Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11212/15.2T8SNT-A.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: CRÉDITO LITIGIOSO
NÃO INCLUSÃO NA LISTA
ILEGITIMIDADE PARA IMPUGNAR
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 08/18/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.-O artigo 129/2 do CIRE não impõe que um crédito seja listado como litigioso.

II.-O insolvente não tem legitimidade para impugnar a não inclusão de créditos de terceiros na lista de créditos sobre o insolvente reconhecidos pelo administrador da insolvência, para mais se nem sequer os arrolou quando o podia e devia ter feito e os supostos credores, para além de não terem reclamado tais créditos, notificados nos termos do art. 129/4 do CIRE, não impugnaram essa não inclusão.

III.-Nem tem legitimidade para recorrer da decisão que indeferiu essa pretensão.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:


Relatório:


Na insolvência de C-Lda, foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos, com apreciação e indeferimento da pretensão da impugnação, pela insolvente, da lista de créditos apresentada pelo administrador de insolvência; a decisão recorrida considera que (i) o crédito tributário não tem de constar como litigioso; e (ii) os créditos não reconhecidos devem permanecer como tal.

A insolvente veio recorrer desta sentença – para que seja anulada e substituída por outra que determine o reconhecimento dos créditos não reconhecidos pelo AI, devendo o crédito tributário ser reconhecido como resolúvel porquanto é litigioso – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1.-No caso dos autos a insolvente tinha a sua contabilidade tão transparentemente organizada que o AI tinha todas as condições para nos termos do disposto do art. 129/1 do CIRE, em vez de tão-somente proceder à sua notificação ao abrigo do art. 129/4, ter organizado a lista dos créditos reconhecidos, incluindo aqueles que não tinham deduzido reclamação.
2.-A situação de litigiosidade com a AT impunha que o crédito tributário fosse referido como litigioso, referindo que ao abrigo do art. 129/2, impõe a referência da possibilidade resolutória.
3.-Possibilidade resolutória, que o MP reconhece ao admitir a litigiosidade do crédito.
4.-Todos os credores presentes na diligência de conciliação admitiram a fidedignidade dos créditos que erradamente o Sr. Administrador incluiu na lista dos créditos não reconhecidos, e que apesar do acordo perseverou em não corrigir.
5.-A prova da fidedignidade de todos os créditos ainda não reconhecidos foi feito mediante exibição judicial por inteiro da escrita comercial devidamente organizada, o que por via do disposto no art. 44/2 do Código Comercial faz prova em favor dos respectivos proprietários.
6.-Nenhum credor apresentou impugnação ao acerto da inclusão dos créditos que constam como não reconhecidos na listagem dos créditos reconhecidos antes deram a sua anuência ao reconhecimento.
7.-A sentença recorrida ao exarar que os credores não reconhecidos ainda podem deitar mão ao disposto no art. 133 do CIRE, erra e induz em erro porquanto aos credores não reconhecidos, só lhes resta usar do disposto no art. 146 do CIRE, o que terão de fazer com os custos e a onerosidade que uma nova acção para verificação ulterior de créditos comporta, o que seria inútil se a errónea sentença, de que agora se recorre, não fosse proferida com fidelidade ao teor da acta de conciliação.
8.-Com esta decisão ora colocada em crise pelo presente recurso o tribunal a quo violou o princípio constante no art. 130 do CPC da limitação dos actos.
9.-Violou também inequivocamente o princípio da aquisição processual constante do art. 413 do CPC, porquanto nega prova documental, atendível, produzida, emergente da exibição judicial dos livros de escrita da insolvente, onde consta a evidência dos créditos que devem ser reconhecidos.
10.-Viola o princípio da boa fé também, porquanto, a confissão do MP de que o crédito da Fazenda Nacional é litigioso, obrigava a que o crédito só fosse reconhecido como litigioso, e em consequência resolúvel, como o impõe o disposto no art. 129/1 in fine do CIRE.
11.-Viola também a sentença recorrida o princípio da atendibilidade dos factos judiciários supervenientes, art. 611 do CPC, porquanto o acordo obtido na diligência de conciliação, impunha em qualquer circunstância o reconhecimento dos créditos que constam na listagem do AI como não reconhecidos.
12.-É assim forçoso rejeitar o dispositivo condenatório, que julga improcedente a impugnação apresentada pela insolvente, e que considera verificados os créditos nos termos que constam da lista apresentada pelo AI, a tempo de evitar que os credores, cujos créditos não estejam reconhecidos, sejam forçados a accionar o mecanismo do disposto no art. 146 do CIRE.
13.-O certo é que a sentença recorrida ao interpretar os dispositivos legais constantes nos nºs 1 e 3 do art. 129 do CIRE neste sentido perverso, contra a verdade documental da prova, e a igualdade das partes, viola o disposto no art. 20/4 da Constituição da República Portuguesa, não assegurando uma tutela jurisdicional efectiva, mediante um processo equitativo.
14.-O tribunal a quo estava vinculado a interpretar a norma do art. 129 do CIRE em conformidade com o disposto no art. 9 do Código Civil pelo que não o tendo feito também violou o disposto em tal preceito.

