Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
204/17.7YHLSB.L2-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
DIREITOS DE AUTOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Os enunciados das provas de avaliação e de exame nacionais elaborados pela IAVE são, em abstrato, criações intelectuais suscetíveis de serem protegidas pelo Direito de Autor.
II. Porém, tal proteção jusautoral é excluída, nos termos do n.º 1 do art.º 8.º do CDADC, conjugado com a alínea c) do n.º 1 do art.º 3.º do mesmo código, uma vez que esses enunciados constituem decisões administrativas emitidas pelo IAVE enquanto entidade integrada na administração indireta do Estado, prosseguindo o fim público da avaliação e certificação dos estudantes a nível nacional.
III. Assim, os enunciados das provas de exame nacionais elaborados pelo requerente IAVE não gozam da proteção do Direito de Autor, nomeadamente nos termos e para o efeito da intervenção cautelar prevista no art.º 210.º-G do CDADC, relativamente a manuais escolares de preparação para exame editados pelas requeridas, que contêm, nomeadamente, enunciados dessas provas de exame, sem prévia autorização do requerente nem pagamento a este de remuneração.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 22.5.2017 Instituto de Avaliação Educativa, I.P. (IAVE), intentou procedimento cautelar comum não especificado contra P Editora, S.A. e R Editora, Lda.
O requerente alegou, em síntese, que tem por incumbência legal planear, conceber e validar os instrumentos de avaliação externa de alunos, nomeadamente, provas finais e exames nacionais, definindo os respetivos critérios de classificação. Por se tratar de uma missão de serviço público, o requerente faz publicar tais provas de exame, uma vez preenchida a sua função de avaliação, em jornais de grande circulação, onde qualquer interessado, seja aluno ou não, pode ler e consultar tais provas. Bem assim como as disponibiliza no seu web site onde qualquer interessado pode aceder a tais provas. O requerente procede, ainda, à edição periódica, em suporte papel, de coletâneas, temáticas ou não, anotadas ou não, com soluções oficiais ou não, dessas provas, disponibilizando-as, em tais formatos, ao público, mediante um custo que constitui uma receita do requerente. Receita, essa, a cuja obtenção a lei o obriga nos termos do Decreto-Lei nº 102/2013 de 25 de Julho, dispondo o requerente como receita própria do produto da venda de publicações, materiais pedagógicos e didáticos, outros suportes de informação e outros bens e serviços, bem como os valores resultantes da exploração da propriedade intelectual de que seja titular (art.º 20.º, n.º 2 b) do referido DL). As referidas provas de exame são obras literárias protegidas nos termos do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC) em vigor, sendo o requerente o seu titular, donde gozando, no quadro dessa mesma lei, de um direito absoluto e exclusivo sobre essas obras. Sucede que as requeridas editam e comercializam publicamente em livrarias e demais locais de venda, entre outros, livros (que o requerente identifica) contendo provas de avaliação cuja titularidade de direitos de autor pertence ao requerente. Tais obras foram compiladas e editadas pelas requeridas sem que o requerente alguma vez fosse consultado, ou desse qualquer autorização para o efeito. O requerente tentou, por diversos meios, incluindo uma notificação judicial avulsa, sensibilizar as requeridas e o grupo Porto Editora para a circunstância descrita, não tendo recebido qualquer anuência daquelas, ao contrário do que se passou com entidades congéneres que perceberam a razão do requerente. Sucede que, ao aproximar-se a nova época de exames, que terá lugar em junho e julho deste ano de 2017, as requeridas, à semelhança do que fazem todos os anos, por esta altura, preparam-se para, passada esta época e ficando a conhecer os respetivos textos de exame, editar ou reeditar obras contendo as obras provas de exame cujos direitos lhe não pertencem, para continuar a lucrar com a comercialização destas em vários formatos. Continuando a locupletar-se com lucros baseados em direitos que não lhes pertencem, para cujo exercício não pediram, nem pretendem pedir, autorização, ou negociar qualquer compensação pela referida utilização.
O requerente terminou pedindo que, na procedência do requerimento, se decretasse que as requeridas:
1) Cessassem, de imediato, a edição, produção e a comercialização de quaisquer livros em papel ou outro suporte contendo as obras de que o requerente IAVE é titular, identificadas nesta notificação ou outras provas de exame da titularidade da requerente que pudessem estar a produzir, editar ou comercializar em seu nome direto ou em nome de qualquer das editoras que compõem o Grupo Porto Editora;
2) Cessassem, de imediato, a referência às obras mencionadas em 1, quer em publicidade quer por outro meio divulgadas, redes sociais, facebook, blogues, site, entre outros.
A requerida R Editora deduziu oposição arguindo a sua ilegitimidade, na medida em que não edita nem comercializa as publicações referidas pelo requerente, nem qualquer outra que contenha provas de exames nacionais. Quem edita e comercializa as publicações em causa é a sociedade “L Editora, S.A.”, sob a chancela “R Editora”, que é uma marca, e não a ora requerida.
A requerida terminou pedindo que fosse julgada procedente a invocada exceção de ilegitimidade passiva da requerida, absolvendo-a do peticionado, com as demais consequências legais.
Também a requerida P Editora, S.A., deduziu oposição, arguindo a ilegitimidade do requerente no que concerne às referidas provas de avaliação, na medida em que estas são elaboradas pelo IAVE por carta de solicitação do Ministério da Educação, que é, este sim, o titular de todos os direitos sobre as provas de avaliação. Por outro lado, as aludidas provas não constituem uma obra literária de per si, não são mais do que um conjunto de questões sobre as matérias constantes dos programas curriculares, há muito adquirido da práxis do ensino, de modo a proceder à avaliação para comprovação dos conhecimentos e capacidades específicas dos alunos. Por outro lado, as provas integram um procedimento de tomada de decisão administrativa, podendo, por isso, ser livremente compiladas, anotadas e publicadas, nos termos conjugados do n.º 1 do art.º 8.º e al. c) do n.º 1 do art.º 3.º do CDADC. As provas são e sempre foram do domínio público. Por tudo isto, a requerida deve ser absolvida da instância, face à ilegitimidade substantiva e processual do requerente. A não se entender assim, então deve ter-se em consideração que só a partir de 2016 o requerente começou a arrogar-se titular de tais direitos. Assim sendo, a atuação da requerida é enquadrável na al. h), do n.º 2, do art.º 75.º do CDADC, a qual considera lícita, sem o consentimento do autor, a “inclusão de peças curtas ou fragmentos de obras alheias em obras próprias destinadas ao ensino”. Sendo de sublinhar que as publicações da requerida identificadas no RI estão organizadas por unidades temáticas do curriculum, com as respetivas resoluções, não utilizando as provas de avaliação elaboradas pelo IAVE tal qual as mesmas são apresentadas aos alunos. As publicações da requerida fragmentam as provas de avaliação por temas, sendo que, em alguns casos nem sequer usam todas as questões colocadas nos exames nacionais. Com estes fundamentos, defende a requerida que deve ser absolvida do peticionado. A requerida impugna, por desconhecimento, os meios que o requerente alega utilizar e os pagamentos que afirma fazer tendo em vista a elaboração das provas de avaliação. Mais alega que para criar as publicações em causa, a requerida contrata autores/professores com aptidões específicas nas várias matérias, que organizam as questões em termos temáticos e elaboram as respetivas respostas, elegendo as provas ou as questões que entendem pertinentes e adequadas aos fins a que se destinam, contribuindo assim, para a melhor preparação dos alunos. Quanto aos resultados das vendas da requerida, não são gerados pela mera utilização de algumas provas de avaliação ou fragmentos das mesmas. Decisivas para as vendas alcançadas pela requerida são a seleção, organização, soluções e anotações, que os professores/autores contratados para a sua elaboração, levam a cabo. Por outro lado, ao pedir a cessação imediata da edição, produção e comercialização de quaisquer livros em papel ou outro suporte contendo as provas de avaliação elaboradas pelo IAVE, identificadas no RI ou outras provas de exame do IAVE que a requerida possa estar a produzir, editar ou comercializar, sem identificar ou especificar os títulos das publicações em concreto a que se refere, o requerente propicia a violação não só dos direitos da requerida, conforme alegado, como dos direitos de terceiros, que são os autores que participaram na elaboração dessas obras.
A requerida terminou concluindo pela sua absolvição da instância e, subsidiariamente, do peticionado, pelas razões supra expostas.
O requerente requereu a intervenção principal provocada de L Editora S.A., o que foi deferido.
L Editora S.A. deduziu oposição, aderindo à oposição apresentada por Porto Editora, S.A. e requerendo a intervenção provocada dos autores das obras por si editadas, indicadas pelo requerente.
Em 24.7.2017 a interveniente L Editora S.A. invocou a publicação de um parecer do Conselho Consultivo da PGR, datado de 23.3.2017, que denegaria ao requerente o direito invocado.
