Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6660/21.1T8LSB-A.L1-7
Relator: MICAELA SOUSA
Descritores: DEPOIMENTO DE PARTE
REQUERIMENTO
FORMALIDADES
DISCRIMINAÇÃO DOS FACTOS
INCUMPRIMENTO
APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/31/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1 – A exigência prevista no artigo 452º, n.º 2 do Código de Processo Civil quanto à indicação discriminada dos factos sobre que há-de recair o depoimento de parte, aplicável ex vi artigo 466º, n.º 3 do mesmo diploma legal às declarações de parte, não é meramente formal, resultando de um dever de cooperação para com o Tribunal, que deve controlar se os factos escolhidos são passíveis de confissão e/ou factos em que a parte tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo, para além de tal indicação assegurar o contraditório e a organização da produção de prova no julgamento.
2 – “Discriminar” significa, em tal contexto, que se devem mencionar os pontos do articulado onde constam os factos sobre que há-de incidir o depoimento ou as declarações, não se bastando com uma referência genérica, como, por exemplo, toda a matéria da petição inicial ou da contestação.
3 – Incumprido o ónus de discriminação dos factos, não deve ser rejeitado de imediato o requerimento, cumprindo ao Tribunal convidar a parte requerente a suprir tal deficiência.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
A  [… LDA.] , com sede na Alameda … Lisboa, pessoa colectiva n.º 505… intenta contra B [ … COMÉRCIO DE AUTOMÓVEIS, UNIPESSOAL, LDA.] , pessoa colectiva n.º 509…, com sede na Rua … Lisboa e C [ PAULO …], NIF …, residente na Rua …, Lisboa a presente acção declarativa de condenação, com processo comum formulando os seguintes pedidos:
a. A condenação da ré a transferir a propriedade do veículo para a autora ou que esta seja transferida pelo Tribunal.
Subsidiariamente,
b. A condenação solidária das rés a restituir, na íntegra, o valor recebido da autora, ou seja, 27 250,00 €, acrescidos dos juros de mora legais, a contar da citação.
Alegou, em síntese, que em 24 de Agosto 2018 adquiriu às rés o veículo automóvel, marca Volkswagen, modelo Sharan, com matrícula xx-xx-xx, pelo valor de 27 250,00 €, veículo que pertencia à 1ª ré mas cuja venda ocorreu no estabelecimento da segunda; o documento único automóvel não lhe foi entregue com a transferência da propriedade para si, mantendo-se o veículo em nome da P R (cf. Ref. Elect. 28722928 dos autos principais).
A ré B contestou suscitando a ineptidão da petição inicial, referindo que a própria autora afirmou que não teve qualquer intervenção no negócio que celebrou com a segunda ré, e a sua ilegitimidade passiva e impugnando a factualidade alegada na petição inicial, nomeadamente, que tenha existido qualquer parceria entre as rés para vender automóveis, sucedendo que vendeu o carro à segunda ré que não procedeu ao seu pagamento, pelo que pugna pela procedência das excepções deduzidas ou, assim se não entendendo, que se conclua pela nulidade do negócio celebrado entre a autora e a segunda ré, com a restituição do veículo e indemnização a fixar pelo Tribunal pelo desgaste do automóvel e pelos danos ao seu bom nome (cf. Ref. Elect. 29052626 dos autos principais).
No final da sua contestação, em sede de requerimentos probatórios, após indicar os documentos juntos e o seu rol de testemunhas, a ré B requereu o seguinte:
“V - Declarações de Parte
Vem, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 466.º do Código de Processo Civil, seja a 1.ª Ré, na pessoa do seu representante legal, admitida a prestar declarações de parte, a recair sobre toda a matéria de facto.
VI – Depoimento de Parte
Vem, ao abrigo do n.º 2 do artigo 452.º do Código de Processo Civil, requerer sejam a Autora e 2.ª Ré notificadas para prestar o depoimento de parte, a recair sobre toda a matéria de facto.”
