Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5001/07.5TBALM.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: ENFITEUSE
USUCAPIÃO
POSSE
EXTINÇÃO
APRESENTAÇÃO
ROL DE TESTEMUNHAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I -No regime processual experimental não é admissível a apresentação da prova testemunhal em momento posterior ao articulado a que respeita.
II–Também denominada aforamento ou emprazamento,a enfiteuse caracteriza-se pelo desmembramento do direito de propriedade em dois domínios, denominados directo e útil; ao titular do domínio directo dá-se o nome de senhorio; ao titular do domínio útil, o de foreiro ou enfiteuta; o principal traço caracterizador da relação entre o senhorio e o foreiro é a obrigação, que impende sobre o foreiro, de pagar anualmente ao senhorio o foro que, se o emprazamento for de prédio urbano ou de chão para edificar, será a dinheiro; a enfiteuse é de sua natureza perpétua, sem prejuízo do direito de remição, nos casos em que é admitido; assim, os contratos que tenham sido celebrados com o nome de emprazamento, aforamento ou enfiteuse, mas estipulados por tempo limitado, são tidos como arrendamentos.
III - A condição de enfiteuta (assim como a de senhorio) pode ser adquirida, além de por meio de contrato e de testamento, por usucapião; assim, adquirirá o domínio útil do imóvel aquele que, sem título bastante, passar a possuir o prédio como enfiteuta, pagando periodicamente o foro ao proprietário, durante período de tempo capaz de fazer atuar essa forma de aquisição de direitos reais.
IV - A enfiteuse foi extinta pelo Dec.-Lei n.º 195-A/76, de 15.3 (quanto aos prédios rústicos) e pelo Dec.-Lei n.º 233/76, de 2.4 (quanto aos prédios urbanos), transferindo-se o domínio directo dos prédios para o titular do domínio útil.
V - A Lei n.º 108/97, de 16.9, que alterou a redação do n.º 5 do art.º 1.º do Dec.-Lei n.º 195-A/76 e lhe aditou um n.º 6, não visou fazer funcionar a usucapião para além do que resultaria do seu regime normal, ou seja, não permite equiparar os arrendamentos de muito longa duração à enfiteuse, dispensando-se qualquer inversão do título da posse e o próprio animus emphyteutae.
VI - Do que se trata é de regular a extinção da enfiteuse e não de quaisquer outras figuras, nomeadamente arrendamentos de longa duração; para os casos de foreiros que não dispõem de títulos mas que estão em condições de invocar a aquisição do domínio útil por via da usucapião, facilita-se a respetiva prova, presumindo-se a sua existência com base na verificação dos factos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 5 do art.º 1.º do Dec.-Lei n.º 195-A/76, com a redação introduzida pela Lei n.º 108/97, de 16.9; presunção essa que é juris tantum e que só opera no pressuposto de que se reporta a uma real situação enfitêutica, que como tal terá de ser alegada.
(JLL)
Decisão Texto Parcial:Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 26.9.2007 A intentou no Tribunal Judicial de Almada, contra Município de …/Câmara Municipal de …, ação declarativa com regime processual experimental, ao abrigo do Dec.-Lei n.º 108/2006, de 8.6.
O A. alegou, em síntese, que há mais de quarenta anos é rendeiro/enfiteuta/cultivador direto das “T…” sitas na freguesia da … da …. O R. comprou, por escrituras de 16.11.71 e 17.3.72, a chamada “…”, vulgo “…”. O A. aí trabalha a terra e fez benfeitorias, nomeadamente construindo edificações, de que é proprietário e pagando renda. O A. adquiriu a propriedade das ditas parcelas de terreno por usucapião e acessão industrial, devendo o R. reconhecer-lhe tal direito.
O A. terminou pedindo que a ação fosse julgada procedente por provada e em consequência:
a) Se declarasse ser o A. a legítimo proprietário das parcelas e edificações dos autos;
b) Se condenasse o R. a reconhecer tal direito e a abster-se de quaisquer atos turbadores do seu exercício;
Mais pediu que, “em consequência”:
1. Se declarasse ser o A. legítimo enfiteuta/rendeiro/utilizador possuidor dos seus invocados direitos e
2. Se condenasse o R. a reconhecer ao A. os referidos direitos e, por via desse reconhecimento, declarar judicialmente a enfiteuse, por usucapião, seguindo-se, depois, os trâmites legais relativos à extinção da enfiteuse em causa, colocando o A. na situação de pleno proprietário, radicando a propriedade plena no enfiteuta, na linha expressamente confirmada pela Constituição.
O R. contestou, negando os factos alegados pelo A. e concluindo pela improcedência da ação, por não provada e consequente absolvição do pedido.
Em 09.6.2008 foi proferido despacho em se absolveu o R. da instância, por ilegimidade processual passiva.
O A. agravou desse despacho e em 05.3.2009 o Tribunal da Relação revogou-o, determinando que os autos prosseguissem a sua normal tramitação.
Foi proferido saneador tabelar e procedeu-se à seleção da matéria de facto assente e controvertida.
Por despacho de 09.10.2009 foi rejeitado o rol de testemunhas entretanto apresentado pelo R., por ser extemporâneo face ao disposto no art.º 8.º n.º 5 do Dec.-Lei n.º 108/06, de 08.6.
O R. agravou deste despacho, o qual foi recebido com subida diferida.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento e em 13.06.2011 foi proferida sentença em que se julgou a ação procedente por provada e, em consequência, julgou-se procedente o pedido formulado e declarou-se o direito de propriedade da A. sobre a parcela “acima identificada”, condenando-se o R. a reconhecer esse direito.
Em 01.07.2011 a R. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:(…)
Não houve contra-alegações.
Por despacho do relator o tribunal a quo pronunciou-se acerca das nulidades imputadas à sentença, pugnando pela sua não ocorrência.
A convite do relator o apelante afirmou manter interesse no recurso de agravo interposto.