Não foram apresentadas contra-alegações.
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Questões que importa decidir:         
Na parte final do recurso, a insolvente diz que a sentença deve ser anulada mas não argui a nulidade da mesma. Trata-se, pois, de um erro da recorrente. As questões a decidir, por isso, são apenas as de saber se o crédito tributário deve constar como litigioso e se os créditos não reconhecidos deviam ter sido reconhecidos. A invocação da inconstitucionalidade não foi concretizada, pois que não se diz em concreto qual a norma que foi interpretada de forma inconstitucional, nem qual o sentido com que ela foi interpretada, nem qual o sentido com que ela devia ter sido interpretada, pelo que ‘essa’ inconstitucionalidade não tem de ser apreciada neste recurso.
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Foram considerados como provados os seguintes factos com interesse para as questões a decidir (transcritos agora apenas nessa medida):
1.-A C-Lda, foi declarada insolvente, em 28/04/2016, por sentença transitada em julgado.
2.-A insolvência foi requerida por E-Lda.
3.-A insolvente deduziu oposição ao requerimento de insolvência, não tendo identificado como seus credores quaisquer das entidades e pessoas referidas [a seguir, em 4].
4.-O AI apresentou a lista com a relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos, nos termos constantes de fls. 4 e ss, cujo teor se dá por reproduzido, fazendo constar a seguinte menção quanto aos créditos não reconhecidos a: A-Lda, B-SA, F-Lda, L,      D-Lda, G-Lda, H-Lda, I-Lda, J, X-SA, e Y;
Créditos não aceites por, não tendo sido reclamados, se desconhecer se os mesmos continuam e existir, o seu montante concreto e actual, respectivo fundamento, existência ou não de condições e garantias, eventuais taxas de juro e outros elementos indispensáveis à sua elencagem em relação de créditos reconhecidos e eventual posterior posição em graduação de créditos”.
5.-O AI remeteu a cada um dos credores não reconhecidos e identificados em 4 as notificações previstas no art. 129/4 do CIRE, por carta registada, dando-lhes conhecimento desse não reconhecimento e dos respectivos motivos, nos termos constantes de fls. 9 a 30, cujo teor se dá por reproduzido.

I-
Se o crédito tributário devia constar da lista de créditos reconhecidos como crédito litigioso

A insolvente diz que sim porque o crédito é litigioso, o que teria sido confessado/reconhecido pelo MP.

A insolvente não diz nada sobre a fundamentação da decisão recorrida em sentido contrária e que é a seguinte:
“Quanto à inserção na lista prevista no art. 129 do CIRE, da menção ao carácter litigioso ao crédito reconhecido à Fazenda Nacional, não existe suporte legal para tal obrigação, dado que tal preceito não exige a inclusão obrigatória dessa referência. Por outro lado, na litigância existente à data da declaração da insolvência, passa a insolvente a ser substituída pelo AI, nos moldes previstos pelo art. 85. Assim sendo, caso se mantenha a pendência de qualquer acção cabe ao AI intervir e tomar as decisões que melhor satisfaçam os interesses dos credores. De qualquer modo, sempre se dirá que a ocorrência de qualquer alteração imposta por decisão judicial eventualmente favorável à insolvente será reflectida no âmbito da fase da liquidação.
A insolvente não responde a isto, certamente porque não tem argumentos para o fazer, tentando mesmo assim forçar decisão em sentido contrário ao deslocar a questão para a da resolubilidade do crédito, de modo a enquadrá-lo no art. 129/2 do CIRE, sem dizer que alterou o sentido da sua argumentação.
Mas um crédito litigioso não é um crédito sujeito a condição resolutiva. Um crédito litigioso é aquele em relação ao qual se discute em juízo a sua existência: art. 579/3 do CC: “[d]iz-se litigioso o direito que tiver sido contestado em juízo contencioso, ainda que arbitral, por qualquer interessado”. Depois da decisão, fica-se a saber se o crédito existia ou não. A decisão no sentido de que o crédito não existe, não resolve os efeitos do negócio, diz que ele não existe. Ora, o crédito sujeito a condição resolutiva é aquele em que as partes subordinaram a um acontecimento futuro e incerto a resolução dos efeitos do negócio jurídico (art. 270 do CC), negócio jurídico que não discutem e que está em vigor, tal como os respectivos direitos e obrigações. Verificado o evento futuro e incerto, estes são resolvidos. Mas entretanto eles existiram.
Ora, como diz a sentença recorrida, o art. 129/2 do CIRE não obriga à menção de que o crédito é litigioso. Por outro lado, o facto de o crédito ter sido contestado não tem a ver com a sua natureza (e esta sim tinha de ser mencionada, tal como a eventual resolubilidade). O que basta para afastar a pretensão da insolvente.