Em 20 de Outubro de 2021 teve lugar a realização de audiência prévia, em que as partes tiveram oportunidade de se pronunciar sobre as excepções deduzidas, que, em sede de despacho saneador, foram julgadas improcedentes. Nessa data, foi ainda proferido despacho que, constatando a incompatibilidade entre os pedidos formulados, ordenou a notificação da autora para suprir as incoerências/deficiências enunciadas e sanar tal incompatibilidade, interrompendo-se a audiência prévia (cf. Ref. Elect. 409627035 dos autos principais).
Em 29 de Outubro de 2021, a autora apresentou petição inicial aperfeiçoada, concluindo pelo pedido de que seja proferida decisão que transfira a propriedade do veículo para a sua titularidade e, assim se não entendendo, que as rés sejam condenadas solidariamente na restituição do valor entregue, acrescido de juros (cf. Ref. Elect. 30687995 dos autos principais)
A ré B reiterou o por si alegado na contestação, requerendo a junção de documentos e o aditamento ao rol de testemunhas (cf. Ref. Elect. 30794077 dos autos principais).
A audiência prévia prosseguiu no dia 14 de Fevereiro de 2022, com identificação do objecto do litígio, enunciação de factos assentes e enunciação dos temas da prova, tendo sido proferido o seguinte despacho, que incidiu sobre os requerimentos probatórios (cf. Ref. Elect. 413067526 dos autos principais):
“1. Admitem-se os róis de testemunhas apresentados pelas partes de fls. 4 verso, 22, 39 verso e 44 dos autos.
2. Conforme resulta de fls. 22 verso dos autos, veio a 1.ª Ré requerer a tomada de declarações de parte à mesma, na pessoa do seu legal representante, a recair sobre toda a matéria de facto. Sucede, porém, que nos termos conjugados do disposto nos artigos 466.º n.º 2 e 452.º n.º 2 do C. P., a 1.ª Ré deveria ter indicado, de forma discriminada, os factos sobre os quais pretendia a tomada de declarações de parte, circunstancialismo esse que a 1.ª Ré manifestamente não observou. Nestes termos e, em face do exposto e, atento o disposto nos artigos 466.º n.º 2 e 452.º n.º 2 do C. P. C., não se admite a requerida tomada de declarações de parte à 1.ª Ré.
3. Também a fl. 22 verso dos autos, veio a 1.ª Ré requerer o depoimento de parte da A. e da 2.ª Ré, a recair sobre toda a matéria de facto. Sucede, porém, que nos termos do disposto no artigo 452.º n.º 2 do C. P., a 1.ª Ré deveria ter indicado, de forma discriminada, os factos sobre os quais pretendia o depoimento de parte da A. e da 2.ª Ré, circunstancialismo esse que a 1.ª Ré manifestamente também não observou. Nestes termos e, em face do exposto e, atento o disposto no artigo 452.º n.º 2 do C. P. C., não se admite o requerido depoimento de parte da A. e da 2.ª Ré.”
Inconformada com o assim decidido, a ré B veio interpor o presente recurso, cuja motivação concluiu do seguinte modo (cf. Ref. Elect. 414883386):
a) Entendeu o Tribunal a quo que, as declarações de parte e os depoimentos de parte não podiam ser admitidos, em virtude da 1ª Ré não ter indicado, de forma discriminada, os factos sobre os quais pretendia a tomada de declarações de parte e os depoimentos de parte da Autora e 2.º Ré.
b) Tribunal a quo não dá a oportunidade da 1ª Ré vir suprir essa irregularidade, convidando-a a indicar tais factos de forma discriminada.
c) Tal como sucedeu com o convite de aperfeiçoamento da petição inicial à Autora na audiência prévia datada de 20/10/2021.
d) O Tribunal a quo não pode decidir sem que previamente tenha sido facultada às partes a possibilidade de se pronunciarem, sendo proibidas decisões-surpresa.
e) Logo a decisão recorrida é nula por manifesta violação do princípio do contraditório e da igualdade das partes.
