Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6524/11.7TBSXL-B.L1-8
Relator: TERESA PRAZERES PAIS
Descritores: EXPROPRIAÇÃO
DECISÃO ARBITRAL
PODERES DE COGNIÇÃO
JUIZ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/30/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - No processo de expropriação, a decisão arbitral constitui uma verdadeira decisão judicial proveniente de um tribunal arbitral necessário. Em face disto, ao acórdão arbitral aplicam-se, em matéria de recursos, as mesmas normas do CPC.
- O poder de cognição do juiz, em caso de recurso, é delimitado pelas alegação do recorrente e decidido no acórdão, que transita em tudo quanto seja desfavorável para a parte não recorrente, envolvendo a falta de recurso concordância com o decidido pelos árbitros.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa


Nos presentes autos de expropriação em que é expropriante A... SA e expropriados A... e mulher M..., residentes ... , aquela depositou no Banco ... a quantia de € 51.685,00 ,a favor destes últimos ,como garantia para pagamento da expropriação da parcela Nº 23/3 do Sublanço Palhais /Laranjeiras - Trecho 3 do lanço IC 32, Casas Velhas /Palhais da Subconcessão do Baixo Tejo.
Notificada a expropriante para os termos do artº 51 nº3 do CE , veio esta alegar  o acima referido, adiantando que o valor encontrado pelos Srs. peritos foi apenas de €19.109,73. Assim, deverão os expropriados ser notificados para restituição do excedente.
Tal pretensão foi negada pelos expropriados , conforme fls 9.
Por despacho de 22-05-2012, transitado em julgado, foi proferida esta decisão:
“Verificando-se que, efectivamente, o valor da avaliação que consta no relatório pericial é inferior ao valor já depositado pela expropriante nos termos do art. 100 e 200 do CExpropriações, nada mais há a depositar, por ora.
Não obstante e. por ausência de fundamento legal, indefiro o pedido de depósito pelo expropriado do valor que excede o da avaliação. “
Interposto recurso da decisão arbitral, foi proferida a decisão final que fixou o valor indemnizatório em € 19.109,73.
Não foi interposto recurso desta decisão.
Factos apurados
Os que constam do relatório
A 2-02-2016 foi proferido este despacho:
“…. Notifique o expropriado para que proceda à restituição à expropriante do valor da indemnização que lhe foi pago em excesso, nos termos requeridos de fls. 571 a 575, para tanto lhe sendo concedido o prazo de 15 (quinze) dias. …”