II-
Se os créditos não reconhecidos pelo AI devem ser reconhecidos

Também aqui, a insolvente nada diz quanto a um dos argumentos – o principal para este recurso, como se verá - da decisão recorrida para o indeferimento da sua impugnação, qual seja:
“Tudo isto, sem prejuízo de não assistir legitimidade à insolvente de vir substituir-se aos próprios indicados eventuais credores, na defesa dos seus créditos, quanto os mesmos foram individualmente notificados pelo AI nos termos previstos no art. 129/4 do CIRE, e não vieram, eles próprios, apresentar qualquer impugnação à lista apresentada nos autos.
[…].”
Como se vê da transcrição feita acima, nas conclusões do recurso não há uma linha que seja destinada a rebater esta fundamentação.
De qualquer modo, recorrendo ao corpo das alegações, vê-se que a insolvente entende o contrário porque (i) “foi ela quem pugnou pela observação do princípio da legalidade”, (ii) o seu “interesse é óbvio”, (iii) “os credores subordinados encontram-se em relação de grupo societário com obrigação de mandato para gerir, tendo obviamente a X-Lda e o sócio Y interesse processual em primeiro lugar – que se apure o rigor da escrita comercial para efeitos de apreciação da conduta negocial.” [sic].
Ora, se há alguma coisa óbvia nisto tudo é apenas o seguinte: (i) os únicos factos em que a insolvente sustenta a sua legitimidade (relação de grupo / obrigação de mandato para gerir) não constam dos factos provados, (ii) a insolvente não pugnou por que eles fossem dados como provados, (iii) nada nos autos aponta para a prova desses factos e, (iv), eles quando muito diriam respeito a 2 dos créditos não a todos os créditos não reconhecidos. Assim, fosse qual fosse o proveito destes factos para a pretensão da recorrente, não interessa, porque é como se não existissem.
Como se disse, este argumento é o argumento que principalmente interessa neste recurso, porque dele decorre que a insolvente não tem legitimidade para pôr em causa a decisão. Esta traduziu-se no indeferimento da pretensão da insolvente, apesar de esta não ter legitimidade para a pretensão que está em causa. Ou seja, fez uma aplicação implícita do art. 278/3 do CPC.
Ora, para pôr em causa a decisão de mérito, a insolvente teria de ter demonstrado o seu interesse na impugnação da decisão do AI de não reconhecer determinados créditos. E, como se viu, não o fez,
E, assim sendo, há que seguir aqui a decisão recorrida, com a consequência de a insolvente não ter legitimidade para este recurso: a insolvente não tem legitimidade para estar a pôr em causa a não relacionação de créditos contra a insolvente. Ela poderia defender a exclusão de créditos da lista, mas não pode estar a defender a inclusão de créditos na lista, em substituição de pessoas que não impugnam a não relacionação, nem depois de notificados pessoalmente de que os supostos créditos não iam ser reconhecidos.
Esta falta de legitimidade para a impugnação, é, dito de outro modo, também falta de legitimidade para este recurso: a insolvente não tem legitimidade para defender os interesses de terceiros, nem na impugnação da lista de créditos não reconhecidos nem no recurso, por falta de interesse em agir, já que não é prejudicada com a decisão. Neste sentido, embora a outro propósito, dizem Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, Quid Juris, 2015, 3ª edição, pág. 529: “no segundo caso [exclusão de crédito pelo juiz], a legitimidade para recorrer só cabe ao titular do crédito a que a não homologação respeita.”
Nem o juiz teria legitimidade para o fazer oficiosamente. Isto é, também o juiz – ou este tribunal de recurso - não pode determinar a inclusão de créditos, relativamente a pessoas que, notificadas de que os “seus” créditos não eram reconhecidos, não impugnaram essa decisão. Nada na lei lhes dá poderes para o fazer.