Termina pela procedência do recurso, devendo a decisão recorrida ser considerada nula ou determinada a sua revogação, sendo substituída por outra que admita as declarações de parte da primeira ré e os depoimentos de parte da Autora e segunda Ré, convidando a recorrente a indicar os factos sobre os quais estas deverão recair.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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II – OBJECTO DOS RECURSOS
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[1], é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95.
Assim, perante as conclusões da alegação da recorrente há apenas que apreciar se a decisão recorrida constitui uma decisão-surpresa e se a ré deveria ter sido convidada a especificar os pontos sobre os quais as declarações e depoimento de parte deveriam recair.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
Com interesse para a decisão relevam as ocorrências processuais que se evidenciam do relatório supra.
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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Cumpre, pois, aferir se era lícito ao Tribunal a quo indeferir as diligências de prova requeridas – declarações de parte da ré ..., Lda., na pessoa do seu legal representante e depoimento de parte da autora e da segunda ré – com fundamento na inobservância do estatuído no art.º 452º, n.º 2 do CPC, aplicável às declarações de parte ex vi art.º 466º, n.º 2 do mesmo diploma legal.
As provas devem ser apresentadas, em regra, na petição inicial e na contestação, podendo os requerimentos probatórios apresentados pelo autor e pelo reconvinte serem alterados na sequência da contestação e da réplica - cf. art.ºs 552º, n.º 6 e 572º, d) do CPC.
Além disso, as partes podem ainda aproveitar a audiência prévia para procederem a alterações no requerimento probatório – cf. art.º 598º, n.º 1 do CPC.
Nos termos do art.º 411º do CPC, incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
Neste normativo sobressai o princípio do inquisitório que, porém, coexiste com os princípios do dispositivo, da preclusão e da auto-responsabilidade das partes, não podendo o juiz suprir, de modo automático, eventuais falhas de instrução imputáveis a alguma das partes, uma vez precludida a apresentação de meios de prova.
Assim, o princípio do dispositivo funciona quanto à alegação dos factos, continuando também a impender sobre as partes o ónus de indicação dos meios de prova, daí que sobre tais requerimentos deva recair uma apreciação judicial da sua admissibilidade.
Serve isto para dizer que a senhora juíza a quo podia indeferir o requerimento probatório quanto aos meios de prova que entendesse que não tinham qualquer virtualidade para a prova dos factos que carecem de demonstração ou que não reunissem os respectivos pressupostos legais, v. g., um depoimento de parte requerido relativamente a pessoa sem capacidade judiciária (cf. art.º 453º, n.º 1 do CPC).
Aliás, fê-lo no momento processualmente previsto para a apreciação dos requerimentos probatórios, ou seja, no contexto da audiência prévia e após ter fixado o objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova – cf. art.º 591º, n.ºs 1, g) e 598º do CPC.
Daí que a prolação do despacho de indeferimento ora crise não represente, ao contrário do propugnado pela recorrente, qualquer violação do princípio do contraditório ou da igualdade das partes.
Estipula o artigo 3º, n.º 2 do CPC que “Só nos casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.”
Nos termos do n.º 3 desse mesmo art. 3.º “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
E acrescenta o n.º 4: “Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.”
Estes normativos legais consagram o princípio do contraditório como princípio geral e na vertente proibitiva da decisão-surpresa (n.º 3) e no atinente à alegação dos factos da causa (n.º 4), garantindo-se às partes a sua efectiva intervenção no desenvolvimento de todo o litígio, sob pena de nulidade da decisão que o não observe (contraditório dinâmico).
Tal como referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3ª Edição, pág. 7:
“Resultam estes preceitos duma conceção moderna do princípio do contraditório, mais ampla do que a do direito anterior à sua introdução no nosso ordenamento. Não se trata já apenas de, formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, ser dada à contraparte a oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão e de, oferecida uma prova por uma parte, ter a parte contrária o direito de se pronunciar sobre a sua admissão ou de controlar a sua produção. Este direito à fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário duma conceção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.”