É este despacho que os expropriados impugnam, formulando estas conclusões:
1ª - Em despacho de 22/5/2012, 1ª parte, o M.º Juiz considerou que o depósito pelo expropriado da diferença entre os valores entregues aos expropriados e o da arbitragem não tinha fundamento legal.
2ª - Tal decisão transitou em julgado por não ter sido recorrida pela expropriante.
3ª - A decisão ora recorrida viola o anterior caso julgado.
4ª - Entre as duas decisões opostas, só a de 22/5/2012 primeira é totalmente conforme à lei.
5ª - Os 51 685,00 € depositados, correspondem ao valor da avaliação preliminar efetuada por perito da lista oficial de escolha da AEBT, avaliação que esta última aceitou e serviu de base à previsão dos encargos com a exproprioção das parcelas dos requeridos, nos termos do art. 10º nº1 al. c) e nº 4 , do Código das Expropriações (CE). Por isso foram depositado à ordem dos expropriados.
6ª - É isso que resulta da alínea a) do nº 5 do art. 20º do Código das Expropriações, na redação vigente à data do depósito: quando há lugar a posse administrativa, o montante da avaliação que suporta a determinação do encargo considerado na deliberação tem de ser depositado à ordem dos expropriados no prazo de 90 dias a contar da publicação da declaração de utilidade pública.
7ª - Se não for efetuado tal depósito, há mora e são devidos juros.
8ª - A circunstância de o depósito ser à ordem dos expropriados (que para o receberem nem sequer têm de prestar caução) permitindo aos respectivos beneficiários dele disporem livre e definitivamente como melhor entenderem explica-se pelo princípio da boa-fé, na vertente de non venire contra factum proprium, então expresso em geral no art. 6º-A do CPA e, em particular, no art, 2º do Código das Expropriações.
9ª - Se a entidade interessada, na deliberação em que resolve pedir ao Governo a declaração de utilidade pública da expropriação, atribui ao bem um dado valor, fundamentado de resto em avaliação de perito da lista oficial de sua livre escolha, que implicitamente aceita, não pode depois valer-se de um valor inferior porque isso seria venire contra factum proprium.
10ª - A lei, perante a gravidade do prejuízo que da evicção decorre para o expropriado, em consequência da posse administrativa, ponderando a necessidade de obstar a tal prejuízo na medida do possível e tão rapidamente quanto possa ser, atribui desde logo e definitivamente aos expropriados e demais interessados o valor que a própria expropriante aceitou vir a ser o encargo com a aquisição.
11ª - Nem vale argumentar que, não sendo esse valor calculado diretamente pelo expropriante, sim por perito da lista oficial, haveria um desvio ao princípio do contraditório, pois aquela teria de pagar definitivamente um valor que poderia eventualmente querer controverter.
12ª - O argumento não procede, pela simples razão de que o expropriante não está obrigado a aceitar nem utilizar a avaliação do perito inicialmente escolhido.
13ª - A liberdade de escolha do perito, pela entidade interessada na expropriação, envolve a de não aceitar essa avaliação e de mandar efetuar  uma ou novas avaliações que possa aceitar.
14ª - Mas se, em vez disso, aceita essa avaliação e, em concordância com ela, fundamenta nessa avaliação a sua resolução de promover a declaração de utilidade pública, o valor alcançado passa a ser da própria expropriante.
15ª - No caso dos autos, o valor do bem previsto e aceite pela entidade expropriante, como fundamento da resolução de requerer a declaração de utilidade pública inibe a expropriante de se prevalecer de outros inferiores,  como sucede com o da arbitragem, porque isso seria uma violação das regras da boa-fé na vertente de venire contra factum proprio.
16ª - Nem se aplica nos autos a Jurisprudência da Relação de Coimbra de 15/2/2005, pois nada tem a ver com o caso dos autos. Nesse douto Acórdão, está em causa a irrelevância do valor proposto pela entidade expropriante em sede de tentativa de expropriação amigável (art, 352 do CE), elo que, falhado o acordo, a proposta não releve para efeitos de fixação da indemnização.
17ª - No caso dos autos o valor que a entidade expropriante depositou obedeceu aos termos imperativos do art, 20, nº 1, al. b), e nº 4, na redação então vigente, e teve a finalidade de indemnizar o prejuízo resultante da evicção decorrente da posse administrativa.
18ª - Por essa razão foi feito à ordem dos expropriados, correspondendo ao montante da avaliação feita por perito da lista oficial da escolha da expropriante que esta aceitou como encargo da expropriação.
19ª - O recebimento desse depósito não depende da prestação de garantia, nem a lei lhe atribui função de garantia, razão por que os expropriados dele podem dispor livremente.
20ª - Desta forma, o valor depositado constitui o montante mínimo da indemnização devida pela expropriação que pode aumentar no processo litigioso subsequente. O que não pode é diminuir.
Disposições violadas: princípios da intangibilidade do caso julgado e da boa-fé na vertente de non venire contra factum proprio; art. 20º, nº 5, al. a) do Código das Expropriações, na redação vigente à data do depósito dos 51 685,00 €.
A expropriante contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
Atento o teor das conclusões, o que há a analisar é se os expropriados terão que restituir à expropriante a diferença entre o montante depositado à luz dos artº/s 10 nº4 e 20 al. B) do CE e o encontrado na decisão proferida no recurso da decisão arbitral.