Foram colhidos os vistos legais.
Primeiramente há que apreciar o agravo interposto, o qual provém do apelante (n.º 1 do art.º 710.º do CPC de 1961, na redação anterior à introduzida pelo Dec.-Lei n.º 303/2007 - artigos 11.º n.º 1 do Dec.-Lei n.º 303/2007 e 7.º n.º 1 da Lei n.º 41/2013, de 26.6).
Na alegação do agravo o agravante terminou com as seguintes conclusões:(…)
Não houve contra-alegações.
FUNDAMENTAÇÃO
A questão objeto deste recurso é se o tribunal a quo deveria ter admitido o rol de testemunhas apresentado pelo R..
Na apreciação do recurso há que levar em consideração o seguinte
Factualismo
Contrariamente à A., que arrolou testemunhas juntamente com a petição inicial, o R. não indicou testemunhas aquando da apresentação da contestação.
O Direito
A presente acção foi instaurada ao abrigo do Dec.-Lei nº 108/2006, de 8 de Julho, o qual instituiu um regime processual experimental (RPE) aplicável a ações declarativas cíveis a que não corresponda processo especial, a vigorar transitoriamente em apenas alguns tribunais, entre os quais os Juízos de Competência Especializada Cível do Tribunal da Comarca de Almada (art.º 21º nº 1 do Dec.-Lei nº 108/2006 e Portaria nº 955/2006, de 13.9).
Subsidiariamente aplicam-se ao aludido regime as disposições gerais e comuns do Código de Processo Civil e, naquilo que aí não vier regulado, o estabelecido para o processo ordinário no referido Código (seja por via do disposto no art.º 463.º n.º 1 do CPC, por se qualificar o RPE como um processo especial – neste sentido, Mariana França Gouveia, “Regime processual experimental anotado”, Almedina, 2006, pág. 25; Salvador da Costa, “A injunção e as conexas acção e execução”, Almedina, 6ª edição, pág. 41; Luís Filipe Brites Lameiras, “Comentário ao regime processual experimental”, Almedina, 2007, pág. 39; Sónia Alexandra Sousa de Moura, “Breve excurso sobre o regime processual experimental”, Boletim Informação & Debate, V série, nº 5 (Dezembro 2007), Associação Sindical dos Juízes Portugueses, pág. 136; seja por se entender que tal processo, embora comum, deve ser integrado, nas suas lacunas, na falta de disposições do Código de Processo Civil sobre a ação em geral, pelo processo ordinário, por este ser o padrão da ação declarativa – neste sentido, Luís Carvalho Ricardo, “Regime Processual Civil Experimental anotado e comentado”, Cejur, Julho 2007, páginas 7 a 9; António José Fialho, “Simplificação e gestão processual”, in “Regime Processual Civil Experimental”, Conferência na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 16 de Outubro de 2007, Cejur, pág. 68).
Na falta de normas específicas no regime processual experimental, deve procurar-se, pois, no Código de Processo Civil as regras que preencham as lacunas ali existentes.
Ora, no que concerne ao momento da apresentação da prova existem no regime processual experimental normas específicas, as quais, aliás, constituem uma das inovações que o legislador entende serem basilares e que, assim, assumirão natureza imperativa. Falamos do disposto no art.º 8.º, n.º 5, do Dec.-Lei n.º 108/2006, que tem a seguinte redação:
Com os articulados, devem as partes requerer a gravação da audiência final ou a intervenção do colectivo, apresentar o rol de testemunhas e requerer outras provas, indicando de forma discriminada os factos sobre os quais recaem a inquirição de cada uma das testemunhas e a restante produção de prova, podendo a parte a quem é oposto o último articulado admissível alterar, nos 10 dias subsequentes à respectiva notificação, o requerimento probatório anteriormente apresentado.
O relevo dado pelo legislador a esta inovação face ao regime geral então contido no CPC (cfr. art.º 512.º do CPC de 1961) está evidenciado no Preâmbulo do diploma:
Com ganhos evidentes para a celeridade do processo, impõe-se a apresentação do requerimento probatório com os articulados, garantindo à parte a quem for oposto o último articulado admissível um prazo suplementar de 10 dias para alterar o seu requerimento probatório, sem prejuízo da faculdade, que permanece intocada, de adicionar ou alterar o rol de testemunhas até 20 dias antes do início da audiência final.
O ónus supra referido só faz sentido se o seu não cumprimento implicar a sanção respetiva, que é a não admissão da prova testemunhal apresentada em momento posterior ao articulado a que respeita.
De resto, conforme consta da nota de citação junta a fls 105, o R. foi citado com a expressa advertência de que, com a contestação, deveria “apresentar o rol de testemunhas e requerer outras provas, de acordo com o n.º 5 do art.º 8.º do DL 108/2006.”
O facto de, conforme alega o agravante, eventualmente terem sido praticados no processo atos com formalidade distinta da prevista no regime experimental (sem recurso aos meios eletrónicos previstos no art.º 3.º) poderá acarretar a irregularidade desses atos, a ser arguida no momento oportuno, mas não faz transmudar a forma processual devida e fixada numa outra que não a imposta pelo legislador.
Face ao exposto, já esmiuçadamente analisado por esta Relação e secção em processo idêntico (acórdão de 14.01.2014, processo 4583/07.6TBALM.L2-2, consultável in www.dgsi.pt), entende-se que o agravo não merece provimento, devendo manter-se o despacho recorrido.
Apelação
FUNDAMENTAÇÃO
As questões suscitadas neste recurso são as seguintes: nulidades da sentença recorrida; impugnação da matéria de facto; aquisição da propriedade do imóvel por via da enfiteuse.
Primeira questão (nulidades da sentença)
Como se disse supra, uma vez que o presente processo teve o seu início em 2007 e a sentença recorrida foi proferida em 2011, aplica-se-lhe o CPC de 1961, com a redação anterior à introduzida pelo Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24.8 (artigos 11.º n.º 1 do Dec.-Lei n.º 303/2007 e 7.º n.º 1 da Lei n.º 41/2013, de 26.6).
O apelante começa por defender que a sentença recorrida incorre na nulidade prevista na alínea e) do n.º 1 do art.º 668.º do CPC, porquanto teria condenado o apelante em algo diverso do que fora peticionado pelo A.. Norma esta que se articula com o previsto no art.º 661.º n.º 1 do CPC: “A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.” O tribunal apenas atua a pedido das partes, resolvendo litígios que por elas lhe sejam apresentados (art.º 3.º n.º 1 do CPC), pronunciando-se sobre o concreto pedido que lhe for dirigido (cfr. artigos 467.º n.º 1, alínea e), 193.º n.º 2, 268.º, 272.º, 273.º do CPC).
In casu, o A. pediu que se declarasse que ele, A., era o legítimo proprietário das parcelas e edificações dos autos e se condenasse o R. a reconhecer tal direito e a abster-se de quaisquer atos turbadores do seu exercício; pedido esse que o A. compaginou com a pretensão do reconhecimento de ser o A. legítimo enfiteuta/rendeiro/utilizador possuidor dos seus invocados direitos e se condenasse o R. a reconhecer ao A. os referidos direitos e, por via desse reconhecimento, declarar judicialmente a enfiteuse, por usucapião, seguindo-se, depois, os trâmites legais relativos à extinção da enfiteuse em causa, colocando o A. na situação de pleno proprietário, radicando a propriedade plena no enfiteuta, na linha expressamente confirmada pela Constituição.
Ou seja, o A. pretendeu o reconhecimento da titularidade do direito de propriedade do imóvel em questão, com base na aquisição, por usucapião, da situação de enfiteuta e do regime legal de extinção da enfiteuse.
Ora, o tribunal a quo reconheceu a alegada aquisição da enfiteuse por usucapião e declarou o A. proprietário da parcela em questão, por concentração na sua titularidade dos domínios directo e útil, atento o disposto no art.º 1.º do Dec.-Lei n.º 195-A/76, de 16.3, concluindo com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, julga-se a presente acção procedente por provada e, em consequência, decide-se julgar procedente o pedido formulado e declara-se o direito de propriedade do A. sobre a parcela acima identificada, condenando-se o réu a reconhecer esse direito.”
Não se vislumbra que a sentença se desvie do que fora pedido ao tribunal. Improcede, pois, esta arguição de nulidade.
A outra nulidade invocada pelo apelante é a prevista na alínea c) do n.º 1 do art.º 668.º do CPC, ou seja, contradição entre os fundamentos e a decisão.
O vício aqui considerado pela lei consiste numa evidente contradição lógica: na fundamentação da sentença o juiz segue uma determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide noutro sentido, oposto ou divergente (cfr. Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 704). Não cabem aqui o erro na interpretação do sentido dos factos apurados, na subsunção dos factos à norma jurídica ou o erro na interpretação desta. Também não cabe aqui o erro na valoração e apreciação da prova. Em todos estes casos haverá erro de julgamento, de facto ou de direito, fundador da impugnação quanto ao mérito da decisão.
Ora, in casu, o apelante não invoca qualquer vício de raciocínio lógico, mas erro de julgamento, por entender que os factos provados ou de que o tribunal a quo podia conhecer não permitiam fundar a procedência da ação. Esse vício, conforme exposto, não constitui a nulidade invocada, mas erro de julgamento, a apreciar na análise, que se fará adiante, do mérito da ação.
Improcede, pois, também esta vertente do recurso.
Segunda questão (impugnação da matéria de facto)
O tribunal a quo deu como provada a seguinte
Matéria de facto
1. Por escrituras públicas de compra e venda em 16/11/1971 e 17/03/1972, o Réu adquiriu a particulares a chamada “…”, vulgo “…”, com a área de 67.587,75 m2 e 270.350,00 m2, respectivamente descritas na Conservatória do Registo Predial de … sob os nº 757, 761, 765, 767, 783, 15467, 15468, 790, 15473 e 15472, freguesia da …., concelho de … – Alínea A) da matéria de facto assente.
2. À data existiam explorações agrícolas nos terrenos referidos em 1. – Alínea B) da matéria de facto assente.
3. Em 17 de Julho de 1972, o Réu dirigiu aos cultivadores das referidas terras cartas registadas com A/R para entregarem a mesmas em 30 de Setembro seguinte – Alínea C) da matéria de facto assente.
4. Os cultivadores não entregaram as terras por considerarem que as podiam reter até serem pagos dos melhoramentos que nelas fizeram – Alínea D) da matéria de facto assente.
5. O A., há mais de quarenta anos e os seus antecessores há mais de cem anos, através de acordo verbal celebrado com os anteriores proprietários, têm vindo a explorar e cultivar directamente o talhão nº 22, inserido no lote 1, grupo A, do prédio referido em 1. supra, com a área total de 17.310 m2, com a área de construção de 257 m2 – artigo 1º da Base Instrutória.
6. Pelo pagamento da contrapartida anual de 7,00 – artigo 2º da Base Instrutória.
7. Aos olhos de todos, pacificamente, sem oposição de ninguém e com autorização do R. – artigo 3º da Base Instrutória.
8. A mencionada parcela confronta:
Norte - com talhão 16 e …;
Sul - com talhão 21 e 23;
Este - com arriba fóssil;
Oeste - com caminhos municipais de acesso – artigo 4º da Base Instrutória.
9. Pelo acesso às Terras da Costa passam bicicletas, motorizadas, camionetas carregadas de adubos e detritos orgânicos, quaisquer materiais para obras ou trabalhos e o produto agrícola para ser vendido nos mercados da …, … e … – artigo 5º da Base Instrutória.
10. B, antecessor do Autor, fez na referida parcela as edificações aí existentes e plantou árvores – artigo 6º da Base Instrutória.