Do princípio do contraditório – que é uma decorrência do princípio da igualdade das partes estabelecido no art. 4º do CPC -, emana, pois, o direito da parte ao conhecimento de que contra ela foi proposta uma acção e, logo, um direito à audição prévia antes de contra ela ser tomada qualquer decisão ou providência, mas também um direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e a poder tomar posição sobre elas, ou seja, um direito de resposta, que consiste “na faculdade, concedida a qualquer das partes, de responder a um acto processual (articulado, requerimento, alegação ou acto probatório) da contraparte.” – cf. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa 1997, pp. 46-47.
Por força desse entendimento amplo da regra do contraditório e face à garantia de processo equitativo do artigo 20º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, a decisão final só deve ser proferida assegurada que seja a participação efectiva dos titulares da relação litigiosa, ou seja, antes de decidir, o juiz deve facultar às partes a invocação de razões que julguem pertinentes perante uma eventual ocorrência de excepções dilatórias, e, sobremaneira, face à invocação de qualquer excepção pela outra parte – cf. ainda António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 19.
Do princípio do contraditório decorre, pois, a regra fundamental da proibição da indefesa, em função da qual nenhuma decisão, mesmo interlocutória, deve ser tomada, pelo tribunal, sem que, previamente, tenha sido dada às partes ampla e efectiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar.
A decisão-surpresa que a lei pretende afastar é aquela que revela uma solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, ou seja, não podem ser confrontadas com decisões com que não poderiam contar, o que não abrange os fundamentos utilizados pelo tribunal para fundamentar decisões que eram previsíveis ou que as partes devessem esperar ou admitir como possíveis.
Assim, a decisão-surpresa não se confunde com “a suposição que as partes possam ter concebido quanto ao destino final do pleito, nem com a expectativa que possam ter realizado quanto à decisão, quer de facto, quer de direito, sendo certo que, pelo menos, de modo implícito, a poderiam ter ou tiveram em conta” – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-07-2018, processo n.º 177/15.0T8CPV-A.P1.S1[2].
Tendo em conta que a instrução tem por objecto os factos necessitados de prova (cf. art.º 410º do CPC) e que ao juiz cumpre recusar o que for impertinente ou meramente dilatório (art.ºs 6º, n.º 1) no contexto dos seus poderes de direcção e gestão processual, cabe-lhe emitir juízo sobre a admissibilidade e utilidade das diligências instrutórias solicitadas, como disso se dá conta no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12-11-2015, processo n.º 7178/11.6TBBRG-A.G1:
“[…] pertinente é ainda indagar se, ao julgador é lícito indeferir a requerida prestação de declarações de parte com fundamento em juízo de pretensa impertinência e/ou com base em julgamento prévio de estar em causa a produção de meio de prova de todo irrelevante para a boa decisão da causa.
É que, importa não olvidar, para além de a instrução dever ter por objecto factos necessitados de prova (cfr. artº 410º, do CPC), acresce ainda que ao juiz cumpre recusar o que for impertinente ou meramente dilatório (artº 6º, nº 1, do CPC), e, ademais, é suposto que em sede de articulados terão já as partes exposto e carreado para os autos todos os fundamentos da acção e da defesa, não se justificando a repetição e/ou realização no processo de actos inúteis.
Ora, porque nada justifica – bem pelo contrário, e desde logo à luz do brocardo frustra probatur quod probatum non relevat – considerar que em sede de prolação de despacho que incida sobre resolução - decidindo-a - de uma parte no sentido de prestar prova por declarações de parte, vedado esteja ao julgador formular ex ante um juízo sobre a relevância da prova, e respectiva pertinência e utilidade para o esclarecimento de realidade factual controvertida e susceptível de – segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito – influenciar o desfecho da acção, é para nós algo pacífico que quando confrontado com um pedido da parte no sentido pretender prestar declarações de parte, pode/deve o julgador poder indeferir a diligência com fundamento em juízo de impertinência [recorda-se que compete ao juiz – cfr. artº 6º do CPC -, não um papel meramente passivo, mas um comportamento activo em sede de direcção e gestão processual, incumbindo-lhe o poder de disciplina, qual poder-dever de separar o trigo do joio nas próprias diligências requeridas pelas partes.”