Para tanto , analisar-se-á as diversas conclusões atinentes a este objecto

a) Violação do caso julgado
Segundo entendimento do apelante estaríamos perante uma violação de caso julgado, uma vez que já teria sido proferido despacho, transitado em julgado, em sentido contrário do impugnado.
Sem aprofundarmos a noção deste instituto jurídico, por demais estudado, diremos o seguinte:
- A consequência prática do caso julgado traduz-se em dar por esgotado um “thema decidendum”. Isto quer estejamos no âmbito da pura relação processual, ou em sede de mérito da causa ( cf. artº/s 619,620 e 621 todos do CPC)
Por isso, só existirão casos julgados contraditórios sobre a mesma pretensão (artº 625 nº1 do CPC), com referência aos indicadores previstos nos artº/s 580 e 581 ,ambos do CPC.
Voltando aos factos …
Nos termos do artº 50 do CE decorrendo o processo perante o Juiz, este notifica o expropriante para proceder ao depósito da indemnização no prazo de 30 dias.
E foi o que sucedeu.
Porém, como a expropriante tinha efectuado o depósito a que alude o nº4 do artº 10 do CE em montante superior ao encontrado no relatório pericial, entendeu que não havia lugar a qualquer depósito complementar; antes pelo contrário , os expropriados deverão ser notificados para restituir o excedente.
E foi sobre este quadro factual e de direito que  foi proferida a decisão a negar qualquer restituição ,por banda dos expropriados.
Posteriormente, e proferida a decisão em 1ª instância, que fixou a indemnização no mesmo montante fixados pelo relatório pericial a impulso do expropriante, os expropriados foram notificados para restituir o excedente.
O que concluir?
 Como é sabido , o processo de expropriação, biparte-se em duas fases distintas:
Uma fase administrativa, promovida pela entidade expropriante, que se inicia com a Declaração de Utilidade Pública – cfr. art. 13º do Código de Expropriações e na qual são realizados pela entidade expropriante os actos necessários á resolução da de expropriar, declaração de utilidade pública, atribuição da natureza de urgência, publicação da declaração de utilidade pública, posse administrativa, que deverá ser antecedida da vistoria “ad perpetuam rei memoriam”.
E uma fase que decorre perante um Tribunal: a fase litigiosa.
Na fase administrativa, e após a declaração de utilidade pública, a entidade expropriante procurará, antes da constituição da arbitragem e mediante um processo de expropriação amigável, obter o acordo dos expropriados e demais interessados – cfr. art. 33.º a 37.º do Código de Expropriações – quanto ao valor a pagar, modo de o efectivar, etc. – cfr. artigo 34.º do Código de Expropriações.
Não sendo obtido acordo – caso dos autos – o valor da indemnização é fixado por arbitragem, com recurso para os tribunais comuns – cfr. artigo 38.º do diploma adrede – cabendo recurso, com efeito meramente devolutivo, para o tribunal do lugar da situação dos bens.
Sendo a arbitragem desencadeada e tramitada perante a entidade expropriante – a arbitragem pode ser efectivada perante o tribunal comum, a pedido do expropriado ou dos demais interessados, por ocorrência de algumas das vicissitudes contidas nas alíneas do artigo 42.º do Código de Expropriações – e uma vez concluída, a entidade expropriante remete o processo ao tribunal da comarca, acompanhado da documentação referida no n.º 1 do artigo 51.º do Código de Expropriações, entre a qual a “guia de depósito à ordem do tribunal do montante arbitrado ou, se for casso disso, da parte em que este exceda a quantia depositada nos termos da al. b) do n.º 1 ou do n.º 5 do artigo 20.º; se não for respeitado o prazo fixado, a entidade expropriante deposita, também juros moratórios correspondentes ao período de atraso, calculados nos termos do n.º 2 do artigo 70.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 71.º e 72.º.”
As regras de pagamento, isto é, o modo como o expropriante há-de cumprir a sua prestação pelo acto “coercivo” de privação do direito de propriedade, encontram-se estabelecidas nos artigos 67.º a 73.º do Código de Expropriações e, para as situações aí contempladas, aplicam-se independentemente da fase em que ocorram.
O processo litigioso, com se alcança do disposto no artigo 38.º citado inicia-se com a falta de acordo, do expropriado e demais interessados, quanto ao valor da indemnização que lhes haja sido proposto/indicado pela entidade expropriante.

