Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
233/20.3SXLSB-B.L1-5
Relator: ANABELA CARDOSO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Na situação em apreço, em face dos elementos juntos aos autos e atenta a gravidade da factualidade participada, em que se investiga a prática de crime de violência doméstica para evitar a revitimização da menor/vítima, a qual forçosamente ocorreria se a mesma prestasse declarações por diversas vezes, perante várias entidades, e com fundamento na natureza do crime em investigação, na idade da menor, na sua elevada fragilidade emocional e especial vulnerabilidade e, sobretudo, na relação familiar entre a vítima e o arguido, justifica-se a tomada de declarações da vítima para memória futura, diligência que se revela ainda essencial para a realização da justiça e por forma a acautelar o valor probatório futuro das mesmas, a fim de, sendo necessário, serem tomadas em conta no julgamento, sendo imperioso acautelar a espontaneidade e genuinidade do seu depoimento, em tempo útil, ao mesmo tempo que protege a vítima do perigo de revitimização.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


1.–Nos autos de Inquérito (Actos Jurisdicionais) nº 233/20.3SXLSB, que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, Juiz 5, em que é arguido, H. , foi proferido, em 22 de Outubro de 2020, o seguinte despacho:

“Uma vez que a testemunha/ofendida é menor de idade e nos presentes autos se investiga a prática de crime de violência doméstica, na pessoa da mesma, considero que estão reunidos os requisitos que permitem a sua inquirição para memória futura (art° 271, n°2 e 352, n° 1, als. a) e b) do CPP) e art. 33° Lei 129/2015, de 03 setembro.
Pelas razões apontadas pelo M°P°, e que se subscrevem na íntegra, a inquirição da criança decorrerá na ausência do arguido.

Assim, para a inquirição da criança:
- R., com a finalidade prevista no art° 271, n°2 do CPP, designo o próximo dia 02 novembro, pelas 13.30 hrs., neste Tribunal.
Comunique, nos termos e para os efeitos do disposto no art° 271, n°3 do CPP, informando o arguido de que a tomada de declarações decorrerá na sua ausência.
Na realização da diligência a crianças será acompanhada pela Srª técnica, nos termos indicados no requerimento que antecede.”

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O despacho de promoção do Digno Magistrado do Ministério Público, para que o mencionado despacho remete, é do seguinte teor:
“Da inquirição para memória futura da menor R. :
Nos presentes autos, encontram-se em investigação, além do mais, factos susceptíveis de integrar a prática de crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) do Código Penal, em que é arguido H. e ofendida a sua filha R., nascida em ….
Considerando a natureza do crime em investigação, a idade da menor, a elevada fragilidade emocional, a especial vulnerabilidade e, sobretudo, a relação familiar entre a vítima e o arguido, entendemos que se deverá proceder à inquirição da menor relativamente à factualidade descrita a fls. 223 e 224, 226 e 227 no decurso da fase de inquérito, podendo as suas declarações serem apreciadas e levadas em conta, na fase de julgamento.
Verificam-se particulares e fortes exigências de protecção desta vítima, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 152.º n.º 1, al. d) e n.º 2 do Código Penal e 67-A, n.º 1, b) e n.º 3 e artigo 1º al. j) do Código de Processo Penal, artigo 20.º do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015 de 04 de setembro e artigo 14.º, n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.
Assim, considerando a sua especial situação de vulnerabilidade e por forma a evitar a sua revitimização, dever-se-á proceder à sua inquirição para memória futura, nos termos do artigo 21.º, nº 1 al. d) e 24 º do Estatuto de Vítima Especialmente Vulnerável, 33º da Lei 112/2009 de 16 de Setembro e 271º do Código de Processo Penal.
Pelo que se requer ao Meritíssimo Juiz de Instrução criminal que seja designada data para inquirição da ofendida R.,  em sede de declarações para memória futura, para que possa ser tomado em conta o seu depoimento na fase de julgamento, sobre toda a matéria dos autos no decurso deste inquérito.
Mais se requer que as declarações da ofendida sejam prestadas na ausência do arguido atento o disposto no artigo 352º, n.º 1, a) do Código de Processo Penal, uma vez que, atentos os factos a relatar, o Ministério Público tem razões para crer que a sua audição, na presença daquele, possa prejudicar o seu livre depoimento, por receio ou coacção e deixe de prestar declarações ou o faça de forma inverdadeira, sem isenção e com constrangimentos e tal possa ter efeitos graves na sua saúde psíquica, atendendo até ao carácter cíclico do fenómeno da violência doméstica, com alternância entre fases de aumento de tensão, havendo um concreto perigo de que a mesma possa ser intimidada e apresente uma versão dos factos que desresponsabilize o arguido, o que constitui, de todo o modo, violência psicológica, que cumpre acautelar.
Mais se requer que a ofendida seja assistida nesse acto processual por técnico especialmente habilitado, sugerindo-se a Senhora Psicóloga CN do Gabinete de Informação e Apoio à Vítima desta SEIVD;
Requer-se ainda que a prestação das declarações fique registada através da gravação de imagem e som com recurso a meios técnicos ao dispor desse Tribunal, nos termos do disposto nos artigos 101.º n.º, 271.º n.º 6 e 364.º n.º 1, todos do Código de Processo Penal.
Remeta os autos ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal para apreciação e decisão.”