O requerente respondeu, contrariando as razões do parecer.
Por despacho de 13.9.2017 foi indeferido o chamamento de terceiros requerido por Lisboa Editora S.A..
Por despacho da mesma data anunciou-se que os autos estavam em condições de serem decididos de mérito, sem necessidade de produção de prova, por não haver factos essenciais controvertidos, pelo que se convidou o requerente a responder às exceções invocadas pelas requeridas.
O requerente respondeu às exceções, pugnando pela sua improcedência.
Em 03.10.2017 foi proferida sentença em que se julgou a providência cautelar improcedente e consequentemente se absolveu as requeridas dos pedidos formulados.
O requerente apelou da sentença, tendo a Relação de Lisboa, por acórdão proferido em 20.12.2017, anulado a decisão recorrida e determinado que o tribunal a quo possibilitasse às partes a produção da prova testemunhal, seguindo-se os termos necessários à prolação de decisão que comportasse juízo expresso quanto aos factos por aquelas alegados, conforme enunciado no acórdão.
Realizou-se audiência final e em 26.3.2018 foi proferida sentença, na qual se julgou a providência cautelar totalmente improcedente e consequentemente se absolveu as requeridas e a chamada dos pedidos contra elas formulados.
O requerente apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
1. O Recorrente intentou o presente procedimento cautelar na sua qualidade de instituto incumbido de planear e conceber as provas de exame nacionais – que considera serem tuteladas por direito de autor – com vista a que as Recorridas fossem condenadas a cessar a edição e comercialização de livros dos quais constam as provas de avaliação elaboradas pelo Recorrente.
2. O Tribunal a quo considerou a ação improcedente, por entender que as provas de exame não seriam merecedoras de tutela jusautoral, desde logo por lhes não subjazer criatividade; que se trataria de “textos oficiais” administrativo; que, em qualquer caso, seria aplicável a excepção prevista na alínea h) do artigo 75.º, número 2, do CDADC; e que o facto de o Recorrente publicar as provas no seu sítio Internet faria com que as provas pudessem ser apropriadas por qualquer pessoa.
3. O facto provado 11 indica que “as publicações das requeridas estão organizadas por temas do programa curricular, com as respectivas soluções, não sendo utilizadas as provas de avaliação do IAVE tal qual são apresentadas aos alunos, sendo antes fragmentadas por temas” 4. Contudo, trata-se de uma asserção contrariada, desde logo, pelo facto provado 17, segundo qual “nas obras das requeridas e interveniente os exames nacionais são um complemento e acessório da totalidade da obra, aí se incluindo 2, 3 ou 4 exames nacionais”.
5. Ademais, o próprio Tribunal, na fundamentação da alínea a) dos factos não provados, escreveu que “resultou provado que nas compilações editadas e comercializadas pelas requeridas, apenas são publicadas algumas partes dos exames, por vezes a sua totalidade, mas em qualquer dos casos como complemento do manual de treino”.
6. Também a prova documental, nomeadamente os manuais publicados pelas Recorridas juntos aos autos, demonstram que as provas elaboradas pelo Recorrente são utilizadas na íntegra pelas Recorridas.
7. Acresce que os depoimentos das testemunhas Manuela Monteiro e Adelaide Queirós, por um lado, e as declarações de parte do representante do Recorrente, por outro, infirmam igualmente o facto provado 11.
8. Por conseguinte, o facto provado 11 deve ser alterado de modo a constar o seguinte: “as publicações das requeridas estão organizadas por temas do programa curricular, com as respectivas soluções, sendo as provas de avaliação do IAVE usadas integralmente, ainda que em certos casos sejam utilizados fragmentos para determinados temas”.
9. Não tem razão o Tribunal a quo quando sustenta que as questões não podem ser protegidas por direito de autor: o facto de uma determinada ideia ou criação intelectual ser exteriorizada sob a forma de uma questão em nada prejudica a sua proteção por direito de autor, posto que satisfaça o requisito legal constante do artigo 1.º do CDADC.
10. O Tribunal a quo não considerou, igualmente, o conceito de obra colectiva. As provas de exame são obras elaboradas sob direção e supervisão do Recorrente, facto que resultou claramente, por exemplo, do depoimento da testemunha Filomena.
11. De acordo com a alínea b) do artigo 16.º, número 1, do CDADC, diz-se obra colectiva aquela que é “organizada por iniciativa de entidade singular ou colectiva e divulgada ou publicada em seu nome”,
12. E, por força do artigo 19.º, número 1, do mesmo diploma, “o direito de autor sobre obra colectiva é atribuído à entidade singular ou colectiva que tiver organizado e dirigido a sua criação e em nome de quem tiver sido divulgada ou publicada”.
13. Nessa medida, longe de desqualificar a tutela jusautoral das provas de exame, a circunstância de estas serem preparadas por um conjunto diverso de pessoas, posto que todas sob a coordenação e direção do Recorrente, concorre para atribuir a este a respectiva titularidade, enquanto obras colectivas.
14. Também não tem razão o Tribunal a quo quando pretende que o facto de as provas de exame serem preparadas tendo em conta a carta de solicitação do Ministério da Educação prejudicaria a respetiva criatividade.
15. Nas cartas de solicitação, o Ministério da Educação mais não faz do que estabelecer as diretrizes que pretende ver acauteladas na preparação dos enunciados.
16. Ora, aquilo que nos exames permite a especial proteção do quadro jusautoral da lei não tem a ver com a estrutura, nem com os conceitos, nem com a complexidade, mas antes com a originalidade da recolha e configuração de conteúdos que constituem as provas de exame.
17. É irrelevante que as provas de exame correspondam ou não a um mesmo modelo “conceptual, estrutural e grau de complexidade idêntico”: tal decorre da circunstância de serem provas de avaliação, dirigidas a um fim sempre constante.
18. É o conteúdo concreto de uma obra, independentemente da sua estrutura, que é objeto de proteção.
19. Nem se pode dizer, em abstracto, que a circunstância de, num determinado domínio, existirem diretrizes legais ou administrativas a cumprir aquando da elaboração de uma obra criativa retira o carácter original a tal criação:
20. O design de automóveis ou a projeção arquitetónica de unidades industriais – para dar apenas dois exemplos – devem, naturalmente, respeitar diversas imposições legais, e nem por isso deixam de se constituir direitos de propriedade intelectual sobre o desenho dos automóveis ou sobre o projecto de arquitectura das fábricas.
21. E não se deve pretender que as cartas de solicitação sejam “encomendas”, nomeadamente para o efeito de daí retirar que é afinal ao Estado, e não ao Recorrente, que cabe o direito de autor sobre as provas de exame.
22. Nos casos de obra feita por encomenda, o direito de autor só fica a pertencer ao comitente – e não ao comissário – quando tal seja estipulado no contrato (números 1 e 2 do artigo 14.º do CDADC); ora, as cartas de solicitação nada preveem quando à titularidade do direito sobre as provas.
23. O Tribunal a quo considerou igualmente, sem razão, que não teria sido alegado nem provado que existisse criatividade na preparação das provas de exame.
24. Na verdade, o Recorrente alegou que “vem criando sucessivas equipas de docentes e especialistas que, sob a sua direção, coordenação e supervisão, elaboram, em cada ano letivo, as provas de exame a que se submetem milhares e milhares de alunos em Portugal”, e que “organiza e elabora tais provas, paga aos seus autores, investe nessas obras colectivas”,
25. Factos que, de resto, ficaram a constar dos pontos 2, 3 e 6 da matéria provada.
26. O Recorrente desempenhou-se, pois, adequadamente do ónus processual que sobre si impendia: alegou, como lhe competia, que é sob sua coordenação e direção que as provas de exame são elaboradas, e demonstrou-o cabalmente.
27. Uma prova de exame, ainda que obedeça a um padrão, pode ter – e os exames elaborados pelo Recorrente têm – uma componente criativa que se desprende de qualquer forma servil.
28. O autor da prova escolhe o tema, seleciona um texto para ser comentado, ou cria de raiz um texto de exame; igualmente, junta questões concebidas expressamente para o efeito, gizando problemas, traduzidos numa redacção concreta, criando portanto uma narrativa que, tendo embora um escopo concreto, não deixa de ser uma obra literária.
29. E é justamente isso que sucede com as provas elaboradas pelo Recorrente, como resultou, por exemplo, dos depoimentos das testemunhas Filomena e Susana.
30. Se as provas produzidas pelo Recorrente não pudessem ser tuteladas por direito de autor, qual seria o objecto do artigo 20.º, número 2, alínea b) do Decreto-Lei n.º 102/2013, segundo o qual uma das receitas do Recorrente é a que decorre da sua “propriedade intelectual”?
31. Também não tem razão o Tribunal a quo quando pretende aplicar o artigo 8.º, número 1, do CDADC, conjugado com o artigo 3.º, número 1, alínea c), a fim de excluir a tutela jusautoral das provas de exame, enquanto “textos oficiais administrativos”.
