolha da medida da pena constantes do artigo 71.º do Código Penal, consignando os critérios susceptíveis de “contribuírem tanto para determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento) ao mesmo tempo que transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente. Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de actuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar” ” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-04-2008, Rel Souto Moura, cit. por Martins, A. Lourenço, Medida da Pena, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pp242). As circunstâncias com relevo na determinação da medida da pena e que não se encontram já valoradas no tipo legal agravado são fundamentalmente as seguintes: - Os arguidos actuaram ao longo de um período de tempo de cerca de oito meses, em actos sucessivos de abuso sexual de uma menina de seis anos. Estes actos têm aptidão para atingir de uma forma muito intensa a relação desta criança com o seu próprio corpo, com a afectividade em geral e com a sua própria sexualidade. A reacção institucional perante factos desta gravidade deve reflectir o elevado juízo de censurabilidade do comportamento; -A ausência de arrependimento faz pressupor a falta de interiorização da gravidade e consequências da conduta; - As exigências de prevenção geral revelam-se evidentemente muito elevadas, pelo alarme social que este tipo de crime compreensivelmente provoca na nossa e pela profusão de crimes contra o direito à autodeterminação sexual e formação da personalidade das crianças; - Em benefício dos arguidos importa considerar a ausência de registos criminais e a inserção social e laboral. Apesar da ausência de reconhecimento da censurabilidade da sua conduta em audiência de julgamento, a pena adequada à culpa e correspondendo às exigências de protecção dos bens jurídicos, há-de permitir uma desejável recuperação e absoluta reintegração social. Sopesando em conjunto todas as enunciadas circunstâncias, com relevo para a concreta forma de execução reiterada dos factos perante uma criança de seis anos, concluímos que a pena a aplicar como necessária e equitativa para a culpa exteriorizada pelo arguido, assim ainda como proporcional às exigências de prevenção geral positiva ou prevenção de integração, se deve manter nos cinco anos de prisão para cada um dos arguidos. Improcede assim a pretensão dos arguidos. 12. Cumpre seguidamente apreciar o recurso da assistente, no segmento em que pretende ver revogada a decisão de suspensão da execução das penas sob regime de prova e substituída por condenação em penas de prisão efectiva próxima dos limites máximos. Sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos, o juiz tem o dever de suspender a execução da pena de prisão, ainda que sob a obrigação de cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou sob regime de prova (artigos 50º a 54º do Código Penal). Para este efeito, verificado o pressuposto formal de que a pena de prisão previamente determinada não seja superior a cinco anos, é necessário que seja possível ao tribunal fazer uma apreciação favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de antecipar ou prever que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição, o mesmo é dizer, para garantir a tutela dos bens jurídicos e a reinserção do agente na sociedade, entendida aqui como perspectiva que o condenado não volte a delinquir no futuro. Uma vez que a função da culpa se esgotou no momento da determinação da medida da pena de prisão, o juízo de prognose necessário para eventual aplicação da suspensão de execução depende em exclusivo de considerações de prevenção especial de socialização e de prevenção geral positiva. Não existe nenhuma razão para excluir à partida a possibilidade de suspensão de execução em determinados grupos de crimes como os crimes sexuais, os crimes violentos ou a condução em estado de embriaguez. A intensidade da culpa só deve ser tomada em conta quando daí possa resultar um perigo de reincidência[1]. Assim, se a suspensão de execução for aconselhável à luz de exigências de socialização, só não deverá ser aplicada se a opção pela execução efectiva de prisão se revelar indispensável para garantir a tutela do ordenamento jurídico ou para responder a exigências mínimas de estabilização das expectativas comunitárias. Este juízo de prognose exige a valoração em conjunto de todas as circunstâncias que tomem possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido aqui se incluindo os elementos disponíveis referentes sobre a personalidade, as condições de vida do agente (relevando a inserção familiar e profissional), a sua conduta anterior ao facto (considerando os antecedentes sobre o cometimento de crimes de idêntica ou diferente natureza), as circunstâncias concretas do crime (incluindo as motivações e os fins visados na conduta) e o comportamento posterior, aqui assumindo importância saber do reconhecimento da censurabilidade da conduta e da reparação do dano[2]. Face a todas as considerações acima