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2.–Não se conformando com o teor do aludido despacho judicial, proferido em 22 de Outubro de 2020, dele recorreu o arguido, pedindo a sua revogação, recurso que foi admitido a subir de imediato, em separado e com efeito meramente devolutivo.

As conclusões da motivação de recurso são as seguintes:

“50.- O MP promoveu a realização de diligência de tomada de declarações para memória futura, sendo na verdade a ofendida é a sua mulher não a sua filha.
51.- Importa referir que que a prestação de declarações para memória futura em casos de Violência Doméstica não é obrigatória e que o critério para a sua realização "(...) há-de resultar de uma ponderação ente o interesse da vítima de não ser inquirida na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça" (...) e ainda que "(...) a melhor interpretação do artigo 33° da Lei 112/2009 de 16/9 é de que devem existir razões especiais para que se proceda à tomada de declarações para memória futura, razões que deverão ser analisadas no caso concreto de acordo com os elementos constantes dos autos (nomeadamente a idade, a saúde e proximidade física e ascendente do denunciado sobre a vítima).
52.- Na realidade, a ser procedente a pretensão do Ministério Público, a tomada de declarações para memória futura em situações de alegada violência doméstica era automática, o que não entendemos seja o caso.
53.- Em face do exposto, e porque não vislumbramos, qualquer razão fundada ao nível de protecção dos interesses da menor requer-se a revogação do douto despacho.
54.- Ao decidir como decidiu, o Meritíssimo Juiz violou os arts. 16° n° 2 e 33° n° 1 da Lei 112/2009 de 16-9, arts. 1° n°s 1 e 3 e 2° al. a), 26° n°s 1 e 2, 28° n° 1 da Lei 93/99, e arts. 53° n° 2 al. b), 67°- A n° 1 al. b), 127°, 263° n° 1 e 271° do CPP.
55.-o Meritíssimo Juiz a quo, defere a realização da referida diligência estribando a fundamentação do seu despacho no seguinte argumento de facto: que a testemunha/ofendida é menor de idade.
56.-a prestação de declarações para memória futura em casos de Violência Doméstica não é obrigatória e que o critério para a sua realização "(...) há-de resultar de uma ponderação ente o interesse da vítima de não ser inquirida na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça" (...) e ainda que "(...) a melhor interpretação do artigo 33° da Lei 112/2009 de 16/9 é de que devem existir razões especiais para que se proceda à tomada de declarações para memória futura, razões que deverão ser analisadas no caso concreto de acordo com os elementos constantes dos autos (nomeadamente a idade, a saúde e proximidade física e ascendente do denunciado sobre a vítima).
57.-Na realidade, a ser procedente a pretensão do Ministério Público, a tomada de declarações para memória futura em situações de alegada violência doméstica era automática, o que não entendemos seja o caso
58.-Nos termos dos arts. 53° n° 2 al. b) e 263° n° 1 do CPP, cabe ao Ministério Público a direcção da acção penal, sendo aquele quem poderá decidir da tempestividade e adequação das diligências probatórias em fase de inquérito.
59.-A prestação de declarações para memória futura será essencial para, num caso, de "Risco Elevado" de potencial continuação e agravamento da actividade criminosa, descrever com a minúcia exigida a factualidade denunciada, para evitar que a mesma seja revitimizada e, assim, se possa lograr, a final, uma efectiva responsabilização penal do Arguido, assim se verifiquem, pois, indícios da prática do crime que de acordo com as regras do direito probatório que permitam sustentar uma condenação.
60.-Dispõe o art.° 33°, n° 1, da Lei n° 112/2009, de 16/09, sob a epígrafe "Declarações para memória futura", que "O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento."
61.-Por seu turno, diz o art.° 16° n° 2 do mesmo diploma que "As autoridades apenas devem inquirir a vítima na medida do necessário para os fins do processo penal."
62.-Por sua vez, a Lei de Proteção de Testemunhas (Lei n° 93/99, de 14 de julho), prevê medidas que se destinam a obter, nas melhores condições possíveis, depoimentos ou declarações de pessoas especialmente vulneráveis, nomeadamente em razão da idade, mesmo que se não verifique o perigo referido no n° 1 do art.° 1° - cf. art.° 1°, n° 3, do mesmo diploma.
63.-Dizendo o art.° 26° n° 1 que "quando num determinado ato processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade judiciária competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal ato decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas. " Acrescentando no n° 2 que "a especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.
64.-" Por outro lado, nos termos do diploma citado, "durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime" - n° 1 do art.° 28°.
65.-E, "Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271° do Código de Processo Penal."