32. A exclusão da proteção jusautoral só afeta os “relatórios e decisões administrativas”, tomados em si mesmos, e não as obras protegidas que eventualmente neles se incorporem.
33. Se os textos de decisões administrativas não pudessem incorporar obras protegidas, não faria desde logo sentido a existência o artigo 8.º, número 2, e sobretudo não se perceberia por que motivo, fora do âmbito de atividade do serviço público em questão, o respectivo autor manteria os seus direitos.
34. Ao indicar que os relatórios e decisões administrativas não seriam, em si, protegidos, salvaguardando porém que neles poderiam estar incluídas obras protegidas, o legislador Português fez apenas aquilo que lhe era consentido pelo artigo 2.º, número 4, da Convenção de Berna.
35. Com efeito, do ponto 136 do “Relatório sobre os Trabalhos da Comissão Principal n.º 1” da Conferência de Estocolmo de 1967 – na qual foi introduzida na Convenção de Berna a disposição acima citada – resulta que “a referência feita na Convenção aos textos de natureza administrativa não dão aos Estados-membros a liberdade de recusar a protecção à todas as publicações governamentais, por exemplo a manuais escolares”.
36. Se o Estado lançasse um concurso para a criação de uma pintura a colocar num tribunal, deixaria esta de ter direitos de autor por aplicação do art.º 8.º, número 1 do CDADC? Certamente que não – e nem sequer por uma particular exegese do preceito, e sim à luz da salvaguarda constante do número 2.
37. O que resulta do número 2 do artigo 8.º é que, no caso de textos oficiais que incorporem obras sujeitas ao seu domínio, o direito de autor é comprimido enquanto durar a atividade de serviço público de que se trate.
38. Assim, o Recorrente ou outro titular de direitos de autor, em idêntica situação, não pode prevalecer-se do seu direito absoluto enquanto sob a égide do serviço público em questão.
39. A verdade, porém, é que o Recorrente até faz mais: não só elabora os pontos de exame, como os disponibiliza através da Comunicação Social e os coloca à disposição do público na Internet. Esta é a atividade de serviço público.
40. Outra coisa, bem diferente, é uma empresa comercial, como as Recorridas, apropriar-se de uma obra protegida pelo Direito de autor, utilizá-la e inseri-la no comércio, daí auferindo lucros. Aí não se vislumbra onde esteja qualquer atividade de serviço público.
41. Uma vez preparados os enunciados de exame, o Recorrente não poderia, como é evidente, opor-se à sua utilização no âmbito da atividade de avaliação externa dos alunos, nem reclamar do Estado qualquer compensação por essa utilização.
42. Diferente é o caso de uma entidade que não o Estado (nem o Recorrente) pretender utilizar os enunciados de exame para exploração comercial. É o que sucede com as Recorridas.
43. O que as Recorridas fazem é apropriar-se de uma obra alheia e explorá-la comercialmente, em concorrência com as demais editoras que se dedicam a esta área, quer reproduzindo as obras tão-só, quer reproduzindo-as acrescentados de comentários e de propostas de resolução, tudo constituindo obras derivadas para as quais precisam, também, nos termos da lei, de autorização do titular dos respectivos direitos (artigo 3.º e 169.º do CDADC).
44. Ora, como aliás resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (acórdãos “Rafael Hoteles” e “Pirate Bay” – C-306/05 e C-610/15), a circunstância de a entidade que explora um direito, sem autorização, com intuito lucrativo reveste-se de grande importância, uma vez que, como refere a doutrina, o que a lei reserva ao titular do direito de autor é o monopólio de exploração patrimonial de uma obra.
45. As leis, regulamentos, decisões judiciais ou administrativas são textos cuja vocação é a de serem conhecidos, por isso que terão com os respetivos destinatários uma relação que ultrapassa a da mera leitura-compreensão, antes se enquadrando como orientadores de condutas.
46. Em relação a esses, o legislador esclarece que não cabe direito de autor, visto que a finalidade de comunicação ficaria prejudicada com uma restrição de natureza jusautoral à sua difusão.
47. O mesmo já não se pode dizer em relação a outras obras emanados de entes públicos. É certo que, tratando-se de entes públicos, cuja missão é, pois, dirigida ao público, torna-se necessário garantir que, no âmbito do serviço a que se dedicam, o direito de autor não atua – e daí a disposição constante do artigo 8.º, número 2;
48. Contudo, fora desse domínio concreto, nenhum motivo existe para recusar a aplicação dos poderes jusautorais, mais a mais em face de quem pretenda explorar comercialmente as obras em questão.
49. É também sem fundamento que o Tribunal a quo invoca a excepção constante da alínea h) do artigo 75.º, número 2, do CDADC.
50. A alínea h), quando comparada com várias das alíneas que a precedem e que se lhe seguem, apenas autoriza a “inclusão”, e não já a “reprodução”, “colocação à disposição do público, “comunicação pública”, “distribuição e disponibilização pública”.
51. Assim, ainda quando a alínea fosse aplicável in casu – o que não sucede –, as Recorridas apenas ficariam habilitadas a incluir em obras suas peças curtas ou fragmentos das provas de avaliação do Recorrente, e não já a reproduzir tais obras.
52. Em segundo lugar, as obras publicadas pelas Recorridas não são “obras destinadas ao ensino”; são, sim, obras cujo conteúdo é relacionado com questões “de ensino”, mas que se destinam ao comércio.
53. Ensina quem transmite conhecimentos (docente), não quem os adquire (discente), nem muito menos quem os vende (rectius, quem vende instrumentos de preparação de exames).
54. As Recorridas só se poderiam valer do artigo 75.º, número 2, alínea h), se de facto apenas utilizassem peças curtas ou fragmentos das obras do Requerente, o que não se verifica, visto que as provas de avaliação criadas pelo Recorrente são incluídas na sua totalidade pelas Recorridas nas obras que publicam.
55. Da norma resulta que só é lícita a inclusão de (i) peças curtas de obras alheias, ou de (ii) fragmentos de obras alheias – qualquer das expressões remete para um sentido apenas: o de que só é lícito incluir, numa obra destinada ao ensino, partes reduzidas de obras alheias, e não obras alheias inteiras, desde que sejam curtas.
56. Qualquer outra interpretação redundaria, para todos os efeitos, em esbulhar do seu direito de autor todos os criadores de obras curtas por natureza, como obras de poesia ou certas obras musicais.
57. E, se fosse aplicável a referida excepção, as Recorridas ainda teriam de pagar ao Recorrente a remuneração equitativa prevista na alínea c) do artigo 76.º, número 1, do CDADC – o que evidentemente não se verifica.
58. Não tem igualmente razão o Tribunal a quo quando sustenta que, sendo as provas de avaliação públicas, as Recorridas, como qualquer outra possa, poderiam apropriar-se delas – na verdade, o Tribunal a quo confunde obras públicas com obras no domínio público.
59. As faculdades de publicar e divulgar uma obra são prerrogativa exclusiva do seu autor (artigo 67.º do CDADC), não importando para este qualquer “esgotamento” do seu direito.
60. O Recorrente compreende e aceita que, em sede de serviço público, deve disponibilizar as provas, publicando-as, contemporaneamente à realização do exame, num jornal de grande divulgação nacional, e disponibilizando-as, por algum tempo, no seu web site.
61. Mas essa publicação e divulgação é irrelevante para a apreciação da conduta das Recorridas; pretender o contrário seria estabelecer uma falsa equivalência: o Recorrente publica e divulga as provas de exame porque tal corresponde a uma prerrogativa que a lei lhe confere enquanto titular do direito de autor a elas respeitante; já as Recorridas utilizam e comercializam as provas em violação do direito do Recorrente.
O apelante terminou pedindo que a sentença recorrida fosse revogada e substituída por outra que condenasse as Recorridas nos termos peticionados.
A requerida P Editora S.A. contra-alegou, sem formular conclusões, pugnando pela improcedência da apelação e consequente manutenção da decisão recorrida.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões que se suscitam neste recurso são as seguintes: impugnação da matéria de facto; titularidade de direitos de autor por parte do requerente; exclusão da proteção dos direitos de autor do requerente, por força das disposições conjugadas da al. c) do n.º 1 do art.º 3.º e n.º 1 do art.º 8.º do CDADC; aplicabilidade do disposto na al. h) do n.º 2 do art.º 75.º do CDADC. A solução dada a uma das questões pode prejudicar a apreciação da(s) restante(s).
Primeira questão (impugnação da matéria de facto)
O tribunal a quo deu como provada a seguinte
Matéria de facto
1 - As requeridas editam e comercializam em diversos pontos de venda as seguintes publicações:
- “Questões de Exames Resolvidas” donde constam provas de avaliação de:
a) Biologia e Geologia – 11º ano 2006-2016 (2016)
b) Matemática A – Funções e Complexos – 12 ano 1997-2015 (2016)
c) Matemática A – Probabilidades e Combinatória – 12º ano 1997-2015 (2016)
d) Matemática A- Funções – 12º ano 1997-2015 (2016).