Conclui-se, pois, que, no caso, tendo as partes apresentado os seus requerimentos probatórios nos respectivos articulados, tiveram ambas a oportunidade de quanto a eles se pronunciarem e estavam necessariamente cientes, porque patrocinadas por mandatário judicial, da possibilidade de admissão ou rejeição dos meios de prova oferecidos, pelo que a decisão de indeferimento, bem ou mal fundamentada, baseada em falta de reunião dos pressupostos para a sua proposição, não pode ser entendida como uma decisão-surpresa, porque inesperada ou sequer ponderada pelas partes, ainda que dela estas discordem.
Questão distinta é, porém, a de saber se o fundamento invocado pelo Tribunal a quo para a sua rejeição merece acolhimento legal.
Apesar de os regimes não serem idênticos, dado que o das declarações de parte é decalcado, parcialmente, do regime aplicável ao depoimento de parte, iniciar-se a abordagem da questão a partir deste.
O depoimento de parte constitui um meio processual cujo objectivo principal é o de provocar e obter de alguma das partes a confissão judicial - cf. art. 352º do Código Civil e art. 452º, n.º 1 do CPC.
A confissão é o “reconhecimento da realidade dum facto (passado, ou presente duradoiro) desfavorável ao declarante, isto é, dum facto constitutivo dum seu dever ou sujeição, extintivo ou impeditivo dum seu direito ou modificativo duma situação jurídica em sentido contrário ao seu interesse, ou, ao invés, a negação da realidade dum facto favorável ao declarante, isto é, dum facto constitutivo dum seu direito, extintivo ou impeditivo dum seu dever ou sujeição ou modificativo duma situação jurídica no sentido do seu interesse” – cf. José Lebre de Freitas, Código Civil Anotado, Volume I, 2ª Edição Revista e Actualizada, Ana Prata (Coord.), pág. 471.
O depoimento de parte pode ser ordenado oficiosamente pelo tribunal (cf. art.º 452º, n.º 1), mas também pode ser requerido por qualquer das partes ou compartes (art.ºs 452º, n.º 2 e 453º, n.º 3 do CPC), sendo que neste caso estas devem indicar, de forma discriminada, os factos sobre os quais ele deve recair (cf. art.º 452º, n.º 2 do CPC).
Os factos sobre os quais a parte pode ser chamada a depor devem ser factos pessoais ou factos de que o depoente deva ter conhecimento (cf. art.º 454º, n.º 1), excluindo os que sejam criminosos ou torpes (art.º 454º, n.º 2).
O depoimento de parte só pode recair sobre factos que sejam desfavoráveis à parte, porque só nessa hipótese poderá haver lugar a confissão – cf. art.º 352º do Código Civil
A lei exige, pois, que o requerente que opte por este meio de prova indique logo, de forma discriminada, os factos sobre os quais o depoimento há-de recair.
E, como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6-02-2020, processo n.º 3144/12.2TBPRD-Q.P1, “esta exigência não é despicienda ou meramente formal, a mesma resulta desde logo de um dever de cooperação para com o tribunal cuja função não é substituir-se à parte na escolha dos factos a confessar, apenas controlar se os factos escolhidos são efectivamente passíveis de confissão. Depois, essa indicação é ainda necessária para garantir o contraditório, organizar a produção de prova no julgamento e permitir a preparação da pessoa ou ente que irá ser sujeita a esse meio de obtenção da confissão. O seja, estamos aqui perante algo bem diverso das declarações de parte.”
