Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2507/09.5TASXL.L2-5
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: REFORMATIO IN PEJUS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO, EMBORA REVOGANDO PARCIALMENTE A DECISÃO RECORRIDA
Sumário: – Uma condenação em “pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com a condição de a arguida depositar nos autos a quantia total dc €4.500,00 (quatro mil c quinhentos euros) até ao termo da pena suspensa”, relativamente a uma condenação “na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo”, representa uma manifesta violação do princípio da proibição da reformatio in pejus, consagrado no artigo 409.º, n.º 1, do C.P.P., porquanto no segundo julgamento, ocorrido na sequência do recurso apenas interposto pela arguida, não podia o tribunal de 1.ª instância agravar a sua posição processual, condenando-a em pena mais gravosa do que aquela que havia sido aplicada no primeiro julgamento.
– Julgamos não ser questionável que passar de uma suspensão simples para uma suspensão sujeita à condição de pagamento à assistente/demandante civil, dentro de certo prazo, de uma determinada quantia, constitui um agravamento da pena originariamente imposta.
– Não se ignora que a norma do artigo 409.º, n.º 1, do C.P.P., se dirige, em primeira mão e directamente, ao tribunal superior, ao conhecer do recurso do arguido ou do Ministério Público no interesse deste, todavia, a jurisprudência do S.T.J. e da Relações, em consonância com o Tribunal Constitucional, tem entendido ser o mesmo princípio válido e extensivo ao tribunal de 1.ª instância quando tem de ser repetido o julgamento por vício declarado pelo tribunal superior, verificando-se, então, a proibição da reformatio indirecta.
Decisão Texto Parcial:Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–Relatório:


1.– No processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 2507/09.5TASXL, procedeu-se ao julgamento dos arguidos A. e R. , melhor identificados nos autos, a quem foi imputada a prática, em co-autoria material e em concurso real:
- de um crime de burla informática e nas comunicações p. e p. pelos artigos 26.º, 221.º, n.º1 e n.º5, al. b), do Cód. Penal;
- de um crime de acesso ilegítimo p. e p. pelo artigo 6.º, n.º1 e 4, al. b), da Lei n.º109/2009, de 15/9.
B.E.S., S.A., constituiu-se assistente e deduziu pedido de indemnização cível contra os arguidos/demandados pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de €180.000,00, acrescida de juros, à taxa legal, até integral cumprimento e referente ao montante do prejuízo por si sofrido com a conduta dos arguidos.

Realizado o julgamento, foi proferido acórdão datado de 14 de Fevereiro de 2017, que decidiu nos seguintes termos:
«Pelo exposto, delibera este Tribunal Colectivo:
a)- absolver o arguido R. da prática dos crimes por que se encontra acusado;
b)- absolver a arguida A. da prática do crime de acesso ilegítimo por que se encontra acusada.
c)- condenar a arguida A. , pela prática de um crime de burla informática, p. e p. pelo art. 221°, n°1 e n°5, al.b), do Cód. Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.
(…)
e)- Condenar a arguida/demandada no pagamento à assistente/demandante da quantia de 180.000,00 €, acrescida de juros de mora desde a data da notificação e até integral cumprimento.
(…)»

2.–A arguida interpôs recurso, tendo esta Relação declarado a nulidade do acórdão do tribunal de 1.ª instância e determinado que se procedesse à elaboração de novo acórdão que sanasse a nulidade por falta de fundamentação que havia sido detectada.

(…)
           
3.1.2.4. A menção pela recorrente, no corpo da motivação e sem tradução nas conclusões, a uma pretensa violação dos artigos 127.º, 340.º, 365.º, n.º3, do C.P.P., carece de qualquer fundamentação. Quanto ao artigo 365.º, n.º3, carece, mesmo, de qualquer sentido, salvo melhor opinião.

Qual seja a nulidade nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º1, do C.P.P., que a recorrente invoca em sede de conclusões, é algo que se desconhece, sabido que tal preceito limita-se a dizer que qualquer nulidade que não seja insanável fica sujeita à disciplina prevista nesse artigo e no seguinte.

Trata-se de mais uma evidência de que estamos face a um recurso que, salvo o devido respeito, está longe de ser modelar.

Invoca a recorrente, também, o princípio in dubio pro reo.