- “Preparar a Prova Final 2017” donde constam provas de avaliação de:
a) Matemática – 9º ano (2016).
b) Português – 9º ano (2016)
c) Preparar o exame 2017
d) Física e Química A – 11º ano (2016)
e) Matemática A – 12º ano (2016)
f) Português – 12º ano (2016)
2 – A requerente IAVE (anterior GAVE) é quem concebe os instrumentos de avaliação externa dos alunos, provas finais e exames nacionais.
3 – A requerente cria, todos os anos, equipas de docentes e especialistas que sob a sua direção, coordenação e supervisão elaboram as provas de exame nacionais.
4 – A requerente publica não só em jornais de grande circulação (atualmente Público) como no seu site as provas de avaliação, após a realização das mesmas.
5 – A requerente edita periodicamente, em suporte de papel essas provas de exame.
6- Os serviços prestados por colaboradores externos contratados para a realização das provas são remunerados.
7 – As requeridas não pagam qualquer quantia à requerente pela inclusão, nos manuais que editam, das provas de exame neles inseridas.
8 – O IAVE é incumbido de elaborar os instrumentos de avaliação após receção da carta de solicitação elaborada pelo Governo e assinada pelo Secretário de Estado da Educação, na qual constam as diretrizes gerais das avaliações pretendidas.
9 – As provas de avaliação são constituídas por questões sobre as matérias constantes dos programas curriculares.
10 – As provas de avaliação tendem a manter semelhança conceptual, estrutural e grau de complexidade idêntico, em todos os anos.
11 – As publicações das requeridas estão organizadas por temas do programa curricular, com as respetivas soluções, não sendo utilizadas as provas de avaliação do IAVE tal qual são apresentadas aos alunos, sendo antes fragmentadas por temas.
12 – As provas de avaliação sempre foram utilizada pelos autores e editores, sem qualquer objeção do Ministério de Educação ou do GAVE.
13 – O atual Presidente do Conselho Directivo do IAVE – Hélder de Sousa – esteve 10 anos como diretor do anterior GAVE e nunca se opôs a que as editoras e autores utilizassem os exames elaborados por esse Gabinete de Avaliação.
14 – Para criar as publicações as requeridas contratam professores com aptidões específicas em cada matéria, os quais organizam os manuais por temas, fazendo uma súmula da matéria, colocando as questões e elaborando as respostas, não só as por si idealizadas, como algumas que constaram de exames nacionais, mas com respostas dos próprios autores e não com as respostas elaboradas pelo IAVE.
15 – São estas características que diferenciam as edições das requeridas, da compilação dos exames nacionais, e que motiva a aquisição das mesmas pelos alunos.
16 – Na obra de fls. 89 e 90 constata-se do índice que das quase 400 páginas que o livro tem, apenas 12 se referem a exames nacionais de 1ª e 2ª fase do ano de 2016, aí se incluindo as resoluções propostas pelos autores.
17 – Nas obras das requeridas e interveniente os exames nacionais são um complemento e acessório da totalidade da obra, aí se incluindo 2, 3 ou 4 exames nacionais.
18 – O Presidente do Conselho Diretivo do IAVE afirmou numa publicação que o “IAVE não pode inventar exames e concebê-los como lhe apetecer” “Os exames são todos escrutinados por diversos especialistas, passam pelo crivo de um conselho cientifico que integram os representantes das associações de professores e sociedades cientificas que os validam”.
19 – As requeridas editam e comercializam as publicações em causa nos termos dos contratos de edição juntos a fls. 141 a 154 verso, pagando os custos.
20 – Os professores encarregues de elaborar os exames nacionais, têm 50% do seu horário semanal afeto ao IAVE e nos restantes 50% do seu tempo lecionam nas escolas onde estão colocados, sendo que o respetivo ordenado é pago pela escola, via Ministério da Educação, nada recebendo do IAVE.
21 – Todos os exames nacionais realizados estão disponíveis no site da requerente.
Na sentença foram enunciados os seguintes
Factos não provados
a) Que as requeridas se apropriem das provas de avaliação e procedam à sua edição de forma a que as provas estejam agrupadas em coletâneas ou em separado.
b) Que seja apenas a requerente a organizar tais provas e as pague aos professores que as elaboram.
c) Que a requerente suporte o investimento na elaboração das provas.
O Direito
Nos termos do n.º 1 do art.º 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (n.º 2 alínea a) do art.º 640.º do CPC).
No caso deste recurso, o apelante insurge-se contra o teor do n.º 11 da matéria de facto provada. Aí se deu como provado o seguinte:
As publicações das requeridas estão organizadas por temas do programa curricular, com as respetivas soluções, não sendo utilizadas as provas de avaliação do IAVE tal qual são apresentadas aos alunos, sendo antes fragmentadas por temas” (negrito nosso).
Segundo o apelante, o referido número da matéria de facto deve ser alterado, devendo passar a constar o seguinte:
As publicações das requeridas estão organizadas por temas do programa curricular, com as respetivas soluções, sendo as provas de avaliação do IAVE usadas integralmente, ainda que em certos casos sejam utilizados fragmentos para determinados temas” (negrito nosso).
Para sustentar a referida impugnação o apelante invoca o que consta no n.º 17 da matéria de facto, a fundamentação da decisão de facto constante na sentença e alguns depoimentos prestados em audiência.
Vejamos.
O n.º 17 da matéria de facto tem a seguinte redação:
Nas obras das requeridas e interveniente os exames nacionais são um complemento e acessório da totalidade da obra, aí se incluindo 2, 3 ou 4 exames nacionais” (negrito nosso).
Os trechos da fundamentação da decisão de facto indicados pelo apelante têm a seguinte redação:
Os factos 11, 14 e 15 resultaram da conjugação dos documentos de fls. 84 e 85 e ainda do depoimento das testemunhas Maria G., Maria A., Maria M. e Adelaide, as quais unanimemente e com conhecimento de causa afirmaram que as coletâneas que a requerente coloca em causa, são muito mais que uma compilação de testes de exame, pois são verdadeiros manuais organizados por temas, onde para além de se fazer um resumo de cada tema, depois há vários exercícios com as respectivas soluções e só no final dos manuais é que colocam alguns exames nacionais, geralmente dos dois anos anteriores, onde fazem a própria sugestão de correcção. Considerou-se ainda os manuais juntos aos autos” (negrito nosso);
Por outro lado, resultou provado que nas compilações editadas e comercializadas pelas requeridas, apenas são publicadas algumas partes dos exames, por vezes a sua totalidade, mas em qualquer dos casos como complemento do manual de treino” (negrito nosso).
A apelada/requerida P Editora, na sua contra-alegação, defende que não existe qualquer contradição entre os n.ºs 11 e 17 da matéria de facto, devendo manter-se a decisão recorrida, pois cada um dos referidos números se refere a diferentes tipos de obra das requeridas.
Escreve a recorrida:
4. Na verdade, e como bem considerou a douta Sentença, a Recorrida e Interveniente editam diferentes tipos de obras de preparação dos alunos para os exames, sendo certo que em algumas, a referência às provas de exame é feita de acordo com a inserção sistemática dos temas propostos para estudo, pelo que as questões de exame são divididas ao longo das obras, e noutras, a inclusão das questões de exame surgem apenas no final de cada obra.
5. Assim, ao primeiro tipo de obras mencionadas, corresponde a factualidade descrita na douta Sentença recorrida sob o ponto 11 dos factos provados, enquanto o segundo tipo se enquadra na matéria vertida sob o ponto 17.
6. De facto, quer a prova testemunhal quer a documental, evidencia a existência de diversas formas de elaboração e de apresentação deste tipo de obras, factualidade essa que foi fielmente constatada e relatada pela douta Sentença recorrida, não se vislumbrando qualquer contradição.
7. Pelo que, quando o Tribunal a quo se refere “apenas são publicadas algumas partes dos exames”, fá-lo em perfeita concordância com o disposto sob o referido ponto 11 e quando afirma que a utilização de provas de exame por vezes é feita na sua totalidade, está em clara conformidade com os factos constantes do ponto 17.”
Tanto dos livros juntos aos autos, como dos depoimentos citados pelo recorrente e pela recorrida resulta, efetivamente, que em algumas obras publicadas pelas requeridas as provas nacionais são reproduzidas parcialmente, de forma fragmentada, inseridas por temas, enquanto que noutras as ditas provas são apresentadas na íntegra, embora de forma acessória ou complementar. Ora, os n.ºs 11 e 17 da matéria de facto estão redigidos de forma simultaneamente absoluta e excludente, inculcando uma aparente contradição. Convirá, assim, alterá-los, de forma a harmonizá-los entre si e adequá-los ao que de facto se provou.