A fase administrativa, chamemos-lhe assim por comodidade de arrumação sistémica-estrutural, todos os procedimentos decorrem sob a égide da autoridade administrativa ou privada que promove o procedimento expropriativo.
A lei comina às entidades promotoras a prática e a observância de um ritual procedimentar que por um lado procura disciplinar os procedimentos, conferindo aos expropriados e demais interessados o direito de tomarem conhecimento dos actos tendentes à ablação de um direito de propriedade da sua esfera jurídica. Todos os actos, nesta fase são dirigidos á entidade administrativa que, para validação dos actos procedimentares consecutivos, deve observar e praticar os actos precedentes, como condição da prossecução do processo.
A lei faz depender a investidura da posse administrativa da observância/verificação dos actos elencados no artigo 20.º do Código de Expropriações, entre o que avulta, para o caso que nos ocupa, a obrigação do depósito correspondente ao que a entidade expropriante tem de prevenir quando toma a resolução de expropriar – cfr. artigo 10.º n.º 4 do Código de Expropriações.
Este depósito, como decorre da etiologia do procedimento expropriativo, destina-se a prevenir os encargos que a entidade expropriante computa deverem ter que ser assumidos com a extirpação/amputação do direito de propriedade que projecta vir a efectuar e concretizar e, do mesmo passo, por via da cautela legislativa, salvaguardar o expropriado de eventuais situações de carência económico-financeira da entidade expropriante.
Significa que o depósito a efectuar no procedimento expropriativo tem a função, sentido e alcance que lhe conferimos,
a saber prevenir[1] – terminologia utilizada no n.º 4 do artigo 10.º do Código de Expropriações – eventuais alterações ou depreciações económico-financeiras da entidade expropriante e, correlatamente, preservar e salvaguardar o expropriado e demais interessados da privação da justa indemnização a que tem direito por ablação forçada do direito de propriedade sobre um bem que lhe e retirado da sus esfera jurídica contra a sua vontade ou sem uma adesão voluntária ao acto expropriativo.
Porém, após o terminus da fase administrativa já não se fazem sentir ,de forma tão relevante , as referidas depreciações económico-financeiras da expropriante ,porquanto já foi encontrado um valor no âmbito de procedimentos que salvaguardam as posições de ambas as partes .; daí o disposto no artº 51 nº3 do CE .
Realidade diferente é a encontrada após a decisão judicial .É que foi encontrado um valor indemnizatório ,salvaguardadas  as garantias das partes num processo litigioso, nomeadamente o principio do contraditório, a busca total e completa da realidade factual , quer seja por impulso da parte ,ou de carácter oficioso.
Daí que nesta 2ª Instância se analise toda a tramitação processual e decisões de fundo  a fim de concluir, ou não ,pela sua desconformidade com o quadro legal e nunca para concretizar um outro/ novo  julgamento de facto ,ou de direito.
Posto isto, só podemos concluir que os despachos proferidos assentaram sobre pressupostos bem diversos a suscitar decisões diversas : no primeiro despacho existia uma decisão arbitral e o segundo despacho debruça-se sobre a decisão final da fase litigiosa.
Tendo como assente apenas e tão só a decisão proferida na fase administrativa, o Sr Juiz entendeu não haver lugar à restituição do excedente . Após prolacção da decisão judicial final ,fase litigiosa, o Sr Juiz entendeu haver lugar á restituição.
Consequentemente, as  decisões são diversas ,pelo que não se contrariam e não existe qualquer violação de caso julgado .
B) O valor depositado constituirá o montante mínimo da indemnização devida pela expropriação ,que pode aumentar no processo litigioso subsequente ?   
Uma vez que a decisão judicial fixou a indemnização no valor de € 19.109,73 transitou em julgado , esta última conclusão perdeu o seu efeito útil.
Por isso ,apenas há que observar o preceituado no artº 67 do CE.
Contudo , sempre se dirá que em face das normas processuais ,aqui aplicáveis, o valor final da indemnização será encontrado por via do teor das conclusões formuladas ( artº 639 nº1 CPC) aquando da interposição do recurso da decisão dos srs árbitros na fase administrativa[2]; razão pela qual o valor encontrado na decisão final poderá ser diverso do valor depositado.
Tal  como defende Salvador da Costa, in. Código das Expropriações e Estatuto dos Peritos Avaliadores, pág. 301. a decisão arbitral constitui uma verdadeira decisão judicial proveniente de um tribunal arbitral necessário, aplicando-se por isso ao recurso que incide sobre a mesma o regime dos recursos estabelecido no Código do Processo Civil, com as necessárias adaptações

Síntese: não existe violação do caso julgado, porquanto as decisões referenciadas assentam em pressupostos diversos.
O valor depositado na fase administrativa não corresponde ao valor encontrado na decisão final.
A  decisão arbitral constitui uma verdadeira decisão judicial proveniente de um tribunal arbitral necessário. Em face disto, ao acórdão arbitral aplicando-se, em matéria de recursos, as mesmas normas do CPC.
O poder de cognição do juiz, em caso de recurso, é delimitado pelas alegação do recorrente e decidido no acórdão, que transita em tudo quanto seja desfavorável para a parte não recorrente, envolvendo a falta de recurso concordância com o decidido pelos árbitros.
Pelo exposto, acordam em julgar a apelação improcedente, confirmando-se o despacho impugnado.
            
Lisboa, 30/6/2016

Teresa Prazeres Pais

Carla Mendes

Octávia Viegas

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[1]  Sublinhado nosso
[2]  Cf Ac STJ de 11-12-2012( in DGSI)