O Professor José Alberto dos Reis entendia ser evidente que essa exigência legal não seria satisfeita se o requerente se limitasse a pedir o depoimento da parte contrária sobre todos os factos (ou sobre todos os artigos) da petição inicial, ou sobre todos os artigos da contestação, porque tal não corresponde a uma indicação discriminada, sendo necessário especificar os factos que hão-de ser objecto do depoimento – cf. Código de Processo Civil Anotado, Volume IV Reimpressão Coimbra Editora, 1987, pág. 132
A questão que se coloca, pois, é de saber se, à luz do regime vigente, a não indicação discriminada dos factos sobre os quais o depoimento deve recair determina a imediata rejeição do meio de prova.
O Tribunal recorrido entendeu que tal incumprimento era determinante da rejeição, tendo indeferido quer o depoimento de parte requerido, quer as declarações de parte da requerente, com tal motivo.
Já na vigência do CPC de 1961 se entendia, à luz do princípio da direcção do processo e do inquisitório (art.º 265º), que na falta de discriminação o juiz deveria convidar a parte requerente a fazê-la.
Assim se pronunciava Jacinto Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Volume III, 3ª Edição Revista e Actualizada, 2001, pág. 110:
“O requerimento há-de descriminar [sic] os factos, isto é, indicá-los um por um, directamente, ou indirectamente por referência à base de facto que o contenha (se esta peça já estiver elaborada no processo) ou ao artigo do respectivo articulado onde tenha sido referido, a remissão a toda a matéria articulada, ou a todos os factos quesitados, não é suficiente. Na falta de discriminação parece que o juiz deve convidar a parte requerente a fazê-la.”
E também Carlos Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, pág. 387 assim concluía:
“O n.º 2 mantém, no essencial, o ónus, que já recaia sobre a parte que requer o depoimento da contraparte, traduzido na necessidade de indicar logo discriminadamente os factos sobre que há-de recair.
Atenua-se, porém, o efeito preclusivo […] cumprindo ao juiz convidar a parte a discriminar mais claramente o objecto do depoimento requerido, ao menos quando a falta cometida não traduza culpa grave […]”
Nesse sentido, cf. o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 1-06-2004, processo n.º 1014/04-3.
Actualmente, não se vislumbram motivos para alterar tal posição, tanto mais em face dos poderes/deveres de gestão processual conferidos ao juiz (cf. art.º 6º do CPC), de ondem emanam pilares fundamentais do processo civil como o da instrumentalidade dos mecanismos processuais em face do direito substantivo e o da prevalência das decisões de mérito sobre as formais. Isto é, “o direito adjectivo só existe porque existe direito substantivo integrado por normas que, de modo abstracto e generalizado, concedem direitos, fixam obrigações ou impõem ónus ou limitações. Em caso de conflito de interesses, impõe-se a intervenção reguladora do juiz com funções de tutela de direitos subjectivos ou de interesses juridicamente relevantes.” – cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit., pág. 32.
Neste enquadramento, não se suscitam especiais dúvidas quanto à necessidade de o juiz convidar a parte a discriminar os factos sobre que há-de recair o depoimento de parte quando aquela tenha apenas remetido para toda a matéria de facto controvertida.
José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre referem, op. cit., pág. 285:
“Não sendo indicados os factos quando se requer o depoimento, o juiz deve ainda convidar a parte a fazer a indicação. Com efeito, para a prossecução da verdade material foram conferidos ao juiz poderes de zelar pelo aproveitamento dos atos das partes que apresentem deficiências, sendo excessivo aplicar a consequência normal da não observância dum ónus processual, que é a preclusão.”
No sentido de que o tribunal deve convidar a parte a corrigir o lapso decorrente de uma indicação efectuada, basicamente, para toda a matéria do seu articulado, sem rigor, cuidado ou diligência e sem qualquer esforço de discriminação, deixando para o tribunal essa tarefa, vejam-se os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 6-02-2020, processo n.º 3144/12.2TBPRD-Q.P1 e de 21-11-2019, processo n.º 29903/15.6T8PRT-F.P1, este a propósito das declarações de parte; refutando, contudo, o dever de convite ao esclarecimento, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21-05-2013, processo n.º 2629/11.2TBBCL-A.G1, embora com um voto de vencido, no sentido de que o princípio da cooperação justificaria o convite ao aperfeiçoamento.