Assim, altera-se a redação dos n.ºs 11 e 17 da matéria de facto, que passarão a ter o seguinte texto:
11. “Algumas das publicações das requeridas estão organizadas por temas do programa curricular, com as respetivas soluções, não sendo utilizadas as provas de avaliação do IAVE tal qual são apresentadas aos alunos, sendo antes fragmentadas por temas.
17. “Nas obras das requeridas e interveniente os exames nacionais são um complemento e acessório da totalidade da obra, aí se incluindo, em algumas delas, 2, 3 ou 4 exames nacionais”.
Segunda questão (titularidade de direitos de autor por parte do requerente)
Sob a epígrafe “Liberdade de criação cultural”, o art.º 42.º da Constituição da República Portuguesa proclama que “é livre a criação intelectual, artística e científica” (n.º 1) e que “esta liberdade compreende o direito à invenção, produção e divulgação da obra científica, literária ou artística, incluindo a protecção legal dos direitos de autor” (n.º 2).
Os direitos de autor incidem sobre bens imateriais, mas necessariamente exteriorizados, que a lei considera serem dignos de proteção. Trata-se, no dizer do texto legal, de “obra protegida”.
Nos termos da definição contida no art.º 1.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 63/85, de 14.3, com as alterações publicitadas), para esse efeito “consideram-se obras as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas, que, como tais, são protegidas nos termos deste Código, incluindo-se nessa protecção os direitos dos respectivos autores.
A tutela da obra faz-se basicamente pela outorga de um exclusivo. Do ponto de vista patrimonial, a atividade de exploração económica da obra, que de outro modo seria livre, passa a ficar reservada para o titular (art.º 9.º n.º 2 do CDADC).
O CDADC procede a uma enumeração meramente exemplificativa de obras “originais” (art.º 2.º). No art.º 3.º, enuncia um elenco taxativo de obras que, sendo embora derivadas de obras originais, têm, ainda assim, um cunho de criatividade que justifica a proteção legal, sendo equiparadas a obras originais.
Assim, no n.º 1 do art.º 3.º equipara-se a obras originais:
a) As traduções, arranjos, instrumentações, dramatizações, cinematizações e outras transformações de qualquer obra, ainda que esta não seja objecto de protecção;
b) Os sumários e as compilações de obras protegidas ou não, tais como selectas, enciclopédias e antologias que, pela escolha ou disposição das matérias, constituam criações intelectuais;
c) As compilações sistemáticas ou anotadas de textos de convenções, de leis, de regulamentos e de relatórios ou de decisões administrativas, judiciais ou de quaisquer órgãos ou autoridades do Estado ou da Administração.
O conceito essencial é o de criação, criação emergente do espírito humano. Ou seja, a obra pressupõe criatividade, qualificativo algumas vezes usado em sinonímia com o conceito de originalidade (vide Maria Victória Rocha, A originalidade como requisito de protecção da obra pelo Direito de Autor: algumas reflexões”, in Verbo Jurídico, www.verbojuridico.net.com.org, junho de 2013; também, com pontuais desenvolvimentos, a mesma autora, “Contributos para a delimitação da “originalidade” como requisito de protecção da obra pelo Direito de Autor”, in Ars Ivdicandi, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, volume II: Direito Privado, 2008, Coimbra Editora, p. 733 e ss.).
A doutrina, seguida de perto pela jurisprudência, tem procurado afinar estes conceitos.
José de Oliveira Ascensão, figura basilar na construção do Direito de Autor em Portugal, aponta para a “contraposição entre os elementos pré-dados e o contributo criador. Haverá ainda obra, apesar da utilização de elementos precedentes, desde que haja um espaço de criação individual” (Direito de Autor e Direitos Conexos, 1992, Coimbra Editora, pp. 66 e 67. Assim se chega “à noção de individualidade, como a decisiva para a caracterização da obra; tal como a referência ao espaço em branco (ou Spielraum) se tornou básica neste domínio” (obra citada, p. 67). Embora também se use dizer que a obra constitui, ou deve constituir, expressão da personalidade do seu autor, Oliveira Ascensão acautela os efeitos que uma interpretação estrita ou rigorosa desse imperativo produziria: “Pareceria exigir-se que a obra fosse tão personalizada que através dela o autor fosse reconhecível. Mas, se isso acontece nas obras de maior nível criativo, não pode ser generalizado como condição de protecção. Pode haver autonomia e criatividade mesmo quando a obra não seja suficiente para retratar o autor. (obra citada, pág. 67). Assim o exige o “movimento de banalização do Direito de Autor” (obra citada, p. 89). A busca da individualidade “atinge um patamar mínimo.(…) A cultura de consumo leva a que a personificação seja mínima em grande número de casos” (ob. cit., p. 90). Por outro lado, a tutela do Direito de Autor não abarca a obra que se situa no limite do óbvio. Não é “criação” o que representa a mera aplicação de ideias comuns (obra citada, p. 74). Assim como não há criatividade “quando a expressão representa apenas a via única de manifestar a ideia”. Ou seja, “não há a criatividade, que é essencial à existência de obra tutelável, quando a expressão representa apenas a via única de manifestar a ideia“ (obra citada, p. 74).
Para Oliveira Ascensão, o Direito de Autor “não existe para reprimir a imitação, mas para premiar a criatividade. Por isso atribui uma tutela tão significativa” (ob. cit., p. 89). Assim, “se se não exige que se reconheça uma personalidade, exige-se que se reconheça, positivamente, que há um mínimo de criação. Um novo elemento, que não constava do quadro de referências objectivas da comunidade, não se apresentava como óbvio nem se reduz a uma aplicação unívoca de critérios pré-estabelecidos, foi introduzido por um acto criativo” (ob. cit., p. 90).
Outro grande impulsionador do Direito de Autor em Portugal, Luiz Francisco Rebello, define obra como “uma criação do espírito humano, de natureza literária, artística ou científica, exteriorizada numa determinada forma” (Introdução ao direito de autor, vol. I, SPA/Publicações Dom Quixote, 1994, p. 64).
Luiz Francisco Rebello considera que a originalidade é um requisito comum a todas as obras compreendidas na tutela do Direito de Autor (ob. cit., p. 88), embora não deva, contrariamente ao que se verifica no domínio da propriedade industrial, identificar-se a originalidade com a noção de novidade, mas entender-se como sinónimo de criatividade (p. 87). “A criatividade, ainda que em grau diminuto e de expressão fruste, é condição imprescindível da tutela legal” (ob. cit., p. 89). “É essa originalidade, difícil de definir a priori, e que por isso deverá ser apreciada casuisticamente, que permite distinguir entre si obras que desenvolvem o mesmo tema” (ob. cit., pp. 89, 90).
Focando o que decorre expressamente do proémio do art.º 2.º do CDADC, ou seja, que o Direito de Autor abarca a obra independentemente do seu objetivo e do seu mérito, Luiz Francisco Rebello dá nota de decisões jurisprudenciais, nacionais e estrangeiras, que reconheceram proteção jusautoral a obras sugestivamente chamadas de “trocos” ou “pequenas moedas” (Kleine Münze), tais como roteiro dos parques campistas existentes em Portugal; uma série de volumes sobre itinerários turísticos; um mapa de estradas; um guia turístico; um manual de instruções para utilização de uma máquina (ob. cit., pp. 92 e 93).
No seu Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos anotado (Lisboa, 2002, Âncora Editora), Luiz Francisco Rebello, contrapondo a desnecessidade da novidade da obra, reafirma que “antes deverá falar-se em «originalidade» (…), mas apenas no sentido de que a obra protegida deve ser original na sua forma, e não necessariamente no seu conteúdo, isto é, exige-se-lhe tão-só que não consista na mera cópia ou decalque de outra, o que explica que lhe sejam equiparadas obras que não são consideradas originais em sentido corrente, como é o caso de todas aquelas a que faz referência o artigo 3.º (traduções, adaptações, arranjos, transformações, compilações, enciclopédias, antologias” (Código…, cit., pp. 30 e 31).
Maria Victória Rocha, na versão do seu estudo sobre o conceito de originalidade como requisito de proteção da obra pelo Direito de Autor, publicada em Ars Ivdicandi, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, volume II, a que já acima se fez referência, conclui que a originalidade é um conceito de imputação subjetiva, que nos permite atribuir uma obra a um determinado autor; não se identifica com a marca da personalidade do autor; não exige a verificação de uma especial criatividade; não é um conceito puramente negativo, traduzido em ausência de cópia, nem se basta com a existência de esforço, trabalho ou investimento; não se traduz em novidade objetiva; para haver originalidade basta que a obra seja produto de uma atividade intelectual independente do seu autor; o que é de uso comum, generalizado, vulgar ou banal não pode ser tido como original, pois não pode ter origem num determinado autor; isto não implica considerações de mérito; tem também como corolário a necessidade de existência de um espaço de liberdade, por mínimo que seja, para o autor desenvolver a sua atividade intelectual. Se a forma é imposta pela função a atingir, não há espaço para intervir a individualidade do autor; basta que alguém desenvolva uma atividade criativa independente, ou seja, que intervenha com a sua imaginação no processo lógico de realização da obra, para que a obra seja original, uma vez que o resultado obtido é necessariamente pessoal, individualizado; deste modo, a originalidade é uma exigência minimalista; por isso as obras utilitárias em que a criatividade é mínima, as tradicionais “Kleine Münze”, mas em que ainda há um espaço de liberdade, podem ser originais e suscetíveis de proteção; havendo que, embora tendo por base todos estes parâmetros, apurar-se a originalidade em cada caso concreto, pois está-se perante um “conceito-quadro” (ob. cit., p. 792).