66.-Analisada a Lei n° 112/2009, de 16/09, resulta da mesma que no seu artigo 33° se veio um regime formalmente autónomo para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica - se bem que esse regime diste pouco do hoje constante do art. 271° do CPP.
67.-Admitindo o art. 33° da Lei n° 112/2009, de 16/09, que a vítima de violência doméstica possa prestar declarações para memória futura e não se estabelecendo a obrigatoriedade da prática desse acto, importa procurar um critério que permita determinar os casos em que ele deve ter lugar.
68.-Esse critério há-de resultar de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça.
69.-Na verdade, a inquirição da vítima, do ponto de vista de quem investiga o crime, não passa obrigatoriamente pela tomada de declarações para memória futura, pois que se há casos em que isso se justifica, nomeadamente pela proximidade física entre vítima e denunciado, relação de parentesco, idades dos intervenientes, etc, outros casos haverá em que não existe essa necessidade premente.
70.-Ora, a promoção de que se recorre, com o devido respeito, é totalmente genérica, não concretizando quaisquer factos que sustentem o pedido em apreciação.
71.-Por outro lado, não estamos perante uma vítima com cuidados especiais ao nível da saúde nem da idade, que lhe confiram a qualidade de vítima especialmente vulnerável, nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 67°-A, n° 1, al. b), do CPP, e do art.° 28° da Lei n° 93/99, isto é, para que, em reforço da possibilidade de prestação de declarações para memória futura, que já resulta do disposto no art.° 33°, n° 1, da Lei n° 112/2009, de 16/09, acima citado, seja tomado à vítima depoimento ou declarações, o mais brevemente possível, e de forma a evitar-se a repetição da audição dela como testemunha, com alcance que a este conceito é dado pelo art.° 2°, al. a), da Lei n° 93/99.
72.-assim, a melhor interpretação do artigo 33°, n° 1, da Lei n° 112/2009, de 16/09, é de que devem existir razões especiais para que se proceda à tomada de declarações para memória futura, razões que deverão ser analisadas no caso concreto de acordo com os elementos constantes dos autos (nomeadamente a idade, saúde e proximidade física e ascendente do denunciado sobre a vítima).
73.-Na realidade, a ser procedente a pretensão do Ministério Público, a tomada de declarações para memória futura em situações de alegada violência doméstica era automática, o que não se concede, assente que a apreciação, como é evidente, deve ser realizada caso a caso.
74.-Da análise da legislação que versa sobre a possibilidade de tomada de declarações para memória futura (com vista a produzir prova a ser tomada em consideração no julgamento) - a saber: art. 271° do Cód. Proc. Penal, Lei de Protecção das Testemunhas em Processo Penal (Lei 93/99, de 14 de Julho) e Lei 112/2009, de 16 de Setembro – resulta que esta pode ser levada a cabo:
- em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de pessoa, que previsivelmente a impeça  de ser ouvida em julgamento;
- nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a  liberdade e autodeterminação sexual;
-  nos casos de testemunha especialmente vulnerável;
- nos casos de vítimas de violência doméstica.
75.-Mas, em todas as elencadas situações, a tomada de declarações para memória futura só é obrigatória nos casos em que estejamos perante vítima menor de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual (cfr. o n° 2 do art. 271° do Cód. Proc. Penal). Nos outros casos, não só é obrigatória como, acrescentaremos, não pode ser vista como regra. Repare-se que a redacção dos respectivos preceitos utiliza sempre o vocábulo “pode”, querendo, sem dúvida, abrir a porta apenas à possibilidade da tomada de declarações para memória futura nas referidas situações.
76.-Assim é porque as declarações para memória futura constituem uma excepção ao princípio da imediação e da concentração da prova que rege a audiência de discussão e julgamento.
77.-Ora precisamente porque as declarações para memória futura são uma excepção ao regime processual da audiência de julgamento, a decisão sobre a sua tomada tem que ser fundamentada (a menos que se trate de vítima menor de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, obrigatória, como já vincámos).
78.-Parece por isso evidente, salvo o devido respeito por opinião contrária, que se o despacho que determina a tomada de declarações para memória futura deve ser fundamentado, o requerimento do Ministério Público que a solicita deve ser igualmente fundamentado, independentemente desta magistratura ter a direcção da acção penal e poder decidir da tempestividade e adequação das diligências probatórias em fase de inquérito
79.-De facto, não basta ter a qualidade de vítima de violência doméstica para ser de imediato deferido o requerimento para a sua tomada de declarações para memória futura”.