11. É o Autor quem, há mais de 40 anos, explora e cultiva a referida parcela – artigo 7º da Base Instrutória.
12. Desde a mencionada altura os produtos agrícolas cultivados na parcela pelo Autor são vendidos diariamente, durante todo o ano, nos mercados dos concelhos de … e … – artigo 8º da Base Instrutória.
13. Existe um caminho bicentenário que dá acesso à referida parcela com entrada proibida a estranhos e feito pelos antecessores do Autor – artigo 9º da Base Instrutória.
14. Exclusivamente afecto à actividade do Autor e utilizado por si – artigo 10º da Base Instrutória.
15. E que dá acesso à via pública – artigo 11º da Base Instrutória.
16. O A. comunicou ao R. que não aceitava o facto referido em 3. – artigo 12º da Base Instrutória.
17. Durante os últimos 40 anos o Autor erigiu edificações para habitação e apoio à sua actividade agrícola na parcela referida em 1 – artigo 13º da Base Instrutória.
18. No que o R. nunca interferiu – art.º 14º da Base Instrutória.
19. E aí habita numa casa – artigo 15.º da Base Instrutória.
20. E já lá habitavam os seus ascendentes falecidos – artigo 16.º da Base Instrutória.
21. De acordos com os valores praticados na zona, para terrenos agrícolas, a parcela aqui em causa tem um valor de cerca de € 78 000,00 – artigo 17º da Base Instrutória.
22. De acordo com os critérios de valor de construção por m2, para o concelho de …, as edificações instaladas na parcela dispõem do valor de 105.000,00 – artigo 18º da Base Instrutória.
O Direito
A modificabilidade da decisão de facto pela Relação está regulada no art.º 712.º do Código de Processo Civil (de 1961, na redação anterior à introduzida pelo Dec-Lei n.º 303/2007). Nos termos desse artigo, a Relação pode alterar a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
Nos termos do art.º 690.º-A do Código de Processo Civil, quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
O apelante insurge-se contra a matéria dada como provada na alínea C) da especificação, transcrita como n.º 3 da matéria de facto provada, assim como contra a resposta dada aos quesitos 1.º, 2.º, 3.º, 12.º, 17.º e 18.º da base instrutória. Entende que na alínea C) da especificação se omitiu matéria que deveria ser dada como provada, com base em documentação junta aos autos, e que não deveria ser dada como provada a matéria dos restantes quesitos impugnados, invocando para o efeito prova documental e testemunhal, neste último caso para infirmar a sua relevância.
Vejamos.
O n.º 3 da matéria de facto, correspondente à alínea C) da especificação, tem a seguinte redação:
Em 17 de Julho de 1972, o Réu dirigiu aos cultivadores das referidas terras cartas registadas com A/R para entregarem as mesmas em 30 de Setembro seguinte”.
O apelante pretende que se acrescente a este item que as terras eram arrendadas, invocando para tal o que consta das alíneas c) e g) do documento n.º 13, junto com a petição inicial e as alíneas c) e dd) do n.º 36 da petição inicial.
Na alínea c) do art.º 36.º da petição inicial o A., reportando-se ao que foi dado como especificado num outro processo judicial, que aceitou como verdadeiro, afirmou que “os rendeiros/enfiteutas, por si ou por seus antecessores celebraram contratos de arrendamento verbais, com início em 1 de Outubro e termo em 30 de Setembro seguinte, renovável, com um anterior proprietário, C, das áreas que se indicam nas alíneas c) a dd), com as rendas nelas também referidas, há mais de 70 anos.” Mais refere, na alínea dd) desse artigo 36.º, como sendo um dos ditos rendeiros/enfiteutas, “B, terra n.º 22, com a área total de 17 480 m2, pela renda anual de 1 400$00.”
Ora, tais afirmações foram impugnadas pelo R. na sua contestação (artigos 4.º e 5.º). Por sua vez o documento n.º 13 junto com a petição inicial (fls 81 a 89) é uma fotocópia simples do que aparenta ser um despacho saneador, com especificação e questionário, de um processo que correu os seus termos no Tribunal Judicial de … Na alínea c) da dita especificação consta o seguinte: “Os réus, por si ou por antecessores celebraram contratos de arrendamento verbais, com início em 1 de Outubro e termo em 30 de Setembro seguinte, renováveis, com um anterior proprietário, C, das áreas que se indicam nas alíneas e) a p´), com as rendas também referidas, há mais de 30 anos.” E na alínea g´) consta o seguinte: “B, terra n.º 22, com a área total de 17 480 m2, pela renda anual de 1 400$00”.
Ora, é evidente que o teor de tal documento, pertencente a um processo judicial cujas partes se ignora quais foram e cujo desfecho final também se ignora, não tem qualquer força probatória neste processo.
Daí que, a nosso ver, não procedem as razões invocadas pelo apelante para o pretendido alargamento do teor do n.º 3 da matéria de facto.
Quanto ao quesito 1.º, que corresponde ao n.º 5 da matéria de facto, o tribunal a quo deu como provado que “O A. há mais de quarenta anos e os seus antecessores há mais de cem anos, através de acordo verbal celebrado com anterior proprietário, têm vindo a explorar e cultivar directamente o talhão nº 22 inserido no lote 1 grupo A, do prédio referido em 1. supra, com a área total de 17.310 m2 e com área de construção de 257 m2”.
A identificação da parcela e sua caracterização foram feitas na audiência de discussão e julgamento pela testemunha D, agente técnico de arquitetura e engenharia, que fez a avaliação junta a fls 642 a 668 dos autos. Quanto ao restante factualismo dado como provado neste quesito, as testemunhas E e F demonstraram no julgamento conhecerem perfeitamente o Autor e a sua família, incluindo os seus pais e os seus avós, confirmando a sua presença permanente no aludido terreno, o qual, como todos os da …, também ocupados pelas testemunhas, pertenciam a um tal Cardoso, que os arrendou aos familiares/antecessores das testemunhas e do A., que por elas pagavam uma renda anual, no final de Setembro de cada ano. Depois, narraram as testemunhas, a família Cardoso vendeu as terras à Câmara Municipal de …, em 1971 e em 1972, e de seguida a Câmara intimou os agricultores a abandonarem as terras, o que estes recusaram. A Câmara não quis receber as rendas, pelo que passaram a depositá-las na Caixa Geral de Depósitos. Todos estes depoimentos foram prestados de forma serena e que nos pareceu verdadeira, no que diz respeito a estes aspetos. Quanto à duração da dita exploração pelo próprio A., que na petição inicial, apresentada em setembro de 2007, se afirmou durar há mais de 40 anos, efetivamente é caso para duvidar, uma vez que na audiência de julgamento, realizada em janeiro de 2011, as testemunhas afirmaram que o A. tem “quarenta e tal anos”, tendo a testemunha F precisado que o A. tinha, nessa data, 47 anos. Ora, se em 2011 o A. tinha 47 anos, na altura da propositura da ação teria à volta de 43 anos. É, assim, impossível que o A. explorasse a dita parcela havia mais de 40 anos. Nesta parte cremos, pois, ser de alterar a matéria de facto, dando como provado que o A. “há mais de 20 anos…”, mantendo o restante dado como provado.
Tal implica a concomitante alteração dos n.ºs 11 e 17 da matéria de facto, correspondentes aos quesitos 7.º e 13.º, que passarão a referir-se a “20 anos”, onde antes se escrevera 40 anos.
No mais, não julgamos haver motivos para alterar a decisão de facto, nesta parte.
No art.º 2.º da base instrutória, correspondente ao n.º 6 da matéria de facto, dá-se como provado o seguinte: “Pelo pagamento da contrapartida anual de 7,00”.
A testemunha F afirmou saber que o valor da renda paga pelo A. era de € 7,00, anteriormente 1400 escudos, a qual era paga no final de todos os meses de setembro ao Sr. Cardoso, anterior proprietário, e depois passaram a ser depositadas na CGD. Segundo esta testemunha, cujo depoimento pareceu sincero, as rendas pagas pelos diversos agricultores não eram todas iguais, variando consoante o tamanho do terreno.
É certo que não foi apresentado nenhum documento comprovativo do depósito das rendas na CGD. Mas também é certo que, recusando-se a dada altura o alegado credor a receber rendas, o devedor não é obrigado a depositá-las. Assim, o que permanece é a prova de que o aludido terreno era explorado mediante uma contrapartida (que era uma renda), ultimamente no valor de € 7,00.
Entende-se, pois, que também aqui se deve manter a resposta positiva dada ao quesito.
No quesito 3.º, correspondente ao n.º 7 da matéria de facto, deu-se como provado o seguinte: “Aos olhos de todos, pacificamente, sem oposição de ninguém e com autorização do R.
Afigura-se-nos que não foi produzida prova cabal da pretensa autorização por parte da Câmara. De facto, uma vez provado que em julho de 1972 a Câmara intimou os agricultores para largarem as terras, nada nos autos denotou que a posição oficial do Município se alterou. A própria testemunha F reconheceu que, no seu caso, “tem sido um inferno”, embora não no caso do A.. Por sua vez a testemunha G, engenheiro agrónomo, depôs sobre o litígio que desde os finais dos anos 60, inícios dos anos 70, opõe a CML e os agricultores das …, o que não se harmoniza com uma situação de autorização da presença do A., incluindo a realização de edificações, na aludida parcela. Ora, face ao exposto, não se vê que haja base probatória suficiente para sustentar este segmento da matéria de facto.
Assim, o n.º 7 da matéria de facto, correspondente ao art.º 3.º da base instrutória, passará a ter a seguinte redação:
Aos olhos de todos, pacificamente.”
O quesito 12.º da base instrutória, correspondente ao n.º 16 da matéria de facto, tem a seguinte redação: “O A. comunicou ao R. que não aceitava o facto referido em 3.”
Quanto a este facto, nenhuma testemunha demonstrou ter conhecimento em concreto do mesmo. De resto, o facto referido em 3 data de 1972, ocasião em que o A. teria cerca de oito anos de idade.
Como mais nenhuma prova foi aduzida sobre este ponto, entendemos que deve ser eliminado da matéria de facto.
Pelo exposto, elimina-se da matéria de facto o n.º 16, correspondente ao quesito 12.º
Os n.ºs 21 e 22 da matéria de facto, correspondentes aos quesitos 17.º e 18.º da base instrutória, têm a seguinte redação:
21. De acordo com os valores praticados na zona, para terrenos agrícolas, a parcela aqui em causa tem um valor de cerca de € 78 000,00.
22. De acordo com os critérios de valor de construção por m2, para o concelho de …, as edificações instaladas na parcela dispõem do valor de 105.000,00.
O tribunal a quo aceitou os valores supra referidos, que foram defendidos pela testemunha D na audiência de julgamento e se sustentaram na avaliação constante a fls 642 a 668. Não foi produzida prova contrária, tanto mais que o apelante se limita a invocar, para o valor do terreno, o “conhecimento público” e para o valor das benfeitorias, um “valor de mercado” que não concretizou.
Também nesta parte se mantém, pois, a matéria de facto.
Em suma, altera-se a matéria de facto nos seguintes termos:
O n.º 5 da matéria de facto passa a ter a seguinte redação:
O A. há mais de vinte anos e os seus antecessores há mais de cem anos, através de acordo verbal celebrado com anterior proprietário, têm vindo a explorar e cultivar directamente o talhão nº 22 inserido no lote 1 grupo A, do prédio referido em 1. supra, com a área total de 17.310 m2 e com área de construção de 257 m2”.
O n.º 7 da matéria de facto passa a ter a seguinte redação:
Aos olhos de todos, pacificamente”.
O n.º 11 da matéria de facto passa a ter a seguinte redação:
É o Autor quem, há mais de 20 anos, explora e cultiva a referida parcela.