Luís Manuel Teles de Menezes Leitão aponta, como exemplos de “Kleine Münze”, obras banais a que tem sido concedida a proteção do Direito de Autor, livros de cozinha, almanaques, explicações de jogos de cartas e de sociedade, catálogos, listas de preços (Direito de Autor, 2011, Almedina, p. 80).
Patrícia Akester conclui, “com base nas exigências decorrentes da lei portuguesa e da jurisprudência da União Europeia, que a obra, entendida como criação do espírito humano tutelada na sua forma de expressão, será considerada original se tiver individualidade, não porque é algo que se vê pela primeira vez, não porque contém necessariamente a marca indelével do seu autor (…), mas porque é criação intelectual do autor, fruto do esforço criador e engenho deste, emergindo num contexto de liberdade criativa – tomando o autor opções num quadro de liberdade e de criatividade.” (Direito de Autor em Portugal, nos PALOP, na União Europeia e nos Tratados Internacionais, 2013, Almedina, p. 78).
Na jurisprudência, continua atual a amplamente citada proposição formulada pelo juiz José Manuel Pinheiro, em 05.6.1981, em sentença publicada na Colectânea de Jurisprudência, 1981, t. 4, pp. 321-329: “Uma obra será intelectual, literária ou artística, desde que seja emanação dum esforço criador da inteligência, do espírito humano: é essa a obra que a legislação sobre direitos de autor visa acautelar” (cfr. Luiz Rebello de Sousa, “Introdução…, ob. cit., p. 88; Maria Victória Rocha, “A originalidade como requisito…”, estudo citado, p. 20).
Também nos reconhecemos na formulação constante, em sumário, no acórdão da Relação de Lisboa, de 16.12.2008, processo 8864/2008-5 (consultável em www.dgsi.pt): “O carácter criativo da “obra”, a que alude o art. 1º do CDADC, depende de não constituir cópia de outra obra (requisito mínimo), não constituir o resultado da aplicação unívoca de critérios pré – estabelecidos, nomeadamente de natureza técnica, em que estejam ausentes verdadeiras escolhas ou opções do autor e traduzir um resultado que não seja óbvio, banal, e que, portanto, permita distingui-lo de outros, reconhecer-lhe uma individualidade própria, enquanto obra, independentemente do suporte material que a encerra.
Nos termos do art.º 11.º do CDADC, sob a epígrafe “titularidade”, “o direito de autor pertence ao criador intelectual da obra, salvo disposição expressa em contrário.”
A obra pode ser o resultado do trabalho de mais do que uma pessoa física. Podendo até não ser possível distinguir o contributo de cada uma dessas pessoas.
A esse respeito a lei distingue entre obra feita em colaboração e obra colectiva:
Art.º 16.º
Noção de obra feita em colaboração e de obra colectiva
1 - A obra que for criação de uma pluralidade de pessoas denomina-se:
a) Obra feita em colaboração, quando divulgada ou publicada em nome dos colaboradores ou de alguns deles, quer possam discriminar-se quer não os contributos individuais;
b) Obra colectiva, quando organizada por iniciativa de entidade singular ou colectiva e divulgada ou publicada em seu nome.
2 - …
Reportando-se à obra coletiva, estipula assim o art.º 19.º:
1 - O direito de autor sobre obra colectiva é atribuído à entidade singular ou colectiva que tiver organizado e dirigido a sua criação e em nome de quem tiver sido divulgada ou publicada.
2 - Se, porém, no conjunto da obra colectiva for possível discriminar a produção pessoal de algum ou alguns colaboradores, aplicar-se-á, relativamente aos direitos sobre essa produção pessoal, o preceituado quanto à obra feita em colaboração.
3 - Os jornais e outras publicações periódicas presumem-se obras colectivas, pertencendo às respectivas empresas o direito de autor sobre as mesmas.”
Como refere Alberto de Sá e Mello (Manual de Direito de Autor e Direitos Conexos, 2016, 2.ª edição, Almedina, p. 63), a obra coletiva “é obra de autoria singular, de pessoa física ou colectiva: apesar de compreender a criação de uma pluralidade de sujeitos que para ela carreiam os seus contributos criativos individuais, é criada por iniciativa e sob coordenação de uma pessoa singular ou colectiva – é verdadeiramente da autoria singular de uma empresa (de que pode ser titular uma pessoa singular ou coletiva”. E, em nota, sugestivamente acrescenta que “se atendermos à “verdade material” do processo criativo de um número crescente de obras de empresa (ditas colectivas), somos forçados a admitir que é não só impraticável como injusto atribuir a sua criação a uma pessoa física ou conjunto de pessoas físicas individualizáveis que para elas trazem os seus contributos criativos.” (ob. cit., p. 63, nota 54).
Em relação às obras feitas por encomenda ou por conta de outrem, o art.º 14.º dispõe o seguinte:
Determinação da titularidade em casos excepcionais
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 174º [trabalhos jornalísticos por conta de outrem], a titularidade do direito de autor relativo a obra feita por encomenda ou por conta de outrem, quer em cumprimento de dever funcional quer de contrato de trabalho, determina-se de harmonia com o que tiver sido convencionado.
2 - Na falta de convenção, presume-se que a titularidade do direito de autor relativo a obra feita por conta de outrem pertence ao seu criador intelectual.
3 - A circunstância de o nome do criador da obra não vir mencionado nesta ou não figurar no local destinado para o efeito segundo o uso universal constitui presunção de que o direito de autor fica a pertencer à entidade por conta de quem a obra é feita. 4 – …
Reportemo-nos ao caso dos autos.
Conforme expressamente anunciado no art.º 1.º do Dec.-Lei n.º 102/2013, de 25.7, o ora requerente (Instituto de Avaliação Educativa, I.P., abreviadamente designado por IAVE, I.P.) é um instituto público de regime especial, integrado na administração indireta do Estado, dotado de autonomia pedagógica, científica, administrativa e financeira e de património próprio. É um organismo central com jurisdição sobre todo o território nacional (art.º 2.º).
Provou-se que o requerente “concebe os instrumentos de avaliação externa dos alunos, provas finais e exames nacionais” (n.º 2 da matéria de facto). Para o efeito o requerente “cria, todos os anos, equipas de docentes e especialistas que sob a sua direção, coordenação e supervisão elaboram as provas de exame nacionais” (n.º 3 da matéria de facto). “Os serviços prestados por colaboradores externos contratados para a realização das provas são remunerados” (n.º 6). O requerente “é incumbido de elaborar os instrumentos de avaliação após receção da carta de solicitação elaborada pelo Governo e assinada pelo Secretário de Estado da Educação, na qual constam as diretrizes gerais das avaliações pretendidas” (n.º 8 da matéria de facto). Mais se provou que “as provas de avaliação são constituídas por questões sobre as matérias constantes dos programas curriculares” (n.º 9 da matéria de facto) e que “as provas de avaliação tendem a manter semelhança conceptual, estrutural e grau de complexidade idêntico, em todos os anos” (n.º 10 da matéria de facto).
Paralelamente à questão da exclusão de proteção de textos oficiais prevista no art.º 8.º n.º 1 do CDADC, o tribunal a quo entendeu que as referidas provas de exame não constituem obra, para o efeito de proteção pelo Direito de Autor.
A esse propósito, na sentença, exarou-se o seguinte:
Não nos podemos esquecer que o que é tutelado pelo Direito de Autor é a “criação” manifestada através de uma determinada expressão particular de um autor (humano).
Ou seja, o que é tutelado pelo sistema de Direito de Autor (contraposto ao sistema do Copyright anglo-saxónico) é a “criação”, não o labor ou esforço de elencar questões sobre determinada matéria leccionada num determinado ano lectivo e pré-estabelecida.
Na verdade, a requerente quanto a trabalho criativo propriamente dito, pouco alega, limitando-se a afirmar, conclusivamente, que tais livros contêm provas de avaliação cuja titularidade de direitos de autor lhe pertence, pelo simples facto de ser quem organiza e coordena a equipa que irá realizar as provas.