Idêntica ponderação cabe efectuar relativamente ao requerimento para prestação de declarações de parte.
Nos termos do art.º 466º, n.º 1 do CPC, “as partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento directo”, aplicando-se-lhes, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior.
A remissão para as normas que regulam o depoimento de parte – art.ºs 456º e 465º do CPC – pode suscitar dificuldades, parecendo, contudo, não existir actualmente especial controvérsia quanto ao dever de a parte que pretende prestar declarações indicar os factos sobre que irá depor, não obstante entender-se que, ainda que não se adira a tal exigência, sempre deverá existir “uma delimitação mínima sobre o objecto do depoimento, até para permitir ao juiz imprimir determinada cadência e precisão na condução da inquirição, ao que acresce que as declarações nesta sede apenas poderão respeitar a factos em que a parte tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo”.
Também aqui a posição doutrinária e jurisprudencial tem sido no sentido de que a falta de indicação no respectivo requerimento dos factos sobre que a parte irá depor deve ser suprida mediante convite judicial, nunca podendo ser motivo de indeferimento – cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit., pág. 531.
Também Rui Pinto esclarece que a remissão para o estabelecido quanto ao depoimento de parte, com as necessárias adaptações, conduz a que o procedimento das declarações de parte seja desenhado sobre o procedimento do depoimento de parte, com exclusão de preceitos para os quais haja regulação específica (cf. art.º 466º, quanto à legitimidade, objecto e oportunidade da declaração), de modo que “no requerimento a parte deve indicar, de forma discriminada, os factos sobre que hão de recair as suas declarações (cf. artigo 452º, n.º 2) […] Não tendo feito tal indicação “deve o juiz convidar a parte a fazê-la” – cf. Código de Processo Civil Anotado, Volume I 2018, pág. 676; ao que se depreende, neste sentido, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 309.
E ainda, Luís Filipe Pires de Sousa, in As Declarações de Parte. Uma Síntese, Abril de 2017, pp. 10-11[3]:
“Acompanhamos, neste circunspecto, o raciocínio de MARIANA FIDALGO quando afirma que: «(…) consubstanciando-se as declarações de parte num interrogatório dirigido pelo juiz – e não pretendendo ser este um momento em que é simplesmente concedida a palavra às partes, para alegarem à sua vontade – urge que haja um fio condutor na inquirição, que se traduz na indicação desses factos que a parte pretende ver provados. Aliás, tendo este meio de prova lugar somente mediante requerimento da própria parte, de outra forma não se conceberia, sob pena de, desconhecendo o tribunal a intenção probatória da parte, não só não poder avaliar a necessidade de tal meio de prova, como não poder, de todo, proceder à referida inquirição.»
A omissão da indicação dos factos sobre os quais recairão as declarações de parte não constitui fundamento de indeferimento do requerimento, dando – isso sim – azo a um despacho de aperfeiçoamento – cf. Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 3.4.2014, Helena Melo, 3310/13, de 7.1.2016, Jorge Seabra, 57/14, www.colectaneadejurisprudencia.com, da Relação do Porto de 18.12.2013, Rodrigues Pires, 114/09, da Relação de Coimbra de 17.1.2017, Carlos Moreira.”