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3.O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu a este recurso, sustentando que o mesmo deve ser julgado improcedente e que deverá ser mantida na íntegra a decisão recorrida, apresentando as seguintes conclusões:
“1.-Por douto despacho proferido a 22-10-2020, o tribunal a quo determinou a tomada de declarações para memória futura à menor R., na ausência do arguido.
2.-O tribunal a quo fundamentou, com rigor e correção, o deferimento da diligência requerida na pelo Ministério Público de tomar declarações para memória futura à menor R. .
3.-Nesta sequência, o arguido interpôs recurso do douto despacho, alegando a violação do artigo 16.° n.° 2 e 33.° n.° 1 da Lei n.° 112/2009 de 16.09, l.° n.° 1 e 3 e 2° al. a), 26.° n.° 1 e 2, 28.° n.° 1 da Lei 93/99, 53.° n.° 2 al. b), 67.°- A n.° 1 al. b), 127.°, 263.° n.° 1 e 271° do CPP.
4.-No presente inquérito investigam-se factos suscetíveis de integrar a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. no artigo 152°, n° 1, al. d) e n.° 2 do Código Penal, em que é ofendida, R., filha do arguido, nascida em 15.02.2007.
5.-A vítima deste ilícito tem 13 anos de idade, pelo que por força do disposto nos artigos 67°-A, n° 1, al. b) e n° 3, com referência ao artigo 1º, al. j), todos do Código de Processo Penal, ao artigo 26° da Lei de Proteção de Testemunhas e ao artigo 2º, al. b) da Lei de Proteção às Vítimas de Violência Doméstica é considerada vítima especialmente vulnerável.
6.-Decorre do disposto no 28° da Lei de Proteção de Testemunhas, que as declarações de testemunha especialmente vulnerável devem ter lugar no mais breve espaço de tempo após a ocorrência do crime e sempre que possível deve ser evitada a repetição da sua audição.
7.-O instituto processual da tomada de declarações para memória futura constitui exatamente um dos mecanismos para evitar a repetição de audição da vítima e protegê-la do perigo de vitimização secundária, devendo sempre ser ponderado o interesse da vítima, que se encontra emocionalmente fragilizada.
8.-No caso dos autos, a vítima é uma menor de 13 anos de idade, sendo que o arguido é seu pai, de onde resulta objetivamente a sua especial vulnerabilidade e fragilidade, que cumpre proteger, assim como é imperioso acautelar a espontaneidade e genuinidade do seu depoimento, em tempo útil.
9.-O Ministério Público entende ser a audição da menor indispensável ao desenrolar da investigação e tomada de decisão, nomeadamente no que concerne à necessidade de proteção da vítima.
10.-Contrariamente ao defendido pelo recorrente, consideramos que, no caso concreto, estão reunidos os pressupostos de audição para memória futura da menor R., nos termos do disposto nos artigos 24° do Estatuto de Vítima, 33° da Lei de Proteção às Vítimas de Violência Doméstica e 271° do Código de Processo Penal.
11.-Pelo exposto, o douto despacho ao determinar a tomada de declarações para memória futura à menor R., deu cabal cumprimento ao disposto nos artigos 24° do Estatuto de Vítima, 2°, alínea b) e 33° do Regime Jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e assistência das suas vítimas, 271°, 67°-A n° 1, al. b), e n° 3, com referência ao artigo Io, al. j), todos do Código de Processo Penal, 26° e 28° da Lei de Proteção de Testemunhas e 53°, n° 2 al. b) e 263° n° 1 do Código de Processo Penal.
12.-Decidindo pela forma em que o fez, o Tribunal a quo não incorreu em qualquer vicio, nem violou qualquer preceito legal ou constitucional.”