Elimina-se da matéria de facto o n.º 16.
O n.º 17 da matéria de facto passa a ter a seguinte redação:
Durante os últimos 20 anos o Autor erigiu edificações para habitação e apoio à sua actividade agrícola na parcela referida em 1”.
Terceira questão (aquisição da propriedade do imóvel por via da enfiteuse)
A enfiteuse, figura dominial com raízes no direito romano, foi expressamente regulada no Código Civil de Seabra e manteve-se no Código Civil de 1966, que assumiu claramente a sua natureza de direito real, inserindo-a no Livro III, atinente ao Direito das Coisas. Foi extinta pelo Dec.-Lei n.º 195-A/76, de 15.3 (quanto aos prédios rústicos) e pelo Dec.-Lei n.º 233/76, de 2.4 (quanto aos prédios urbanos).
Também denominada aforamento ou emprazamento, a enfiteuse, na conceção clássica adotada pelo legislador de 1966, caracteriza-se pelo desmembramento do direito de propriedade em dois domínios, denominados directo e útil (art.º 1491.º do Código Civil). O prédio sujeito ao regime enfitêutico pode ser rústico ou urbano e tem o nome de prazo (n.º 2 do art.º 1491.º). Ao titular do domínio directo dá-se o nome de senhorio; ao titular do domínio útil, o de foreiro ou enfiteuta (n.º 3 do art.º 1492.º). O principal traço caracterizador da relação entre o senhorio e o foreiro é a obrigação, que impende sobre o foreiro, de pagar anualmente ao senhorio o foro (alínea a) do art.º 1499.º), que, se o emprazamento for de prédio urbano ou de chão para edificar, será a dinheiro (n.º 2 do art.º 1502.º). A enfiteuse é de sua natureza perpétua, sem prejuízo do direito de remição, nos casos em que é admitido (n.º 1 do art.º 1492.º). Assim, os contratos que tenham sido celebrados com o nome de emprazamento, aforamento ou enfiteuse, mas estipulados por tempo limitado, são tidos como arrendamentos (n.º 2 do art.º 1492.º).
A natureza real do direito do foreiro é patente: o foreiro tem o direito de usar e fruir o imóvel como se fosse o seu (único) proprietário (art.º 1501.º alínea a)), o poder de hipotecar o seu direito (art.º 688.º, n.º 1, alínea b)), a faculdade de constituir ou extinguir servidões ou o direito de superfície (art.º 1501.º alínea b)), o direito real de preferência na venda ou dação em cumprimento do domínio directo (art.º 1501.º, alínea d)), o direito de remição do foro (art.º 1501.º, alínea f)), beneficia da consolidação do domínio pela falta de pagamento do foro por 20 anos (art.º 1513.º alínea d)). Por outro lado, a condição de enfiteuta (assim como a de senhorio) pode ser adquirida, além de por meio de contrato e de testamento, por usucapião (artigos 1497.º e 1498.º).
Assim, adquirirá o domínio útil do imóvel aquele que, sem título bastante, passar a possuir o prédio como enfiteuta, pagando periodicamente o foro ao proprietário, durante período de tempo capaz de fazer atuar essa forma de aquisição de direitos reais (art.º 1287.º do Código Civil).
A posse é, conforme a define o legislador (art.º 1251.º do Código Civil), “o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.”
A posse reporta-se ao exercício de um direito real (em regra, de gozo). Assim, aqueles que usam ou gozam a coisa ao abrigo de um direito creditício, obrigacional, são meros detentores, pois possuem a coisa em nome de outrem, o titular do direito real (artigo 1253.º alínea c) do Código Civil), a quem terão de restituir a coisa uma vez terminado o prazo ou a causa legal da detenção. São, pois, possuidores precários (Moitinho de Almeida, “Restituição de posse e ocupações de imóveis”, Coimbra Editora, 5ª edição, páginas 59 e seguintes).
Conforme enuncia o art.º 1290.º, “os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título.” A inversão do título da posse “pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse” (art.º 1265.º do Código Civil).
A posse pressupõe a atuação de um poder sobre a coisa, com o intuito ou convencimento de se ser titular de um determinado direito real sobre a mesma. O sentido do agir humano passa pela determinação da representação ou intenção que a ele preside. Daí que, a nosso ver, como é entendimento tradicional, a posse pressupõe a reunião de dois elementos, o “corpus” (atuação de facto sobre a coisa) e o “animus” (intenção de dominar a coisa como titular de um direito real correspondente), sendo que é este segundo elemento que dá sentido à atuação material do detentor, conferindo-lhe a qualidade de possuidor (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, volume III, Coimbra Editora, anotação ao art.º 1251.º).
Conforme se adiantou supra, na sequência do 25 de abril de 1974, a enfiteuse foi extinta. Segundo se fez constar no Preâmbulo do Dec.-Lei n.º 195-A/76, de 16.3, quis-se liquidar relações que impunham a dezenas de milhares de pequenos agricultores encargos e obrigações que se considerava corresponderem a puras sequelas institucionais do modo de produção feudal. Nos termos do n.º 1 do art.º 1.º do diploma, a enfiteuse a que se achavam sujeitos os prédios rústicos era imediatamente abolida, transferindo-se o domínio directo deles para o titular do domínio útil. O titular do domínio directo que fosse pessoa singular e tivesse rendimento mensal inferior ao salário mínimo nacional seria indemnizado pelo Estado, consistindo a indemnização no pagamento anual, vitalício, de uma quantia em dinheiro igual a doze vezes a diferença entre o salário mínimo nacional e o seu rendimento mensal ou no pagamento do valor do foro quando este fosse inferior àquela quantia (art.º 2.º).
Quanto à abolição da enfiteuse relativa a prédios urbanos, o senhorio teria direito a uma indemnização equivalente ao que seria o preço da remição do foro, devida pelo enfiteuta (art.º 2.º do Dec.-Lei n.º 233/76, de 2.4).