Não ignorando a polémica doutrinal que envolve a fundamentação do princípio in dubio e a sua relação com o princípio da presunção de inocência – entre teorias uniformizadoras que identificam os dois princípios e teorias diferenciadoras que distinguem o seu alcance e conteúdo -, temos que perante uma dúvida sobre os factos desfavoráveis ao arguido, que seja insanável, razoável e objectivável, o tribunal deve decidir “pro reo”.

Ensina, sobre a matéria, o Prof. Figueiredo Dias:
À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal, também não possam considerar-se como provados. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão (...) – tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo” (Direito Processual Penal, reimpressão, 1984 p. 213).

O estado de dúvida (insanável, razoável e objectivável) - valorado a favor do arguido por não ter sido ilidida a presunção da sua inocência - pressupõe que, produzida a prova, o tribunal, e só o tribunal, tenha ficado na incerteza quanto à verificação ou não, de factos relevantes para a decisão. Como diz Cristina Líbano Monteiro: «O universo fáctico – de acordo com o “pro reo” – passa a compor-se de dois hemisférios que receberão tratamento distinto no momento da emissão do juízo: o dos factos favoráveis ao arguido e o dos factos que lhe são desfavoráveis. Diz o princípio que os primeiros devem dar-se como provados desde que certos ou duvidosos, ao passo que para a prova dos segundos se exige a certeza.» (Perigosidade de Inimputáveis e «In Dubio Pro Reo», pág. 53).   

Sendo o S.T.J. um tribunal de revista, compreende-se o entendimento, repetidamente afirmado na sua jurisprudência, de que não resultando da decisão que o tribunal de instância ficou num estado de dúvida sobre os factos e que «ultrapassou» essa dúvida, dando-os por provados, contra o arguido, ao S.T.J. fica vedada a possibilidade de decidir sobre a violação do princípio «in dubio pro reo», dado o quadro dos respectivos poderes de cognição, restritos a matéria de direito.

Por isso se diz que no S.T.J. só pode conhecer-se da violação desse princípio quando da decisão recorrida resultar que, tendo o tribunal a quo chegado a um estado de dúvida sobre a realidade dos factos, decidiu em desfavor do arguido; ou então quando, não tendo o tribunal a quo reconhecido esse estado de dúvida, ele resultar evidente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, nos termos do vício do erro notório na apreciação da prova.

Na Relação, porém, por conhecer de facto e de direito, temos entendido que mesmo que a violação do princípio in dubio não resulte do texto da decisão recorrida, só por si ou conjugada com as regras da experiência comum, enquanto erro notório na apreciação da prova [cfr al. c) do n.º2 do artigo 410.º do C.P.P.), pode a mesma ser detectada no âmbito de impugnação ampla da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Quer isto dizer que, fora dos limites do erro notório na apreciação da prova, o recurso da decisão de facto, no âmbito da impugnação ampla, habilita a Relação, que conhece de facto, a reapreciar as provas, a formular a sua livre convicção quanto às mesmas e a determinar se o tribunal de 1.ª instância, independentemente de se ter visto subjectivamente confrontado com a situação de dúvida, julgou provado facto desfavorável ao arguido apesar de a prova disponível não permitir, de forma racional e objectiva, à luz das regras da experiência e/ou de regras legais ou princípios válidos em matéria de direito probatório, ultrapassar o estado de dúvida sobre a realidade do facto.

Porém, como já dissemos, o recurso em apreço não habilita à impugnação ampla da decisão de facto, pelo que a violação do princípio in dubio terá de ser reconduzida ao vício do erro notório, enunciado na alínea c) do n.º2 do artigo 410.º do C.P.P., ou pelo menos a um critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto do artigo 410.º, n.º2.

Como se pode ler no Ac. do STJ, de 10/01/2008, Proc. n.º 07P4198, disponível em www.dgsi.pt, “«a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador - juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável (a doubt for which reasons can be given). Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» (ibidem).”

Pois bem: percorrendo-se o acórdão recorrido, deste não resulta que tenha ficado instalada no espírito dos julgadores a mais pequena incerteza quanto a qualquer um dos factos que na decisão consideraram provados, ou seja, não se alcança que o tribunal a quo tenha valorado contra a arguida qualquer estado de dúvida sobre a existência dos factos, do mesmo modo que também não se infere que o tribunal recorrido, que não teve dúvidas, as devesse ter, em face do que decorre da própria decisão.
Não se verificou, por conseguinte, qualquer violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio.