Aliás, parafraseando o ac. do TRC de 26/04/2016, proc. 41/15.3T8GVA-A.C1 (embora proferida num PER a razão de ser é a mesma), nem o próprio suposto titular do crédito não reconhecido tinha legitimidade para impugnar a lista de créditos não reconhecidos, pois que não tinha reclamado o crédito: […] IV. Estando em causa uma impugnação deduzida por determinado credor tendo em vista a inclusão do seu crédito na lista de créditos, tal impugnação apenas poderá ter como fundamento a indevida exclusão do crédito da lista apresentada, seja porque, apesar de ter sido reclamado em tempo oportuno, o administrador (por lapso) não o relacionou, seja porque o administrador entendeu, por qualquer razão, não considerar a reclamação; mas a impugnação com esse fundamento pressupõe, em qualquer circunstância, que o credor tenha reclamado o seu crédito, já que a impugnação da lista de credores não poderá servir para, a pretexto de uma impugnação, reclamar créditos que não foram reclamados no momento próprio. V – O credor que não reclamou o seu crédito oportunamente não poderá, portanto, impugnar a lista provisória de créditos (onde não foi incluído), […] para o efeito de aí ver incluído o seu crédito […].”
Ora, se não o podia fazer o suposto credor, muito menos o podia fazer a insolvente por ele.
Por fim, tem razão a decisão recorrida em lembrar que a insolvente não arrolou tais créditos quando o podia ter feito (sendo que, dados os valores em causa, os credores subordinados estariam dentro dos 5 maiores credores – aliás dos 4, descontando a requerente da insolvência -, pelo que se lhe impunha que o fizesse, sendo caso disso: art. 30/2 do CIRE).
E porque as conclusões de recurso foram transcritas na íntegra, para que ficasse demonstrado o que se diz sobre elas, importa precisar ainda o seguinte, para que o seu conteúdo não dê origem a confusões:
- a insolvente não tem razão quando diz, na conclusão 7, que a sentença recorrida disse que os credores não reconhecidos ainda podem deitar mão ao disposto no art. 133 do CIRE, porque a decisão recorrida não disse nada disso, tanto mais que se estava a referir ao passado.
- nem corresponde à realidade, por outro lado, o que é dito pela insolvente na conclusão 4, ou seja, que “todos os credores presentes” - que aliás eram só 2 dos 5 existentes – “na diligência de conciliação admitiram a fidedignidade dos créditos que erradamente o Sr. Administrador incluiu na lista dos créditos não reconhecidos, e que apesar do acordo perseverou em não corrigir”, porque na acta dessa diligência não consta nada disso mas apenas o seguinte: “Seguidamente pelos presentes foi ainda dito que não se opõem à decisão das questões suscitadas na impugnação e resposta apresentadas por mero despacho, após decorrido o prazo ora concedido e o decurso do prazo para contraditório, relativo aos elementos que venham a ser juntos.” Ou seja, aceitavam que o tribunal decidisse com base nesses elementos, não que esses elementos impusessem uma decisão no sentido pretendido pela insolvente.
- tal como também não corresponde à realidade o que é dito pela insolvente na conclusões 6 e 11, ou seja, respectivamente, que “nenhum credor apresentou impugnação ao acerto da inclusão dos créditos que constam como não reconhecidos na listagem dos créditos reconhecidos antes deram a sua anuência ao reconhecimento”, e que “o acordo obtido na diligência de conciliação, impunha d[esses] créditos” , pois que, como já se disse, o que foi dito por eles não foi isso e na tentativa de conciliação apenas estiveram presentes 2 dos 5 credores.
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pela insolvente.


Lisboa, 18/08/2017


Relator:Pedro Martins      
1.º Adjunto: José Augusto Ramos
2.º Adjunto: Anabela Calafate