Tais diplomas anteciparam-se à Constituição da República Portuguesa que, nesse mesmo ano de 1976, no seu artigo 101.º, proclamava que “serão extintos os regimes de aforamento e colonia e criadas condições aos cultivadores para a efectiva abolição do regime da parceria agrícola” (n.º 2 do art.º 101.º; atualmente, art.º 96.º n.º 2 da CRP).
A Lei n.º 22/87,de 24.6, introduziu algumas alteração ao Dec.-Lei n.º 195-A/76. Tendo em vista a situação dos foreiros que não dispunham de título, acrescentou-se ao art.º 1.º um n.º 4, com a seguinte redação:
No caso de não haver registo anterior nem contrato escrito, o registo de enfiteuse poderá fazer-se com base em usucapião reconhecida mediante justificação notarial ou judicial.”
E, desenvolvendo este mecanismo de reconhecimento da constituição da enfiteuse por força da usucapião, acrescentou-se ainda um n.º 5, com a seguinte redação:
Considera-se que a enfiteuse se constitui por usucapião se quem alegar a titularidade do domínio útil provar por qualquer modo:
a) Que em 16 de Março de 1976 tinham decorrido os prazos de usucapião previstos na lei civil;
b) Que pagava uma prestação anual ao senhorio;
c) Que as benfeitorias realizadas pelo interessado, contitular ou seus antecessores na posse do prédio ou parcela foram feitas na convicção de exercer direito próprio como enfiteuta;
d) Que as benfeitorias, à data da interposição da acção, têm um valor de, pelo menos, metade do valor da terra no estado de inculta, sem atender à sua virtual aptidão para a urbanização ou outros fins não agrícolas.
Estas alíneas, cumulativas (expresso nesse sentido era o Projecto de Lei n.º 343/IV, publicado no DAR, II série, n.º 33, de 23.01.1987, pág. 1616), adicionavam um requisito ao reconhecimento da enfiteuse assente na usucapião, que era a introdução no prédio de benfeitorias de um determinado valor.
A Lei n.º 108/97, de 16.9, alterou a redação do n.º 5 do art.º 1.º do Dec.-Lei n.º 195-A/76 e aditou-lhe um n.º 6.
O n.º 5 citado passou a ter a seguinte redação:
Considera-se que a enfiteuse se constituiu por usucapião se:
a) Desde, pelo menos, 15 de Março de 1946 até à extinção da enfiteuse o prédio rústico, ou a sua parcela, foi cultivado por quem não era o proprietário com a obrigação para o cultivador de pagamento de uma prestação anual ao senhorio;
b) Tiverem sido feitas pelo cultivador ou seus antecessores no prédio ou sua parcela benfeitorias, mesmo que depois de 16 de Março de 1976, de valor igual ou superior a, pelo menos, metade do valor do prédio ou da parcela, considerados no estado de incultos e sem atender a eventual aptidão para urbanização ou outros fins não agrícolas.”
O n.º 6 aditado tem a seguinte redação:
Pode pedir o reconhecimento da constituição da enfiteuse por usucapião quem tenha sucedido ao cultivador inicial por morte ou por negócio entre vivos, mesmo que sem título, desde que as sucessões hajam sido acompanhadas das correspondentes transmissões da posse.”
Com estas alterações quis-se, conforme se realça no Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e no Relatório e parecer da Comissão de Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas, respeitantes ao Projecto de Lei n.º 132/VII, que deu origem à Lei n.º 108/97 (publicados no DAR, II série-A, n.º 19, 08.2.1997, páginas 298 e 299), fazer face às dificuldades acrescidas que, afinal, a Lei n.º 22/87 criara aos foreiros, ao adensar os requisitos de que dependia o reconhecimento da aquisição da enfiteuse por usucapião, mantendo condições de prova pelo titular do domínio útil que estes não conseguiam ultrapassar, por respeitarem a factos que, por serem muito antigos, não eram possíveis de provar. Daí que, para ultrapassar as dificuldades mencionadas, se tivesse criado “um quadro de presunções legais que facilitem à parte mais débil a prova do seu direito.” Assim, considerar-se-á que a enfiteuse se constituiu por usucapião sem necessidade de prova que não seja do facto de o prédio rústico ou parcela em causa ser cultivado por quem não era proprietário, desde pelo menos 15 de Março de 1946 até à extinção da enfiteuse, com a obrigação para o cultivador do pagamento de uma prestação anual ao senhorio e desde que tenham sido feitas pelo cultivador ou seus antecessores benfeitorias de valor igual ou superior a, pelo menos, metade do valor do prédio ou da parcela considerados no estado de incultos e sem atender a eventual aptidão para urbanização ou outros fins não agrícolas.
No parecer que foi junto a estes autos pelo A. (fls 126 a 201 dos autos), o Prof. Menezes Cordeiro defende que, com estas alterações, se pretende fazer funcionar a usucapião para além do que resultaria do seu regime normal. Segundo o ilustre jurisconsulto, o preceito em jogo vem permitir equiparar os arrendamentos de muito longa duração à enfiteuse, desde que tenha havido benfeitorias consideráveis, devidamente quantificadas. Dispensa-se qualquer inversão do título e o próprio animus emphyteutae (fls 72 do parecer).
Nas mesmas águas navegou a sentença recorrida.
Contra tal interpretação da lei se insurgem o Prof. Gomes Canotilho e o Dr. Abílio Vassalo Abreu, em parecer junto pelo R. (fls 688 a 998 dos autos). Estes ilustres juristas, após salientarem que só é histórica e dogmaticamente possível, e inteligível, falar de usucapião quando há posse, e posse em nome próprio, entendem que carece de sentido contrapor o “regime normal” da usucapião – ou seja, o constante dos artigos 1287.º e seguintes do Código Civil – a uma pretensa “modalidade específica de usucapião”, na qual não se exige sequer que haja posse, mas apenas o que se designa de “indícios” de usucapião, que seriam os factos correspondentes às duas alíneas do n.º 5 do art.º 1.º do Dec.-Lei n.º 195-A/76. Reforçando esta ideia, escrevem mesmo que “constitui, a todas as luzes, um absurdo, não só em termos histórico-culturais e jurídico-dogmáticos como de Direito Comparado, falar de usucapião sem posse (em nome próprio“ (páginas 220 e 221 do parecer). Acrescentam que não se surpreende tal intenção nos trabalhos preparatórios da Lei, nem na própria Lei, cuja epígrafe apenas se refere à “extinção da enfiteuse ou aforamento”, sem menção a qualquer equiparação dos arrendamentos de muito longa duração à enfiteuse.
Concorda-se com esta última posição. Do que se trata é de regular a extinção da enfiteuse e não de quaisquer outras figuras, nomeadamente arrendamentos de longa duração. Para os casos de foreiros que não dispõem de títulos mas que estão em condições de invocar a aquisição do domínio útil por via da usucapião, facilita-se a respetiva prova, presumindo-se a sua existência com base na verificação dos factos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 5 do art.º 1.º do Dec.-Lei n.º 195-A/76, com a redação introduzida pela Lei n.º 108/97, de 16.9. Presunção essa que é juris tantum (art.º 350.º n.º 2 do Código Civil) e que só opera no pressuposto de que se reporta a uma real situação enfitêutica, que como tal terá de ser alegada. Neste sentido se ajuizou, em casos idênticos ao destes autos, nos acórdãos desta Relação, ambos de 16.01.2014 (processo n.º 4817/07.7TBALM.L2-6 e processo 4583/07.6TBALM.L2-2), publicados em www.dgsi.pt.
Ora, in casu, embora o A. reiteradamente se intitule, na petição inicial, enfiteuta, também se arroga constantemente a qualidade de arrendatário. E em parte alguma alega factos concretos consubstanciadores da constituição da enfiteuse, ou seja, do desmembramento da propriedade plena em domínio direto e domínio útil, com a inerente perpetuidade e obrigação do pagamento de foro anual. Pelo contrário, o A. apenas invoca a celebração, há mais de 100 anos, de um contrato verbal (art.º 3.º), que conferiu aos seus antecessores o direito a cultivar as terras mediante o pagamento da respetiva renda e a ser indemnizado por benfeitorias (art.º 4.º da p.i.), reporta a sua situação à sucessão do anterior “arrendatário”, B (art.º 29.º), qualifica o seu caso de “arrendamento rural ao cultivador directo” (art.º 32.º), invoca a proteção devida à “coisa locada” (art.º 33.º), afirma que o terreno está destinado, entre outros fins, ao “arrendamento privado” (art.º 35.º) e, identificando a sua situação com a das pessoas expressamente citadas, alegou que “os rendeiros/enfiteutas, por si ou por seus antecessores celebraram contratos de arrendamento verbais, com início em 1 de Outubro e termo em 30 de Setembro seguinte, renováveis, com um anterior proprietário, C, das áreas que se indicam nas alíneas c) a dd), com as rendas nelas também referidas, há mais de 70 anos” (art.º 36.º, alínea c)). Alega ainda que o ora R., após ter adquirido aquelas terras, escreveu aos “rendeiros/enfiteutas” para estes entregarem “as terras arrendadas” (art.º 36.º, alínea nn)), o que estes não fizeram por se considerarem com direito de retenção até serem pagos das benfeitorias que nelas fizeram (alínea oo) do art.º 36.º). O A. chegou mesmo a dizer que é, há mais de 40 anos, “arrendatário/enfiteuta” nos termos da Lei do Arrendamento Rural ao Agricultor Autónomo (art.º 39.º), afirma que paga a renda anual de € 7,00 (art.º 47.º), invoca a Lei do Arrendamento Rural para justificar a transmissão da posição de arrendatários (artigos 48.º e 49.º) e aduz ainda que “os contratos de arrendamento em causa estão em vigor” (art.º 50.º).
A partir do factualismo provado não se perceciona uma situação de enfiteuse, ou seja, a realidade provada não permite atribuir ao A. a qualidade de enfiteuta, de titular do domínio útil das terras por si ocupadas. Por outro lado, o A. não alegou factos que lhe confiram a qualidade de enfiteuta. Pelo contrário, o A. atribuiu a fonte jurídica da ocupação do terreno em causa a um contrato de natureza temporária, originador de um vínculo de natureza obrigacional, ou seja, contrato de arrendamento rural, verbalmente celebrado, com início em 1 de outubro e termo em 30 de setembro seguinte, renovável. O que afasta a procedência da sua pretensão, de reconhecimento da titularidade da propriedade plena do imóvel por si ocupado, com base na extinção do domínio útil de que seria titular. Assim como improcede a pretensão do reconhecimento da aquisição da propriedade plena do terreno com base em acessão imobiliária (artigos 57.º a 62.º da p.i.), uma vez que não se mostra que o A., ao efetuar as obras provadas, desconhecia que o terreno era alheio, ou que fora autorizado, pelo dono do terreno (o R. ou o seu antecessor), a proceder à incorporação dessas obras (artigo 1340.º do Código Civil).
Concluímos, assim, que a ação deve improceder, o que implica a procedência da apelação.
DECISÃO
Pelo exposto:
a) Nega-se provimento ao agravo interposto pelo R. e consequentemente mantém-se o despacho recorrido;
b) Julga-se a apelação procedente e consequentemente, revogando-se a sentença recorrida, julga-se a ação não provada e improcedente e absolve-se o R. dos pedidos.
As custas do agravo são a cargo do agravante.
As custas da ação e as da apelação são a cargo do A./apelante.

Lisboa, 20.3.2014
Jorge Manuel Leitão Leal
Ondina Carmo Alves
Eduardo José Oliveira Azevedo
Decisão Texto Integral: