Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1209/10.4T2SNT-A.L1-2
Relator: FARINHA ALVES
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
TUTELA POSSESSÓRIA
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/27/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: SUMÁRIO (do relator).

A simples posse só constitui fundamento de embargos de terceiro se, e enquanto, não ficar esclarecida a questão do direito de propriedade, cedendo perante este, como resulta claramente, do preceituado no art. 1278.º do C. Civil e, mais especificamente em sede de embargos de terceiro, do art. 357.º 2 do CPC, na redacção em vigor na data em que foi proferida a decisão recorrida. No fundo, a tutela possessória assenta na presunção da titularidade do direito possuído, sendo afastada logo que essa presunção se mostre ilidida.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, no Tribunal da Relação de Lisboa,

Motivos, Lda deduziu embargos de terceiro à penhora de determinada fracção autónoma de um prédio urbano, efectuada no âmbito de acção executiva requerida pelo Banco, S.A. contra Olímpio e Berta.

Alegou, em síntese:

A embargante é titular do contrato-promessa de compra e venda, com os anteriores proprietários Olímpio e Berta, relativamente à fracção autónoma designada pelas letras “AA” correspondente ao 6º Andar A para habitação do prédio (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Agualva-Cacém sob o n.º (…) e inscrito na matriz respetiva, (…).

A fracção foi penhorada nos presentes autos.

Foi paga a totalidade do preço acordado no contrato-promessa com a assunção, pela embargante, de outras dívidas do vendedor, além do sinal entregue.

E o vendedor ficou de entregar procuração para se proceder à escritura, sem mais pagamentos.

Por isso, a embargante passou a agir como dona da fracção, usando-a e fazendo nela benfeitorias.

Houve, assim, transmissão da propriedade, embora sem escritura.

Subsidiariamente, a embargante invoca o direito real de retenção, de que goza por ter a tradição da fracção, nos termos do art. 755.º, al. h) do C. Civil.

E a penhora efectuada afecta a sua posse e o seu direito sobre a fracção.

Esta oposição foi liminarmente indeferida, com a seguinte fundamentação:

«Da matéria alegada não resulta, ou sequer foi invocada, qualquer aquisição da propriedade, originária ou derivada.

Não decorreu período temporal suficiente para fundamentar usucapião e não foi invocado ato translativo da propriedade.

A posição jurídica invocada radica, em síntese, em tradição de imóvel na sequência de outorga de contra-promessa, “coadjuvada” pela invocação genérica de realização de benfeitorias no imóvel.

Será que tal posição jurídica fundamenta posição possessória oponível à posição jurídica do exequente, credor hipotecário anterior?

Deve entender-se, manifestamente, que não.

A invocada promessa de aquisição, ainda que com tradição, no entender deste tribunal confere-lhe direito de retenção até transmissão válida do direito em sede executiva, sem prejuízo dos direitos que lhe decorram da reclamação e graduação do seu crédito pelo regime do sinal (art. 755º n.º1 al. f)).

Admitir-se que o beneficiário de promessa de transmissão de direito real possa embargar de terceiro contra credor hipotecário é, em nosso entender, pôr em risco toda a garantia hipotecária sem razão que o justifique, uma vez que o direito de tal beneficiário está tutelado pela circunstância de ser graduado antes do credor hipotecário (art. 759º n.º 1 e 2 do CC).

Da mesma garantia retentória beneficiará credor de benfeitorias realizadas na coisa, que poderá reclamar em sede própria

Inconformada, a embargante apelou do assim decidido, tendo apresentado alegações onde formula as seguintes conclusões:

9 – A Douta Sentença, fundamenta mal a decisão de direito; alegando por não haver lugar à defesa através de Embargos de Terceiro por parte da Embargante.

10- Nos termos do Contrato de Promessa de Compra e Venda, a Embargante é titular e possuidora com Direito Real.

11- A Embargante na sua qualidade de Terceira em relação à Execução e de possuidora da coisa, é titular de Contrato de Promessa de Compra e Venda.

12-A Existência do contrato promessa de compra e venda é nada mais que um Direito Real de garantia que lhe confere o Direito de possuir e de reter a coisa até ser pago do que lhe é devido pelo respectivo proprietário.

13- Embargante goza, de um Direito Real de retenção, por ter a traditio; com base no contrato promessa, como é entendimento da Jurisprudência, a penhora afecta a posse reconhecida à Embargante.

Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado revogando-se a decisão recorrida, com as legais consequências.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Sendo o objecto dos recursos delimitado, em regra, pelas respectivas conclusões, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, está em causa na presente apelação saber se deve ser dado prosseguimento aos embargos de terceiro. Ou seja, está em causa saber se foi alegada matéria que, a provar-se, justifica o levantamento da penhora.

Como se viu, na petição inicial de embargos, a embargante alegou, fundamentalmente, que, por ter pago a totalidade do preço da prometida compra e venda, passou a agir como dona da fracção prometida vender, usando-a e fazendo nela benfeitorias, na convicção de ser proprietária da mesma. E, subsidiariamente, alegou ser beneficiária de direito de retenção sobre a fracção prometida vender, de que obteve a tradição, nos termos do art. 755.º al. h) do C. Civil. E esses dois fundamentos foram julgados infundados na decisão recorrida, nos termos acima transcritos.

Através do presente recurso a embargante pretende ver alterado o decidido, sendo duvidoso que continue a invocar os mesmos dois fundamentos. De facto, a ora apelante alegou, nos seguintes termos:

1- A Douta Sentença, fundamenta mal a decisão de direito, ao entender que na situação sub judice, não há lugar à defesa por embargos de terceiro.

2-Nos termos do Contrato de Promessa de Compra e Venda, a Embargante é titular e possuidora com Direito Real.

3-A Embargante na sua qualidade de Terceira em relação à Execução e de possuidora da coisa, é titular de Contrato de Promessa de Compra e Venda.

4- O Contrato foi celebrado, aguardando pela marcação da escritura de Compra e Venda respectivamente e está em vigor, e não diminui o valor à coisa, porquanto é limitado no tempo, é um Direito Real de garantia que lhe confere o Direito de possuir e de reter a coisa até ser pago do que lhe é devido pelo respectivo proprietário.(vide Art.º 759º C.C.) está ainda em oposição com o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10 de Abril de 2002, que entende igualmente que o promitente comprador que realiza actos materiais correspondentes ao exercício do Direito de propriedade pode ter acesso aos meios de tutela da posse, admitindo como válido o contrato promessa outorgado entre as partes.

5- Embargante goza assim, de um Direito Real de retenção, por ter a traditio; com base no contrato promessa, como é entendimento da Jurisprudência, a penhora afecta a posse reconhecida à Embargante; e o seu crédito privilegiado, na medida em que com a prossecução da Execução, consequentemente, perde o direito à coisa perdendo desta forma o seu Direito Real de retenção. (fundamento do Supremo Tribunal Administrativo de 2 de Maio de 2001 entende que o promitente-comprador com detenção ou tradição tem direito de retenção (art° 755º, n° 1 f) do Código Civil) e, se tem esse direito, tem direito a usar dos meios possessórios para defesa desse direito lesado com a penhora (art°s 759°, n° 3 e 670° a) do Código Civil), assento 15/94 de 12.10.).

6- Mas a verdade, é que o possuidor pode deduzir Embargos de Terceiro sempre que, seja ordenada a Decisão Judicial de qualquer acto que venha a ferir a sua posse e o qual, ainda não tenha sido executado, o que é o caso.

7- Nem é só a escritura e o registo, que justifica a propriedade e, a posse legítima. É preciso ter em conta o comportamento dos intervenientes, que podem ter interesse na coisa, e determinar a legitimidade da posse, ou não, sem haver registo. (por conveniência ou impedimento).

8-Pelo que, se vislumbre como legalmente admissível, a dedução de embargos de terceiro nos presentes autos.

Nesta alegação, é fácil identificar a invocação do segundo fundamento invocado, relativo ao reconhecimento do direito de retenção da embargante, sobre a fracção penhorada, para garantia do crédito resultante do incumprimento do contrato-promessa de compra e venda. Isso consta, designadamente, dos art. 4.º (é um Direito Real de garantia que lhe confere o Direito de possuir e de reter a coisa até ser pago do que lhe é devido pelo respectivo proprietário), e 5.º (Embargante goza assim, de um Direito Real de retenção, por ter a traditio; com base no contrato promessa, como é entendimento da Jurisprudência, a penhora afecta a posse reconhecida à Embargante; e o seu crédito privilegiado, na medida em que com a prossecução da Execução, consequentemente, perde o direito à coisa perdendo desta forma o seu Direito Real de retenção).

Já não é tão evidente a invocação do outro fundamento de embargos. Ou seja, a alegação de que, por ter pago a totalidade do preço da compra e venda e ter obtido a entrega da fracção prometida vender, a embargante tinha passado comportar-se como dona da mesma, exercendo actos de posse correspondentes ao exercício do direito de propriedade.

Em todo o caso, julga-se que essa invocação foi feita, ainda que de forma indirecta, na segunda parte do art. 4.º das alegações, e também no art. 7.º, do seguinte teor:

4- (…), está ainda em oposição com o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10 de Abril de 2002, que entende igualmente que o promitente comprador que realiza actos materiais correspondentes ao exercício do Direito de propriedade pode ter acesso aos meios de tutela da posse, admitindo como válido o contrato promessa outorgado entre as partes.

7- Nem é só a escritura e o registo, que justifica a propriedade e, a posse legítima. É preciso ter em conta o comportamento dos intervenientes, que podem ter interesse na coisa, e determinar a legitimidade da posse, ou não, sem haver registo. (por conveniência ou impedimento).

Cumprindo, assim, reapreciar todo o decidido.

Vejamos:

Como se viu, a embargante alegou, no essencial:

É titular de contrato-promessa de compra e venda, com os anteriores proprietários Olímpio Delgado Pereira Mandica e Berta Bengue, relativamente à fracção autónoma designada pelas letras “AA” correspondente ao 6º Andar A para habitação do prédio sito na Avenida do Brasil, n.º 91, em S. Marcos, Freguesia de S. Marcos, Concelho de Sintra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Agualva-Cacém sob o n.º 249 da Freguesia de S. Marcos e inscrito na matriz respetiva, sob o Art.724, daquela Freguesia - (doc. n.º 1).

A fracção foi penhorada nos presentes autos.

Foi paga a totalidade do preço acordado no contrato-promessa com a assunção, pela embargante, de outras dívidas do vendedor, além do sinal entregue.

E o vendedor ficou de entregar procuração para se proceder à escritura sem mais pagamentos.

Por isso, a embargante passou a agir como dona da fracção, usando-a e fazendo nela benfeitorias.

Houve, assim, transmissão da propriedade, embora sem escritura.

Nos termos assim enunciados, a embargante alegou que, por ter pago a totalidade do preço estabelecido no contrato-promessa de compra e venda e ter obtido a entrega da fracção, passou a agir como dona da mesma, usando-a e fazendo nela benfeitorias, na convicção de ser sua proprietária.

Mas, com todo o respeito, nem a matéria respeitante ao contrato-promessa pode ser considerada adequadamente alegada. A embargante alegou ser titular do contrato-promessa, que identificou como doc. n.º 1 junto, que nem sequer deu por reproduzido, não tendo alegado a data em que o mesmo foi celebrado, o preço acordado e as condições de pagamento, nem o acordo dos promitentes sobre a entrega do bem prometido vender. E a junção de documentos não supre a falta de alegação.

Depois, no que respeita à sua posse sobre a fracção penhorada, a embargante limitou-se a alegar, em termos conclusivos, que passou a agir como dona da fracção, usando-a e fazendo nela benfeitorias, sem concretizar minimamente essa alegação, quer no que respeita aos actos de uso, quer quanto às benfeitorias. Como se julga evidente, a matéria assim alegada é insusceptível de fundar qualquer discussão de facto e, sobretudo, qualquer decisão de direito.

De resto, essa conclusão assentava na alegação de que tinha sido paga a totalidade do preço acordado para o contrato prometido, com a assunção de outras dívidas dos promitentes vendedores. Sem que, mais uma vez, tenha sido minimamente concretizada a matéria assim alegada, em termos igualmente conclusivos. Ou seja, não foi minimente esclarecido em que é que se traduziu a alegada assunção de dívidas, nem como essa situação de pagamento integral deveria ser articulada com o reforço de sinal de € 2000,00, previsto na cláusula 7.ª, ou com a estipulação de que a escritura seria celebrada depois de três anos, e com a emissão de procuração em favor da promitente compradora para poder proceder à escritura.

Deste modo, repete-se, não foi adequadamente alegada a matéria que a embargante pretendia opor à penhora.

Independentemente disso, que poderia ser objecto de correcção, acompanha-se a decisão recorrida, na parte em que concluiu que a posse que a embargante pudesse fundar em contrato-promessa de compra e venda celebrado no dia 14-10-2010, não é susceptível de ser defendida por embargos de terceiro contra a penhora do bem prometido vender, realizada  em execução instaurada contra os promitentes vendedores.

É certo que, a demonstrar-se que, por ter pago a totalidade do preço convencionado e ter obtido a tradição da fracção, a ora embargante passou a exercer sobre a mesma actos de posse correspondentes ao exercício do direito de propriedade, estaríamos perante uma situação de posse incompatível com a penhora efectuada.

Mas a simples posse só constitui fundamento de embargos de terceiro se, e enquanto, não ficar esclarecida a questão do direito de propriedade, cedendo perante este. Como resulta claramente, do preceituado no art. 1278.º do C. Civil e, mais especificamente em sede de embargos de terceiro, do art. 357.º 2 do CPC, na redacção em vigor na data em que foi proferida a decisão recorrida. No fundo, a tutela possessória assenta na presunção da titularidade do direito possuído, sendo afastada logo que essa presunção se mostre ilidida.

Ora, no caso dos autos, resulta inequivocamente do que foi alegado na petição de embargos que a propriedade da fracção penhorada continua radicada nas pessoas dos executados. Sendo seguro que o contrato-promessa invocado não transmitiu o direito de propriedade sobre a fracção prometida vender, e que não decorreu tempo de posse suficiente para fundar a aquisição por usucapião, que também não foi invocada.

Deste modo, devendo ser considerado assente que a fracção penhorada continua a ser propriedade dos executados, a posse alegadamente exercida pela embargante nunca poderia ser oposta ao exequente, não podendo fundar a dedução de embargos de terceiro.

Prosseguindo, julga-se ser pacífico o entendimento de que a efectivação de uma penhora não é incompatível com o conteúdo do direito de retenção que incida sobre o bem penhorado. Como a própria apelante reconhece, o direito de retenção é um direito real de garantia, que visa assegurar a preferência atribuída ao crédito garantido, no caso de venda forçada do bem onerado com esse direito, sendo o crédito garantido o resultante do incumprimento definitivo do contrato-promessa de compra e venda, nos termos dos art.s 754.º e  755.º, n.º 1, al. f) do C. Civil. Ou seja, por força do invocado direito de retenção, a ora apelante teria direito a ver satisfeito aquele seu crédito com a preferência própria do direito de retenção, conforme preceituado no art. 759.º do mesmo Código.

Estamos, assim, perante um direito a exercer no âmbito do concurso de credores a que haja lugar em relação ao produto da venda do bem onerado. O que, como é bom de ver, não só não é incompatível com a penhora, como a pressupõe. Pois que o direito de retenção não se torna efectivo sem a venda forçada do bem onerado com essa garantia, a qual, em regra, pressupõe a respectiva penhora. Não sendo, pois, a penhora incompatível com esse direito de retenção.

Neste sentido, de que a penhora não é incompatível com o direito de retenção, pode ver-se, Lebre de Freitas, em “A Acção Executiva”, 4.ª edição, pag. 281 e seguintes, e na jurisprudência,  por todos, o acórdão do STJ de 04-12-2007 (relator Fonseca Ramos), em cujo sumário se pode ler:

I) - O direito de retenção, como direito real de garantia, é invocável pelo promitente-comprador que obteve a traditio, visando a garantia do crédito pelo dobro do sinal prestado, em caso de incumprimento definitivo do contrato pelo promitente-vendedor.

II) – (….)

III) – (…)

IV) - Conferindo o direito de retenção ao seu titular, direito de preferência que se sobrepõe, até, a créditos hipotecários, a penhora, não afectando tal garantia, assegura ao credor/retentor o poder reclamar os seus créditos em sede executiva, visando receber o seu crédito pelo produto da venda.

V) - O direito de retenção não é, assim, incompatível com a penhora ou apreensão judicial do imóvel, porque o seu titular encontra amparo para o seu direito de crédito, no esquema da acção executiva.

Assim improcedendo os embargos, enquanto fundados em direito de retenção.

Termos em que acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Lisboa, 27-11-2014

(Farinha Alves)

(Tibério Silva)

(Ezagüy Martins)