Como se sabe o domínio do Direito de Autor é complexo devendo dar-se atenção ao detalhe. O que realmente interessa, em sede da tutela do Direito de Autor, é a expressão humana criativa, manifestada exteriormente numa forma ou composição que de algum modo manifeste a singular personalidade do autor, daí a justificação da vertente pessoal do Direito de Autor, e a respectiva imprescritibilidade e inalienabilidade (…).
Por seu turno, deve ser recordado que para gozar da tutela do Direito de Autor o mérito não é um requisito, conforme resulta do citado art. 2.º, n.º 1, tal tutela ocorre independentemente do mérito da obra. Contudo, não se pode abdicar de um mínimo de criatividade na expressão que deve ser objecto de tutela, pois tal é exigido pelo art. 1.º, n.º 1 do CDADC.
Ora, tal criatividade pode revelar-se de muitas maneiras, tal é a riqueza do espírito humano. Revela-se, desde logo, nos poderes de composição, sistematização ou até de simples selecção.
Por isso é que se tutelam, sob o conceito de “obras equiparadas a originais”, por exemplo, as compilações (cf. art. 3.º, n.º 1 al. b) do CDADC), inclusive as “compilações sistemáticas ou anotadas de textos de convenções, de leis, de regulamentos e de relatórios ou de decisões administrativas, judiciais ou de quaisquer órgãos ou autoridades do Estado ou da Administração.” (art. 3.º, n.º 1 al. c), para o qual remete o art. 8.º, ambos do CDADC).
Não pode é esquecer-se que as informações, os factos e as questões (tal como as ideias, conceitos ou princípios, sistemas ou métodos operacionais – v. art. 1.º, n.º 2 do CDADC), em si mesmos, não podem ser objecto de direitos privativos, porquanto a sua simples exposição não revela nada de criativo. E, as provas de avaliação cuja titularidade autoral a requerente reclama, não poderão ser tuteladas pelo Direito de Autor. Por um lado, não se provou qualquer criatividade na elaboração de tais enunciados, pois são fruto de um trabalho de equipa, donde constam pessoas diversas, com valências díspares e que obedecem a directrizes do Ministério da Educação, sendo que obedecem sempre a um mesmo padrão estrutural e temático, apenas variando as questões concretas formuladas de ano para ano. Por outro lado, esses enunciados de exames nacionais não são mais do que uma parte integrante de um processo administrativo de avaliação e certificação de alunos com vista a uma decisão administrativa de aprovação ou reprovação previsto no DL nº 139/2012, de 05/07, não resultando alegado e muito menos provado que exista algo de criativo na sua elaboração. Aliás, ouvidos que foram vários professores responsáveis na elaboração dessas provas, os mesmos referiram que não se poderia falar de direito de autor, pois os exames são fruto de trabalho de várias equipas, cada um com as suas valências e que obedecem a uma directiva do Ministério da Educação, o qual define o programa curricular e os objectivos pretendidos com as provas a realizar. Se atentarmos ao depoimento de Maria P., o qual foi totalmente credível claro e convincente, constatamos isso mesmo. Esta professora exemplificou com total clareza o que poderá surpreender o aluno, falando de Camões e de Sophia de Mello Breyner. Disse que num ano para Camões poderá o exame focar-se na natureza, no ano seguinte no amor, e em Sophia de Mello Breyner a mesma coisa, num ano pode o exame focar-se no mar, no outro na transcendência. O ponto é sempre respeitar o programa e a estrutura da prova conforme as directrizes dadas pela carta de solicitação, sendo que a estrutura é sempre igual de ano para ano, e o grau de dificuldade também é equivalente. O que varia são os conteúdos.
Vejamos.
É certo que no seu requerimento inicial o requerente não se alongou na descrição e caracterização das ditas provas de exame e avaliação, nomeadamente tendo em vista a demonstração de que as mesmas constituem obras, dignas de proteção pelo Direito de Autor.
Terá o requerente considerado que as provas de exame nacional constituem uma realidade de todos sobremaneira conhecida, que “dispensa apresentações”. E terá igualmente considerado que o seu caráter criativo é óbvio, não carecendo de expressa justificação.
Perspetiva idêntica foi adotada no Parecer n.º 31/2016, da Procuradoria-Geral da República, de 23.3.2017 (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 150, de 04.8.2017, p. 16270 e ss). Aí, sem qualquer desenvolvimento, se considerou que a amplitude e abrangência do conceito legal de obra suscetível de proteção “implica que os enunciados das provas e exames nacionais de avaliação externa na medida em que constituem o resultado do esforço intelectual desenvolvido pelas equipas de professores designadas para a sua elaboração são suscetíveis de preencher a categoria obra literária.”
A verdade é que, de todo o modo, exemplares dessas provas foram documentados nos autos (vide os quatro exames nacionais de Matemática A, dos anos 2015 e 2016, inseridos no livro que constitui documento 7, pp. 420 e seguintes do dito livro), e sobre isso depuseram as testemunhas, conforme plasmado na sentença.
Ora, dos elementos dados como provados e constantes nos autos não emerge, a nosso ver, conclusão diversa daquela a que, neste conspecto, se chegou no aludido Parecer da PGR e que o apelante defende. Os aludidos exames constituem produtos de trabalho intelectual, necessariamente diferentes, no seu conteúdo, de provas anteriores, sob pena de ser adulterado o objetivo de avaliação da consecução, ou não, dos objetivos fixados para a educação e aprendizagem dos alunos a nível nacional. A circunstância de existirem linhas diretrizes a respeitar (n.º 8 da matéria de facto) e de as provas de avaliação tenderem a manter semelhança conceptual, estrutural e grau de complexidade idêntico, em todos os anos (n.º 10 da matéria de facto), não torna a tarefa de elaboração das provas uma atividade meramente mecânica, desprovida de qualquer esforço imaginativo. “Os exames finais nacionais têm como objetivo avaliar o desempenho dos alunos e certificar a conclusão do ensino secundário nas ofertas formativas que prevejam avaliação externa das aprendizagens, podendo ainda ser considerados para efeitos de ensino superior” (assim se exprime o n.º 3 do art.º 24.º-B do Dec.-Lei n.º 139/2012, de 05.7, diploma que estabelece os Princípios Orientadores da Organização e da Gestão dos Currículos dos Ensinos Básico e Secundário – redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 17/2016, de 04.4). Está em causa tarefa complexa, que pressupõe um profundo conhecimento da realidade educacional do País, das matérias ministradas e das competências exigíveis, e, bem assim, das técnicas de avaliação. Embora usando as ditas técnicas e conhecimentos, as equipas de professores terão de fazer opções, sopesar alternativas, elaborando conjuntos que serão distintos, individualizados, face a outras grelhas de avaliação. Por muitas limitações a que essa atividade esteja sujeita, haverá necessariamente uma margem que fica entregue à criatividade dos professores, merecendo, assim, em princípio, o epíteto de obra ou criação intelectual.
Tal obra será uma obra coletiva, cuja autoria em princípio é imputada ao requerente que, como se provou, “concebe os instrumentos de avaliação externa dos alunos, provas finais e exames nacionais” (n.º 2 da matéria de facto) e para o efeito “cria, todos os anos, equipas de docentes e especialistas que sob a sua direção, coordenação e supervisão elaboram as provas de exame nacionais” (n.º 3 da matéria de facto): cfr. art.º 19.º n.º 1 do CDADC.
É certo que as provas são efetuadas na sequência de carta de solicitação elaborada pelo Governo e assinada pelo Secretário de Estado da Educação (n.º 8 da matéria de facto). Mas, ainda que, na falta de mais elementos, se ponderasse que a situação seria equiparável à elaboração de uma obra por encomenda, na falta de convenção em contrário presumir-se-ia que a titularidade da obra pertenceria ao requerente, a quem é imputada a autoria da obra (n.º 2 do art.º 14.º do CDADC).
Neste segmento, assim, concorda-se com o apelante.
Terceira questão (exclusão da proteção dos direitos de autor do requerente, por força das disposições conjugadas da al. c) do n.º 1 do art.º 3.º e n.º 1 do art.º 8.º do CDADC)
O art.º 8.º do CDADC, sob a epígrafe “Compilações e anotações de textos oficiais”, estabelece o seguinte:
1 - Os textos compilados ou anotados a que se refere a alínea c) do nº 1 do artigo 3º, bem como as suas traduções oficiais, não beneficiam de protecção.
2 - Se os textos referidos no número anterior incorporarem obras protegidas, estas poderão ser introduzidas sem o consentimento do autor e sem que tal lhe confira qualquer direito no âmbito da actividade do serviço público de que se trate.”
Por sua vez a al. c) do n.º 1 do art.º 3.º, para qual o n.º 1 deste preceito remete, tem a seguinte redação:
[1 - São obras equiparadas a originais:]
c) As compilações sistemáticas ou anotadas de textos de convenções, de leis, de regulamentos e de relatórios ou de decisões administrativas, judiciais ou de quaisquer órgãos ou autoridades do Estado ou da Administração.”