expostas cumpre analisar o caso concreto. No acórdão em crise a questão da suspensão da execução da pena foi tratada da seguinte forma: “Tendo em consideração a ausência de antecedentes criminais dos arguidos, a circunstância de, pese embora a gravidade das suas condutas, a menor nunca ter sido magoada fisicamente e ter – até ao momento e dada a sua pouca idade – encarado os atos dos arguidos como “brincadeiras” que vivenciou como positivas, entende-se que, por ora, a mera ameaça da pena e a censurabilidade das suas condutas se mostrarão adequadas e suficientes para satisfazer as necessidades da pena e afastar os arguidos da criminalidade. Assim, ao abrigo do disposto no art. 50º, do Cód. Penal, a pena a aplicar aos arguidos será suspensa na sua execução, por igual período de tempo e sujeita a regime de prova.” Concordamos com estes argumentos. Na conformação do juízo de prognose quanto ao comportamento anterior não se poderá deixar de considerar o concreto e específico contexto em que os factos ocorreram. Apesar da gravidade que lhe está subjacente e do receio de consequências psicológicas futuras que a assistente bem salienta na motivação de recurso, o comportamento dos arguidos não terá felizmente causado qualquer dano físico na menina e o receio de cometimento de factos desta mesma natureza pelos arguidos será agora diminuto, uma vez que, ao tudo indica, a guarda e os cuidados da menina se encontram confiados aos avós maternos. Neste sentido, pode validamente concluir-se que a condenação numa pena de prisão de cinco anos de execução suspensa sob regime de prova constitui uma reacção institucional adequada e corresponde satisfatoriamente às expectativas da comunidade na efectiva tutela do direito tutelado pela incriminação, o mesmo é dizer, do direito ao desenvolvimento adequado da personalidade e da autodeterminação sexual das crianças e jovens até aos 14 anos de idade. . Deve por isso manter-se na íntegra o acórdão recorrido, assim improcedendo o recurso da assistente. 13. Os arguidos decaíram integralmente no recurso que cada um interpôs e têm de ser responsabilizados individualmente pelo pagamento de taxa de (artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal). A assistente será condenada em taxa de justiça por também ter sido negado provimento no recurso que interpôs (artigo 515º, nº 1, alínea b) do mesmo compêndio normativo). De acordo com o disposto no artigo 8º nº 5 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais, a taxa de justiça a fixar, a final, varia entre três e seis UC. Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se equitativo fixar essa taxa em cinco UC para cada um dos arguidos e igualmente em cinco UC para a assistente. 14. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedentes os recursos dos arguidos e em julgar igualmente improcedente o recurso da assistente e em manter na íntegra o acórdão recorrido. Condena-se cada um dos arguidos em cinco UC de taxa de justiça. A assistente vai também condenada em cinco UC de taxa de justiça. Lisboa, 23 de Novembro de 2016. Texto elaborado em computador e revisto pelo relator.
João Lee Ferreira Nuno Coelho ______________________________________________________
[1] Neste sentido, Hans-Henrich Jeschek, Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, Bosch, Barcelona, p.1155 [2] Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Ed. Notícias, 1993, pag. 332 e 333 , Robalo Cordeiro, A Determinação da Pena in Jornadas, CEJ, II, Lisboa 1998, pag. 48, Anabela Miranda Rodrigues, A determinação da medida concreta da pena privativa da liberdade e a escolha da Pena RPCC I 1991, nº 2, 243, .Hans-Henrich Jeschek, Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, Bosch, Barcelona, p.1151 a 1165. Na jurisprudência, por todos, o Acórdão do S.T.J. de 13-12-2007, rel. Cons. Santos Cabral, in www.dgsi.pt com o seguinte sumário : “Na lei penal vigente, a culpa só pode (e deve) ser considerada no momento que precede o da escolha da pena – o da medida concreta da pena de prisão –, não podendo ser ponderada para justificar a não aplicação de uma pena de substituição: tal atitude é tomada tendo em conta unicamente critérios de prevenção. Não oferece qualquer dúvida interpretar o estipulado pelo legislador (art. 71.º do CP) a partir da ideia de que uma orientação de prevenção – e essa é a da prevenção especial – deve estar na base da escolha da pena pelo tribunal; sendo igualmente uma orientação de prevenção – agora geral, no seu grau mínimo – a única que pode (e deve) fazer afastar a conclusão a que se chegou em termos de prevenção especial. Neste contexto, a prevalência não pode deixar de ser atribuída a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo elas que justificam, em perspectiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão. E prevalência a dois níveis diferentes: - o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas; coisa que só raramente acontecerá se não se perder de vista o carácter criminógeno da prisão, em especial da de curta duração”. |