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4.–Neste Tribunal da Relação de Lisboa, a Ex.ª. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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5.–Foram colhidos os vistos e realizada a competente conferência.

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6.– O objecto do recurso, tal como ressalta das conclusões da motivação, versa a apreciação da seguinte questão:
- Das circunstâncias em que à vítima de crime de violência doméstica deverão ser tomadas declarações para memória futura, nos termos previstos no art. 33º da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro.

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7.–Apreciando, agora, a questão objecto do recurso em causa, interposto pelo arguido.
Sustenta, em suma, o arguido recorrente que:
- a menor, R., sua filha, não é ofendida nos autos, sendo antes a sua mulher;
- a prestação de declarações para memória futura em casos de violência doméstica não é automática ou obrigatória;
- o tribunal a quo fundamentou a sua decisão apenas no facto de a ofendida ser menor de idade, inexistindo qualquer razão fundada ao nível da proteção dos interesses da menor para que se proceda à tomada de declarações para memória futura.

Vejamos:
Comecemos por salientar que, contrariamente ao invocado pelo arguido, nos autos de inquérito em apreço, investigam-se, entre outros, factos suscetíveis de integrar a prática, pelo mesmo, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.°, n.° 1, alínea d) e n.° 2 do Código Penal, contra a sua filha, R., nascida a …, ou seja, indicia-se no processo que a mesma é vítima de violência exercida, física e psicologicamente pelo seu progenitor, aqui recorrente.
Verificamos, igualmente, que não é exacto afirmar, como o faz o recorrente, que o tribunal a quo fundamentou a sua decisão apenas no facto de a ofendida ser menor de idade, inexistindo qualquer razão fundada ao nível da proteção dos interesses da mesma para que se proceda à tomada de declarações para memória futura.

Vejamos:
Dispõe o art. 33º da Lei 112/2009, de 16.9, que o juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
Ou seja, admitindo o citado preceito legal que a vítima de violência doméstica possa prestar declarações para memória futura e não se estabelecendo a obrigatoriedade da prática desse acto, qual será, então, o critério que permite determinar os casos em que ele deve ter lugar.

Acerca desta questão, pronunciou-se, entre outros, o acórdão da Relação de Lisboa de 09/12/2015, no proc. 5.687/15.7T9AMD, in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:
“I–Não decorrendo obrigatoriamente da lei a tomada de declarações para memória futura no caso de violência doméstica ou maus tratos, (como acontece com as vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor- artº 271º do CPP), o critério para decidir pela tomada de declarações para memória futura terá necessariamente que assentar no interesse da vítima.
II–Encontrando-se a vítima de 8 anos de idade fragilizada, havendo indícios de violência, e sendo o instituto de tomada de declarações para memória futura um dos mecanismos que a pode proteger do perigo de revitimização, evitando à partida a repetição da sua audição, e podendo ainda acautelar a genuinidade do seu depoimento em tempo útil, deve ser deferido o requerimento feito pelo Ministério Público.”

No mesmo sentido, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa de 13/09/2016, relatado por Artur Vargues, no proc. 304/15.8PHAMD-A.L1, in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:
“No decurso de inquérito, com o escopo de apurar da eventual prática de crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea d), do Código Penal ou de crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152º-A, nº 1, alínea a), sendo a vítima (igualmente também eventualmente conhecedora de elementos fácticos relativos a agressões à sua progenitora) uma criança de onze anos de idade e o arguido seu progenitor, de onde resulta objectivamente a sua especial vulnerabilidade – que, aliás, deriva também do estatuído no artigo 67º-A, nºs 1, alínea b) e 3, do CPP - que cumpre proteger, importando também acautelar a genuinidade do depoimento, em tempo útil, pois é do conhecimento comum que este tipo de crimes são de investigação complexa e demorada, do que resulta prejuízo para o apuramento de toda a verdade dos factos vivenciados, deve o Juiz de Instrução Criminal proceder à tomada de declarações para memória futura ao menor como requerido pelo Ministério Público.”.

Mais recentemente, também deste mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, veja-se o Ac. de 04.06.2020 – Proc. 69/21.1PARGR-A.L1, disponível in www.dgsi.pt.:
“Embora a tomada de declarações para memória futura não seja obrigatória, é o procedimento que deve ser normalmente adoptado nos casos de violência doméstica, só assim não se procedendo quando haja razões relevantes para o não fazer.”
E no mesmo Acórdão, mais se lê, com interesse para a analise da questão:
“Assim, a L. n.º 112/2009, de 16/09[6], embora disponha que a tomada de declarações para memória futura às vítimas de violência doméstica não é obrigatória [7] (art.º 33º/1), estabelece que estas têm direito a ser ouvidas em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofram pressões.
Para além da vitimização primária, que são as consequências directas na vítima do fenómeno que as vitimou, a vítima pode ser objecto da chamada vitimização secundária, ou seja uma nova e segunda vitimização, que é o conjunto de atitudes, de terceiros ou da própria, com a vítima de um crime que faz com esta sofra novas consequências, pela minimização do seu sofrimento, pelo seu evitamento, pela sua desvalorização, pela sua culpabilização [8], etc.
Esta vitimização secundária, no decurso do processo penal, que é o que especificamente nos interessa agora, pode ocorrer nas relações que a vítima mantém com os operadores judiciários, aquando do seu contacto com as instâncias formais e informais de controlo[9], pela forma como é tratada nesses contactos e, para o que aqui nos interessa, pelas sucessivas reinquirições, que a obrigam a reviver a situação do crime, a pessoa do seu agressor e o sofrimento que experimentou aquando da vitimização primária.
Por outro lado, os depoimentos ou declarações de pessoas especialmente vulneráveis, nomeadamente em razão da idade, mesmo que não sejam postos em perigo por causa do seu contributo para a prova dos factos que constituem objecto do processo, devem ser tomados nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas. A especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta [10] ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência. (art.ºs 1º/1/3 e 26º/2 da L. n.º 93/99, de 14/07 (protecção de testemunhas em processo penal).
Vítima especialmente vulnerável é aquela “... cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social;” (67º-A/1-b) do CPP, na redacção que lhe foi dada pela L. 112/2009, de 16/09.
Nos casos de crime de violência doméstica, actualmente, contrariamente ao entendimento sufragado pela decisão recorrida, a vítima é sempre considerada especialmente vulnerável, nos termos do art.º 67º-A/1/b) /3 do CPP, conjugado com o art.º 152º do CP.”

No caso aqui em apreciação, a vítima do crime de violência doméstica tem 13 anos de idade, pelo que, sendo menor, é considerada vítima especialmente vulnerável, por força do disposto nos artigos 67°-A, n° 1, al. b) e n° 3, já que o crime de violência doméstica integra o conceito de criminalidade violenta, com referência ao que vem definido no artigo 1º, al. j), todos do Código de Processo Penal, ao artigo 26° da Lei de Proteção de Testemunhas e ao artigo 2º, al. b) da Lei de Proteção às Vítimas de Violência Doméstica.

E, como estabelece o art. 28° da Lei de Proteção de Testemunhas, as declarações de testemunha especialmente vulnerável devem ter lugar no mais breve espaço de tempo após a ocorrência do crime e sempre que possível deve ser evitada a repetição da sua audição, constituindo o instituto processual da tomada de declarações para memória futura um dos mecanismos para evitar essa repetição de audição da vítima e, ao mesmo tempo, protegê-la do perigo de vitimização secundária, devendo sempre ser ponderado o interesse da vítima, que se encontra emocionalmente fragilizada.

Temos, assim, que na situação em apreço, em face dos elementos juntos aos autos e atenta a gravidade da factualidade participada, para evitar a revitimização da menor/vítima, a qual forçosamente ocorreria se a mesma prestasse declarações por diversas vezes, perante várias entidades, o Digno Magistrado do Ministério Público, titular da acção penal, na fase de inquérito, promoveu a tomada de declarações para memória futura à menor R., vítima especialmente vulnerável, com fundamento na natureza do crime em investigação, na idade da menor, na sua elevada fragilidade emocional e especial vulnerabilidade e, sobretudo, na relação familiar entre a vítima e o arguido, indicando todos os factos sobre os quais pretendia a inquirição da mesma, nos termos conjugados dos artigos 21.°, n.° 1, alínea d) e 24.° do Estatuto de Vítima Especialmente Vulnerável, 14.° n.° l, 16º nº 2, 22º nº 1 e 33.° da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro, 67.°-A n.° 1, b) e n.° 3, l.° al. j) e 271.° todos do Código de Processo Penal e no art.° 20.° do Estatuto da Vítima, o que foi sufragado no despacho recorrido, termos em que o mesmo, ao deferir a realização da diligência requerida, se mostra devidamente fundamentado, contrariamente ao sustentado pelo recorrente.

Com efeito, com os contornos descritos, a prestação de declarações para memória futura da menor revela-se essencial para a realização da justiça e por forma a acautelar o valor probatório futuro das mesmas, a fim de, sendo necessário, serem tomadas em conta no julgamento, sendo imperioso acautelar a espontaneidade e genuinidade do seu depoimento, em tempo útil, ao mesmo tempo que protege a vítima do perigo de revitimização.
Em suma, ao determinar a tomada de declarações para memória futura à menor R., o tribunal recorrido deu cabal cumprimento ao disposto nos artigos 24° do Estatuto de Vítima [Lei 130/2015, de 4.9], 2°, alínea b) e 33° do Regime Jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e assistência das suas vítimas [Lei 112/2009, de 16.9], 271°, 67°-A n° 1, al. b), e n° 3, com referência ao artigo 1º, al. j), todos do Código de Processo Penal, 26° e 28° da Lei de Proteção de Testemunhas [Lei nº 93/99, de 14.7] e 53°, n° 2 al. b) e 263° n° 1 também estes do Código de Processo Penal.

Por todo o exposto, o tribunal recorrido não violou qualquer disposição legal ou constitucional, não merecendo censura a decisão recorrida que determinou a tomada de declarações para memória futura à menor R., termos em que improcederá o recurso.

***

–Decisão:

Em conformidade com o exposto, acordam os Juízes Desembargadores, neste Tribunal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso, interposto pelo arguido, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs.


(Elaborado em suporte informático e integralmente revisto)


Lisboa, 9 de Fevereiro de 2021  

          

Relatora: Anabela Simões Cardoso

Atesto o voto de conformidade do Ex.mo Juiz Desembargador Adjunto Cid Geraldo – art. 15º A do DL 10-A/2020, de 13.3, na redação dada pelo DL nº 20/2020, de 1.5, aplicável ex. vi do art. 4º do CPP__________________________