Neste sentido, vejam-se os seguintes arestos:
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12-11-2015, processo n.º 7178/11.6TBBRG-A.G1 -“[…] tal como há muito é entendimento praticamente uniforme, quer da jurisprudência, quer da doutrina, ainda que tendo por objecto o depoimento de parte, a solução que vem sendo defendida é a de, na falta de indicação do objecto declarações, deve então o juiz convidar a parte requerente a proceder à especificação do respectivo objecto, solução que […] “melhor se coaduna com os objectivos de prossecução da verdade material e de aproveitamento dos actos das partes que apresentem deficiências”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18-12-2013, processo n.º 114/09.1TBETR-A.P1 – “O nº 2 do art. 466º estatui que às declarações das partes se aplica, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior que se refere à prova por confissão das partes. No nº 2 do art. 452º, inserido nesta secção, preceitua-se que «quando o depoimento seja requerido por alguma das partes, devem indicar logo, de forma discriminada, os factos sobre que há-de recair.» Daqui decorre que a parte ao requerer a prestação de declarações deverá indicar, discriminadamente, os factos sobre os quais tais declarações hão-de recair, que sempre terão que ser factos em que tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo. Não tendo feito tal discriminação, a solução não será no sentido do seu indeferimento, mas sim no do juiz convidar a parte requerente a fazê-la, solução que, de resto, melhor se coaduna com os objectivos de prossecução da verdade material e de aproveitamento dos actos das partes que apresentem deficiências.”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-11-2019, processo n.º 29903/15.6T8PRT-F.P1 – “No requerimento em que se peçam declarações de parte, têm de ser discriminados os factos a que se irão reportar, podendo tal discriminação ser genérica em relação ao respetivo articulado. Caso a parte não o faça, deve ser convidada pelo tribunal a fazê-lo com a cominação de, não aceitando o convite, não serem admitidas tais declarações.”
Em conclusão, as diligências de prova requeridas pela ré/apelante, tendo sido solicitadas em devido tempo, mas não tendo observado a imposição legal de discriminação dos factos sobre os quais o depoimento de parte e as declarações de parte iriam incidir, desconhecendo-se, por essa razão, o respectivo objecto - porque não indicado -, não poderiam ter sido indeferidas - eventualmente até, por juízo de impertinência e/ou inutilidade, o que não foi o caso -, pois que perante a falta de indicação do seu objecto, deveria o Tribunal recorrido ter convidado a parte requerente a proceder à sua especificação.
Consequentemente, concluindo-se pela procedência da apelação, impõe-se a revogação da decisão apelada, devendo a senhora juíza a quo notificar a parte requerente para, em prazo, indicar qual o objecto das declarações de parte a prestar e do depoimento de parte requerido, seguindo-se então e com base naquele que venha a ser o objecto das diligências probatórias requeridas, a prolação da decisão que se justificar (de admissão ou de não admissão) referente aos requeridos meios de prova.
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Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
A pretensão que a apelante trouxe a juízo merece provimento.
Dado que a contraparte não influenciou a decisão recorrida nem a decisão deste recurso, não pode ser considerada vencida para os efeitos previstos no art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
Por sua vez, quem do recurso tirou proveito e, por isso, seria responsável pelo pagamento das respectivas custas, seria a recorrente.
No entanto, estando paga a taxa de justiça devida pela interposição do recurso porque a recorrente procedeu ao seu pagamento e ninguém contra-alegou, e como o recurso não envolveu a realização de despesas (encargos), não há lugar ao pagamento de custas em qualquer das suas vertentes (cf. art. 529º, n.º 4 do CPC).
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em:
a. Revogar a decisão apelada quanto ao indeferimento das declarações de parte a prestar pela ré ..., Lda. e dos requeridos depoimentos de parte da autora e da segunda ré;
b. Determinar que o Tribunal a quo, após convite dirigido à ré/recorrente para indicar o objecto das declarações de parte e depoimentos de parte requeridos, profira nova decisão em que se pronuncie sobre a admissibilidade dos respectivos meios de prova.
Sem custas.
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Lisboa, 31 de Maio de 2022[4]
Micaela Marisa da Silva Sousa
Cristina Silva Maximiano
Amélia Alves Ribeiro
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[1] Adiante designado pela sigla CPC.
[2] Acessível na Base de Dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
[3] Acessível em file:///C:/Users/Admin/Documents/Processo%20Civil/PIRES%20DE%20SOUSA,%20L.%20F.,%20As%20Declara%C3%A7%C3%B5es%20de%20Parte.%20Uma%20S%C3%ADntese.%20(04.2017).pdf.
[4] Acórdão assinado digitalmente – cf. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.