Destes preceitos resulta que não gozam de proteção pelo Direito de Autor os “textos de convenções, de leis, de regulamentos e de relatórios ou de decisões administrativas, judiciais ou de quaisquer órgãos ou autoridades do Estado ou da Administração.
Trata-se de uma formulação de exclusão que aproveita a faculdade nesse sentido reconhecida pela Convenção de Berna relativa à proteção das obras literárias e artísticas de 9 de setembro de 1886, sujeita a alterações posteriores, a que Portugal aderiu através do Decreto n.º 73/78, de 23.7.
Nos termos do art.º 2.º, 4) da Convenção, “fica reservada às legislações dos países da União a determinação da protecção a conceder aos textos oficiais de carácter legislativo, administrativo ou judiciário, bem como às traduções oficiais desses textos.”
Para Oliveira Ascensão, o supra transcrito texto do CDADC, bem menos sintético do que o adotado pela Convenção de Berna, “equivale, muito simplesmente, às obras de carácter legislativo, administrativo ou judiciário a que se refere a Convenção” (Direito de autor e direitos conexos, ob. cit., p. 115).
A opção portuguesa não foi seguida por outros países. Por exemplo, no Reino Unido, segundo dá conta Patrícia Akester, o Estado detém direito de autor sobre textos oficiais, pelo que, em regra, a sua utilização requer autorização do mesmo (Código do Direito de Autor e Direitos Conexos, anotado, 2017, Almedina, p. 55).
No supra aludido Parecer da PGR, que foi homologado por despacho de 09.6.2017, do Secretário de Estado da Educação, concluiu-se que “a avaliação externa de alunos dos ensinos básico e secundário constitui uma função pública associada ao exercício de poderes públicos” (conclusão 1), “os enunciados das provas de aferição e provas finais de ciclo do ensino básico e dos exames nacionais do ensino secundário integram decisões administrativas no âmbito de um procedimento complexo de avaliação externa de alunos que constitui uma função «da responsabilidade dos serviços ou entidades do Ministério da Educação designados para o efeito» nos termos, respetivamente, do disposto nos artigos 24.º, n.º 2, alínea b), e 29.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho (na sua redação atual, após a terceira revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 17/2016, de 4 de abril)” (conclusão 2); “o artigo 8.º, n.º 1, do CDADC determina que os textos de relatórios ou decisões administrativas de quaisquer órgãos ou autoridades do Estado ou da Administração estão excluídos da proteção dos direitos patrimoniais de autor regulada por esse código” (conclusão 7); “consequentemente, os textos dos enunciados das provas e exames nacionais relativos à avaliação externa de alunos dos ensinos básico e secundário da responsabilidade de serviços ou entidades do Ministério da Educação designados para o efeito não beneficiam da proteção jusautoral conferida pelo CDADC.” (conclusão 8).
No aludido Parecer negou-se, pois, proteção jusautoral às aludidas provas de avaliação e exame nacional elaboradas pelo IAVE, por se entender que as mesmas constituem textos oficiais, na modalidade de decisões administrativas, nos termos e para os efeitos do art.º 8.º n.º 1 do CDADC.
A idêntica conclusão aportou a decisão recorrida.
Cremos que corretamente.
De facto, as aludidas provas inscrevem-se, como bem foi esmiuçado no Parecer da PGR, num processo de avaliação e certificação nacional de conhecimentos levado a cabo pelo Estado, no interesse público, inserido numa tarefa fundamental do Estado consignada no art.º 9.º da CRP (“São tarefas fundamentais do Estado: al. f) Assegurar o ensino e a valorização permanente, …”) e explicitada nos artigos 74.º (Ensino), 75.º (Ensino público, particular e cooperativo) e 76.º (Universidade e acesso ao ensino superior) da CRP. Nesse processo o IAVE “tem por missão o planeamento, a conceção e validação dos instrumentos de avaliação externa de conhecimentos e capacidades dos alunos dos ensinos básico e secundário” (n.º 1 do art.º 3.º do Dec.-Lei n.º 102/2013), e como atribuições “planear, conceber e validar os instrumentos de avaliação externa de alunos, nomeadamente, provas finais e exames nacionais, definindo os respetivos critérios de classificação” (al. a) do n.º 2 do art.º 3.º do mencionado Dec.-Lei) e “acompanhar o processo de aplicação e de classificação dos instrumentos de avaliação externa, no âmbito da missão que lhe está atribuída, em articulação com os demais serviços e organismos do Ministério da Educação e Ciência (MEC)” (al. d) do art.º 3.º).
O apelante pretende, porém, acolher-se no disposto no nº 2 do art.º 8.º do CDADC, segundo o qual “Se os textos referidos no número anterior incorporarem obras protegidas, estas poderão ser introduzidas sem o consentimento do autor e sem que tal lhe confira qualquer direito no âmbito da actividade do serviço público de que se trate.”
Deste preceito resulta que os ditos textos oficiais podem conter obras protegidas, as quais podem ser introduzidas naqueles textos sem consentimento do seu titular. Escreve Oliveira Ascensão: “Há então uma particularidade: não interessa que a incorporação da obra tenha ou não sido autorizada. Em qualquer caso, ela é atraída para a obra oficial e sofre as consequências no regime, como nota a doutrina alemã” (Direito de Autor e direitos conexos, ob. cit., p. 116). Porém, como refere Oliveira Ascensão, o autor não fica expropriado da sua obra, podendo explorá-la, no que não for incompatível com a utilização oficial (ibidem). Luiz Francisco Rebello considera que, no caso de utilização dos textos oficiais, onde está incorporada a obra, fora do contexto do serviço público, haverá lugar a uma remuneração equitativa (Introdução ao direito de autor…, citado, p. 100, nota 100). No mesmo sentido, Patrícia Akester (Código do Direito de Autor …, ob. cit., p. 56).
De todo o modo, como bem nota Oliveira Ascensão, o n.º 2 do art.º 8.º do CDADC, relativo à incorporação nos textos oficiais, excluídos da proteção do Direito de Autor, de obras protegidas, “só tem sentido se se entender que se refere a obras que não são de agentes do Estado, mas de entidades estranhas: um relatório sobre a problemática do ambiente, por exemplo” (Direito de Autor e Direitos Conexos, ob. cit., p. 116).
Ora, como se disse supra, o requerente é uma entidade de direito público, integrada na administração indireta do Estado. Enquanto tal, prossegue fins ou atribuições do Estado, exercendo essencialmente uma atividade administrativa qua tale (vide Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 3.ª edição, Almedina, pp. 347 e ss.). É no pleno exercício dessa atuação administrativa vinculante que o requerente elabora as provas de exame nacionais. Assim, o requerente não é um terceiro, que cria uma obra que irá ser inserida num texto oficial, mas, ele próprio, emite um texto oficial, intrinsecamente excluído da proteção jusautoral.
Pelo que, nesta parte, se não reconhece razão ao requerente.
O que significa, assim, que as provas de exame nacionais elaboradas pelo requerente não gozam da proteção do Direito de Autor, nomeadamente nos termos e para o efeito da intervenção cautelar prevista no art.º 210.º-G do CDADC.
Sendo indiferente, nesta perspetiva, que as requeridas usem tais provas em compêndios por si editados com intuito lucrativo.
Sendo irrelevantes, por não respeitarem a situações similares à destes autos, as considerações tecidas pelo apelante quanto às pretensões do Reino Unido de que não ficassem desprovidos de proteção publicações estatais como “manuais escolares” (conclusão 35 da apelação), ou a jurisprudência do Tribunal de Justiça acerca da comunicação ao público de videogramas em estabelecimentos hoteleiros, ou à utilização de plataformas de partilha em linha (conclusão 44 da apelação).
É certo, como aponta o apelante, que o Dec.-Lei n.º 102/2013 expressamente inclui, nas receitas do IAVE, os valores resultantes da exploração da propriedade intelectual de que seja titular (al. b) do n.º 2 do art.º 20.º). Mas daí não se segue que essas receitas abranjam ou se reportem às provas de exame nacionais. Não se duvida que o IAVE poderá invocar direitos de autor sobre obras por si promovidas ou realizadas no âmbito da investigação e estudos por si empreendidos no âmbito da sua missão e atribuições (no preâmbulo do Dec.-Lei n.º 102/2013 realça-se a concessão ao IAVE do “fomento da investigação no domínio da avaliação educacional”).
Aqui chegados, resulta prejudicado o debate acerca da aplicabilidade do disposto na al. h) do n.º 2 do art.º 75.º do CDADC (conclusões 49 e seguintes da apelação).
Nestes termos, a apelação é improcedente.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida, embora com alteração parcial da fundamentação.
As custas da apelação são a cargo do apelante, por nela ter decaído (art.º 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC).

Lisboa, 17.7.2018

Jorge Leal

Trigo Mesquita

Carla Mendes