3.1.2.5.– Finalmente, apenas no pressuposto de que o tribunal de recurso teria de dar como não provados os factos que provados se encontram no acórdão recorrido, pretende a recorrente a sua absolvição penal e civil.
Não podendo ser acolhido o seu desiderato quanto aos factos provados e à invocada “nulidade” do artigo 120.º, n.º1 (que não sabemos qual seja!), por se manter inalterada a matéria de facto e nada mais se dizer quanto à condenação civil, temos que, também nessa parte o recurso não colhe provimento.

3.2.– A nosso ver, a condenação penal, na determinação da pena, merece reparo.
Realmente, o primeiro acórdão, objecto de recurso apenas pela arguida, condenou esta «pela prática de um crime de burla informática, p. e p. pelo art. 221°, n°1 e n°5, al. b), do Cód. Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.»
O acórdão ora recorrido, por sua vez, condenou a arguida «pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla informática, previsto e punido pelo artigo 221°, n°s 1 e 5, alínea b), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com a condição de a arguida depositar nos autos a quantia total de €4.500,00 (quatro mil e quinhentos euros) até ao termo da pena suspensa, comprovando o pagamento nos autos de, pelo menos, €1.500,00 (mil e quinhentos euros) anualmente, quantia esta que reverterá para a ora demandante por conta do pedido de indemnização civil.»

Esta condenação representa, a nosso ver, uma manifesta violação do princípio da proibição da reformatio in pejus, consagrado no artigo 409.º, n.º 1, do C.P.P., porquanto no segundo julgamento, ocorrido na sequência do recurso apenas interposto pela arguida, não podia o tribunal de 1.ª instância agravar a sua posição processual, condenando-a em pena mais gravosa do que aquela que havia sido aplicada no primeiro julgamento.

O regime jurídico da pena (de substituição, conforme vem sendo classificada pela doutrina) de suspensão da execução da pena de prisão encontra-se previsto nos artigos 50.º a 57.º do Código Penal, e nos artigos 492.º a 495.º do C. P. Penal.

Da análise do regime legal resulta que a suspensão da execução da pena de prisão pode assumir três modalidades: suspensão simples; suspensão sujeita a condições (cumprimento de deveres ou de certas regras de conduta); suspensão acompanhada de regime de prova.

Julgamos não ser questionável que passar de uma suspensão simples para uma suspensão sujeita à condição de pagamento à assistente/demandante civil, dentro de certo prazo, de uma determinada quantia, constitui um agravamento da pena originariamente imposta.

Não se ignora que a norma do artigo 409.º, n.º 1, do C.P.P., se dirige, em primeira mão e directamente, ao tribunal superior, ao conhecer do recurso do arguido ou do Ministério Público no interesse deste.

Todavia, a jurisprudência do S.T.J. e da Relações, em consonância com o Tribunal Constitucional, tem entendido ser o mesmo princípio válido e extensivo ao tribunal de 1.ª instância quando tem de ser repetido o julgamento por vício declarado pelo tribunal superior, verificando-se, então, a proibição da reformatio indirecta (cfr. acórdão desta Relação, de 22-05-2012, processo 611/09.9PDOER.L2-5, contendo diversas referências jurisprudenciais).

Quer isto dizer não pode a arguida ver agravar-se a sua condenação por força do recurso por si interposto, em violação das garantias constitucionais de defesa consagradas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República, nomeadamente o direito ao recurso.

Consequentemente, pese embora o recurso não mereça provimento em função das razões apresentadas, o acórdão recorrido, por violação da proibição da reformatio in pejus (reformatio indirecta), deve ser revogado na parte em que condicionou a suspensão da execução da pena, no mais se confirmando.

***

III–Dispositivo
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em, negando provimento ao recurso interposto pela arguida A. , ainda assim revogar o acórdão recorrido, por violação da proibição da reformatio in pejus, apenas na parte em o que o mesmo condicionou a suspensão da execução da pena, no mais se confirmando.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.



Lisboa, 14 de Maio de 2019


(o presente acórdão, integrado por trinta e sete páginas com os versos em branco, foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)


(Jorge Gonçalves)                               
(Carlos Espírito Santo) 

Decisão Texto Integral: